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Série-Estudos

versão impressa ISSN 1414-5138versão On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.28 no.64 Campo Grande set./dez 2023  Epub 05-Jan-2024

https://doi.org/10.20435/serieestudos.v28i64.1756 

Article

Vestígios das primeiras iniciativas de educação de surdos em Brasília na década de 1960

Traces of the first initiatives of deaf education in Brasília in the decade of 1960

Rastros de las primeras iniciativas de la educación de los sordos en Brasilia en la década de 1960

Mônica Oliveira dos Santos1 
http://orcid.org/0000-0002-7567-0039

Juarez José Tuchinski dos Anjos1 
http://orcid.org/0000-0003-4677-5816

1Universidade de Brasília (UnB), Brasília, Brasília, Brasil


Resumo

Em Brasília, as primeiras iniciativas de educação de surdos remontam à década de 1960, em algumas instituições mantidas pelo poder público e/ou em escolas da Fundação Educaciona do Distrito Federal, das quais, infelizmente, nenhuma documentação parece ter sobrevivido ao tempo. Por outro lado, por ocasião de uma pesquisa mais ampla em andamento, alguns vestígios dessas iniciativas foram localizados em notícias veiculadas num periódico local, que ainda não receberam tratamento historiográfico por parte dos historiadores que têm se dedicado ao estudo da educação na capital federal. Diante do exposto, o objetivo deste artigo é investigar os vestígios dessas primeiras iniciativas de educação de surdos em Brasília, conforme veiculadas nas páginas do jornal Correio Braziliense na década de 1960. As conclusões apontam que, ao longo de praticamente toda a década, a Fundação Educacional de Brasília esteve à frente de iniciativas para a escolarização das crianças com deficiência, dentre elas, as crianças surdas. Em termos educacionais, o modelo de educação voltado para as crianças surdas visava sua oralização e “integração” à sociedade, pela via do acesso às escolas regulares, após alguns anos de frequência a escolas especializadas. Diversos investimentos pedagógicos e materiais foram feitos nesse sentido, passando, inclusive, pela especialização de professores para o atendimento desse público escolar.

Palavras-chave: história da educação; educação de surdos; Brasília

Abstract

The first deaf education initiatives in Brasília date back to the decade of 1960 in some nstitutions maintained by the government and/or in schools of the Educational Foundation of the Federal District, of which, unfortunately, no documentation seems to have survived time. On the other hand, due to broader research in progress, some traces of those initiatives were located in news published in a local periodical, which have not yet received historiographical treatment by historians dedicated to the study of education in the federal capital. In view of the above, the present paper is aimed at investigating traces of these first initiatives of deaf education in Brasília based on publications of the newspaper Correio Braziliense in the decade of 1960. The conclusions point out that throughout virtually the entire decade, the Educational Foundation of Brasília was at the forefront of initiatives for the schooling of children with special needs, including deaf children. In educational terms, the educational model for deaf children was aimed at their oralization and “integration” into society through access to regular schools after a few years attending specialized schools. A number of material and pedagogical investments were made in this sense, including the specialization of teachers to teach this group of students.

Keywords: history of education; deaf education; Brasília

Resumen

En Brasilia, las primeras iniciativas de educación de sordos datan de la década de 1960, en algunas instituciones mantenidas por el poder público y/o en escuelas de la Fundación Educativa del Distrito Federal, de las cuales, lamentablemente, no parece haber sobrevivido documentación alguna. Por otro lado, con motivo de una investigación más amplia en curso, se localizaron algunos rastros de estas iniciativas en noticias publicadas en un periódico local, que aún no han recibido tratamiento historiográfico por parte de historiadores que se han dedicado al estudio de la educación en el capital Federal. En vista de lo anterior, el objetivo de este artículo es nvestigar los rastros de esas primeras iniciativas de educación para sordos en Brasilia publicadas en las páginas del periódico Correio Braziliense en la década de 1960. Las conclusiones indican que, durante prácticamente toda la década, la Fundação Educacional de Brasília estuvo al frente de iniciativas para la escolarización de niños con discapacidad, entre ellos, niños sordos. En términos educativos, el modelo educativo dirigido a los niños sordos apuntaba a su oralización e “integración” a la sociedad, a través del acceso a escuelas regulares, luego de algunos años de asistir a escuelas especializadas. Varias inversiones pedagógicas y materiales fueron realizadas en este sentido, incluyendo la especialización de los docentes para atender a este público escolar.

Palabras clave: historia de la educación; educación para sordos; Brasília

1 INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, a pesquisa sobre a história da educação em Brasília vem se expandindo significativamente. Os estudos têm enfocado as diferentes instituições que se dedicaram à educação dos brasilienses, como as escolas provisórias ainda na época dos acampamentos de construção da cidade (Pereira; Henriques, 2011), a Escola Parque (Pereira; Rocha, 2011), a Escola Normal (Amaral, 2018), as Escolas-Classe (Wiggers; Piedade; Reis, 2018), as Escolas de Educação Média (Souza, 2011) e os Jardins de Infância (Anjos; Pinto, Müller, 2020). Também têm sido destacadas as trajetórias dos atores dessa história: professoras primárias (Rodrigues, 2018), professores de música (Abreu, 2018), políticos (Anjos; Barbosa, 2020) e jornalistas (Barbosa, 2021). Contudo, existem ainda lacunas a serem preenchidas. Uma delas é o objeto de que se ocupa este artigo: as primeiras iniciativas de educação de surdos2 em Brasília na década de 1960.

Fazendo um breve panorama histórico acerca da educação dos surdos no Brasil, Herold Júnior e Cardoso (2016) relatam que ela se iniciou em 1855, com o francês Édouard Huet Merlo, professor surdo que perdeu a audição aos 12 anos. Huet foi estudante do Instituto Nacional de Surdos de Paris, onde se tornou docente; teve proximidade com o método aplicado pelo abade L’Epee; participou da direção do Instituto de Surdos de Bourges e mudou-se, em 1855, para o Brasil (Castro; Calixto, 2016). Huet utilizava o alfabeto Manual e a Língua de Sinais Francesa. Segundo Sofiato, Carvalho e Coelho (2021), ele criou um projeto de educação de surdos e apresentou-o ao imperador D. Pedro II. O projeto foi propiciado em 1856, com a origem do Colégio Nacional para Surdos-Mudos de Ambos os Sexos. Posteriormente a um ano de trabalho e de solicitação de ajuda financeira, a pedido de Huet e dos representantes da direção, D. Pedro II legitimou um subsídio, e o instituto deslocou de sede e mudou seu nome, passando a ser designado Instituto Imperial dos Surdos-Mudos, sendo a primeira escola brasileira especializada no atendimento de estudantes surdos, atualmente Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), localizado no Rio de Janeiro. Em 1929, foi criada a segunda escola especial: o Instituto Santa Teresinha, em São Paulo. A parceria com esse instituto, em 1959, resultou na fundação do Instituto Nossa Senhora de Lourdes (INOSEL), no Rio de Janeiro (Duarte, 2009). Também há de se mencionar o Centro de Reabilitação Ninota Garcia, em Aracaju, fundado em 1962, que atendia alunos surdos, cegos, deficientes mentais e motores (Lima et al., 2013).

Já em Brasília, as primeiras iniciativas de educação de surdos remontam à década de 1960, em algumas instituições mantidas pelo poder público e/ou em escolas da Fundação Educacional do Distrito Federal, das quais, infelizmente, nenhuma documentação parece ter sobrevivido ao tempo. Por outro lado, por ocasião de uma pesquisa mais ampla em andamento, alguns vestígios dessas iniciativas foram localizados em notícias veiculadas num periódico local, os quais ainda não receberam tratamento historiográfico por parte dos historiadores que têm se dedicado ao estudo da educação na capital federal. Diante do exposto, o objetivo deste artigo é investigar os vestígios dessas primeiras iniciativas de educação de surdos em Brasília, conforme veiculadas nas páginas do jornal Correio Braziliense, na década de 1960.

O Correio Braziliense, em circulação até nossos dias, é o jornal diário mais antigo de Brasília, tendo seu primeiro número sido lançado na mesma data de inauguração da capital, 21 de abril de 1960. Pertence à cadeia dos Diários Associados, que era o maior conglomerado brasileiro de mídia da época. Conforme Juarez dos Anjos (2022, p. 44):

O Correio nunca teve uma posição ideológica exclusiva, mas alinhada à dos Diários Associados. Isso significa, em termos nacionais, segundo os estudos de Glauco Carneiro (1999), que esteve, em alguns momentos, favorável ao nacional desenvolvimentismo de JK, noutros em confronto com o populismo de João Goulart e abertamente pró-militares a partir do golpe de 31 de março de 1964 (embora com alguns recuos quando das investidas deste sobre os interesses comerciais dos Associados em meados da década).

Já em termos locais, de acordo com Ana Morelli (2002), o jornal assumiu uma posição de defesa da permanência da capital federal no Planalto Central e buscou dar ampla cobertura às demandas necessárias para que tal intento obtivesse êxito. Daí a educação ter sido um dos temas frequentemente abordados pelo jornal (Anjos, 2022) e, dentro dessa pauta, ocasionalmente, a educação de surdos.

Em nível metodológico, foram pesquisadas as edições do Correio Braziliense existentes na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Na Hemeroteca, realizou-se a pesquisa de notícias relativas à educação de surdos em Brasília, por meio de palavras-chave: “Surdo”, “Surdez”; “escola de surdos”; “educação de surdos”. A partir destas palavras-chave, retornaram diversas notícias, dentre as quais foram selecionadas as mais relevantes para esta pesquisa.

O que emerge das páginas do Correio Braziliense sobre a educação de surdos são, sobretudo, vestígios das práticas educativas que, para eles, voltaram-se ao longo da década de 1960. Entendemos tais vestígios na acepção de Marc Bloch, como “[...] a marca perceptível aos sentidos, deixada por um fenômeno em si mesmo impossível de captar” (Bloch, 2001, p. 73). Como dito, das instituições públicas voltadas ao atendimento dessa população, nenhuma documentação foi localizada. Mas as experiências educativas que nelas tiveram lugar deixaram, em certa medida, a sua “marca” em algumas páginas do Correio Braziliense, possibilitando que, adequadamente interrogada, a operação com esses “indícios, sinais e sintomas” (Levi, 1992, p. 155) permita identificar “[...] seu significado à luz de seu próprio contexto específico” (Levi, 1992, p. 155); ou seja, delinear alguns sentidos da educação destinada aos surdos nos primórdios de Brasília. Se é forçoso reconhecer que são, em sua maior parte, informações parciais, lacunares, fragmentárias, isso não impede, como respalda Carlo Ginzburg (1989), que se produza a partir delas conhecimento histórico.

O artigo, até aqui introduzido, conta com duas partes. Na primeira e mais extensa, analisamos as primeiras iniciativas de educação de surdos na capital federal, conforme presentes nas páginas do Correio Braziliense. Na segunda, mais breve, tecemos algumas considerações, a modo de conclusão. Convidamos o(a) leitor(a) a percorrer conosco este itinerário.

2 A EDUCAÇÃO DE SURDOS NAS PÁGINAS DO CORREIO BRAZILIENSE

Somos informados, pela leitura das páginas do Correio Braziliense, de que em 1967 – sete anos após a inauguração da capital federal –, a educação de surdos era um tema discutido, por exemplo, na Igreja Luterana em Brasília, conforme a reportagem a seguir:

Amanhã, domingo, no horário das 9 horas, a Igreja Evangélica Luterana do Brasil, localizada SQ. 403-4, fará realizar um grande culto de Evangelização. Será pregador o Reverendo doutor Martim Carlos Warth, renomado missionário e professor do Seminário Concórdia de Porto Alegre. À noite do mesmo dia, no horário das 20 horas, o missionário fará a apresentação de slides coloridos sobre o trabalho da Igreja Luterana. Na mesma oportunidade, a professora Dona Naomi Warth, que fez curso de especialização nos Estados Unidos fará uma palestra sobre o ensino a surdos mudos. A Congregação Luterana convida autoridades bem como o povo amigo de Brasília a prestigiar com uma presença esta iniciativa missionária (Correio Braziliense, 1967, p. 3).

O Seminário Concórdia estava ligado à Escola Especial Ulbra Concórdia. O reverendo doutor Martim Carlos Warth, segundo a Igreja Luterana do Brasil (2019), por meio das buscas de informações, atuou como pastor missionário, sendo o primeiro presidente desta Igreja. O trabalho de evangelização dessa Igreja iniciou-se com os estrangeiros europeus e espalhou-se por todo o território brasileiro (IELB, 2019). É perceptível a importância representativa do reverendo, assim como da sua esposa, Naomi Warth, os fundadores da Escola Especial Ulbra Concórdia. Tornaram-se referência na educação de surdos na década de 1960, tratados como presenças ilustres e tendo destaque especial no jornal. Evidencia-se, assim, nessa noticia, que a educação dos surdos era tema com apelo social aos leitores do periódico. Já o realce dado à formação da esposa do pastor nos Estados Unidos aponta para a circulação de modelos pedagógicos para a educação de surdos no período, embora as informações coletadas não permitam aprofundamentos nesse sentido. Mas o que se vinha fazendo, efetivamente, em Brasília, pela educação dos surdos? Algumas respostas podem ser obtidas em matéria publicada dois anos depois, em 1969, no mesmo diário.

A história do Ensino Especial, em Brasília, deu-se após o nascimento da nova capital, sendo discorrida pelo Correio Braziliense numa reportagem extensa, estampada em página inteira, com duas fotografias de alunos sendo atendidos em escolas denominadas “Unidades de Ensino Especial”, localizadas no Plano Piloto e nas cidades-satélites de Taguatinga e Sobradinho. Uma das fotografias3 vem acompanhada da legenda: “Na hora do recreio o monte de cascalho é preferido, mas há sempre um que cuida com carinho dos colegas”; na outra: “A quadrilha de São João foi treinada com muito entusiasmo”. Escrita pela jornalista Nayde Abreu, a reportagem recebeu o título “O Ensino de Excepcionais É uma Obra de Amor” (Correio Braziliense, 1969, p. 10), pormenorizandose que:

Duzentas e vinte e sete crianças frequentam as unidades do Ensino Especial no Plano Pilôto, em Taguatinga e Sobradinho. Portadores de defeitos físicos, lesões ou desvios de conduta de natureza congênita ou motivados por doenças na primeira infância [...] Há tempos atrás, algumas famílias escondiam suas crianças [...]. Relegavam-nas a segundo plano [...] Agora, vestem um uniforme e vão à Escola [...].

É relatado, nessa matéria, o acolhimento desses alunos e sua interação no âmbito escolar. A criança com deficiência não era limitada e tinha direito a conviver em harmonia: se antes eram relegadas “a segundo plano [...] Agora, vestem um uniforme e vão à Escola”. Indicia-se, apesar desse desejo de homogeneidade, que o ensino de surdos era diferenciado dos demais alunos, conforme particulariza a reportagem:

O ensino de surdos é resolvido totalmente. Depois que aprendem a linguagem labial e a falar são encaminhados às escolas comuns. Durante certo tempo, o Ensino Especial os acompanha e depois eles próprios se tornam independentes e seguem sòzinhos seu caminho. Com os portadores de debilidade mental, o caminho é mais penoso [...]. Daí, partem para o ensino comum e sua primeira impressão é de que são bem iguais aos seus novos colegas [...] Depois da Escola comum, estão aptos para qualquer trabalho que demande habilidade manual [...] (Correio Braziliense, 1969, p. 10).

Seguindo as tendências da pedagogia oralista, então em voga, o objetivo do ensino de surdos era levá-los ao desenvolvimento da habilidade da fala, por meio da qual seriam “integrados” ao que a jornalista denomina de escolas comuns, visando à sua autonomia e independência. Porém nem todas as pessoas com deficiência conseguiam tal integração, como era o caso dos “portadores de debilidade mental”. No caso dos surdos, por meio do domínio da oralidade, a expectativa dos educadores era de que esses estudantes saíssem da escola “prontos para o trabalho que demande habilidade manual”. O processo de escolarização comum a todas as crianças no Centro de Ensino Especial ocorria da seguinte maneira:

O primeiro estágio de uma criança no Ensino Especial é a Classe de Oportunidades, que corresponde ao maternal comum: destina-se aos alunos de 2 anos a 2 anos e meio de idade mental; e a fase de socialização e êles adquirem hábitos sociais e de higiene; aprendem a vestir-se, a pentear-se, a saudar-se, a respeitar-se mùtuamente, a respeitar a propriedade alheia. Esta classe comporta o máximo de 5 alunos.

O segundo é o da Classe de Adaptação para 6 anos mentais, admitindo um máximo de 10 alunos. Nesta, além de continuar a socialização, os meninos de 3 a 4 e meio anos mentais, correspondendo ao Jardim de Infância comum, treinam a coordenação motora e o desenvolvimento sensorial, fazem exercícios digito-manuais, trabalhos com lixa, veludo, papel, algodão e têm jogos para fixar a atenção, a fim de desenvolver o senso de observação, etc. A Classe Pré-Especial, corresponde ao início do primário, comportando um máximo de 12 alunos, de 6 anos mentais inicia a alfabetização e dá rudimentos de matemática. Finalmente a Classe Especial nível de 1ª série mais adiantada do que as comuns, com o máximo de 12 alunos, desenvolve tôdas as atividades de uma classe propriamente escolar: linguagem e escrita; matemática; geografia; história; ciências naturais; higiene; moral e cívica. Nesta, êles permanecem até atingirem um adiantamento superior ao das classes comuns, a fim de que ao passarem para as mesmas, tenham estímulo para continuar a alcançar novos graus, segundo suas possibilidades. Após a Escola Comum, dá-se o encaminhamento para as profissões ligadas à arte. Todos os alunos têm aulas de Praxiterapia, ou seja, o tratamento pela arte. Estas versam sôbre: recreação, iniciação musical, desenho e artes plásticas (Correio Braziliense, 1969, p. 10).

De acordo com o trecho acima, a educação destinada às crianças com deficiência – incluídas aí as surdas –, no Centro de Ensino Especial, dava-se em quatro etapas progressivas: a classe de oportunidades; a classe de adaptação; a classe pré-especial e a classe especial. Na classe de oportunidades, voltada a alunos de 2 a 2 anos e meio, o objetivo era desenvolver nela hábitos sociais e higiênicos (o que sugere, assim, uma amálgama de saberes médicos com saberes pedagógicos nessa etapa do ensino). Já na classe de adaptação o público atendido eram crianças de 3 a 6 anos, para as quais, junto aos conteúdos anteriormente aprendidos, acrescentavam-se o desenvolvimento sensorial e motor. Posteriormente, a partir dos 6 anos de idade, as crianças com deficiência eram encaminhadas à chamada classe pré-especial, na qual começariam o seu processo de alfabetização. Por fim, a partir de uma idade não informada na notícia, ascendiam à chamada classe especial, na qual passavam a ser escolarizadas com conhecimentos semelhantes ao das escolas comuns, mas almejando serem levadas a um nível além daquele da escola regular, para que, quando passassem a frequentá-la, estivessem em condições de acompanhar os colegas sem deficiências, com o máximo aproveitamento. Após esse percurso pelas diferentes classes do Centro de Ensino Especial, as crianças com deficiência seriam encaminhadas para a escola comum e, ao término desta, para o aprendizado de profissões ligadas à arte. No seu conjunto, os conteúdos aplicados nessa instituição sinalizam que os surdos, assim como os demais alunos, deveriam seguir a mesma metodologia de ensino dos alunos regulares, sendo as mesmas matérias utilizadas nas Escolas-Classes4. Isso sugere que se pretendia, pelo percurso realizado, levar o estudante “excepcional” a um padrão dito de “normalidade”, acreditando-se que esse itinerário educativo lhe permitiria ter as mesmas oportunidades e educação das crianças sem deficiência. A notícia, ao referir-se ao perfil dos professores, atribui-lhes um caráter vocacional, sendo a profissão vista como um ato de amor, além de colocar o aluno na posição de privação afetiva:

Para educar escepcionais é preciso vocação, senso de devoção e capacidade de amar, porque o ensino de excepcionais é uma obra de Amor. Sem carinho, sem amor, sem paciência, sem aptidão para encarar o excepcional como um ser carente de afeição, nada se consegue do educando incomum. Além destas qualidades e de tôdas aquelas que constituem uma devoção, são necessários estudos especializados e estágios no Rio, São Paulo, Rio Grande do Sul e Bahia, onde escolas e institutos aceitam bolsistas e alunos regulares (Correio Braziliense, 1969, p. 10).

Em que pese a dimensão “vocacional” do trabalho com as crianças com deficiência e seu caráter quase caritativo – “uma obra de amor” –, nota-se, ao final do excerto, que são citados os “estudos especializados” e estágios realizados pelas professoras a fim de se tornarem preparadas para os desafios da educação especializada que se propunha para as crianças “excepcionais”. A julgar pelas regiões indicadas, no caso específico dos surdos, talvez tenham havido estágios em instituições como: INES (Rio de Janeiro), Instituto Santa Teresinha (São Paulo) e Escola Especial Concórdia (Rio Grande do Sul). A falta de mais informações, contudo, só nos permite ficar no campo das “possibilidades históricas” (Davis, 1987) e da provável circulação de modelos pedagógicos nacionais no contexto local de Brasília.

Se o ensino especial em Brasília, em 1969, estava organizado como vimos até aqui, nem sempre foi assim. A matéria, nesse sentido, oferece informações significativas. Segundo o periódico, o ensino especial na capital “[...] se iniciou em 24 de março de 1962, com uma escolinha de surdos e três professôras especializadas que lançaram o apelo – ‘O surdo não é diferente de você’” (Correio Braziliense, 1969, p. 10). Posteriormente, a matéria segue relatando que o ensino de surdos, em caráter mais ampliado, deu-se na Escola Paroquial do Carmo, com 30 alunos. No 2º semestre de 1962, mudaram para o galpão da Paróquia do Sagrado Coração de Jesus, que era um espaço emprestado, “[...] em compensação, conseguiram para a paróquia uma série de melhoramentos e instalaram turnos pela manhã e à tarde” (Correio Braziliense, 1969, p. 10). Em pouco tempo, “à semelhança do que aconteceu no Carmo, a Paróquia do Sagrado Coração retomou o Galpão para instalar cursos de seu interesse” (Correio Braziliense, 1969, p. 10). Assim, a escola precisou deslocar-se para a sede da Associação de Professores Primários e Secundários, onde se fixou até o ano de 1964. Mudou-se novamente, naquele ano, para o Edifício Ceará, e no meio do referido ano, para o Colégio La Salle.

Do conjunto dessas informações, depreende-se que, nos primórdios, a educação de surdos funcionou em espaços sobrantes/cedidos a título precário: numa “escolinha”; depois, numa “escola paroquial” – um tipo de estabelecimento de ensino primário confessional existente em Brasília; em seguida, em um espaço religioso emprestado; posteriormente, na sede da Associação de Professores, no Edifício Ceará – uma instituição de assistência social da capital – e, ainda, numa instituição escolar católica, o Colégio La Salle. Emergem, assim, pequenas parcerias estabelecidas entre o poder público e iniciativas privadas, sobretudo católicas, visando possibilitar o acesso das crianças surdas a uma educação especializada.

A matéria segue seu relato, apresentando mais mudanças de endereço, o número de alunos surdos misturados aos que apresentavam outras deficiências, existentes no Plano Piloto e em algumas regiões administrativas:

[...] através de convênio com a Secretaria de Educação e Cultura da PDF [...] se inicia o ensino de retardados, com a requisição da professora Eleida de Aquino Correia. Até o ano passado funcionou o Ensino Especial naquele Colégio [La Salle], onde começou uma experiência de recuperação de alunos surdos do ginásio comum, mediante a requisição de professores do Ensino Médio para Matemática, Português e Línguas Modernas. Em 1964, instalou-se uma classe para atendimento de surdos em Taguutinga [sic] e, em 1968, o Ensino Especial enviou professores especializados para classes de Sobradinho. O número total de alunos em 1968 chegou a 201, sendo 123 no Plano Pilôto; 66 em Taguatinga e 12 em Sobradinho. Neste ano, sobe a 227, o número de excepcionais que frequentam as escolas de excepcionais do Distrito Federal. E novamente mudou-se para a casa do Ceará, onde aguarda a construção de instalações próprias, em vista do aumento crescente de alunos, a cada ano que passa. O corpo de professôres aumentou como consequência da demanda de matrículas que oscilam, de acôrdo com o local ocupado pela Escola de Excepcionais, para depois voltar ao equilíbrio, quando se resolve problemas de condução e outros (Correio Braziliense, 1969, p. 10).

Destarte, segundo periódico, em 1969, a educação de “excepcionais” – incluídos aí os surdos – se descentralizara para além do Plano Piloto de Brasília, chegando a duas das mais antigas cidades-satélites do Distrito Federal, Taguatinga e Sobradinho. Mas, apesar do elevado número de crianças atendidas, a falta de uma sede própria para essa escola ainda se fazia sentir, considerado o relevo que se dá ao fato de, naquele ano, a instituição estar novamente, a título provisório, no Edifício Ceará, “onde aguarda a construção de instalações próprias”. Esse dado da falta de uma instalação própria, numa cidade que teve por característica o planejamento cuidadoso do projeto arquitetônico de suas escolas (Chahin, 2018), pode ser um indicador de que, apesar do atendimento dado às crianças com deficiência, ele ainda não era objeto de todos os investimentos possíveis naquele período, tendo sido tratado de forma secundária no conjunto das preocupações com a educação local. O jornal traz consigo a existência, também, de outras escolas destinadas ao ensino dos “excepcionais”:

Até 1966, o Ensino Especial estêve diretamente subordinado ao Secretário de Educação e Cultura e desta época em diante passou a integrar a Coordenação de Educação Primária da SEC. A Educação de Excepcionais é trabalho que requer uma reunião de fôrças para o seu amplo funcionamento. Além do poder público, várias organizações, como associações de pais e amigos dos excepcionais, conhecidas pela sigla de APAES - Sociedades Pestalozzi colaboram para a manutenção de tais serviços, secundadas por instituições de caráter social e a comunidade, através de campanhas públicas, em benefício dos menos dotados (Correio Braziliense, 1969, p. 10).

Sobre o período em que a educação de surdos funcionou na sede da Associação dos Professores Primários de Brasília, somos informados por outra notícia: “Escola de Surdos – O Instituto da Fala do DF”, publicada em 1963, na coluna “O ensino dia a dia”, de Yvonne Jean – seção do Correio Braziliense que, tradicionalmente, abordava a qualidade do ensino público em Brasília:

A Associação dos Professores Secundários e Primários do Distrito Federal tomou uma bela iniciativa: emprestou todas as dependências de sua sede à escola de Surdos de Brasília, reservando-se tão somente a noite para suas reuniões. Assim é que as salas mudaram de ambiente, com os cartazes, jogos, objetos para testes, que as enchem e a presença constante de 36 crianças e três professoras. Professoras de uma dedicação ímpar. Professoras que as crianças adoram o que é muito importante tratando-se de aulas completamente diferentes das habituais e de alunos, que chegam às primeiras aulas desconfiados, isolados pelas paredes de sua surdez levando algum tempo antes de entender que lhe é possível falar. Cada professora só cuida de 5 crianças de cada vêz. No máximo. As aulas não podem ser programadas, devem ser adaptadas à cada caso individual. Observando as reações de um menino como Jayme Alberto, fiquei prêsa de uma emoção e alegria que não ressentia há muitos anos. Se tivessem visto este menino de quatro anos, inteligentíssimo, querendo aprender o que o apaixona desde que compreendeu o sentido da fala cravando seus olhos nos da professora com uma atenção absoluta e repetindo as palavras que lia nos lábios dela. Imediatamente aplicando-se aos objetos que rotulavam. Se tivessem sentido a alegria do menino cada que vez que pronunciava a palavra certa, aumentando o vocabulário e concepção de vida! Também teriam saído da escola profundamente abalados e felizes pois lá se realiza, concretamente, a integração de crianças excepcionais à vida (Correio Braziliense, 1963, p. 9).

Mais uma vez, somos remetidos à centralidade que a oralização assumia na educação de surdos em Brasília. O título da matéria – fazendo referência à escola – já anunciava sua finalidade: “Instituto da Fala”, lugar onde a criança surda aprende a falar. Para tanto, utilizavam-se de vários materiais, como “cartazes, jogos, objetos para testes”, além de professoras “de uma dedicação ímpar”. A jornalista não se furta de apresentar suas representações sobre os estudantes “desconfiados, isolados pelas paredes de sua surdez”, que é rompida quando começavam a aprender que podiam “falar”. Como se sabe, atualmente, esse modelo de educação de surdos é fortemente rechaçado tanto pela comunidade surda quanto pelos especialistas da área, mas, como em história cabe-nos não julgar, mas compreender (Febvre, 2009), é preciso reconhecer que ele estava claramente organizado e direcionado para essa finalidade. A alegria do menino Jayme Alberto ao conseguir falar e ampliar seu vocabulário, descrita por Yvonne Jean, é forte pista de que estes também almejavam – ou eram levados a almejar – alcançar determinados níveis de oralidade.

Prosseguindo seu relato, Yvonne Jean informa-nos que, ao prosseguir os estudos, os alunos seguiam para uma escola regular, que aqui é referida como escola-classe habitual. Ela destaca, ainda, a diferença de como o ensino para o surdo era oferecido no passado e como passou a ser oferecido no Distrito Federal, como uma educação considerada moderna e de qualidade:

Tanto assim que muitas destas crianças entrarão numa escola-classe habitual quando tiverem aprendido a dominar a linguagem labial. Que diferença com os antigos meninos que chamavam de surdos-mudos e apresentavam quadros desanimadores e tristes com seus gestos, seu alfabeto manual. As crianças de 4 a 15 anos do Plano Piloto e Cidades Satélites reagem cada uma ao seu modo e recebem constante atenção e um ambiente de liberdade e alegria (Correio Braziliense, 1963, p. 9).

É oportuno registrar, no trecho acima, a crítica da jornalista à educação através de sinais, revelando ser ela, como os demais atores do período, favorável à oralização, que estaria alcançada quando as crianças tivessem “aprendido a dominar a linguagem labial”. Para ela – assim como para os educadores que trabalhavam com essa parcela da população infantil naquele contexto –, esse era o modelo educativo desejável e para o qual empregavam seus esforços. Era o que de mais moderno haveria em matéria educacional. Haja vista que a escola sequencial, de ensino comum, não tinha professores especializados na área de surdez, ao chegar à Escola Classe, os surdos passavam a receber o mesmo ensino das demais crianças, visando sua inserção na escola comum.

Na reportagem, observou-se que a jornalista esteve presente na sala de aula e exprimiu suas impressões de uma forma bastante romantizada. Percebe-se que a intenção dos educadores, na ocasião, era alinhar o surdo a um grau de “normalidade”, que outrora só servia de “fardo” para a sociedade. Vale destacar que, nesse período, os surdos tinham uma educação com abordagem do oralismo até mesmo nas escolas especializadas, de forma que o que ocorria em Brasília, conforme Strobel (2007), não era uma exceção, mas a regra: “[...] os sujeitos surdos eram/são colocados nas escolas onde os professores ensinam os surdos com modelo de identidade de pessoas ouvintes não permitindo-lhes construírem a identidade surda, sendo representados como ‘deficientes’” (Strobel, 2007, p. 24). A mudança para a Escola de Surdos de Brasília na sede da Associação dos Professores Primários e Secundários, segundo a reportagem, possibilitou um melhor acolhimento para os alunos:

A professora Aracy nos contou que muitas poderão estudar normalmente, lembrando alguns alunos do Rio que conseguiram preparar-se ao lado de outros estudantes, para uma profissão. Um deles é hoje engenheiro. Outros seguiram curso do ensino comercial. Não são mais um peso morto para a família e a sociedade, não são mais seres infelizes. Levam uma vida normal, útil e cheia. E isto, que acontecerá com a maioria dos alunos que observamos em Brasília, é algo tão animador que dá vontade de pedir a todos de dar um pulo até a Associação dos Professores para tomar conhecimento do que se pode fazer com um planejamento sério, estudos especializados, boa vontade e dedicação para crianças destinadas outrora a uma vida vazia e injusta e que, agora pulam de alegria cada vez que sentem elas próprias que deram mais um passo no caminho da absoluta integração à vida ambiênte (Correio Braziliense, 1963a, p. 9).

A notícia procura descrever, a partir da ótica de uma das docentes – a professora Aracy –, as experiências exitosas que os surdos do Rio tiveram ao receber ensino semelhante ao que era oferecido em Brasília. Representações negativas sobre os surdos que não tinham tais oportunidades educativas também são novamente veiculadas (“peso morto para a família”; “seres infelizes”). Tudo para convencer os leitores da pertinência da proposta educacional da instituição, com um convite para os que quisessem conferir in loco o que “se pode fazer com um planejamento sério, estudos especializados, boa vontade e dedicação”.

Embora o periódico apresente, com entusiasmo, o ensino oferecido ao surdo no Distrito Federal, este é pintado ao leitor de uma maneira utópica, projetando que alguns desses alunos viessem a atingir o maior topo possível no mercado de trabalho e o apogeu nos seus estudos. Todavia, mesmo assim, as professoras dessa escola solicitaram a criação do Instituto da Fala do Distrito Federal – uma instituição que, como o nome indica e já tivemos oportunidade de ressaltar, teria o desenvolvimento da fala como seu objetivo central:

As professoras que sonham com a criação do Instituto da Fala do Distrito Federal, pedem que o terreno da Novacap já pedido ao Presidente da República lhes seja dado, quanto antes, para a criação do que querem chamar de ‘Instituto da Fala do Distrito Federal’ [...]. Não nos esquecemos que não se trata de uma escola particular e sim de uma das escolas da Fundação Educacional de Brasília. Tem direito absoluto a um prédio. Acrescento após a visita que fiz direito prioritário (Correio Braziliense 1963a, p. 8).

A notícia finaliza enfatizando que o sonhado “Instituto da Fala do Distrito Federal” seria uma escola pública, mantida pela Fundação Educacional de Brasília, e não uma instituição particular, como que a endossar aos leitores a pertinência da proposta, que viria complementar o sistema de ensino implantado na jovem capital federal. Em outra matéria assinada por Yvonne Jean, Escola para Surdos (Correio Braziliense, 1963b, p. 9), a jornalista reforça impressões positivas sobre a Escola de Surdos de Brasília da Fundação Educacional de Brasília:

Descrevemos há poucos dias, as úteis e inteligentes atividades da Escola para Surdos da Fundação Educacional, implantada na Associação dos Professores Secundários e Primários de Brasília, que lhe emprestou sua sede. Em vez de sentirem tristes e um pouco desanimados da escola – e isso geralmente acontece quando ao aproximarmos de crianças excepcionais cujos problemas são complexos e, às vezes insolúveis – sentimo-nos, ao contrário, otimistas e alegres, pois observamos crianças conseguindo aprender e preparando-se para uma vida tão normal quanto possível após terem vencido a desconfiança para com os professores e tornando-se interessados e até mesmo entusiastas do estudo (Correi Braziliense, 1963b, p. 9).

Um ano depois, a reportagem “Escola de Surdos Já Tem Laboratório de Psicologia” (Correio Braziliense, 1964a, p. 8) menciona a mudança da sede da Associação dos Professores de Brasília para as novas instalações no Edifício Ceará, orientada agora pelo Departamento de Ensino Extraescolar, e os encaminhamentos médicos precisos para o desenvolvimento dos surdos, ressaltando a interligação com o Hospital Distrital de Brasília e o Laboratório de Psicologia:

A Escola de Surdos do Distrito Federal, por determinação do Presidente da Fundação Educacional, prof. Cleantho Siqueira, passou agora a ser orientada pelo Departamento de Ensino Extra Escolar, o qual, através de seu Laboratório de Psicologia, que superintende a Educação de Adultos e de Excepcionais, poderá melhor atender, orientar e preparar para a vida escolar os que sofrem de deficiência da audição, reintegrando-se na sociedade. Uma das primeiras medidas adotadas pelo Diretor do Ensino Extra-Escolar, foi a de transferir a Escola de Surdos, na Superquadra 310, na Sede da Associação dos Professores do Distrito Federal, para o Edifício Ceará, 12º andar, onde funciona o Departamento a fim de manter o seu funcionamento próximo ao Laboratório de Psicologia dando melhor assistência aos alunos, bem como aproximando-se do Hospital Distrital, onde diversos médicos colaboram com o programa de recuperação dos surdos. Uma reunião das professoras deverá ser realizada hoje a fim de ser acertado o novo horário das aulas, bem como tomar outras medidas que se fazem necessárias (Correio Braziliense, 1964a, p. 8).

A matéria procura, no título, destacar o que seria uma inovação na educação de surdos – o uso que passariam a fazer de um laboratório de psicologia, que poderá “melhor atender, orientar e preparar para a vida escolar os que sofrem de deficiência da audição, reintegrando-se na sociedade”. Outra novidade é a proximidade com o hospital distrital, “onde diversos médicos colaboram com o programa de recuperação dos surdos”. Nos dois casos, a tônica é a reintegração, a recuperação, enfatizando a aliança entre saberes educacionais e saberes médicos com vistas a levar os estudantes surdos a assumirem para si e suas vidas a cultura e os padrões de oralidade dos ouvintes.

A última reportagem, “Escola de Surdos Vai para o Edifício Ceará” (Correio Braziliense, 1964b, p. 5), descreve também a transferência da Escola de Surdos, bem como anuncia a construção de um Centro de Educação Especial:

A Escola de Surdos, que funciona na superquadra 310, será transferida para o Edifício Ceará, onde funciona o Departamento de Ensino Extra-Escolar. Esta decisão foi tomada pela Diretora deste Departamento em reunião realizada com os pais dos alunos daquele estabelecimento de ensino, recuperação e orientação dos pequenos deficientes de audição do Distrito Federal. Um dos objetivos da mudança é aproximação com o Laboratório de Psicologia, que funciona no Edifício Ceará e no HDB, onde as crianças surdas são constantemente examinadas, e, de outro lado, visa a oferecer à Escola um local de trabalho mais adequado do que uma sede de entidade privada. A mudança é temporária, pois já se encontra em fase bastante adiantada a Construção do Centro de Educação Especial [...].

A decisão tomada de comum acôrdo, trouxe grande contentamento aos pais, principalmente pela assistência que agora vem sendo dispensada aos seus filhos, diretamente assistidos pela Professora Edy Abreu de Andrade, dela recebendo a orientação necessária para a sua integração nas escolas comuns, merenda escolar e transporte de suas residências à Escola e vice-versa.

A matrícula de novas crianças na Escola de Surdos, em seu novo enderêço, reflete o acêrto com que se houve a autoridade que determinou sua transferência e o alargamento das perspectivas de seus campos de ação (Correio Braziliense, 1964b, p. 5).

A notícia reforça que a mudança de sede da escola – de uma “entidade privada” para uma entidade assistencial – permitiria um “trabalho mais adequado”, especialmente pela proximidade com o Laboratório de Psicologia e o Hospital de Base do Distrito Federal. A transferência teria sido bem recebida pelos pais, inclusive com a recepção de novas matrículas. O periódico ainda traz uma informação que não podemos deixar passar: “a mudança é temporária, pois já se encontra em fase bastante adiantada a construção do Centro de Educação Especial”. No olhar retrospectivo, próprio de historiadores e à luz das notícias que abriram esta seção, sabemos que a construção desse edifício, ao menos até 1969, não saiu do papel, sendo que, no referido ano, a escola de educação especial (depois de outras mudanças no meio da década) ainda funcionava, a título provisório, nas dependências do Edifício Ceará.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nosso objetivo, neste artigo, foi investigar os vestígios das primeiras iniciativas de educação de surdos em Brasília, conforme veiculadas nas páginas do jornal Correio Braziliense, na década de 1960.

Foi possível observar que, ao longo de praticamente toda a década, a Fundação Educacional de Brasília – órgão responsável pela gestão do ensino na capital federal – esteve à frente de iniciativas para a escolarização das crianças com deficiência, dentre elas, as crianças surdas. Porém, isso não necessariamente permite afirmar que tal atendimento tenha se dado a contento, a julgar pela ausência de uma sede própria para a Escola de Educação Especial e as constantes mudanças de local pelas quais passou a instituição que, em distintos momentos, se ocupou da educação de surdos.

Parcerias com entidades religiosas, assistenciais e profissionais parecem ter sido fundamentais para que a educação de surdos se efetivasse na cidade. Em termos educacionais, o modelo de educação voltado para as crianças surdas visava à sua oralização e “integração” à sociedade, pela via do acesso às escolas regulares, após alguns anos de frequência a escolas especializadas. Vigorava, assim, ali, uma pedagogia oralista. Diversos investimentos pedagógicos e materiais foram feitos nesse sentido, passando, inclusive, pela especialização de professores para o atendimento desse público escolar.

Em estudos futuros, seria importante buscar outros aspectos dessa história, como a educação de surdos em Brasília no período posterior à década de 1960, bem como iniciativas educacionais dessa clientela escolar que se tenham dado em escolas para além daquelas da Fundação Educacional do Distrito Federal, como o Instituto Pestalozzi e as Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAES), apenas para mencionar aquelas que foram citadas em algumas das matérias interrogadas nesta pesquisa. A busca, também, por localizar professores e alunos surdos que tenham participado dessa história e que ainda estejam vivos – num investimento em estudos sobre a memória desses sujeitos – pode ajudar a cobrir lacunas que a documentação ora localizada deixa ainda descoberta. As descobertas desta pesquisa, nesse sentido, constituem-se numa primeira contribuição a esse debate historiográfico que merece ser instaurado.

2Para governo do leitor, cumpre esclarecer que “[...] a surdez nada mais é do que a privação ou a limitação do sentido da audição. Essa privação ou limitação pode ser parcial ou total e pode ser causada por diversos fatores, como, por exemplo, viroses, doenças durante a gestação, predisposição genética e, até mesmo, má formação do feto. A intensidade da perda auditiva varia e pode ser medida por decibéis, a medida usada para determinar a potência/frequência do som. Uma pessoa é considerada com deficiência auditiva a partir da referência/frequência de 500, 1.000, 2.000 e 3.000 Hz. Essas frequências determinam se a surdez ou perda auditiva será bilateral, parcial ou total. De acordo com as frequências citadas, é possível determinar os níveis de surdez como leve, moderada e severa/profunda” (Morais et al., 2019, p. 33-34).

3As fotografias não puderam ser aqui reproduzidas, por sua baixa resolução, uma vez que foram digitalizadas a partir de microfilmes da Biblioteca Nacional.

4Este é o nome pelo qual são designadas as escolas primárias em Brasília e no Distrito Federal, no período em tela. Sobre o sistema de ensino brasiliense e seu planejamento, ver Teixeira (1961).

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Recebido: 26 de Outubro de 2022; Aceito: 23 de Agosto de 2023

Mônica Oliveira dos Santos: Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, modalidade profissional, da Universidade de Brasília (UnB). Professora da Secretaria de Educação do Distrito Federal. E-mail:monicamonisket@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7567-0039

Juarez José Tuchinski dos Anjos: Doutor em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação, Modalidade Profissional, da Universidade de Brasília (UnB). E-mail:juarezdosanjos@yahoo.com.br, Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4677-5816

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