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Série-Estudos

versão impressa ISSN 1414-5138versão On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.28 no.64 Campo Grande set./dez 2023  Epub 05-Jan-2024

https://doi.org/10.20435/serieestudos.v28i64.1745 

Article

Múltiplas interfaces da iniciação à leitura e à escrita: processo de ensino e de aprendizagem em escolas públicas do estado de Sergipe

Multiple interfaces from initiating to reading and writing: teaching and learning process in public schools in the state of Sergipe

Múltiples interfaces desde la iniciación a la lectura y la escritura: proceso de enseñanza y aprendizaje en escuelas públicas del estado de Sergipe

Suzana Mary Andrade Nunes1 
http://orcid.org/0000-0003-1165-8951

Verônica dos Reis Mariano Souza1 
http://orcid.org/0000-0001-8076-098X

1Universidade Federal de Sergipe (UFS), Aracaju, Sergipe, Brasil.


Resumo

Este estudo analisa as políticas públicas educacionais, a partir dos compromissos governamentais com as agendas internacionais em interface com as bases teóricas que fundamentaram os programas governamentais, a fim de superar o analfabetismo desde o processo de redemocratização do Brasil. Assim sendo, dialoga-se com as mensagens das diretoras gerais da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), referentes aos anos de 2017 a 2021, e com as propostas para Todos (EPT) até 2030, no tocante aos investimentos governamentais direcionados às escolas de diferentes países, como o Brasil. Com isso, analisaram-se os resultados das avaliações voltadas à alfabetização: Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA), no período de 2016, e a Avaliação Nacional de Rendimento Escolar (2020), executadas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (INEP), as quais compreendem o Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), bem como a avaliação aplicada pelo Sistema de Avaliação do Estado de Sergipe (SAES) no período de 2021, no sentido de repensarmos as políticas públicas e o processo de continuidade para execução de um projeto educacional que promova efetivamente a alfabetização dos brasileiros e brasileiras no século XXI.

Palavras-chave: políticas públicas; alfabetização de crianças do ensino regular; UNESCO

Abstract

This study analyzes public educational policies based on governmental commitments to nternational agendas in interface with the theoretical bases that supported government programs, in order to overcome illiteracy since Brazil’s redemocratization process. Therefore, it dialogues with the messages of the Directors General of the United Nations Educational, Scientific and Cultura Organization (UNESCO) for the years 2017 to 2021, and with the proposals and reports of the Education for All (EPT) by 2030, in the regarding government investments directed to schools in different countries, including Brazil. With this, the results of the evaluations focused on literacy results were analyzed: National Literacy Assessment (ANA), in the period of 2016, and the National Assessment of School Performance (2020), carried out by the National Institute of Studies and Research Anísio Teixeira (INEP), which comprise the Basic Education Assessment System (SAEB), as well as the assessment applied by the State of Sergipe Assessment System (SAES), in the period of 2021, in the sense of rethink public policies and the process of continuity for the execution of an educational project that effectively promotes the literacy of Brazilians in the 21st century.

Keywords: public policy; literacy of regular school children; UNESCO

Resumen

Este estudio analiza las políticas públicas educativas, a partir de los compromisos gubernamentales con las agendas internacionales en interacción con las bases teóricas que fundamentaron los programas gubernamentales, a fin de superar el analfabetismo desde el proceso de redemocratización de Brasil. Siendo así, se dialoga con los mensajes de las directoras generales de la Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura (UNESCO), referentes a los años 2017 a 2021, y con las propuestas para Todos (EPT) hasta 2030, en lo que se refiere a las inversiones gubernamentales dirigidas a las escuelas de diferentes países, como Brasil. Con eso, se analizaron los resultados de las evaluaciones volcadas a los resultados de la alfabetización: Evaluación Nacional de Alfabetización (ANA), en el período de 2016, y la Evaluación Nacional de Rendimiento Escolar (2020), ejecutadas por el Instituto Nacional de Estudios e Investigaciones Anísio Teixeira (INEP), las cuales comprenden el Sistema de Evaluación de la Educación Básica (SAEB), así como la evaluación aplicada por el Sistema de Evaluación del Estado de Sergipe (SAES) en el período 2021, en el sentido de repensar las políticas públicas y el proceso de continuidad para ejecución de un proyecto educacional que promueva efectivamente la alfabetización de los brasileños y brasileñas en el siglo XXI.

Palabras clave: políticas públicas; alfabetización de los niños regulares; UNESCO

1 INTRODUÇÃO

A sociedade brasileira esperava mais dos resultados da alfabetização no Brasil. A cada publicação dos relatórios do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), em turmas de 2º ano do ensino fundamental, no Brasil, tem-se provado o gosto amargo da frustração, uma vez que as políticas públicas implementadas e os investimentos do erário público nas últimas décadas, desde o processo de redemocratização, não correspondem às expectativas dos resultados em avaliações que ocorrem nacionalmente ou em estados da Federação. Por outro lado, contrastamos as iniciativas aos interesses políticos para reversão dos resultados de escolaridade na educação básica e superior, e percebemos que houve um claro descompasso. O que podemos afirmar é que os interesses expressos em jogos de linguagens oficiais também podem ter sido um dos fatores para que resultados mais satisfatórios não fossem alcançados.

Entende-se que um povo escolarizado tem maior autonomia e que o exercício da liberdade se faz por meio de leituras e questionamentos sobre a realidade, cabendo ao processo de escolarização a aquisição de competências individuais e coletivas promotoras de uma visão crítica e autônoma que compreenda o domínio do conhecimento, a inserção e participação da sociedade e as relações intra e interpessoais, de modo que a participação democrática seja o exercício da cidadania.

Diante disso, os órgãos internacionais, a saber, Organização das Nações Unidas (ONU), Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e Banco Mundial, uns mais que outros, criam projetos para superar o agravante quadro de analfabetismo no mundo, ao passo que realizam conferências internacionais com a finalidade de pactuar compromissos com as instâncias governamentais dos diferentes países, a fim de vencer a guerra mundial contra o analfabetismo.

O Brasil, desde o seu processo de redemocratização, tem participado de conferências internacionais e se comprometido em estabelecer metas a serem alcançadas desde a década de 90 do século XX2, de modo que, em 2015, a UNESCO divulgou que as políticas públicas brasileiras responderam positivamente, com a inclusão de 97% da população, em idade escolar, nas escolas brasileiras, o que é um dado bastante satisfatório, apesar de ter alcançado somente dois objetivos dos seis estabelecidos pela agenda internacional de Educação para Todos até 2030, segundo Relatório de Monitoramento Global da EPT 20153.

Os resultados das avaliações destacaram que a qualidade educacional do Brasil não foi alcançada, ao passo que foram evidenciados níveis de iniciação à leitura e à escrita aquém aos expectados.

É a partir desta constatação dolorosa que pretendemos repensar as políticas públicas para a melhoria da alfabetização no Brasil, tendo como pano de fundo os programas governamentais da primeira e segunda décadas do século XXI, além de contrapor o que foi feito com os resultados das avaliações institucionais do SAEB nos anos de 2016 e 2019, gerenciados e publicados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (INEP), em 2020.

Vale salientarmos que os dados contemplados na Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA), de 2016, e na Avaliação Nacional (ANRESC), mais popularmente conhecida como Provinha e Prova Brasil, de 2017 e 2019, são também fontes para realizarmos as nossas análises e, consequentemente, produzirmos uma leitura dessa realidade controversa e bastante preocupante da educação brasileira. Dentro dessas bases nacionais de dados, deter-nos-emos, mais especificamente, à realidade sergipana, a partir da primeira avaliação realizada no estado sergipano, por meio do Sistema de Avaliação de Educação Básica de Sergipe (SAESE), em 2021, em turmas do 2º ano do ensino fundamental menor, a fim de dialogarmos entre as avaliações nacional e estadual.

Nesse sentido, não poderíamos elaborar um pensamento se não tivéssemos um eixo conceitual que se interligasse aos resultados das avaliações institucionais, as quais se tornam questão embrionária para repensarmos um projeto de nação que eleve a alfabetização de crianças em tempo regular, por meio da notificação de dados quantitativos de qualidade, e, por conseguinte, a inferência de que as crianças brasileiras escolarizadas adquirirão competências básicas para enfrentarem os desafios futuros.

Assim, neste estudo, recorremos ao conceito de políticas públicas encontrado nos estudos de Schimdt (2018) e de Ferrão e Paixão (2018), uma vez que se alinham com os nossos objetivos, ao passo que identificamos, em seus escritos, o conceito eminente de Narratividade presente na sintaxe conceitual, conforme Nunes (2022) e Goodson (2013) e Nunes (2023), que serve de compreensão para legitimar mudanças da causa/efeito, assim como das influências dos fatores sociais, econômicos e políticos. Nessa ordem de pensamento, Schmidt (2018) propõe apresentar um estudo sobre os conceitos, os aspectos metodológicos e as abordagens acerca das políticas públicas, desde uma visão alargada do senso comum, da concepção apreendida pela imprensa e uma revisão da literatura científica.

É fundamental termos a compreensão dos fatores concorrentes dessas abordagens pela articulação da “participação pública e os domínios de intervenção”, que, nesse estudo, refere-se às avaliações associadas aos programas e às produções científicas adotadas por diferentes governos que consubstanciaram as políticas públicas educacionais nas últimas décadas no Brasil. No diálogo entre os autores mencionados, enfatizamos Schimdt (2018) e o seu alinhamento no sentido de compreender a complexidade e o envolvimento da gestão pública, evitando o reducionismo e as visões autoritárias. Schimdt (2018) alerta que o “cidadão” deve conhecer e entender os mecanismos e a previsão legal das políticas públicas.

Este cidadão exige que ele não seja somente escolarizado, mas, fundamentalmente, uma pessoa letrada com formação crítica e participativa, de maneira que se interesse em transformar o seu contexto e a sociedade, que acredite na sua transformadora em prol da sociedade. É o que reforça o autor: “[...] quais interesses estão sendo contemplados e quais não estão, as principais forças envolvidas, os espaços de participação existentes, os possíveis aliados e os adversários” (Schmidt, 2018, p. 122).

Com isso, o processo avaliativo exige uma visão ampla do contexto, do programa governamental combinado com o fundamento teórico-científico, o que, neste estudo, não é nossa proposta, mas merece destaque, por ser um elemento a mais nessa tessitura que constitui o processo de alfabetização e letramento após a redemocratização.

2 INQUIETAÇÕES DE UM ANALFABETISMO “MORTICIDA” E AS PROJEÇÕES DE UMA ALFABETIZAÇÃO TRANSFORMADORA

Iniciamos este segmento trazendo uma síntese do pensamento da UNESCO sobre a educação brasileira. Para tanto, fazemos referência a Frade (2022), ao destacar a mensagem da então diretora-geral da UNESCO Irina Bokova, por ocasião da comemoração ao Dia Internacional da Alfabetização, em 2017. A autora mostrou os dados de referência da UNESCO a respeito do quantitativo da população não alfabetizada do mundo e a marca retumbante de um povo que não foi iniciado na leitura e na escrita, além de destacar que o contexto econômico e político impõe maior exigência no processo da alfabetização e da aquisição de competências para uso das novas tecnologias.

A mensagem de Bakova, em 2017, é motivadora para analisar as mensagens da UNESCO dos anos seguintes, e encontramos a mensagem de Audrey Azoulay (2019) ao apontar para necessidade de uma alfabetização multilinguística, isto é, que não haja somente o domínio da língua materna, mas associação dela com outras línguas. Nas palavras de Azoulay (2019), a proposta é de que “Precisamos de mudar esta situação, tornando as políticas e práticas mais pertinentes do ponto de vista linguístico e cultural, enriquecendo os ambientes alfabetizados multilíngues e tirando partido do potencial da tecnologia digital”.

Somam-se, portanto, ao domínio do conhecimento da leitura e da escrita do sistema alfabético da língua materna, o conhecimento e o uso de recursos digitais, bem como a possibilidade de convergi-los para aquisição de competências de outras línguas.

Evidentemente, questionamos se a mensagem de Azoulay era direcionada para uma classe social ou para a população mundial. De antemão, sabemos que não se tratava de uma pessoa desatualizada, pois ela sabia o que estava dizendo e para quem estava direcionando a sua fala. Em contrapartida, paradoxalmente, também sabemos que os interesses neoliberais são sub-repticiamente instigados pela fala dela.

Em reflexão e análise do último parágrafo da mensagem de Azoulay (2019), é possível projetar o incontornável com os olhos presentes visando um horizonte de possibilidades para o futuro, se, somente se, tivermos políticas públicas que representem os interesses políticos dos nossos governantes, dos setores da sociedade e da participação cidadã dos sujeitos nacionais.

Azoulay (2019) encerra a mensagem em comemoração ao Dia Internacional de Alfabetização com a seguinte provocação:

Em 2019, celebramos o Ano Internacional das Línguas Indígenas e também o 25º aniversário da Conferência Mundial sobre as Necessidades Educativas Especiais, no âmbito da qual foi adotada a Declaração de Salamanca relativa à educação inclusiva. Fazendo eco a estes eventos especiais, e por ocasião do Dia Internacional da Alfabetização 2019, a UNESCO convida-o a repensar a alfabetização no mundo multilíngue contemporâneo, como parte do direito à educação e como meio para criar sociedades mais inclusivas e diversas do ponto de vista linguístico e cultural (Azoulay, 2019).

Nessa mesma linha de pensamento, mencionamos o projeto da UNESCO no relatório Educação para Todos até 2030. Nele, projeta-se que a alfabetização não seja somente um direito de poucos, criando-se um privilégio, mas sim um direito e uma realidade vivenciada por todos: “Nossa visão é transformar vidas por meio da educação. [...] Comprometemo-nos em caráter de urgência, com uma agenda de educação única e renovada, que seja holística, ousada e ambiciosa” (UNESCO, 2016, p. 1).

Refrearam-se as expectativas internacionais e os compromissos agendados internacionalmente com a crise sanitária provocada pela pandemia de covid-19 e pelos enfrentamentos que o mundo viveu desde 2020. Em meio aos percalços, foi instaurada uma comissão internacional para criar um relatório da UNESCO, o qual foi publicado em 2021. Nele, constatou-se que a educação é o instrumento catalizador para formação de uma ideia coletiva e comum em defesa do meio ambiente e das condições de vida no planeta.

Embora pareça utópica a proposta da UNESCO em 2017, 2019 e 2021, essa, indubitavelmente, será o resultado de esforços conjuntos e comuns no sentido de que possamos sair da posição perversa de incluir para excluir, conforme já foi sintetizada em estudos anteriores de Freire e Macedo (1990), Libâneo (2012), dentre outros.

Desde já, é inquestionável que setores da nossa sociedade e instâncias políticas do nosso país levantem do berço esplêndido, rasguem as túnicas do elitismo autoritário que jaz na escravidão do Brasil e proclamem a libertação das classes que foram historicamente subalternizadas por um reto sentimento de superioridade narcísica que enforma os sujeitos a destruírem o outro, além de torná-los potentes na arte de eliminar e de descartar. É bucha de canhão pronta para batalha do poder autocrático em oposição a uma resistência incansável por uma liberdade por meio da educação.

3 A PERVERSÃO DA ESCOLARIZAÇÃO: TRISTES RESULTADOS DAS AVALIAÇÕES E PROJEÇÃO PARA UMA EDUCAÇÃO DEMOCRÁTICA

As avaliações realizadas antes da pandemia de covid-19 registraram números do cenário educacional brasileiro extremamente preocupantes. Se esses resultados nos causavam descontentamento, os estudos realizados pós-pandemia apresentam a instalação de uma crise sem precedentes na educação mundial. Ou seja, países como o Brasil, que vinha dando passos cambaleantes diante dos avanços da qualidade educacional, viram-se diante de um contexto pandêmico adverso, ao que se ofereceu, como paliativo, a introdução das novas tecnologias para execução de aulas on-line ou virtuais, dadas as orientações de isolamento social da Organização Mundial de Saúde (OMS).

Ainda como agravante, destacamos a falta de continuidade das políticas educacionais e uma nítida e escancarada propaganda de desconstrução das políticas públicas anteriores por parte do governo federal eleito em 2018, o que recaiu diretamente nos rumos da alfabetização e do letramento, além da brusca inflexão nas ações que estavam sendo executadas, causando assombro e medo do que estava por vir.

É importante ressaltar que a avaliação tem um papel importante, porém controverso, para consolidação da democracia. Neste estudo, destacamos as avaliações como um instrumento examinador das políticas públicas, assim como de uma política pública com a finalidade de mensurar outras políticas, a fim de promover a melhoria e expansão da qualidade educacional. A partir delas, podemos analisar como a inclusão está ocorrendo nas escolas e se tem reforçado a exclusão, desestabilizando a promoção da igualdade social.

Entretanto, há uma rejeição dos professores em serem avaliados institucionalmente, ao mesmo tempo que há críticas a respeito dos resultados sob alegação de que são dados abrangentes e estanques, isto é, sem nenhum desdobramento que justifique os seus custos e a sua vigência, exceto reforçar a visão neoliberal de um serviço público oneroso e improfícuo, enquanto os serviços privados são menos custosos com resultados avaliativos positivos.

Nas escolas, por exemplo, os resultados das avaliações atuam sobre as práticas diretivas, coordenativas e pedagógicas dos profissionais da educação; por sua vez, disparam gatilhos psicológicos de que muitos fogem ou reagem negativamente. Por um lado, desprovidos de conhecimento, justificam a aversão às avaliações, efeito de uma memória de perseguição e ameaças pelos poderes ditatoriais que permanecem vivas culturalmente. Por outro lado, em vez de se tornarem um recurso de leitura e análise com objetivo de transformar ou melhorar a realidade escolar, consequentemente, elevando satisfatoriamente a qualidade da educação brasileira, os seus resultados não são conteúdo para formação (continuada) do professor.

Sordi e Ludke (2009) analisam a problemática das avaliações nas escolas brasileiras e destacam que a avaliação faz parte da cultura escolar. Contudo, falta uma formação do(a) professor(a) para o que elas designam de “autonomização”4, uma vez que o processo de aprendizagem de um sujeito ou de um coletivo escolar não é responsabilidade exclusiva do professor, ao contrário, é uma prática colaborativa, que deve ser registrada no projeto pedagógico da escola. As autoras trazem o conceito de “heteroavaliação” ou avaliação externa.

No tocante aos dados quantitativos dos resultados das avaliações nacionais e sergipanas, pode-se dizer, inicialmente, que foram nada animadores. Segundo o relatório do SAEB de 2016, por meio da avaliação ANA em turmas do 3º ano5, estima-se que 55% das crianças concluíram a alfabetização nos níveis 1 e 2 de uma escala até o nível 9, considerados insuficientes, de acordo com a escala estabelecida pelo INEP. Na região Nordeste e Norte, nos níveis 1 e 2, a média chegou a 68% das crianças sem a aquisição da competência de leitura e de escrita.

Em 2017, com o impeachment da presidente Dilma Rousseff, houve a instauração de mudanças significativas nas políticas públicas educativas, a exemplo da BNCC, que vinha em discussão em fóruns de educação, durante uma década, até ser interrompida pelo Conselho Nacional de Educação, que a aprovou por meio da normativa CNE/CP n. 2, de 22 de dezembro de 2017, ocasionando mal-estar no contexto educacional. Desde então, a BNCC é o programa oficial que orienta a educação básica, de modo que trouxe alterações no tocante à alfabetização.

Em linhas gerais, a alteração decorrente da efetivação da BNCC é o encurtamento do período de alfabetização de 3 para 2 anos. A segunda alteração, provocada pela primeira, é a mudança do instrumento avaliativo, isto é, a ANA deixa de ser o instrumento para auferir a qualidade da alfabetização no 3º ano do ensino fundamental, ficando a cargo somente da ANRESC (Prova Brasil), que já era aplicada desde 2001, em turmas de 2º ano.

Em 2016, o INEP não aplicou a avaliação da Prova Brasil nas turmas de 2º ano como estava previsto. As avaliações Provinha Brasil eram programadas para serem bianuais e em anos alternados: em 2015, foi aplicada a ANA, e os resultados foram publicados em 2016; em 2016, seria aplicada a Prova Brasil, e os resultados, publicados em 2017 e assim sucessivamente.

Ao assumir o governo em 2018, o presidente Jair Messias Bolsonaro, nos primeiros 100 dias de mandato, lançou a Política Nacional de Alfabetização (PNA), que traz como ponto forte a ruptura dos fundamentos teóricos que embasaram a alfabetização no Brasil, bem como, em seguida, durante a seu gestão, implementou programas como a “Alfabetização pra Valer”, ao passo que destacou concretamente a rejeição e a descontinuidade das políticas públicas anteriores e aos conceitos científicos que os fundamentaram, gerando descontentamento no cenário educacional. Além disso, deslocou o foco do problema da realidade e dos resultados de aprendizagem para a forma do conceito letramento por literacia6 e por questões científicas já superadas no tocante a métodos de ensino.

É importante entendermos os significados e sentidos que a alteração conceitual e as abordagens que alicerçam as políticas implementadas pelo governo Bolsonaro podem acarretar nas orientações do(a) professor(a) alfabetizador(a) na sala de aula, com crianças em turmas regulares do ensino fundamental. Assim, começamos assinalando que o fato de o então presente governo substituir o termo letramento, o qual fazia parte de um conceito especializado que geriu os programas dos últimos governos após redemocratização, demonstra uma maneira de romper com as políticas educativas instituídas sem ter outras políticas que as substituíssem.

Ademais, vale lembrarmos que o cruzamento das análises dos resultados do SAEB com as políticas públicas educacionais não pode se basear nas políticas públicas de o então do atual governo, uma vez que ele assumiu em janeiro de 2018 e só deu a largada de implantação de seu programa educacional muito tempo após os cem primeiros dias de governo, criando um vácuo sobre as propostas, que se reverberariam em práticas pedagógicas executadas em salas de aula pelo Brasil.

De lá para cá, houve um período de planejamento de ações sucedidas do início da execução do programa Alfabetização pra Valer, cujas ações parecem estar alheias e dormitam a respeito de questões acerca da desigualdade que eclodiram na pandemia.

3.1 O registro nu e cru das avaliações do SAEB e do SAESE

Em 2020, o INEP publicou as avaliações do SAEB divididas em três volumes, em que nos detivemos a analisar o volume 2, dedicado ao 2º ano, cujo resultado reforça o que já anunciamos como dados preocupantes. Vale ressaltarmos que as provas foram aplicadas em 2019, ou seja, antes da pandemia, e isso nos deixa apreensivos com as projeções dos resultados das avaliações que sucederão.

Adiante, chamou-nos atenção o dado conclusivo do percentual de crianças identificada na categoria “maioria dos estudantes” ou de quem alcançou os níveis 5 e 6 em uma escala até o nível 8, uma vez que esse dado afirma que as crianças adquiriram competências superiores a 50%.

Contudo, declinamos uma análise tanto da forma como do conteúdo do texto, ao passo que questionamos a respeito dos marcadores linguísticos como recursos para estimar quantitativamente os resultados da avaliação, como o termo indefinido “maioria”, sem apresentar os indicadores que o levaram a essa conclusão. Além disso, há uma controvérsia entre a soma dos valores atribuídos a cada nível da escala, posto que chegam ao quantitativo de 49,9% superior aos 45,26%, sendo que, dentre esses indicadores, 4,62% das crianças estão abaixo do nível 1.

Para além do mais, o texto tenta retirar o foco nos indicadores, criando ambiguidades. Outro aspecto a ser observado é referente à discriminação dos resultados dos estados da Federação e a ausência das categorias privada e pública. Dito isso, a crítica recai sobre o conteúdo conclusivo do relatório, cujos dados devem ser cruzados por unidades das federações e por público e privado, para chegar ao resultado dos indicadores que mais representam o processo de alfabetização no Brasil.

Se analisar a proficiência de Língua Portuguesa com base no Índice Nacional Socioeconômico (INSE), o estado de Sergipe está no antepenúltimo lugar e sobe mais uma posição da escala, passando à frente do Rio Grande do Norte. Se não for observado o INSE, Sergipe sobe para a quarta posição entre os piores resultados das avaliações da Prova Brasil no 2º ano do ensino fundamental (INEP, 2021a, 2021b).

Evidenciamos que as piores e melhores posições do resultado do SAEB estão na região Nordeste e Norte. Para flexibilizar as conclusões, o Ceará tem um dos piores INSE, mas desponta com o melhor resultado nas avaliações de 2019. Se comparado com as avaliações de 2016, houve uma significativa melhora, em que reforça a importância das continuidades das políticas públicas exitosas e o compromisso em executá-las com um fim a ser alcançado, embora também tenhamos percebido que se manteve a aliança partidária de governo no estado do Ceará.

Em Sergipe, o SAESE aplicou, em outubro de 2021, a sua primeira avaliação institucional, portanto, após início do último trimestre anual. Vale lembrar que vínhamos de uma das maiores crises na educação, senão a maior, em que as aulas presenciais foram suspensas por mais de um ano. Com isso, as crianças do 2º ano do ano letivo de 2021 fizeram on-line todo o 1º ano, por meio de recursos virtuais ou material impresso que os(as) professores(as) elaboravam e as escolas entregavam às famílias para que as crianças estudassem em casa.

Conclusa a observação, os resultados do SAESE registraram que 74,7% das crianças não foram alfabetizadas; 19,5% estavam em processo de alfabetização incompleta; e 5,7% de alfabetização desejável (SAESE, 2021). Dito isso, constata-se que não houve avanços diante das políticas governamentais do estado de Sergipe, se bem que temos a plena convicção de que a pandemia contribuiu sensivelmente para esse resultado, o qual frustra não só os sergipanos, mas o sistema educacional do Brasil e os olhares estupefatos dos organismos internacionais.

4 A ORALIDADE, LEITURA E ESCRITA: REPENSAR O SISTEMA DE ESCRITA ALFABÉTICA DA ESCOLA PARA A VIDA E O FORTALECIMENTO DA DEMOCRACIA

O ensino brasileiro apresenta uma piora eminente no, já então, pífio índice de aproveitamento escolar em todo o país. Como afirmou Freire (2011), “[...] é preciso indignar-se diante dessa realidade”. A alfabetização de qualidade para todos é uma questão de política educacional, cuja responsabilidade recai, sem exceção, em todas as instâncias da sociedade brasileira.

O momento atual exige mais seriedade e compromisso com a educação das classes populares, além da implementação de políticas públicas efetivas nos níveis federal, estadual e municipal. Essa perspectiva passa tanto pela valorização social e econômica dos(as) professores(as) das séries iniciais, como também por uma distribuição de renda mais justa para todos os brasileiros.

É um absurdo que estejamos chegando ao fim do século, fim do milênio, ostentando os índices de analfabetismo, os índices dos que e das que, mal alfabetizados, estão igualmente proibidos de ler e de escrever, o número alarmante de crianças interditadas de ter escolarização e que com tudo convivamos como se estivéssemos anestesiados (Freire, 2011, p. 18).

Os índices de analfabetismo funcional no país persistem. Chegamos ao limite do caos educacional, cuja solução depende da capacidade de reinventar a educação infantil e as séries iniciais do ensino fundamental da escola pública. Essa reinvenção envolve vários aspectos, dentre eles, podemos citar inicialmente a melhoria dos currículos dos cursos de Pedagogia, uma vez que 95% dos matriculados são oriundos das escolas públicas, em que, conforme os resultados das próprias avaliações, há uma defasagem nas competências de leitura e de escrita, ou seja, não ensinam efetivamente a língua que o aluno aspirante a professor vai futuramente ensinar, como podemos constatar em Fletcher (2014), na revisão de investigações longitudinais em iniciação da leitura e da escrita de línguas inglesas acerca de “eficazes práticas docentes” e/ou “eficazes escolas”.

É urgente que as práticas de sala de aula dos estudantes dos cursos de Pedagogia tenham melhor articulação entre a teoria e a prática. Alfabetização de qualidade exige competência do professor nas áreas de Linguística e de Teorias de Base Cognitiva, além do trabalho consciente e consequente com a literatura infantil.

Os problemas são inúmeros e devem ser combatidos e resolvidos um a um. Sendo assim, as políticas públicas devem ser planejadas a partir dos resultados das avaliações educacionais, dos estudos qualitativos realizados nacionalmente e internacionalmente e na formação de conselhos para pensar as estratégias locais e nacionais, sob pena de continuarmos deitados eternamente em berço esplêndido, arruinando o futuro de muitas gerações.

Afinal, quando a escola de ensino fundamental em tempo integral de qualidade será uma realidade para os brasileiros e as brasileiras? Um problema corrosivo e que se alastra há décadas, sem nenhuma sinalização de respostas efetivas de políticas públicas educacionais que atendam às necessidades da população brasileira.

Nesse contexto, é necessário que os órgãos responsáveis pela educação tenham assessorias técnicas e linguísticas para auxiliar, de fato, o professor, dando-lhe o suporte técnico-científico, para que os cursos superiores de formação abandonem ou substituam conteúdos esvaziados de sentido diante das necessidades de uma formação consubstanciada nos objetivos e nas competências de um pedagogo ou pedagoga. O professor que vai ensinar a ler e a escrever estuda tudo nessas escolas, exceto o Português que vai ensinar. As universidades não formam adequadamente os professores das escolas de formação de alfabetizadores (Cagliari, 2008).

Nesta linha de pensamento, chamou-nos atenção, na revisão das investigações, a iniciação da leitura e da escrita em países de língua inglesa, reconhecidas como “eficazes práticas pedagógicas” ou “eficazes escolas”, no tocante à incorporação de competências em outras áreas do conhecimento. Nesse sentido, Fletcher (2014) destaca a importância de uma formação (continuada) dos professores, a fim de eles adquirirem competências para execução das práticas pedagógicas. “Estes cursos de formação continuada [...] incluíam professores com um forte conhecimento sobre alfabetização, demonstrando paixão pela alfabetização e ensino, integrando leitura, escrita [...]” (Fletcher, 2014, p. 298-299, tradução nossa). Em seguida, ela faz referência a uma formação com base interdisciplinar, como mencionado nesta linha de pensamento de Fletcher (2014, p. 298-299):

[...] professores eficazes mostraram uma consciência dos estilos de conversação e da necessidade de conversa de aluno para aluno, [...] eles refletiam sobre suas práticas e usavam práticas, particularmente, que promovem o pensamento de nível superior.

Há décadas vem se discutindo o esvaziamento dos currículos dos cursos de Pedagogia que não dão conta da sofisticada formação linguística que o professor das séries iniciais necessita para desempenhar o importante papel de ensinar a ler e a escrever. Como se isso não bastasse, muitas vezes os estudantes de Pedagogia são obrigados a assumir sozinhos a regência de sala de aula, numa estratégia pouco responsável dos gestores para diminuir os custos com a educação das classes populares.

Ademais, é urgente também levar em consideração que as crianças em fase de aprendizagem da língua escrita precisam da interação competente do(a) professor(a) alfabetizador(a). No processo de ensino e de aprendizagem do sistema de escrita alfabética, o(a) professor(a), no dia a dia da sala de aula, deve alternar entre momentos de trabalhos e explanações coletivas com as crianças, além da verificação das dificuldades específicas de cada aluno(a).

A necessidade do trabalho individual e coletivo faz parte da prática docente. Para isso, o(a) professor(a) deve entender as fases ou os estágios que a criança passa para compreender como funciona a língua escrita. O entendimento dessas fases, sejam elas segundo a perspectiva cognitiva ou linguística, não deve servir para discriminar ou classificar os aprendizes, mas para ajudar a impulsionar as aprendizagens de acordo com suas necessidades específicas. É preciso ajudar a criança a entender como a escrita funciona e, para isso, é primordial que os(as) professores(as) saibam como as crianças aprendem esse bem cultural fantástico chamado escrita.

Entretanto, é crucial voltarmos para necessidade do atendimento individualizado, o que é impossível de ser bem realizado com turmas de 20, 30 ou mais alunos(as). Como orientar individualmente no cotidiano um número tão alto de crianças? Quem precisa de um orientador não são os alunos(as) de graduação e muito menos da pós-graduação. Quem precisa de orientação altamente especializada são os(as) alfabetizandos(as). Quem já alfabetizou sabe disso. Os gestores da educação, por ingenuidade ou sagacidade, não são capazes de admitir essa necessidade. Muitas famílias, por motivos sociais, culturais, econômicos, psicológicos, dentre outros, não podem complementar o suporte necessário para a aprendizagem inicial da língua escrita dos seus filhos e filhas.

A oralidade, leitura, escrita e análise linguística são eixos do ensino da Língua Portuguesa que devem ser bem trabalhados desde as séries iniciais do ensino fundamental. Toda criança, independentemente de classe social, etnia e condição física ou sensorial, tem por direito o acesso a esse bem cultural que é a língua escrita.

A aprendizagem do sistema de escrita alfabético é um processo complexo que envolve diferentes teorias e metodologias. Para que a criança atinja o princípio alfabético, isto é, entenda que grafemas se transformam em fonemas na leitura e que fonemas se transformam em grafemas na escrita, é necessário trabalhar, além dos processos cognitivos inerentes à aprendizagem da língua, a consciência fonológica, entendida como uma

[...] constelação de habilidades variadas em função das unidades linguísticas envolvidas, da posição que estas ocupam nas palavras e das operações cognitivas que o indivíduo realiza ao refletir sobre ‘partes sonoras’ das palavras de sua língua (Morais, 2020, p. 29).

Para que os(as) professores(as) desenvolvam, a contento, atividades de reflexão sobre o sistema notacional de escrita alfabética, é necessário partir do texto oral e/ou escrito, refletindo com as crianças sobre rimas, aliterações, entre outros, chamando-lhes atenção para os sons da fala e sua representação escrita.

Vale lembrar que a aprendizagem da língua escrita é um processo cognitivo que envolve diferentes facetas: linguística, interativa e sociocultural (Soares, 2017). O processo de alfabetização e letramento não envolve apenas a relação letra-fonema. Para que se levem em consideração os diversos aspectos do processo de aprendizagem da língua escrita, deve-se alfabetizar e letrar ao mesmo tempo, trabalhando concomitantemente as diferentes facetas da aprendizagem da língua escrita.

Para que a alfabetização e o letramento constituam o processo de aprendizagem do sistema de escrita alfabético, os textos de diferentes gêneros, tanto orais quanto escritos, devem inundar a sala de aula. Eles devem ser diversificados, interessantes, prazerosos e desafiadores, abordando desde a literatura infantil até adivinhações, piadas, causos, declamações de poemas, parlendas, trava-língua, letra de músicas, anúncios, reportagens, cartazes etc. Em suma, os diversos usos sociais da leitura e da escrita devem ser trabalhados em sala de aula.

Soma-se à formação do professor, como das pessoas que ocupam funções nas escolas de ensino fundamental, a intervenção de políticas públicas direcionadas para que toda escola de ensino fundamental tenha uma biblioteca infantil bonita, ampla, arejada e com um bom acervo de livros, estes posicionados na altura das crianças, de modo que as crianças tenham oportunidade de escolher, manusear e ler qualquer livro, quando tiverem vontade.

É importante que a criança frequente a biblioteca, ao menos semanalmente, e que o professor leia para e com ela, além de que seja possível o empréstimo de livros. Em outras palavras, desenvolver o gosto pela leitura deve ser a prioridade número um. Não se formam leitores usando a literatura como pretexto para ensinar gramática. Nesse sentido, a leitura deve ser feita com prazer e por prazer, de modo que é essencial o professor saber ler e contar histórias. “É importante para a formação de qualquer criança ouvir muitas, muitas histórias [...]. Escutálas é o início da aprendizagem para ser um leitor, e ser leitor é ter um caminho absolutamente infinito de descoberta e de compreensão do mundo” (Abramovich, 1997, p. 16).

Em nosso país, a alfabetização das crianças pobres tem sido um problema mal resolvido. A alternância dos métodos, ora de base sintética, ora de base analítica, pouco contribuiu para a resolução da questão do analfabetismo no Brasil, uma vez que nenhum método ou teoria isolada dá conta desse complexo problema. Os métodos de alfabetização normalmente privilegiam determinada teoria em detrimento das outras.

Autores como Morais (2020), Soares (2017) e Berthoff (2021) criticam os métodos fônicos e globais que, isolados, não dão conta da complexidade do processo de alfabetização. Esses métodos partem de visão associacionista de língua, privilegiando um dos diferentes aspectos do ensino do sistema de escrita alfabética. Entretanto, com relação ao processo de alfabetização, não é “Ou isto ou aquilo”, mas “isto e aquilo”. É necessário tanto alfabetizar quanto letrar. Para isso, é primordial que o professor domine as teorias de base cognitiva e fonológica. Nesse sentido, Berthoff (2021, p. 18) nos lembra de que “Decodificar – aprender a relação entre letras e sons – caminha lado a lado com a decodificação, ou interpretação”. Assim, nada é exequível, contudo, se o gosto de ensinar e o prazer de aprender não fizerem parte do processo de ensino e de aprendizagem.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após esse exaustivo percurso de reflexão/escrita/reflexão, ficamos mais convencidos do que nunca de que é possível mudar os resultados indesejáveis das avaliações gerenciadas pelo INEP, de modo que o Brasil entre nos rankings internacionais dos países que deram um salto de qualidade educacional. Se ainda não conseguimos alcançar, é porque faltaram políticas públicas efetivas e contínuas que superassem os interesses governamentais.

Contudo, estamos entrando em um novo redemoinho que quer varrer os avanços que já tínhamos conquistado no sentido da inclusão. Era necessária, nesse momento, a continuidade em vez da desconstrução. Já tivemos a experiência positiva, quando sucedeu o presidente Fernando Henrique e assumiu Luiz Inácio Lula da Silva.

As razões das mudanças atuais são obscuras e a ausência de um projeto educacional nos deixa inquietos com o futuro das nossas crianças, dos jovens e adultos que precisam ser alfabetizados para a vida e para o fortalecimento democrático. Não há democracia forte, se não houver participação; e não há participação, se não houver instrução e formação crítica do sujeito perante os outros e os outros diante de si.

Esse é o princípio pelo qual reforçamos a concepção de um “alfabetizar letrando”, tendo como eixo central a Dialogia que manifesta a linguagem nas suas diferentes tipologias: oral, escrita, verbal, gestual, multissemiótica, como recurso para iniciação do sistema de leitura e de escrita. Além disso, precisamos que os interesses coletivos de diferentes grupos sociais que constituem a população brasileira sejam respeitados, a partir de uma visão política democrática de inclusão por inclusão.

Com isso, insistimos numa proposta, ainda que seja tardia, de “um bom (re) começo”, por meio de políticas públicas comprometidas com a qualidade educacional e com os olhos voltados para as propostas bem-sucedidas e expectadas no mundo, porque é fundamental que entendamos que somos partes em conexão com o todo diferente, rico na sua diversidade. A globalização, dentro de uma visão intercultural, deve ser, dadas as proporções, um processo enriquecedor também para o Brasil, que pode contribuir e mudar o quadro da sua educação, revertendo os indicadores negativos e tornando-se modelo para assegurar aos outros países de Língua Portuguesa o fim do analfabetismo mundial. Se isso é utópico, sejamos mais um ou um grupo de pensadores e pensadoras inquietos na promoção das transformações já iniciadas por teóricos que embasaram as políticas públicas desde a redemocratização, tendo como maior referência o nosso Paulo Freire.

Para concluir, alinhavamos uma proposta de “abrir-se para encontrar-se” o que nós temos de melhor para compartilhar com o nosso povo e com os povos das nações falantes da Língua Portuguesa. Portanto, alçar os voos nos limites de uma sociedade fortalecida democraticamente. A alfabetização é o ponto de partida.

Vamos em frente!

2 Gadotti (2008) assinala que os compromissos firmados pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, na Conferência Mundial de Educação para Todos (Conferência de Jomtien - 1990), teve continuidade no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, de modo que, em Hamburgo, Alemanha, em 1997, foram assumidas metas em relação à “Década da Alfabetização”. Em 2000, em Dakar, Senegal, lá estava de novo o Brasil na Cúpula Mundial de Educação. Talvez, o governo de Lula da Silva tenha sido o primeiro a respeitar as conquistas dos governos anteriores (conquistas da sociedade), tanto no plano econômico quanto no plano social, dando continuidade. Ademais, o Fórum Mundial de Educação 2015, que adotou a Declaração de Incheon para Educação 2030, isto é, rumo a uma educação de qualidade inclusiva e equitativa e a educação ao longo da vida para todos, entre outras conferências, tem sido o movimento organizado dessas agências internacionais junto às comissões internacionais de países.

3Relatório de Educação para Todos no Brasil 2000-2015 assinala que “[...] a taxa de frequência à escola da população de 6 a 14 anos cresceu no período 2000-2012. Esta diferença positiva se manifestou em relação a variável localização, uma vez que a população que frequenta a escola rural passou de 93,6% em 2004 para 97,7% em 2012; aumento que na zona urbana foi de 96,8% para 98,4%” (Brasil, 2014, p. 28). Contudo, ainda sobre a alfabetização, evidencia-se, em 2022/2021, um contingente populacional maior de analfabetos se comparados aos anos anteriores em virtude da covid-19.

4As autoras tecem essa crítica a respeito de um direito adquirido pelo professor, mas que tem imites e precisa ser usado de maneira que privilegie o processo educacional. Elas assinalam que “A autonomia do docente não pode ser confundida com autonomização. Não tem ele a prerrogativa de decidir, por si só, algo que afeta o bem comum e marca o projeto pedagógico da escola” (Sordi; Ludke, 2009, p. 316).

5O Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), programa vigente até 2018, entendia que o período de alfabetização consistia nos três primeiros anos do ensino fundamental, de modo que as crianças entravam aos seis anos no ensino fundamental e, aos oito anos, ela deveria estar alfabetizada.

6 Soares (2012) e Bunzen (2019) assinalam que o conceito letramento chegou ao Brasil em 1986, na publicação de Mary Kato, e, em 1988, no livro “Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso”, de Leda Verdiani Tfouni. Em Portugal, no período de realização do curso de pós-doutorado sobre a “Iniciação da Leitura e da Escrita no 1º Ciclo do Ensino Básico português”, percebemos que o conceito alfabetização é restrito para iniciação à leitura e à escrita da Educação de Jovens e Adultos. Portanto, literacia é o processo de iniciação à leitura e à escrita de crianças. Nas escolas onde fizemos observações e entrevistas, nenhuma professora fez menção à categoria Literacia e Alfabetização, e todas as professoras falaram da necessidade de utilizar diferentes métodos para atingir os objetivos de iniciação à leitura e à escrita. Assim, percebeu-se que é um conceito que transita mais nas agências internacionais, quase sem repercussão no contexto acadêmico e em documentos oficiais portugueses, esvaziado de sentido ou de uma produção de significado.

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Recebido: 26 de Setembro de 2023; Aceito: 10 de Outubro de 2023

Suzana Mary Andrade Nunes: Doutora e mestre em Educação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Professora adjunta do Departamento de Educação da UFS. Líder do grupo de pesquisa registrado no CNPq: Relações de Saberes e Subjetividades: Alfabetização, Linguagens e Trabalho (RESSALT). Associada a Associação Brasileira de Alfabetização (ABALF) e a Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE). E-mail:suzanamary@hotmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1165-8951

Verônica dos Reis Mariano Souza: Doutora em Educação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Mestre em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora titular do Departamento de Educação da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e integrante permanente do grupo de pesquisa registrado no CNPQ: Relações de Saberes e Subjetividades: Alfabetização, Linguagens e Trabalho. Associada a Associação Brasileira de Alfabetização (ABALF). E-mail:veronicamariano@live.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8076-098X

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