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Série-Estudos

versão impressa ISSN 1414-5138versão On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.28 no.64 Campo Grande set./dez 2023  Epub 05-Jan-2024

https://doi.org/10.20435/serieestudos.v28i64.1689 

Article

Alfabetização e PNAIC: (des)caminhos ao ensino inclusivo em Xaxim, SC

Literacy and PNAIC: (mis)paths to inclusive education in Xaxim, SC

Alfabetización y PNAIC: (des)caminos hacia la educación inclusiva en Xaxim, SC

Marineiva Moro Campos de Oliveira1 
http://orcid.org/0000-0002-3110-0771

1Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC), Chapecó, Santa Catarina, Brasil.


Resumo

Compreende-se que alfabetização deve ser um processo estruturado que objetive a emancipação humana e a superação dos processos de exploração e de alienação impostos via educação seletiva e excludente. Com o objetivo de analisar as implicações da formação do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) nas práticas de alfabetização no ensino inclusivo em Xaxim, SC, usou-se a perspectiva epistemológica histórico-cultural para analisar os planos de ensino das alfabetizadoras e das segundas professoras de três turmas de alfabetização do ensino fundamental, bem como foram incluídos momentos de observação nas turmas compostas por estudantes com deficiência intelectual. Os resultados possibilitaram identificar que o contexto marcador da alfabetização brasileira ocorreu principalmente pela via da formação de alfabetizadores, a exemplo do PNAIC; porém, ao se observar a articulação desse programa com o ensino inclusivo, identificaram-se implicações nas práticas alfabetizadoras, as quais resultaram simplistas, fragilizadas e excludentes.

Palavras-chave: PNAIC; ensino inclusivo; práticas de alfabetização

Abstract

It is understood that literacy should be a structured process that aims at human emancipation and overcoming the processes of exploitation and alienation imposed through selective and excluding education. In order to analyze the implications of the formation of the National Pact for Literacy in the Right Age (PNAIC) in literacy practices in inclusive education in Xaxim, SC, the historical-cultural epistemological perspective was used to analyze the teaching plans of literacy teachers and second teachers of three literacy classes in elementary school, as well as observation moments were included in classes composed of students with intellectua disabilities. The results made it possible to identify that the defining context of Brazilian literacy occurred mainly through the training of literacy teachers, such as the PNAIC; however, when observing the articulation of this program with inclusive education, implications were identified in literacy practices, which resulted simplistic, weakened and excluding.

Keywords: PNAIC; inclusive education; literacy practices

Resumen

Se entiende que la alfabetización debe ser un proceso estructurado que tenga como objetivo la emancipación humana y la superación de los procesos de explotación y alienación mpuestos a través de la educación selectiva y excluyente. Con el fin de analizar las implicaciones de la formación del Pacto Nacional por la Alfabetización en la Edad Justa (PNAIC) en las prácticas de alfabetización en educación inclusiva en Xaxim, SC, se utilizó la perspectiva epistemológica histórico-cultural para analizar los planes de enseñanza de los alfabetizadores y segundos maestros de tres clases de alfabetización en la escuela primaria, así como momentos de observación en las clases compuestas por estudiantes con discapacidad intelectual. Los resultados permitieron identificar que el contexto que marca la alfabetización brasileña se dio principalmente a través de la formación de alfabetizadores, como el PNAIC; sin embargo, al observar la articulación de este programa con la educación inclusiva, fueron identificado implicaciones en las prácticas de alfabetización, las cuales resultaron simplistas, debilitadas y excluyentes.

Palabras clave: PNAIC; educación inclusiva; prácticas de alfabetización

1 INTRODUÇÃO

A alfabetização é um fenômeno de base histórica, que vai além das habilidades técnicas de ler e escrever; é um processo educacional vinculado à formação humana essencial ao sujeito, principalmente, por proporcionar o primeiro contato com o ensino e a aprendizagem sistematizados. Dessa forma, compreende-se que alfabetização deve ser um processo estruturado que objetive a emancipação humana e a superação dos processos de exploração impostos pela classe dominante, a qual utiliza a escola como espaço de alienação, via educação seletiva e excludente.

Ao longo da história da alfabetização brasileira, a disputa por métodos e por teorias marcou o ensino da leitura e da escrita. A partir dos anos de 2000, entraram em cena os programas de formação de alfabetizadores, que, além de formação, estruturam materiais para orientar as práticas de ensino. Programas esses que materializavam e ainda materializam as políticas nacionais de alfabetização. Dentre esses programas, destaca-se um dos últimos, o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), com início em 2012. Vale salientar que foi também a partir de 2000 que se iniciaram os debates acerca da elaboração da Política Nacional da Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, política que entrou em vigor no ano de 2008.

Nessa conjuntura, ambas as políticas se embrenharam nas escolas, o que conduz à seguinte indagação: com essas políticas adentrando nas escolas, quais são as implicações à prática de alfabetização? Para responder ao questionamento, este trabalho objetiva analisar as implicações da formação do PNAIC nas práticas de alfabetização no ensino inclusivo em Xaxim, SC.

Para responder ao problema proposto, esta análise pauta-se pela perspectiva histórico-cultural e busca compreender a alfabetização como um processo que deve possibilitar a autonomia2, a criticidade e a emancipação do sujeito, sem se restringir a questões técnicas de alfabetização ou a dimensões vinculadas à busca do aumento dos índices auferidos por avaliações governamentais.

O estudo de campo foi realizado no município de Xaxim, SC, com três alfabetizadoras de turmas e três segundas3 professoras, profissionais que realizam a formação do PNAIC e que atuam na 1ª, 2ª e 3ª séries de diferentes escolas da rede municipal. As três turmas possuíam estudantes com deficiência intelectual. Neste estudo, analisaram-se os planos de aula das alfabetizadoras e incluíram-se momentos de observação em sala de aula. Estes últimos constituíram um diário de bordo que orientou a análise dos dados da realidade observada.

O artigo foi organizado em cinco seções. Na primeira, intitulada alfabetização como projeto de nação, estabelece-se reflexão teórica sobre a constituição histórica da alfabetização como projeto de nação, destacando-se as concepções desse processo de escolarização e as transformações que esse processo estabeleceu nos padrões sociais.

Na segunda seção, analisam-se as relações entre a alfabetização, o PNAIC e o ensino inclusivo compreendido como o ensino realizado em turmas compostas de estudantes com e sem deficiência. Destaca-se a forte vinculação da alfabetização em políticas públicas materializadas em programas de formação de alfabetizadores e como o ensino inclusivo se articula a esse contexto.

No terceiro seção, detalha-se a metodologia, os caminhos que possibilitaram a elaboração desta pesquisa. Na quarta seção, apresenta-se a análise das práticas de alfabetização no ensino inclusivo em Xaxim, SC. Convém salientar a complexidade do processo de inclusão de estudantes com deficiência intelectual, particularmente na esfera das práticas pedagógicas, e a fragilidade do PNAIC como programa de formação de alfabetizadores. Somam-se a isso os materiais estruturados utilizados no município. Na última seção, conclui-se que as reformas na alfabetização ocorreram principalmente pela via da formação de alfabetizadores, a exemplo do PNAIC.

2 ALFABETIZAÇÃO COMO PROJETO DE NAÇÃO

A alfabetização é um processo complexo e multifacetado, que envolve ações tipicamente humanas, é um direito constitucional de cidadão. Como prática social privilegiada no cotidiano escolar, a escrita é indispensável na constituição de conhecimentos, pela possibilidade de pôr em movimento dialógico os indivíduos em contato com a produção cultural humana e com sua própria produção, como sujeitos. Como atividade dialógica, é instrumento de relação com o mundo, de conscientização, de reflexão e potencial à conquista de autonomia intelectual (Almeida, 2007).

Diante da importância da escrita, a alfabetização se tornou objeto de preocupação ainda antes da Proclamação da República. Mas foi somente com a Proclamação da República (1889) que as práticas sociais da alfabetização foram submetidas à organização metódica, sistemática e intencional, considerada uma área de estratégia para a promoção e sustentação do desejo de desenvolvimento nacional. Por isso, do período da República aos dias atuais, saber ler e escrever tornou-se o principal índice de avaliação da escola, especialmente, pública, laica e gratuita (Magnani, 2006).

Em suas pesquisas, Magnani (2006) reflete sobre os vários discursos no âmbito educacional que indicam a necessidade de entender o que faz da alfabetização um problema social, e por que os estudantes brasileiros têm dificuldades em aprender a leitura e a escrita, especialmente, na escola pública. Para a autora, essa problemática está vinculada ao processo de subordinação da alfabetização ao capital, um processo que limita o ensino e a aprendizagem para a classe trabalhadora. Nessa direção,

Facilitar a transmissão e assimilação da classe trabalhadora e dos pobres aos hábitos industriais e sociais ‘modernos’, se administra em instituições cuidadosamente estruturadas. [...] [que busquem] juntamente com os próprios promotores da escolarização, trabalhadores mais morais, ordeiros, disciplinados, obedientes e conformados: o resultado esperado da hegemonia da economia moral da alfabetização (Graff, 1994, p. 24).

Essa concepção marca o processo de alfabetização escolar como facilitador da disseminação da hegemonia. Para Magnani (2006), essa facilitação demandou uma estruturação no ensino na alfabetização, da qual resultou um movimento de disputa. Disputa que, conforme aponta a autora, tornou-se um embate entre as novas e as velhas explicações para um mesmo problema, alfabetizar todas as crianças.

O contexto histórico da alfabetização, caracterizado como um procedimento de ensinar e aprender a ler e escrever, no Brasil, foi um processo marcado pelos debates e pelas definições de métodos para se alfabetizar. Magnani (2006) afirma que os métodos, definidos para o ensino, em diferentes momentos históricos, não possibilitaram um ensino que superasse as explorações impostas pela classe dominante; ao contrário, articulavam cada vez mais a alfabetização a um instrumento de alienação. Segundo ela, em nenhum momento histórico, a alfabetização foi estruturada para gerar condição de emancipação, em especial à classe dominada.

Compreende-se que o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita devem ser constituídos como processo socialmente organizado e privilegiado que contribui, de maneira fundamental, à inserção de todos os sujeitos na cultura letrada (Geraldi, 2006).

Contudo, a simples inserção dos sujeitos, especialmente as crianças com deficiência, nesse processo, não possibilita sua aprendizagem de leitura e escrita como sistema socialmente construído, pois isso demanda um processo sistematizado de ensino, que considere as condições objetivas e específicas da alfabetização, para permitir um aprendizado potencializador do desenvolvimento integral de todos os sujeitos para a participação na cultura escrita.

Além disso, destaca-se que toda e qualquer organização do trabalho pedagógico do alfabetizador está intrinsecamente relacionado com uma concepção política que pode ou não ser inclusiva e que envolve tanto uma concepção de linguagem quanto de sua apropriação. Essa opção influencia na formação dos estudantes, em virtude de todos os conteúdos, estratégias pedagógicas e materiais utilizados estarem carregados de ideologias, em especial, de concepções de linguagem e de sujeitos que se objetiva formar (Geraldi, 2006).

Pode-se considerar que a alfabetização é construída a partir das e com as relações culturais e históricas, e busca a emancipação do sujeito. Porém, ela é determinada pelas relações inerentes às correlações de força e ao grau de organização da formação social, por isso, também, síntese de múltiplas determinações. Nesse sentido, pode-se perceber a necessidade de compreender as determinações do projeto educacional, o qual transfere características econômicas à ampliação do capital que busca legitimar os padrões de relações sociais e econômicas vigentes (Neves, 2005).

Diante da aclamação ao projeto vigente de sociedade, a alfabetização tornou-se um projeto da hegemonia. Essa indicação decorre das pesquisas de Magnani (2006), quando, entre os resultados de estudos sobre alfabetização, indica que essa etapa de ensino foi, durante muito tempo, articulada com as demandas do mercado, numa relação direta com o projeto político-social.

Para Magnani (2006), a alfabetização efetivou essa relação ao se tornar um campo de disputa ideológica, advindo dos valores em si impregnados. De acordo com Graff (1994), o principal valor concebido à alfabetização foi o mito de que ela vincularia o projeto social escolar à solução de problemas sociais, econômicos e políticos. Mito necessário para assegurar a hegemonia que a converteu em um instrumento de imposição e manutenção das ideias de um sistema público de ensino baseado nas concepções de modernização e progresso. Ideias camufladas pelo discurso de que somente uma massa escolarizada, alfabetizada, apropriada das práticas culturais da leitura e da escrita poderia promover o progresso nacional (Graff, 1994; Magnani, 2006).

Percebe-se que a alfabetização, ao longo da história, foi tomada como um aparelho hegemônico e manipulada pela classe dirigente como uma vitalidade para garantia de seus interesses e de seu progresso. Interesses que, na medida em que são ameaçados, são novamente estruturados, e, inerentes à mudança, seus aparelhos de manipulação são reestruturados. Isso ocorreu com a alfabetização, quando foi tomada como sinônimo de “ascensão social” (Cook-Gumperz, 2008, p. 41).

A partir da concepção de que a alfabetização era a solução dos problemas sociais, ela passou, também, a ser tomada como a possibilidade de ascensão social (Cook-Gumperz, 2008). Nessa perspectiva, o processo de alfabetização é voltado à capacitação das pessoas para o mercado de trabalho (Britto, 2005). Assim, atrela-se às conquistas econômicas e ao status social, e não ao conhecimento historicamente produzido.

Não se trata de negar a importância de aprender a ler e escrever como requisito importante à conquista de trabalho, em especial na sociedade tecnológica, mas, seguramente, isso está principalmente associado ao status social, que é fruto da competição pelo espaço no mercado, tem implicações mais complexas que transcendem o domínio de códigos (Gontijo, 2002).

Atualmente, esse processo de valorização da alfabetização, que põe em movimento o projeto de nação, permeia, principalmente, o espaço escolar público, com base num ensino que protege e garante as necessidades da minoria dominante e que exclui ou limita o debate sobre o ensino inclusivo de todos, entre os quais, constam as crianças com deficiência, um pleonasmo ainda necessário.

3 NO PROJETO DE NAÇÃO, O PNAIC COMO PROMOTOR DO ENCONTRO DA ALFABETIZAÇÃO E DO ENSINO INCLUSIVO

No contexto histórico destacado, a alfabetização foi posta no escopo de várias políticas públicas educacionais que se materializaram em programas de formação de alfabetizadores reprodutores das ideias de alfabetização proposta pelo governo, numa tentativa de manter a hegemonia burguesa ainda na fase inicial da escolarização (Oliveira, 2016).

“Alfabetização para todos”, slogan dos debates que justificava essas políticas públicas de alfabetização, conduz à reflexão sobre as estruturações desse, a fim de se compreender quem são “todos” nessas políticas. Iniciar-se-á pela compreensão do movimento político da educação especial na perspectiva do ensino inclusivo. Elaborado em 2007 e aprovado em 2008, manifestou-se no cenário educacional que objetivou a inserção efetiva da modalidade da educação especial na proposta pedagógica da escola regular, trazendo contribuições à perspectiva da educação especial no Brasil (Brasil, 2008).

De acordo com Mazzotta (2008), essa política é o resultado de um movimento em prol do ensino inclusivo, que teve seus primeiros passos com a Constituição Federal de 1988 (CF/88), a qual estabeleceu regras que tratam desde os direitos fundamentais do cidadão até a organização dos poderes; defesa do Estado e da democracia; ordem econômica e social; e do atendimento educacional especializado aos portadores4 de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino.

A partir da institucionalização da política da educação especial associada às demais políticas educacionais, foi necessário repensar o processo de escolarização, especialmente o de alfabetização para todos na perspectiva de materializar o ensino inclusivo aos estudantes com deficiência, altas habilidades/superdotação e transtornos globais do desenvolvimento. Para isso, foi essencial repensar novos processos formativos aos alfabetizadores (Mazzotta, 2008).

Nesse contexto, observou-se que o primeiro Programa de Alfabetização que realizou tentativas de pensar o ensino inclusivo no processo de alfabetização foi o PNAIC. Constatação que possibilitou evidenciar que, antes de 2008, existia uma ausência da relação de alfabetização em uma perspectiva política inclusiva com os programas oficiais nessa fase de escolarização. Compreende-se que essa ausência seja justificada pelo fato de a política de educação especial ter sido elaborada após a consolidação dos programas anteriores ao PNAIC.

Dessa forma, o encontro entre alfabetização e ensino inclusivo ocorreu quando o Ministério de Educação e Cultura (MEC) instituiu o PNAIC, em 2012. As raízes do PNAIC estão no Programa pela Alfabetização na Idade Certa (PAIC), implantado em Sobral, Ceará, em 2002, pelo então prefeito Cid Gomes (PSB-CE), ampliado para todo o estado do Ceará, em 2007, quando ele foi eleito governador (Ceará, 2007). No ano de 2007, o PAIC tornou-se prioridade do governo federal e passou a ser desenvolvido em parceria com municípios e estados (Oliveira, 2016).

Com a finalidade de definir um tempo específico à alfabetização e, com isso, buscar melhores resultados, o Decreto n. 6.094/2007 define, em seu inciso II do art. 2º, que é de responsabilidade dos entes governamentais “[...] alfabetizar as crianças até, no máximo, os oito anos de idade, aferindo os resultados por exame periódico específico” (Brasil, 2007). Ao se tornar um programa em nível nacional, passou a ser intitulado como Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC).

Instituído pela Portaria n. 867, de 4 de julho de 2012, o PNAIC configura-se como uma política educacional de investimentos na qualidade do ensino fundamental (EF), qualidade a ser alcançada com base na formação continuada dos alfabetizadores (Brasil, 2012). Para isso, a formação do PNAIC foi norteada por unidades de formação chamadas também de cadernos de formação. Essas unidades foram elaboradas por profissionais vinculados às universidades parceiras do PNAIC e que atuam em grupos de pesquisa com temáticas relacionadas à linguagem.

A formação do PNAIC foi organizada em modelo cascata e conta com os seguintes atores: formadores/pesquisadores, coordenador local, orientador de estudos e alfabetizadores (Brasil, 2012). Nesse cenário, os alfabetizadores são sujeitos fins desse processo, pois não participam do processo de elaboração da formação, apenas a recebem já moldada, cabendo-lhes aceitá-la e acatá-la. A esse respeito, cabe mencionar:

Não raro o modelo de capacitação segue as características de um modelo ‘em cascata’, no qual um primeiro grupo de profissionais é capacitado e transforma-se em capacitador de um novo grupo que por sua vez capacita um grupo seguinte. Mediante esse procedimento, que geralmente percorre os diferentes escalões da administração dos extensos sistemas de ensino, corpo técnico-pedagógico, supervisores regionais, professores especialistas, embora permita envolver um contingente profissional bastante expressivo em termos numéricos, tem-se mostrado pouco efetivo quando se trata de difundir os fundamentos de uma reforma em suas nuances, profundidade e implicações (Gatti; Barreto, 2009, p. 202).

Esses enunciados demonstram o que Magnani (1993, p. 26) já evidenciava sobre a formação de professores; para ela, uma formação que orienta o que fazer e como fazer, que desprovê os sujeitos do movimento intelectual, é uma formação capacitista, fragilizada e mecanicista, e “mapeamentos como esses têm levado, muitas vezes, a raciocínios simplistas”.

[...] não basta aprender apenas o que lhe disseram que deve ensinar, não basta aprender a utilizar conceitos para analisar a realidade; é preciso também aprender a utilizá-los para analisar o pensamento conceitual e os próprios conceitos: um trabalho principalmente metacognitivo, que organiza por que, para que, para quem, o que, como, quando, onde ensinar/aprender (Magnani, 1993, p. 30).

Essa lógica capacitista que perpetua preconceitos e discriminação contra pessoas com deficiências e desvaloriza as contribuições e experiências das pessoas com deficiências, demarcou, no PNAIC, o encontro da alfabetização com o ensino inclusivo. Para isso, foi organizado e disponibilizado um caderno formativo aos professores alfabetizadores, material que dialogava sobre a temática do ensino inclusivo. Contudo, para Oliveira e Bezerra (2014, p. 779), o material não apresentou contribuições para efetividade da perspectiva de alfabetização no ensino inclusivo, há uma “[...] brevidade das abordagens que compõem o material, visto que as orientações feitas aos professores ocorrem minimamente sobre algumas especificidades dos estudantes com deficiência”. Castilho e Bezerra (2016) complementam a afirmativa anterior e mencionam que, no PNAIC,

Não havia carga horária específica reservada no curso para a orientação dos professores em como desenvolver práticas de inclusão com os estudantes com necessidades educacionais especiais, no que se refere à sua alfabetização e letramento (Castilho; Bezerra, 2016, p. 205).

Essas constatações apontam a existência de uma lacuna na formação dos alfabetizadores para o ensino inclusivo. Afinal, se, de acordo com a política de educação especial na perspectiva da educação inclusiva, os estudantes com deficiência também são sujeitos de direitos, inseridos em um contexto de ensino inclusivo, os professores alfabetizadores precisam, em seus processos formativos, inserir o ensino inclusivo como escopo de suas formações.

Diante disso, analisar as práticas de ensino de alfabetizadores participantes da formação do PNAIC e atuantes em turmas de ensino inclusivo, ou seja, com estudantes com deficiência, possibilita tecer argumentos sobre as implicações dessa formação no ensino da leitura e da escrita para todos.

4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Trata-se de estudo documental e observacional que se apoiou em observação direta livre assistemática (Ludke; André, 1986; Triviños, 1987; Marconi; Lakatos, 1996) de aulas realizadas pelas alfabetizadoras e segundas professoras da rede municipal de ensino de Xaxim, SC, as quais atuam em turmas de ensino inclusivo, em específico, com estudantes com Deficiência Intelectual (DI). Essas segundas professoras participaram dos três últimos anos da formação do PNAIC. Para apresentação, constam, no Quadro 1, informações sobre as participantes da pesquisa, identificadas como SP a Segunda Professora e AT a Alfabetizadora da Turma, siglas seguidas de número, que representa a série de atuação.

Quadro 1 Sujeitos da pesquisa 

Identificação Experiência em alfabetização Experiência no ensino inclusivo Formação
AT1 6 anos 3 anos Pedagogia – Especialista
SP1 11 anos 11 anos Pedagogia e Educação Especial – Especialista
AT2 6 anos 2 anos Pedagogia – Especialista
SP2 4 anos 4 anos Pedagogia e Educação Especial –Especialista
AT3 9 anos 3 anos Pedagogia – Especialista
SP3 8 anos 6 anos Pedagogia e Educação Especial – Especialista

Fonte: Dados da pesquisa organizados pela autora (2021).

Após definirem-se as participantes da pesquisa, seguiu-se a seguinte organização: no primeiro momento, a autora da pesquisa reuniu-se com as participantes a fim de conhecer os respectivos planejamentos e os planos de aulas. Durante a conversa, as professoras apresentaram os conteúdos de alfabetização que trabalhariam durante aquela semana, de 12 a 16 de julho de 2021.

É importante destacar que, durante a formação do PNAIC, as alfabetizadoras levavam as apostilas do sistema do Núcleo de Apoio a Municípios e Estados (NAME), que é um sistema apostilado que subsidia as práticas de ensino do município de Xaxim, SC. As apostilas são utilizadas por toda a rede municipal, da educação infantil aos anos finais do ensino fundamental. Por ser o material que orienta as práticas de ensino, as alfabetizadoras levavam as apostilas para os encontros formativos e discutiam formas de articular as atividades da apostila às atividades propostas pelo PNAIC.

Seguindo o cronograma estabelecido com as professoras, a pesquisadora iniciou a sua observação nas três turmas, durante duas aulas de Língua Portuguesa, com a duração de 45 minutos cada aula, o que totalizou 90 minutos de observação em cada turma, perfazendo um total de 270 minutos de observações. As observações foram realizadas do fundo da sala, num lugar que permitia observar o estudante com deficiência intelectual e a segunda professora.

Cumpre destacar que, nas três turmas, esse estudante sentava-se na primeira cadeira da frente ao lado da parede, e a segunda professora estava ao lado dele. Durante as observações, as atividades foram registradas no diário de bordo, bem como as orientações e demais ações realizadas pela segunda professora e pela alfabetizadora, no desenvolver de suas práticas alfabetizadoras.

5 PRÁTICAS DE ALFABETIZAÇÃO NO ENSINO INCLUSIVO EM XAXIM, SC

O município de Xaxim, SC, localizado no Oeste do estado, é conhecido como Coração Verde D’Oeste. Trata-se de uma cidade pequena, com área de 293,27 km2 e com aproximadamente trinta mil habitantes, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2014. Antigo distrito de Chapecó, criado em 1921, emancipou-se politicamente pela Lei Estadual n. 133, de 30 de dezembro de 1953. Está situado a 556 quilômetros da capital do estado, Florianópolis.

As atividades econômicas desenvolvidas no município são a agropecuária e a agroindústria. Na área educacional, conta com um Centro de Educação de Jovens e Adultos, dez Centros de Educação Infantil Municipal (CEIM), cinco escolas municipais e quatro municipalizadas5. Dessas escolas, duas estão situadas no perímetro rural; e as demais, no urbano. Todas com sistema de seriação6.

Para situar o contexto desta pesquisa, é necessário remetê-la, ainda que de forma tangencial, ao contexto global de discussão sobre a alfabetização no ensino inclusivo. A alfabetização e o ensino inclusivo trazem estranhamentos, afinal, que pleonasmo é esse? Entretanto, mais um elemento que justifica a importância desta pesquisa, este pleonasmo ainda necessário!

A imersão da autora, contato com a realidade, ocorreu inicialmente por meio da análise dos cadernos de planos de aula. Ao analisar os planos de aula das professoras, observou que as segundas professoras não possuíam caderno de planejamento diferenciado, apenas cópias das atividades que estavam nos cadernos das alfabetizadoras. De acordo com as segundas professoras, as adaptações eram efetivadas na hora da realização das atividades.

A pesquisadora identificou que, nos cadernos das segundas professoras, havia atividades de Matemática e Língua Portuguesa. Elas explicaram que, tanto o PNAIC quanto as apostilas orientavam a alfabetizar em Língua Portuguesa e Matemática para, posteriormente, ter contato com conteúdo das demais disciplinas.

Com foco de ensino na Língua Portuguesa e na Matemática, pode-se afirmar, com base nos estudos de Giroux (1987, p. 160), que as práticas de ensino da leitura e da escrita em Xaxim, SC, vinculam-se à racionalidade tecnocrática e instrumental que adentram no campo de ensino “[...] e desempenham um papel cada vez maior na redução da autonomia do professor com respeito ao desenvolvimento e planejamento curricular e o julgamento e implementação de instrução em sala de aula”. Essa afirmação se fortalece quando se identifica que as práticas das alfabetizadoras e das segundas professoras, além de serem orientadas pelo PNAIC, seguem determinações de materiais estruturados, ou seja, das apostilas.

De acordo com Giroux (1987) e Magnani (2006), é dessa forma que os professores, especialmente os alfabetizadores, são reduzidos ao papel de técnicos executadores de orientações de programas de formação e de materiais que lhes tiram a autonomia intelectual, e, procedendo assim, tornam as escolas locais de instrução e de treinamento, destinados a passar ao estudante uma cultura e um conjunto de habilidades comuns que os capacitem a operarem com eficiência na sociedade.

Após análise dos cadernos de planejamentos, seguiu-se ao segundo momento: o das observações. A primeira turma observada foi a da 1ª série do ensino fundamental, composta por 18 estudantes. O conteúdo foi sobre a letra B, a primeira atividade do dia consistia em recortar, de jornais e revistas, palavras que iniciassem com a letra B. A alfabetizadora da turma solicitou que todos viessem à frente e pegassem os materiais para o recorte. Nesse momento, observou-se que, para a criança com deficiência, a segunda professora pegou o material. Percebeu-se que, durante a atividade, a segunda professora apontava as palavras que a criança deveria recortar; essa, então, apenas recortava o que lhe era apontado, e, em alguns momentos, quem executava a atividade era a segunda professora.

Após os recortes, a alfabetizadora da turma dirigiu-se a cada estudante a fim de auxiliá-los na leitura das palavras recortadas, mas não foi até o com deficiência. Depois, ela retornou ao quadro e solicitou que os estudantes lessem em voz alta algumas palavras que recortaram. Várias palavras foram lidas e a alfabetizadora as escreveu no quadro. Após a escrita, ela realizou a leitura coletiva com a participação dos estudantes, momento em que a segunda professora apontava para o caderno do estudante com deficiência e realizava a leitura individualizada para ele.

A segunda turma observada foi a da 2ª série do ensino fundamental, composta por 20 estudantes. O conteúdo eram as sílabas, a primeira atividade foi a contagem de sílabas. A alfabetizadora da turma solicitou que os estudantes abrissem a apostila na página 24 e preenchessem as lacunas em branco com o número que correspondesse à quantidade de sílabas de cada palavra apresentada no quadro, da página da apostila. Os estudantes iniciaram a atividade. Enquanto isso, a segunda professora abria a apostila na página solicitada e, juntamente do estudante com deficiência, iniciava a leitura das palavras; na sequência, esta escrevia o número em uma folha, e o estudante o copiava na apostila. A segunda atividade foi a leitura coletiva dessas palavras. O estudante com deficiência não participou dela, ele seguia copiando os números que a segunda professora havia escrito.

A terceira turma observada foi a do 3ºano do ensino fundamental, composta por 23 estudantes. Quando a pesquisadora chegou à sala, a segunda professora perguntou à alfabetizadora da turma quais seriam as atividades a serem realizadas naquela aula. A alfabetizadora respondeu que estava na página 34. Na primeira atividade, a alfabetizadora da turma solicitou que os estudantes lessem o texto da apostila, que era uma história infantil. A segunda professora realizou a leitura para o estudante com deficiência. Na sequência, a alfabetizadora da turma explicou o que era o encontro vocálico: a vogal e as semivogais. O estudante com deficiência apenas olhava fixo para a alfabetizadora da turma. Na sequência, esta pediu que os estudantes destacassem no texto palavras que possuíssem semivogais e pintassem de uma cor a vogal principal e de outra cor a semivogal.

A segunda professora auxiliou o estudante durante a atividade, sinalizando no texto as palavras. A alfabetizadora da turma caminhava entre as mesas observando a realização da atividade, mas não se aproximou do estudante com deficiência a fim de visualizar a atividade dele. Ao finalizarem a atividade, a alfabetizadora da turma explicou o conceito de hiato, ditongo e tritongo. Na sequência, escreveu no quadro algumas palavras que possuíam esses elementos, pois, ao final, encaminharia tarefa de casa sobre o assunto.

Enquanto os demais estudantes copiavam as conceituações escritas no quadro pela professora da turma, o estudante com deficiência recortava palavras de jornais e revistas e as colava no caderno. A segunda professora orientou que ele encontrasse nos materiais as palavras que possuíssem encontros vocálicos e colassem-nas no caderno.

Diante dos cenários observados, o ensino aos estudantes com deficiência ocorreu por meio de práticas de pequenos ajustes simplificadores de ensino (Pletsch; Glat, 2012), voltados à facilitação da tarefa, o que reduz as possibilidades de aprendizagens superiores e limita o desenvolvimento de habilidades cognitivas mais elaboradas, necessárias à construção de conceitos científicos que envolvem conhecimentos abstratos essenciais à consolidação do processo de alfabetização.

Assim como apontou a pesquisa de Pletsch e Glat (2012), constatou-se, nesta pesquisa em questão, que o ensino para as crianças com deficiência intelectual consiste em tarefas elementares, como recortar, colar, pintar, copiar. Ou seja, atividades que simplificam o ato de ensinar e limitam a aprendizagem por meio de práticas de alfabetização excludentes. Com base nas observações da pesquisadora, até mesmo o recortar, em uma das turmas, foi conduzido pela segunda professora.

Segundo Lunardi-Mendes (2008), no Brasil, especialmente para estudantes com deficiência, o foco para a seleção do conhecimento está voltado ao ensino transmissor, cumulativo e uniformizador. O foco está na técnica e na codificação, principalmente nas disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática, disciplinas a que os professores dos anos iniciais dão mais ênfase. Ao privilegiar atividades organizadas para as disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática, muitas informações oferecidas aos estudantes podem ser desconectadas dos textos e as atividades podem carecer de sentido e contexto. Sobre isso, destaca-se que,

[...] cada conteúdo dentro de uma disciplina é uma unidade específica e sem relação com as demais. O que é aprendido na primeira aula de Língua Portuguesa pode não ter relação com as outras aulas e assim por diante. O professor tem dificuldades inclusive, talvez em função disso, de relacionar o conteúdo com as hipóteses que as crianças constroem sobre os temas estudados (Lunardi-Mendes, 2008, p. 140).

No contexto sinalizado pela autora, o professor propunha-se a trabalhar com a disciplina, com o conhecimento que desejava transmitir ao estudante, mas, por vezes, acabava realizando esse objetivo de forma irrefletida e mecanizada, não por sua própria vontade, mas pelas práticas que já eram consolidadas, no cotidiano escolar, devido aos processos de formação e orientações dadas pelos materiais que estruturam suas práticas.

As organizações do ensino, nas turmas observadas, evidenciam consonância com a representação social do estudante com deficiência intelectual como incapaz de aprendizagens superiores, ou seja, para além de seus conhecimentos iminentes, há limitações de vislumbrar potencialidades. Com base nas observações realizadas, pôde-se evidenciar que as alfabetizadoras das turmas, bem como as segundas professoras, adotaram uma atitude de pouca expectativa e exigência, aceitando e reafirmando a retórica de que o mínimo que conseguirem fazer é satisfatório.

Contudo, a partir da perspectiva epistemológica histórico-cultural, que se assume nesta pesquisa, compreende-se que, ao organizar um ensino da leitura e da escrita, no ensino inclusivo que é materializado pela adoção de práticas pedagógicas flexíveis, materiais didáticos variados e estratégias que promovam a participação ativa de todos os alunos, contribuindo às aprendizagens singulares, assume-se a responsabilidade de efetivar o papel social da escola de ensinar conhecimentos escolares de forma sistematizada e com o propósito de possibilitar a emancipação e a autonomia para todos. Ainda, compreende-se que alfabetização, no ensino inclusivo, demanda um processo de ensino objetivado que possibilite a aprendizagem de conceitos científicos que conduza ao desenvolvimento humano de crianças com deficiência, inclusive.

Como destacou Vigotski (1993), a criança, ao aprender, desenvolve-se e, ao se desenvolver, aprende, e para isso todo ensino deve ser objetivado a garantir a aprendizagem e o desenvolvimento humano. O ensino objetivado possibilita que todos tenham acesso ao conhecimento científico, enquanto os instrumentos simbólicos atuam como mediadores da atividade humana, dentre as quais, a linguagem tem papel de destaque, mas não se limita a ela (Sforni; Galuch, 2006).

Para Vigotski (1998), promover o acesso, a permanência e o aproveitamento escolar dos estudantes com deficiência exige do professor, pela via do ensino, elaborar caminhos indiretos quando as aprendizagens desses estudantes não ocorrerem por caminhos diretos. Esses caminhos alternativos são extremamente importantes na história da aprendizagem e do desenvolvimento das crianças.

Provavelmente, a humanidade vencerá mais cedo ou mais tarde a cegueira, a surdez e o retardo mental, porém, vencerá antes social e pedagogicamente, do que a médica e biologicamente. Está errado enxergar na anormalidade somente a doença. Numa criança anormal vemos somente o defeito e por isso o nosso estudo sobre a criança e o enfoque desse estudo limitam-se com a constatação daquele percentual de cegueira, de surdez ou de perversão do gosto. Nós paramos nos “zolotnik” (ouros) da doença e não percebemos os “pud” (quilos) de saúde. Percebemos os grãozinhos de defeitos e não percebemos as áreas colossais, ricas de vida que as crianças possuem (Vigotski, 1998, p. 40).

Dessa forma, é necessário refletir sobre as singularidades de aprendizagens e de desenvolvimento humano, quando se propõe uma organização pedagógica que objetive um ensino inclusivo; além disso, precisa-se ter clareza de que não se trata apenas de incluir, mas de conhecer as diversas possibilidades de ensinar. É nessa atividade de ensino objetivado às aprendizagens e organizado para as/e pelas necessidades subjetivas de aprendizagem que se supera a limitação de escolarização delegada aos estudantes com deficiência.

Possivelmente, não está longe o dia em que a pedagogia se envergonhará do próprio conceito “criança com deficiência” para designar alguma deficiência de natureza insuperável. O surdo falante, o cego trabalhador, participantes da vida comum em toda sua plenitude, não sentirão mais a sua insuficiência e nem darão motivos para isso aos outros. Está em nossas mãos fazer com que as crianças surdas, cegas e com retardo mental não sejam deficientes. Então, desaparecerá o próprio conceito de deficiência, o sinal justo da nossa própria deficiência (Vigotski, 2003, p. 54).

Vigotski (2003), ao estudar a defectologia, termo utilizado na época para referenciar o ensino inclusivo, evidenciou a necessidade de as práticas de ensino atuarem na elaboração de instrumentos culturais adaptados à estrutura psicológica da criança com deficiência, bem como verificou a importância da utilização de procedimentos pedagógicos subjetivos que levem essa mesma criança a dominar o uso dos instrumentos.

6 ESCRITAS FINAIS

Determinados em analisar as implicações da formação do PNAIC nas práticas de alfabetização no ensino inclusivo em Xaxim, SC, esta pesquisa, fundamentada epistemetodologicamente na perspectiva histórico-cultural, pressupõe o processo de alfabetização como possibilidade de emancipação do sujeito e potencializador para a superação das concepções técnicas impregnadas nos programas de formação de alfabetizadores e de materiais que orientam as práticas alfabetizadoras de forma excludente.

Nesta pesquisa, foram constatadas não só as fragilidades e limitações da formação do PNAIC e dos materiais estruturados utilizados pelas alfabetizadoras das turmas e segundas professoras de Xaxim, SC, mas também, acima de tudo, a complexidade do processo de inclusão de estudantes com deficiência intelectual, particularmente na esfera das práticas pedagógicas.

Refletir acerca do processo de alfabetização na perspectiva do ensino inclusivo é organizar práticas de ensino que possibilitem o desenvolvimento humano capaz de superar a lógica biologizante que fundamenta as práticas de ensino de muitos alfabetizadores brasileiros. Os problemas de ensino e da educação estão estreitamente ligados à fundamentação lógico-teórica dos processos de formação aligeirados e técnicos e ao processo didático de ensino orientado por materiais estruturados. A relação desses dois dispositivos, formação e material, determina essencialmente o tipo de consciência e de pensamento que se objetiva para a formação humana.

Por fim, compreende-se que a escola é, portanto, o espaço social legítimo de aprendizagem dos conhecimentos culturais historicamente produzidos e potencializador do desenvolvimento humano de todas as crianças, mas que, na pesquisa proposta, ela tornou-se o espaço de reprodução de orientações de formações do PNAIC e de materialização de atividades de materiais estruturados. Ademais, observou-se que as reformas na alfabetização ocorreram principalmente pela via da formação de alfabetizadores, a exemplo do PNAIC; porém, ao se analisar a articulação desse programa com o ensino inclusivo, identificaram-se implicações nas práticas alfabetizadoras, as quais são simplistas, fragilizadas e excludentes.

2 Vigotski (1993) denominava autonomia como um processo de autorregulação, como a função psicológica mais importante, pois permite ao sujeito a capacidade de controlar suas ações sem ajuda dos estímulos externos. Esse processo ocorre depois que as regras mediadas pelo social foram internalizadas.

3O segundo professor é o profissional que acompanha o estudante com deficiência em turmas regulares. Ele tem a atribuição de correger a turma. A garantia deste serviço estava condicionada à funcionalidade dos estudantes da Educação Especial, e não exclusivamente ao diagnóstico clínico. Para mais informações, ver a Política de Educação Especial de Santa Catarina (Santa Catarina, 2018).

4Sabe-se que o termo correto é pessoa com deficiência, porém o termo portador é apresentado para manter a originalidade dos documentos citados.

5A municipalização ocorreu em Xaxim, SC, no ano de 2012. A diferença entre municipalização e municipais é que o primeiro tipo se refere às escolas que eram de responsabilidade do estado e passaram a ser responsabilidades do município; o segundo faz menção às escolas que sempre foram de responsabilidade do município.

6A diferença entre ano e série é marcada pela ampliação do EF. O que ocorreu foi que, ao ampliarem para nove anos, o termo série foi substituído para melhor compreensão da nova organização do EF e para destacar que a alfabetização, em especial, deve ser entendida como um ciclo composto por três anos ininterruptos, enquanto série não garante que todos concluam o ciclo sem interrupções.

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Recebido: 04 de Julho de 2022; Aceito: 23 de Agosto de 2023

Marineiva Moro Campos de Oliveira: Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC). E-mail:marineiva.oliveira@unoesc.edu.br, ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3110-0771

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