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Série-Estudos

versión impresa ISSN 1414-5138versión On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.29 no.66 Campo Grande mayo/aug 2024  Epub 24-Sep-2024

https://doi.org/10.20435/serieestudos.v29i66.1863 

Artigo

As relações étnico-raciais no currículo de Ciências e Educação Física: apontamentos teóricos

Ethnic-racial relations in the Science and Physical Education curriculum: theoretical notes

Relaciones étnico-raciales en el currículo de Ciencias y Educación Física: apuntes teóricos

Catiana Nery Leal1 

Catiana Nery Leal: Doutoranda em Ensino pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino (Rede Nordeste de Ensino [RENOEN]) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (PPGEN/UESB). Mestre em Relações Étnicas e Contemporaneidade pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Étnicas e Contemporaneidade (PPGREC) da UESB. Pós-graduada lato sensu em Educação e Interdisciplinaridade pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Graduada em Licenciatura em Educação Física pela UFRB, Centro de Formação de Professores (CFP). E-mail:catiananery@gmail.comOrcid:https://orcid.org/0000-0001-7985-3740


http://orcid.org/0000-0001-7985-3740

Maria de Fátima de Andrade Ferreira1 

Maria de Fátima de Andrade Ferreira: Doutorado e mestrado em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Graduação em Pedagogia pela Fundação Educacional Nordeste Mineiro e graduação em História pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Professora plena na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), do curso de Pedagogia. E-mail:mfatima.uesb@hotmail.comOrcid:https://orcid.org/0000-0003-4094-6741


http://orcid.org/0000-0003-4094-6741

Rafael Casaes de Brito1 

Rafael Casaes de Brito: Doutorando em Ensino com ênfase em Ensino de Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino (Rede Nordeste de Ensino [RENOEN]) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (PPGEN/UESB). Mestre em Relações Étnicas e Contemporaneidade pelo Programa de Pós-Graduação em Relações e Contemporaneidade (PPGREC- UESB/ODEERE) em nível de Mestrado Acadêmico, com área de concentração em Relações Étnicas, Gênero e Sociedade. Licenciado em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). E-mail:rafaelc.brito@hotmail.comOrcid:https://orcid.org/0000-0003-1879-9001


http://orcid.org/0000-0003-1879-9001

1Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Vitória da Conquista, Bahia, Brasil


Resumo

O presente artigo apresenta um recorte teórico de conhecimentos produzidos no âmbito de duas pesquisas de doutorado, em andamento, que têm como campo de estudo as relações étnico-raciais em dois componentes curriculares da escolarização básica - Educação Física e Ciências. Nele, reforçamos a importância de saber qual uso é feito da história da África e das relações étnico-raciais no currículo, conforme a Lei 10.639/03, para organizar o trabalho das disciplinas de Educação Física e Ciências, inclusive da escola, nos anos finais do Ensino Fundamental, e, em contrapartida, contribuir com as práticas pedagógicas no processo de desconstrução de preconceitos raciais e relações étnico-raciais socialmente vigentes na escola e sociedade brasileira. Neste texto, procuramos mostrar possibilidades para a inserção da temática étnico-racial em sala de aula, tendo como parâmetro o reconhecimento e a valorização da educação intercultural crítica e suas potencialidades (Walsh, 2007, 2009) no currículo escolar, como um desafio para a escola e os professores. Enfim, defendemos o ponto de vista segundo o qual os conteúdos acerca das relações étnico-raciais, quando valorizados nas disciplinas Educação Física e Ciências, podem possibilitar aos professores a apropriação de saberes que lhes permitam trabalhar com uma educação antirracista e atuar como profissionais comprometidos a enfrentar os desafios colocados pelo racismo no cotidiano escolar.

Palavras-chave: relações étnico-raciais; Educação Física; ensino de Ciências

Abstract

This article presents a theoretical outline of knowledge produced within the scope of two ongoing doctoral research, whose field of study is ethnic-racial relations in two curricular components of basic schooling- Physical Education and Science. In it, we reinforce the importance of knowing what use is made of the history of Africa and ethnic-racial relations in the curriculum, in accordance with Law 10.639/03, to organize the work of Physical Education and Science subjects, including school, in the final years of Elementary Education and, in return, contribute to pedagogical practices in the process of deconstructing racial prejudices and ethnic-racial relations socially in force in schools and Brazilian society. In this text we seek to show possibilities for the inclusion of the ethnic-racial theme in the classroom, having as a parameter the recognition and appreciation of critical intercultural education and its potential (Walsh, 2007, 2009) in the school curriculum, as a challenge for the school and the teachers. Finally, we defend the point of view according to which content about ethnic-racial relations, when valued in the disciplines of Physical Education and Science, can enable teachers to acquire knowledge that allows them to work with anti-racist education and act as professionals committed to facing the challenges posed by racism in everyday school life.

Keywords: ethnic-racial relations; Physical Education; Science teaching

Resumen

Este artículo presenta un esquema teórico del conocimiento producido en el ámbito de dos investigaciones doctorales en curso, que tienen como campo de estudio las relaciones étnicoraciales en dos componentes curriculares de la enseñanza básica: Educación Física y Ciencias. En él, reforzamos la importancia de conocer qué uso se hace de la historia de África y de las relaciones étnico-raciales en el currículo, de acuerdo con la Ley 10.639/03, para organizar el trabajo de las asignaturas de Educación Física y Ciencias, incluso escolar, en los últimos anos de la Educación Primaria y, a cambio, contribuir a las prácticas pedagógicas en el proceso de deconstrucción de prejuicios raciales y relaciones étnico-raciales socialmente vigentes en las escuelas y en la sociedad brasileha. En este texto buscamos mostrar posibilidades para la inclusión de la temática étnico-racial en el aula, teniendo como parámetro el reconocimiento y valoración de la educación intercultural crítica y su potencial (Walsh, 2007, 2009) en el currículo escolar, como un desafio para la escuela y los profesores. Finalmente, defendemos el punto de vista según el cual los contenidos sobre las relaciones étnico-raciales, cuando se valoran en las disciplinas de Educación Física y Ciencias, pueden permitir a los docentes adquirir conocimientos que les permitan trabajar con la educación antirracista y actuar como profesionales comprometidos para enfrentar los desafios que plantea el racismo en la vida escolar cotidiana.

Palabras clave: relaciones étnico-raciales; Educación Física; ensehanza de las Ciências

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo apresenta um recorte teórico de conhecimentos produzidos no âmbito de duas pesquisas de doutorado, em andamento, que têm como campo de estudo as relações étnico-raciais em dois componentes curriculares da escolarização básica, anos finais do Ensino Fundamental - Educação Física e Ciências. Nesse sentido, enfoca como pontos importantes o enfrentamento e combate ao racismo e a superação das desigualdades no cotidiano escolar.

Nele, reforçamos a importância de saber qual uso é feito da história da África e das relações étnico-raciais no currículo, conforme a Lei 10.639 (Brasil, 2003), para organizar o trabalho das disciplinas de Educação Física e Ciências, inclusive da escola, nos anos finais do Ensino Fundamental, e, em contrapartida, contribuir com as práticas pedagógicas no processo de desconstrução de preconceitos raciais e relações étnico-raciais socialmente vigentes na escola e sociedade brasileira.

Neste texto, portanto, procuramos mostrar possibilidades para a inserção da temática étnico-racial em sala de aula, tendo como parâmetro o reconhecimento e a valorização da educação intercultural crítica e suas potencialidades (Walsh, 2007, 2009) no currículo escolar, como um desafio para a escola e os professores. Enfim, defendemos o ponto de vista segundo o qual os conteúdos acerca das relações étnico-raciais, quando valorizados nas disciplinas Educação Física e Ciências, podem possibilitar ao professor a apropriação de saberes que lhes permitam trabalhar com uma educação antirracista e atuar como profissionais comprometidos a enfrentar os desafios colocados pelo racismo no cotidiano escolar. Nessa perspectiva, cabe lembrar que o enraizamento do racismo na sociedade brasileira é um fenômeno que vem, por meio dos tempos, atravessando as relações sociais entre brancos e não brancos de modo perverso e se encontra presente no cotidiano escolar.

Em nossa sociedade, a despeito de todos os esforços que os movimentos sociais, pesquisadores, governos e a sociedade organizada vêm empreendendo nos últimos anos, para prevenir e enfrentar o racismo, este continua como uma prática cotidiana e perversa, apontando o distanciamento entre a legislação brasileira e a realidade social, sobretudo quando observamos a situação da população negra e indígena na sociedade brasileira. Constatamos que, mesmo reconhecendo a diversidade étnica e cultural do Brasil, a população negra ainda sofre com as ideias e os discursos de branqueamento, branquitude, mestiçagem, como algo necessário, virtuoso e valoroso, colaborando para a manutenção de preconceitos, discriminação e estereótipos que não são questões apenas subjetivas, fazem parte da vida concreta das pessoas e se expressam na escolarização, no trabalho, na moradia, no lazer, dentre outros. Desse modo, mitos, crenças, estereótipos, estigmas e a realidade se confundem e provocam situações de exclusão, repetição de fatos que reafirmam a permanência e continuidade do racismo e o aumento das desigualdades étnico-raciais e sociais.

Para Nilma Lino Gomes (2017), na obra O Movimento Negro Educador: saberes construídos nas lutas por emancipação, que se apresenta comoumaobra referencial na articulação entre questões étnico-raciais, a autora afirma que o racismo se constitui um sistema de dominação e opressão estrutural pautado numa racionalidade que hierarquiza grupos e povos baseada na crença da superioridade e inferioridade racial (Gomes, 2017).

No entanto, é bom lembrar que, quanto à noção de raça, como destacam Brito e Eugênio (2023, p. 3), sendo raça aqui entendida como um conceito social que envolve características físicas e culturais, pautados em Gomes (2017), no Brasil, houve uma mudança de sentido acerca da ideia de raça pela luta constante do Movimento Negro, que ressignificou e deu novas roupagens politizadas, de modo a transformar a concepção de raça em uma potência emancipatória, em detrimento da concepção reguladora. O conceito de raça tem uma história complexa e foi frequentemente utilizado de maneiras problemáticas ao longo do tempo. Durante grande parte da história, as ideias de raça foram usadas para justificar a escravidão, a discriminação e a segregação racial. O Movimento Negro desempenhou um papel fundamental na mudança de percepções e na luta contra as narrativas raciais prejudiciais.

Desse modo, Gomes (2017) já nos dá a chave para a compreensão de que os movimentos sociais são muito importantes na luta pela emancipação social e são produtores e articuladores dos saberes construídos pelos grupos hegemónicos e contra-hegemônicos. E muito do que sabemos e aprendemos sobre a população negra e o racismo no Brasil tem sido desvelado por este movimento, inclusive contribuições nas discussões sobre discriminação racial, desigualdade racial e social, crítica à democracia racial, branqueamento e branquitude da população, gênero, elaboração de políticas públicas, ações afirmativas, prevenção e combate ao racismo e educação das relações étnico-raciais, dentre outras questões no Brasil.

Segundo Verrangia (2016) e Verrangia e Silva (2010), as relações étnico-raciais são entendidas como aquelas estabelecidas entre os distintos grupos sociais e entre indivíduos desses grupos, orientadas por conceitos e ideias sobre as diferenças e semelhanças relativas ao pertencimento racial e étnico individual e coletivo. Para isso, foi aprovada a Lei 10.639 (Brasil, 2003) na gestão democrática de Luiz Inácio Lula da Silva, que busca, dentre outras coisas, inserir os conteúdos de matriz africana e afrodescendente no currículo de todas as disciplinas da Educação Básica.

Retomamos Gomes (2017), quando afirma que não podemos perder a esperança, o sentimento de luta, mas que é preciso sabedoria e resistência democrática, pois, apesar das adversidades, das barreiras e dos desafios que enfrentamos na sociedade brasileira, pelos direitos, pela cidadania e condição humana, na luta pela democracia e contra o capitalismo, o racismo e o patriarcado, não podemos deixar de focar nas conquistas já alcançadas e seguir em frente. A afirmação de que não podemos perder a esperança e o sentimento de luta destaca a importância da perseverança diante das adversidades. A menção à sabedoria e resistência democrática indica a necessidade de abordar os desafios de maneira estratégica e em conformidade com os princípios democráticos. A referência às adversidades, às barreiras e aos desafios na sociedade brasileira aponta para os obstáculos enfrentados no caminho da busca por direitos, igualdade, e justiça social.

É fato. A perspectiva de prevenção e combate ao racismo está na ordem do dia, assim como suas interseções com o capitalismo e o patriarcado. No entanto, como afirma Manuela Carneiro da Cunha (2018, p. 47): “Quanto ao racismo, ele tampouco necessita serfundado em boa ciência. Pouco lhe importa se raça existe ou não. ‘Raça’ passou a ser uma categoria folk, e o racismo existirá enquanto suas manifestações depreciativas perdurarem”. Mas há pontos importantes sobre essa questão e, nesse sentido, a promoção da igualdade racial e os direitos da população negra, da mulher negra, estão em pautas e apontam para a possibilidade concreta de superação de tais desigualdades.

A partir do que pensam Prudêncio e Jesus (2019), a aprovação da lei e a publicação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (Brasil, 2004) representam uma resposta para que demandas que surgem na sociedade, como a necessidade de se discutir as relações étnico-raciais e alternativas ao combate ao preconceito e à discriminação que adentrem à escola, a qual, cada vez mais, torna-se um espaço de coexistência, mesmo com alguns atritos, entre diversas culturas. É importante compreender que a obrigatoriedade da Lei 10.639 é um marco importante no reconhecimento e na promoção da diversidade étnico-racial na educação, assim como os direitos do cidadão que passaram a ser centrais na definição da democracia e luta pela emancipação social. Essa é uma razão porque a Lei 10.639 (Brasil, 2003) e as Diretrizes Curriculares Nacionais correspondentes são instrumentos importantes para a construção de uma educação que reconhece e valoriza a diversidade étnico-racial brasileira, buscando superar práticas históricas de exclusão e discriminação.

Em suma, a história de vida produz diversidades e identidades, as quais estão sendo geradas a todo momento, e essa legislação representa um esforço significativo para combater o racismo e integrar de maneira mais abrangente a história e a cultura afro-brasileira e africana nos currículos escolares e operar na construção das identidades étnico-raciais, na visibilidade das questões do racismo brasileiro que opera no Estado e na vida cotidiana da população brasileira, de suas vítimas.

2 AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NO CURRÍCULO DA EDUCAÇÃO BÁSICA

As relações étnico-raciais são um tema crucial da Educação Básica, pois a escola desempenha um papel fundamental na promoção da igualdade e no combate ao racismo. No contexto educacional, a inclusão das relações étnico-raciais no currículo procura garantir que os estudantes tenham uma compreensão crítica e reflexiva sobre a diversidade étnico-racial brasileira e mundial.

No Brasil, a Lei 10.639 tornou obrigatório o ensino de História e Cultura AfroBrasileira nos currículos escolares. Em seguida, a Lei 11.645 (Brasil, 2008) ampliou esse escopo, abarcando também o ensino de História e Cultura Indígena. Ambas as leis visam combater o racismo e promover o respeito à diversidade étnico-racial.

Para reforçar, Santos (2002) ressalta o quanto a nossa sociedade é excludente quando pontua esses saberes inviabilizados. No caso do currículo das escolas brasileiras, há uma permanente invisibilização dos conhecimentos das populações negras e indígenas. Há todo um apagamento da história da África, de várias culturas, dos vários saberes. Diante desse contexto sobre o apagamento de conhecimentos específicos de determinados povos, compreendemos que houve um epistemicídio, ou seja, houve uma morte da cultura, dos saberes, dos conhecimentos, história etc., e que precisamos resgatar esses conhecimentos, esses saberes e essas culturas, dentro da sala de aula.

O apagamento de conhecimentos específicos de determinados povos é uma realidade que tem profundos reflexos no tecido social e educacional. Este fenómeno não ocorre de forma isolada, mas está entrelaçado com o contexto histórico, político e cultural de uma sociedade. Examinar esse apagamento é fundamental para compreender como a narrativa dominante muitas vezes exclui contribuições valiosas de diferentes grupos étnicos e culturais. O currículo educacional muitas vezes reflete o viés cultural predominante, contribuindo para o apagamento de conhecimentos específicos. Determinados grupos étnicos podem ser negligenciados nos materiais didáticos, resultando em lacunas significativas na compreensão dos estudantes sobre a diversidade cultural e intelectual.

Diante desse contexto, o apagamento de conhecimentos específicos de determinados povos não é apenas uma questão histórica, mas uma realidade persistente que impacta a forma como as sociedades percebem a si mesmas e aos outros. Reconhecer, confrontar e superar esse apagamento é fundamental para construir uma sociedade mais justa, inclusiva e enriquecedora, em que a diversidade de conhecimentos é valorizada e celebrada.

Gomes (2017, p. 42) reforça que:

Os projetos, os currículos e as políticas educacionais têm dificuldades de reconhecer esses e outros saberes produzidos pelos movimentos sociais, pelos setores populares e pelos grupos sociais não hegemônicos. No contexto atual da educação, regulada pelo mercado e pela racionalidade cientifico-instrumental, esses sabres foram transformados em não existência, ou seja, em ausência.

Segundo Gomes (2017), há uma dificuldade evidente em reconhecer os conhecimentos gerados pelos movimentos sociais, pelas camadas populares e pelos grupos não hegemônicos nos planos, currículos e políticas educacionais. Esta carência espelha desafios mais amplos relativos à inclusão, diversidade e equidade dentro do sistema educativo. No entanto, ultrapassar as barreiras que impedem o reconhecimento dos saberes produzidos por tais movimentos e grupos demanda um compromisso contínuo com a promoção da equidade e inclusão no contexto educacional.

O currículo da Educação Básica deve refletir a diversidade étnico-racial presente na sociedade. Isso envolve a inclusão de conteúdos que abordem a contribuição das diferentes etnias para a formação da sociedade brasileira, promovendo a valorização e o respeito à pluralidade cultural. No entanto, é essencial proporcionar aos professores uma formação adequada para abordar questões étnico-raciais de maneira sensível e inclusiva. Assim, inclui o desenvolvimento de competências para lidar com a diversidade cultural presente nas salas de aula. Portanto, os materiais didáticos necessitam ser diversificados e incluir representações positivas de diferentes grupos étnico-raciais; isso contribui para que os estudantes se identifiquem com a aprendizagem e reconheçam a importância de todas as culturas na construção da sociedade.

Fernandes (2005) afirma que a história não é coisa do passado para ser memorizada e repetida, o autor informa e revela quem somos nós no presente e quais são os papéis que devemos desempenhar na sociedade atual. Por isso, o autor reconhece que o ensino da história que ignora ou estereotipa as matrizes africanas e indigenistas perde a cara da população e fica semelhante à visão dos dominadores, produzindo uma história parcial com os elementos de discriminação e racismo. O mesmo ocorre com outras etnias, com relação às mulheres e às diversas regiões do país.

As salas de aula devem ser espaços de diálogo aberto e respeitoso sobre questões étnico-raciais. Isso permite que os estudantes expressem suas experiências, aprendam com a diversidade e desenvolvam uma consciência crítica sobre o racismo. Diante disso, compreende-se que se faz necessária a realização de eventos, palestras, formações e atividades culturais que abordem a diversidade étnico-racial e, dessa forma, pode-se enriquecer a experiência educacional dos estudantes e proporcionar oportunidades para conhecer e valorizar diferentes perspectivas culturais.

Para Fernandes (2005), um dos desafios para a efetivação da Lei n. 10.639 (2003) nas salas de aula é abrir espaço para as culturas afro-brasileira e africana nos currículos da Educação Básica e nas propostas curriculares, reconhecendo o negro como sujeito histórico formador da população brasileira, além de desconstruir as narrativas históricas pejorativas sobre a negritude no Brasil.

Por isso, precisamos reforçar e implementar a legislação existente, como a Lei 10.639 (2003), que torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nos currículos escolares, e a Lei 11.645 (2008), que inclui o ensino de História e Cultura Indígena. Dessa maneira, entendemos que é necessária a promoção de formação continuada de professores, capacitando-os para abordar de maneira adequada e sensível os temas relacionados à cultura afro-brasileira e africana, bem como incentivando o diálogo e a troca de experiências entre educadores para enriquecer as práticas pedagógicas.

A inclusão das relações étnico-raciais no currículo da Educação Básica contribui para a formação de cidadãos mais conscientes, tolerantes e comprometidos com a construção de uma sociedade justa e igualitária. Essa abordagem não apenas atende às exigências legais, mas também fortalece o papel da educação na promoção da diversidade e no combate à discriminação.

Chagas (1997) argumenta que a inserção dos elementos que recuperem a memória histórica afro-brasileira permite revisar o papel que a população negra desempenhou, nos diferentes espaços e paisagens culturais, na formação étnico-social do povo brasileiro. No entanto, é preciso integrar conteúdos que abordem a história, a literatura, a arte, a música e outras expressões culturais afro-brasileiras e africanas em diferentes disciplinas. A valorização da cultura negra no currículo escolar é um passo importante para promover a igualdade racial, contribuindo para uma educação mais inclusiva e respeitosa da diversidade.

Nesse sentido, as escolas podem contribuir significativamente para a valorização da cultura negra no currículo, promovendo um ambiente educacional mais inclusivo e consciente da diversidade cultural brasileira. Gomes (2007) ressalta a importância de se trabalhar com um currículo que contesta os processos de marginalização e valoriza a diversidade e a diferença. Isso implica em posicionar-se contrariamente aos processos de colonização e dominação presentes nos espaços de ensino e aprendizagem, a fim de incorporar de maneira efetiva a cultura afro-brasileira e africana nos currículos da educação básica. Essa abordagem visa lidar de forma crítica com as relações de poder que atravessam os conteúdos escolares.

Em concordância com Moreira e Candau (2007), o currículo se tornará um espaço para questionamento das representações que temos de nós e dos outros. Junto ao reconhecimento da própria identidade cultural, outro elemento a ser ressaltado relaciona-se às representações que construímos dos outros, daqueles que consideramos diferentes. A ideia de transformar o currículo em um espaço para questionamento das representações culturais é fundamental para promover uma educação crítica e consciente da diversidade. Essa abordagem permite não apenas o reconhecimento da própria identidade cultural, mas também a compreensão e valorização das identidades culturais dos outros.

Enfim, ao criar um espaço no currículo para questionamento e reflexão sobre as representações culturais, os professores contribuem para a formação de estudantes mais críticos, conscientes e respeitosos da diversidade. Essa abordagem também pode fortalecer a autoestima e a identidade cultural dos estudantes, promovendo um ambiente educacional mais inclusivo.

3 AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NO ENSINO DE CIÊNCIAS

O ensino de Ciências Naturais, como Física, Química e Biologia, raramente incluiu discussões e reflexões no ambiente escolar. Questões sociais, étnicas, raciais e de gênero frequentemente foram negligenciadas nessas disciplinas, tanto no currículo quanto na prática escolar. Mas, nos últimos anos, tem dado passos importantes sobre o aprofundamento da reflexão de bases teóricas, epistemológicas e metodológicas para a reinterpretação de questões étnico-raciais, gênero, sexualidade, dentre outras.

No Brasil, o ensino de Ciências está intimamente ligado à tradição jesuíta e à influência portuguesa, no contexto histórico, político e cultural de colonização da sociedade brasileira, e deu-se no início do século XIX, como objeto do sistema educacional, com base nos estudos da Matemática e das línguas clássicas, segundo a pedagogia tradicionalista e positivista, ministrada de forma de aulas expositivas, com influências das ideias iluministas e, assim, buscava “uma intensificação do pensamento pedagógico e da preocupação com a atitude educativa” (Boto, 1996, p. 21).

De acordo com Bezerra e Santos (2016, p. 2), no ensino de Ciências no Brasil, “a mudança na mentalidade da população quanto à relevância social da Ciência gerada pelos avanços e invenções advindas do desenvolvimento científico, acabaram abrindo espaço para o ensino das Ciências no âmbito formal, escolar”. Neste período, predominava, como afirmam as autoras (Bezerra; Santos, 2016), a visão acadêmica que imitava os métodos da educação escolásticos da idade média, na qual o Ensino de Ciências objetivava formar cientistas em busca de um ensino que ajudasse a solucionar os problemas do cotidiano.

Contudo, o ensino de Ciências foi se modificando conforme as exigências históricas, políticas e culturais da sociedade brasileira, atravessando paradigmas de produção de conhecimentos e saberes, bases epistemológicas e metodológicas de ensino, pensamentos pedagógicos e novas concepções de formação que foram surgindo ao longo dos anos.

Sobre isso, Carvalho e Gil-Pérez (2003) evidenciam a necessidade de que, no Ensino de Ciências, sejam renovadas as formas de ensinar os conteúdos, avaliar e até mesmo envolver os estudantes efetivamente no processo de formação, de forma crítica, reflexiva, sociocultural e intercultural.

E quanto ao ensino de Ciências nos anos iniciais, Praia, Gil-Pérez e Vilches (2007) defendem que esse campo de estudo, nos primeiros anos de ensino, envolve os estudantes em processos decisórios e requer mais do que um domínio de conhecimentos específicos, requer, também, uma participação cidadã, de modo que compreenda a escola como um ambiente diverso, plural, multidimensional.

Do mesmo modo, observamos que Verrangia e Silva (2010) chamam atenção para a frequência com que o ensino de Ciências colabora com a manutenção do racismo, principalmente tendo em vista que essa forma de conhecimento é comumente percebida como politicamente neutra. Nestes termos, os autores chamam atenção sobre a responsabilidade do ensino de Ciências em enfrentar a realidade de injustiça social/racial existente no Brasil, potencializando práticas e procedimentos de trabalho no ensino de Ciências com relações étnico-raciais.

Dentre as perspectivas do ensino de Ciências diante das mudanças necessárias, encontra-se o trabalho pedagógico relacionado à multiculturalidade, tendo em vista a diversidade cultural do Brasil. Assim, questões relacionadas ao racismo, aos preconceitos raciais e a discriminações de minorias éticas e religiosas devem ser de interesse do professor de Ciências (Krasilchik, 2000). Entretanto, as pesquisas da área de Ensino de Ciências têm sinalizado uma incipiente abordagem das temáticas étnico-raciais, tanto nas investigações quanto no debate das licenciaturas na área de Ciências (Verrangia; Silva, 2010; Fernandes, 2015).

Para Jesus, Paixão e Prudêncio (2019), um dos caminhos que possibilitam a reflexão crítica sobre as questões supracitadas é a incorporação do ensino da cultura de todos os povos que constituem o Brasil, uma vez que a proposta não é substituir a educação eurocêntrica por outra, africana, mas possibilitar que todos esses conhecimentos sejam abordados no ambiente escolar, de maneira que sensibilize a população sobre o quão necessário é respeitar as diferenças étnico-raciais e o reconhecimento da história do povo negro para além da escravidão.

Para isso, Verrangia e Silva (2010) apontam alguns caminhos possíveis para inserir a discussão das relações étnico-raciais no currículo de Ciências: a) impacto das Ciências Naturais na vida social e racismo; b) superação de estereótipos, valorização da diversidade e Ciências Naturais; c) África e seus descendentes e o desenvolvimento científico mundial; d) Ciências, mídia e relações étnico-raciais; e) conhecimentos tradicionais de matriz africana e afro-brasileira e Ciências.

Essas temáticas podem ser adequadamente mediadas em sala de aula, entretanto não é uma tarefa fácil para o professor que foi formado a partir de um currículo eurocentrado e uma universidade racistas (Brito, 2023).

4 AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NO ENSINO DA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR

A Educação Física, de acordo com algumas pesquisas, tem sido definida como uma disciplina responsável pelo trato pedagógico não apenas esportivo, mas também de conteúdos culturais. A Educação Física, ao longo do tempo, tem evoluído em sua compreensão e prática, transcendendo a ideia de ser apenas uma disciplina focada em atividades esportivas. Pesquisas e abordagens pedagógicas têm destacado a importância da Educação Física como uma área que lida não apenas com a promoção da atividade física e habilidades motoras, mas também com a exploração de conteúdos culturais, sociais e emocionais.

Diante dessas considerações, Daolio (2010) ressalta que a Educação Física passou por uma área que priorizava a aptidão física e o rendimento; atualmente, é reconhecida como uma área que discute os conhecimentos corporais culturais. Na visão de Daolio, portanto, para compreender a Educação Física como prática cultural, implica admitir que, mesmo que essa disciplina, muitas vezes, seja criticada nas discussões académicas e observada por emprego de concepções rotuladas que a percebem como algo tecnicista e recreativo, essa mesma disciplina responde de forma eficaz às demandas impostas pela comunidade escolar igual a qualquer outra disciplina. E suas contribuições são fundamentais para compreender, por exemplo, relações étnico-raciais e de gênero, masculinidades e feminilidades no contexto escolar, além de outras questões importantes para o desenvolvimento do ser humano em processo de formação, construção da cidadania, condição humana e formas de sociabilidades.

Lopes (2003) aponta a necessidade de propor uma metodologia que aborde a cultura africana, uma metodologia que leve em consideração os elementos da cultura e história afro-brasileira. No entanto, essa metodologia deve ser flexível e adaptável, levando em consideração as características específicas dos estudantes, a faixa etária, as necessidades educacionais e o contexto da instituição de ensino. O objetivo é criar um ambiente de aprendizado inclusivo que promova o respeito, a valorização e a compreensão das contribuições da cultura africana e afro-brasileira.

Dessa maneira, integrar discussões sobre questões étnico-raciais no contexto do Ensino de Educação Física é essencial para promover uma abordagem mais inclusiva e consciente dentro dessa disciplina. Isso envolve reconhecer a diversidade étnico-racial presente entre os estudantes e valorizar suas experiências e identidades. Além disso, é importante explorar como as percepções culturais e históricas influenciam a prática de atividades físicas e esportivas, e como essas práticas podem ser afetadas por estereótipos e discriminação racial. Ao abordar essas questões, os professores de Educação Física podem contribuir para a construção de um ambiente escolar mais justo, inclusivo e respeitoso para todos os estudantes.

As aulas de Educação Física precisam ser entendidas e vivenciadas por professores e estudantes como um espaço da diversidade e da diferença de diversos grupos étnicos, culturais, de grupos sociais e pessoas que têm costumes e crenças diferentes, e esses processos estão vinculados à história de cada indivíduo e grupos sociais.

Por isso, para tratar de questões étnico-raciais, por exemplo, o professor de Educação Física necessita possuir conhecimentos amplos sobre cultura de movimento e sobre a Lei n. 10.639 (Brasil, 2003), visto que os estudantes trazem saberes que não devem ser negados na sala de aula. Nesse sentido, é importante que a escola permita a construção de espaços abertos à formação continuada desse profissional, pois a intervenção do professor no contexto escolar pode operar como uma condição substantiva para que os estudantes possam construir conhecimentos e aprendizagens sobre o corpo, sobre a cultura e os elementos da cultura corporal: esporte, dança, ginástica, atletismo e lutas.

Oliveira e Candau (2010) lembram que a Educação Física é para todos e, com base nesse entendimento, destaca que pensar em uma Educação Física para todos é buscar quebrar os modelos preexistentes de negação das diferenças e das desigualdades de oportunidades presentes nas escolas. Considerar uma Educação Física inclusiva é reconhecer que a escola é um espaço sociocultural que não está à margem da vida dos indivíduos, mas é parte integrante de seus projetos pessoais.

Gusmão (2003) reforça essa ideia ao afirmar que:

Diante disso, compreender a cultura requer uma abordagem mais abrangente e profunda por parte dos professores. A escola, enquanto espaço educativo, tem o potencial desetornartanto um ambiente de transformação quanto um ambiente onde estudantes podem ser expostos a preconceitos, estigmas, racismo, violência de gênero, sexualidade, entre outros desafios. Portanto, é fundamental que o currículo aborde de forma adequada essa diversidade e promova a conscientização sobre tais questões.

Logo, torna-se cada vez mais urgente a implementação da Lei n. 10.639 (2003), pois sabemos que já provocou muitas mudanças no currículo educacional, desde a sua criação, debates e reflexões por pesquisadores, educadores, movimentos negros e outros, mas faz-se necessária a efetivação em todas as áreas, no contexto escolar. Sabemos que o caminho ainda é muito longo para que as questões sobre as relações étnico-raciais se façam presentes no currículo e, também, na sala de aula, de forma transversal, intercultural, e que a sua valorização e implementação possam descolonizar o currículo e os saberes e as práticas pedagógicas e do professor. Mas temos de acreditar e buscar estratégias necessárias como desafio às mudanças e transformações sociais e étnico-raciais. Entendemos, sim, que estão presentes as discussões que envolvem as relações étnico-raciais, sexualidade, gênero, racismo, inclusão, religião, entre outros, no entanto, acontecem, na maioria das vezes, essas discussões em datas específicas ou quando ocorre uma situação no ambiente escolar.

Dessa forma, Sacristán (2000) evidencia que a prática pedagógica no ensino, isto é, o que se passa nos espaços educativos na relação com os estudantes, é a finalidade do currículo. Essas práticas pedagógicas não apenas contribuem para o alcance dos objetivos do currículo, mas também moldam a experiência educacional dos estudantes, influenciando seu envolvimento, motivação e desenvolvimento ao longo do tempo. O diálogo constante entre educadores e estudantes é fundamental para ajustar as práticas pedagógicas de forma a atender às necessidades específicas de cada contexto educativo.

Torres Santomé (2013) contribui com o debate ao pontuar que:

O currículo deve ser construído com a presença de conteúdos antirracistas, antissexistas, ecológicos, dentre outros, os quais devem integrar o programa de todas as disciplinas, não ficando reduzido a temas esporádicos ou marginais, ou seja, desvelando uma tradição comum em nossa cultura, de reduzir questões pontuais e necessárias a dias especiais, como: o dia do índio, do folclore ou da consciência negra.

Construir um currículo que incorpora conteúdos antirracistas, antissexistas, ecológicos e outros aspectos relacionados à justiça social é uma abordagem crucial para promover uma educação mais consciente. O currículo escolar se torna um instrumento poderoso para promover não apenas a transmissão de conhecimentos, mas também o desenvolvimento de cidadãos críticos, conscientes e comprometidos.

A educação desempenha um papel fundamental na formação de valores, atitudes e comportamentos dos estudantes, e é essencial que os educadores estejam atentos e ativamente engajados na promoção da diversidade e da igualdade. Todavia, o silêncio do professor, no que se refere à diversidade étnica e às suas diferenças, facilita para o desenvolvimento do racismo e a ocorrência de discriminação dentro do ambiente escolar.

Silva et al. (2006, p. 500) ressalta a importância dessa discussão no contexto geral e na escola:

É preciso tratar de identidades, culturas, etc., no processo de ensino e aprendizagem no contexto escolar, pois nossa sociedade é excludente e discriminatória a qual muitos ainda insistem em conservar, e cabe a nós enquanto professores desconstruir com nossos estudantes, levando esses temas para as aulas, para serem problematizados, e que os estudantes reflitam.

O tratamento das identidades, culturas e outras dimensões da diversidade no processo de ensino e aprendizagem é fundamental, especialmente em uma sociedade que muitas vezes é caracterizada por exclusão e discriminação. Ao abordar essas questões no contexto escolar, os educadores desempenham um papel significativo na construção de ambientes mais inclusivos e no fortalecimento do respeito pela diversidade.

Nesse sentido, ao incorporar essas práticas, as escolas contribuem para a formação de estudantes que não apenas adquirem conhecimento acadêmico, mas também desenvolvem habilidades sociais e emocionais necessárias para viver em uma sociedade diversa e complexa.

Portanto, é crucial reconhecer que persistem certas dificuldades nos saberes e nas práticas dos professores, as quais os impedem de abordar essas discussões de forma eficaz no ambiente da sala de aula. Entretanto, preferimos encarar essas questões não como meras dificuldades, mas sim como desafios que tanto os profissionais quanto a instituição escolar precisam enfrentar e superar - são barreiras que demandam desconstrução. Nesse sentido, é inegável a necessidade de os professores terem acesso e se apropriarem desses conhecimentos durante sua formação inicial e contínua, para que estejam preparados para abordar de forma adequada as complexas temáticas das relações étnico-raciais.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste texto, destacamos a contribuição das disciplinas de Educação Física e Ciências para a abordagem das relações étnico-raciais no cotidiano escolar e, nele, mostramos que, de fato, é possível identificar possibilidades e condições de trabalho com as relações étnico-raciais no currículo e conteúdo das disciplinas Educação Física e Ciências da escolarização básica - anos finais do Ensino Fundamental. Cada vez mais fazem-se necessários estudos em ambas as disciplinas, que têm o potencial de desempenhar papéis significativos na promoção da diversidade, no combate ao racismo e na construção de um ambiente educacional mais inclusivo e antirracista. Por isso é indispensável o processo de seleção e organização de conteúdos que permitam ao estudante a mudança de perspectiva com relação ao racismo e ao preconceito racial, visto que, conforme evidencia Sacristán (2000), o currículo tem uma dupla função que pode ser tanto organizador (aquele que organiza o que vai ser ensinado) quanto unificador do ensinar/aprender (aquele que todos os estudantes vão seguir que foi padronizado). Esses dois elementos é que determinam o poder regulador do currículo. Afinal, a educação antirracista, intercultural e plural é vista como uma possibilidade de melhoria nas condições das relações sociais, embora ainda se apresente como uma utopia de difícil realização (Candau, 2003; Walsh, 2007, 2009).

É interessante ver como essas questões relacionadas ao cotidiano escolar e à luta de movimentos sociais e negros, de pesquisadores e estudiosos do tema, de diferentes setores da sociedade civil organizada, voltam com muita força nos diais atuais, e, também, pesquisas realizadas pelos autores deste texto, no curso de mestrado, sinalizaram que, no cotidiano docente, ainda estão presentes algumas dificuldades para a inserção dessas discussões no dia a dia da sala de aula e, principalmente, no currículo da Educação Básica. Defendemos que as disciplinas de Ciências e Educação Física podem possibilitar ao professor a apropriação de saberes que lhes permitam abordar as relações étnico-raciais no currículo praticado, assim como a construção de uma educação antirracista, intercultural e plural.

Portanto, é possível afirmar que a integração dessas abordagens nas disciplinas de Educação Física e Ciências não apenas enriquece o currículo escolar, mas também contribui para a formação de estudantes mais conscientes, críticos e respeitosos em relação à diversidade étnico-racial, e os movimentos por uma educação antirracista têm buscado, ao longo das últimas décadas, promover mudanças nos comportamentos, nas mentalidades e na estrutura social, da escola e do currículo escolar, reivindicando transformações políticas e educacionais amplas, significativas e emergentes. Da mesma forma, cada vez mais avança e amplia-se a consciência da necessidade de combater o racismo e estabelecer medidas eficazes, especialmente políticas públicas, que possam garantir o acesso da população não branca, negra, aos direitos humanos fundamentais, à cidadania e à condição humana.

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Recebido: 29 de Novembro de 2023; Aceito: 19 de Fevereiro de 2024

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