1 PARA COMEÇO DE CONVERSA: CAMINHOS QUE NOS TROUXERAM ATÉ AQUI
Em nossas trajetórias, temos buscado, desde os lugares epistemológicos que ocupamos, a construção de ações educativas que tecem a análise do currículo desde a centralidade africana e afrodiaspórica e desde as políticas da diferença, para produção de estratégias e recursos que contribuam para a oferta de um modo de educar que busca romper com a lógica de fracasso imposta pelo sistema educativo, com a centralidade europeia nas narrativas, bem como a criação de um ambiente de aprendizagem inclusivo, em que as diferentes existências, vozes e perspectivas sejam valorizadas, proporcionando espaços para que os (as) estudantes e professores (as) possam compartilhar suas experiências, conhecimentos e histórias, e serem ouvidos(as) e respeitados (as).
Ao elegermos a expressão “Njila ku kibuku” para compor o título deste texto, expressamos nosso desejo de conectar quem faz essa leitura a elementos do caminho feito até aqui. Um caminho que se fez entendendo a construção de novos modos de educar na escola pública por meio da educação afrocêntrica, como lugar de felicidade, lugar de encontro com as alegrias que habitam aqueles (as) que produzem a vida na escola. Essa eleição funciona também como uma ação concreta da prática afrocêntrica, que nos coloca o desafio de assumir o compromisso com o refinamento léxico e, com isso, restaurar os idiomas africanos em nossas escritas e pesquisas de alguma forma.
Partindo dessa premissa, aqui iniciamos uma conversa que nasce da experiência de existir como docentes na educação pública, como mães, como criança preta que não teve oportunidade em sua infância de aprender desde sua história, como criança da roça que enfrentou muitos desafios, e como pesquisadoras que atuam há alguns anos no campo da formação, da profissão docente e das políticas da diferença.
Nós nos localizamos para que se possa entender a implicação ao tratar da relação entre educação afrocêntrica e escola pública. Para a afrocentricidade, a localização psicológica de quem escreve faz toda diferença diante do que está sendo dito, porque, desta forma, saberemos de que local parte o seu discurso e a dimensão do compromisso ou não com a agência dos povos oriundos da África. A análise do posicionamento da pessoa em relação ao mundo africano e ao modo como se relaciona com a informação africana refere-se a saber se a pessoa está em um lugar central ou marginal com respeito à sua cultura.
Por isso, importa dizer sobre quem somos e porque teceremos essa conversa. Por um lado, Taisa, uma pesquisadora que se anuncia como africana nascida em diáspora, mãe, interessada nos estudos e vivências em torno da afrocentricidade e defensora da escola pública, integrante de grupos de pesquisa sobre currículo, educação afrocêntrica e formação docente na educação básica. Por meio desses espaços, tem se dedicado ao estudo do currículo, da formação e profissão docente e à educação afrocêntrica. A experiência construída ao longo dos anos também tem permitido que Taisa compartilhe as aprendizagens sobre tais assuntos por meio de dois projetos de compartilhamento: uma página profissional no Instagram e um grupo de estudos sobre educação afrocêntrica. Por outro lado, Jane Adriana, uma pesquisadora que se anuncia como mulher, mãe, professora-pesquisadora, que iniciou a carreira na educação básica, em classes multisseriadas de escolas rurais do interior da Bahia, no Brasil, e que no movimento de ensino-pesquisa-extensão tem se dedicado à formação docente em rede, às narrativas de (re) existência e às políticas da diferença.
Dito isso, é importante situar que este artigo nasce desde os modos que habitamos a docência, construindo estudos, observações, intercâmbios de saberes e formações entre pares, e também como fruto da pesquisa de uma pesquisa de doutorado em andamento. A referida pesquisa dedica-se a estudar a docência e as experiências afrocêntricas na educação básica, tendo como objetivo compreender como são construídas as experiências pedagógicas afrocêntricas de professores(as) da rede municipal de ensino de Salvador.
Dessa forma, os fios aqui tecidos se conectam com a construção de intercâmbios de saberes entre pares, os quais surgem da inquietude como professoras e pesquisadoras no encontro com a afrocentricidade e com outros(as) professores(as) que apostam em viver a docência por modos de educar desde essa perspectiva. Os lugares por onde andamos e as pessoas com as quais temos criado conexões nos permitiram perceber a importância de refletir sobre aspectos que atravessam a docência e a sua ligação com pensar a história, cultura, produção intelectual, modos de existir e experiências das pretas em diáspora e no continente africano, especialmente por esse modo de educar se conectar com outra forma de compreender a realidade, a sociedade e a produção de conhecimento.
O presente artigo centra-se em uma metodologia qualitativa, articulando reflexões teóricas sobre a educação afrocêntrica e sobre memórias autobiográficas de práticas afrocêntricas como dispositivos de investigação e espaço de produção de sentidos. Tais memórias emergem nos processos de habitar a docência de uma das pesquisadoras na rede municipal de Salvador. As indagações que orientaram as reflexões foram: de que maneira os princípios da educação afrocêntrica podem contribuir para construção de novos modos de educar na escola pública? Como podemos produzir novas políticas de conhecimento no currículo por meio de práticas pedagógicas afrocêntricas? Por meio dessas indagações, busca-se tecer fios sobre a educação afrocêntrica como caminho para educação que se faz na escola pública.
Para discutir a potencialidade do paradigma da afrocentricidade e dos princípios da educação afrocêntrica para a produção de novas políticas de conhecimento e modos de educar em relação às questões étnico-raciais na escola pública, baseamo-nos nas ideias de Asante (2009, 2014), Ferreira (2023a, 2023b), Benedicto (2022), entre outros(as), situando aspectos que atravessam a escolarização das pessoas africanas em diáspora3 no Brasil, refletindo sobre a necessidade de metodologias e modos específicos para pensar a experiência educativa de pessoas africanas em diáspora, discutindo os fundamentos que constituem a educação afrocêntrica e compartilhando experiências pedagógicas orientadas pela afrocentricidade, as quais demonstram a importância da construção de outras formas de conceber o currículo.
2 DO QUE SE FALA: OS ATRAVESSAMENTOS NA EDUCAÇÃO DE PESSOAS AFRICANAS EM DIÁSPORA
Ao adentrar as salas de aula da educação básica e das universidades, podemos identificar diversas situações relacionadas com as questões raciais e com as diferenças, isso porque o sistema educativo, nos diferentes níveis de ensino no Brasil, tem sido operado como espaço que proporciona, em muitas ocasiões, violência simbólica, psicológica, física, intelectual, gerando fragilidades na aprendizagem e na percepção das próprias potencialidades, favorecendo a desigualdade e o racismo em suas diferentes nuances.
Compreendendo tal processo como uma das faces de projetos políticos historicamente forjados em teorias raciais que operaram (e ainda operam) no Brasil, Benedicto (2022) salienta que as repercussões do projeto genocida brasileiro podem ser percebidas com muita clareza em nossa sociedade, especialmente na educação, mediante a resistência quanto à presença das africanidades nas escolas. O pesquisador afirma ainda que os modelos educacionais criados pelas elites brasileiras ao longo da história, em linhas gerais, produziram como resultado a exclusão das pessoas africanas em diáspora no ambiente escolar.
Assim, os contextos curriculares e as experiências educativas das infâncias pretas no ambiente escolar, conforme demonstram Cavalleiro (1999) e Oliveira e Abramowitz (2010), apresentam cenários em que crianças de quatro meses a seis anos já vivenciam experiências negativas e/ou apresentam uma identidade negativa em relação ao grupo étnico a que pertencem, e, na maior parte do tempo, estão fora da prática da paparicação.
Por sua vez, de acordo com as referidas pesquisadoras, crianças brancas nestes mesmos espaços revelam sentimento de superioridade, assumindo, em diversas situações, atitudes preconceituosas e discriminatórias, xingando e ofendendo crianças pretas, atribuindo caráter negativo à cor de sua pele. Educadores(as) presenciam situações de preconceito e não “percebem” o conflito posto ou ainda legitimam e estimulam atitudes de agressividade e/ou violência simbólica/psicológica. As constatações dessas pesquisas anunciam que crianças pretas, desde a mais tenra idade, vivenciam processos de negação, de rejeição, de exclusão na escola. Ou seja, as crianças pretas:
São atravessadas por elementos que as limitam, os corpos são negados e tornam-se objetos de controle. As crianças por não se adequar ao padrão esperado são levadas ao corredor, sofrem diferentes formas de violência simbólica que contribuem para manutenção da dificuldade de superação das fragilidades na aprendizagem e auto percepção das potencialidades, esses corpos experimentam racismo religioso e tem sua espiritualidade negada (Ferreira; Rios, 2021, p. 3).
Nesse sentido, as crianças negras experimentam processos educativos dentro de um sistema programado para seu fracasso, conforme sinalizam Haki Madhubuti e Safisha Madhubuti (1990), na medida em que a concepção que muitas vezes permeia os espaços escolares e o currículo não enxerga as infâncias pretas dentro de suas potencialidades e singularidades e, assim como a sociedade, tende a enxergá-las a partir de números, de estereótipos, de expectativas traçadas, a partir do não lugar alcançado por muitas crianças pretas, em relação ao padrão de infância traçado nas teorias educacionais.
Nah Dove (2021, p. 14), em seu livro The Afrocentric school [o blueprint], discute um aspecto importante para pensarmos os modos de educar que estão postos na sociedade ocidental, quando afirma:
Se os cidadãos dessa sociedade sofrem desigualdade, essa é uma sociedade injusta. Se a cultura dessa sociedade despreza sua humanidade, essa não é sua cultura. [...] na verdade, isso nem pode ser chamado de educação [...] é meramente escolarização.
Desse modo, os pensamentos de Madhubuti e Madhubuti (1990) e Nah Dove (2021) se alinham ao compreender que um modo de educar centrado em um modelo de ciência que estabeleceu um único modo de definir o que é válido e verdadeiro, e impede o reconhecimento de outras formas de pensar e de construir saberes, constitui-se como espaço de negação para nossas crianças pretas. Conforme destaca Ferreira (2023b, p. 55):
Imbricados a esse modelo de ciência, os currículos, narrativas e práticas que atravessam os sistemas educativos em território brasileiro constituem-se costumeiramente como espaço de negação das diferenças étnicas e das percepções infantis em torno dessas, de negação da existência de racismo na escola, de culpabilização da criança preta, e como espaço de preterimento, desvalorização, humilhação e desigualdade de tratamento da criança preta, lugar de apagamento/apaziguamento das diferenças no discurso da igualdade.
Nesse sentido, pensar sobre os cenários que marcam historicamente a educação brasileira e atravessam as existências das crianças, mas também dos(as) jovens e adultos(as) pretos(as), conduz-nos a algumas indagações que contribuem para realinhar as narrativas, as práticas e os modos de conceber o currículo:
Que concepções de infância/crianças estão presentes nas instituições de ensino? Como essas concepções atravessam nossas práticas? Quais as memórias positivas e negativas mais antigas que temos sobre educação/a escola? O que as escolas têm produzido de memórias e experiências educativas para as crianças, e particularmente para as crianças pretas? Como as narrativas produzidas nas escolas atravessam as crianças, e principalmente as crianças pretas? E quais as narrativas priorizadas? Quais os valores e conhecimentos sobre seu povo as crianças pretas estão aprendendo e sendo expostas nas escolas? As práticas e relações produzidas na escola conduzem ao autoconceito positivo e reconhecimento histórico por parte das crianças pretas? Tem conduzido a compreensão de que existe uma diversidade de referências históricas e culturais na estruturação das sociedades por parte das crianças não pretas? (Ferreira; Rios, 2021, p. 3).
Refletir sobre tais indagações nos permite compreender a importância e a necessidade de metodologias e modos específicos para olhar e construir a experiência educativa de pessoas africanas em diáspora, por meio de movimentos de escuta, pesquisa, observação, que fomentem intervenções que contribuam para emergência de uma experiência de aprendizagem que considere a potencialidade dos(as) estudantes, de suas histórias e de seus anseios. Ações que permitam a compreensão dos seus lugares, que favoreçam o seu conhecimento acerca de diferentes fontes de informação, tenham apropriação de sua cultura e dos modos com que seus ancestrais produziram vida e conhecimento e, consequentemente, reconstruam as narrativas em torno da cultura, história, produção intelectual e identidade das pessoas africanas em diáspora.
Pensar e produzir outros modos de olhar para os currículos se faz urgente, e isso não apenas em função dos processos de violência e negação de humanidade, mas especialmente por nosso direito ao nosso passado, presente e futuro, a atuar como agentes autoconscientes no processo educativo e na vida. Por nosso direito a desvincular-se do fracasso projetado pelo sistema educativo e romper com as narrativas, práticas e teorias que geram apagamento das contribuições de diferentes povos na estruturação das sociedades até o apagamento das experiências de vida das crianças, jovens e adultos(as) que estão dentro dos espaços educativos. É nesse sentido que Benedicto (2022) chama atenção à importância da Afrocentricidade, como proposta que se centra em reorientar os(as) africanos(as), a fim de que possam desenvolver uma identidade positiva e assumir o controle/agência de suas vidas.
3 POR OUTROS MODOS DE EDUCAR NA ESCOLA PÚBLICA: EDUCAÇÃO AFROCÊNTRICA COMO PERSPECTIVA PARA PRODUÇÃO DE NOVAS POLÍTICAS DE CONHECIMENTO
Muito embora a realidade da educação das pessoas africanas no Brasil esteja atravessada por processos que geram diferentes formas de apagamento e de violência, como citado anteriormente, compreendemos que as pessoas africanas em diáspora têm direito ao seu passado, presente e futuro; desse modo, quando aqui defendemos a necessidade de pensar e construir metodologias e modos específicos de educar considerando as experiências de existir das pessoas africanas em diáspora, nós o fazemos advogando por uma análise e prática afrocêntrica do fazer educativo/docente.
Conforme sinaliza Ferreira (2023a), a educação afrocêntrica consiste em uma perspectiva educativa que analisa a educação, bem como suas práticas, ancorada nos princípios da Afrocentricidade, tendo como ponto de partida os valores culturais, processos, leis e experiências africanas e afrodiaspóricas para entender, resolver e orientar o processo educativo (Madhubuti; Madhubuti, 1990). Ou seja, atuar em uma perspectiva afrocêntrica significa partir de um processo de recentramento para construir a autonomia diante do processo de ensino e aprendizagem, a fim de que as pessoas africanas em diáspora possam conhecer e saber intervir na cultura hegemônica, mas tenham apropriação da cultura e da história de seu povo.
Importa dizer que a educação afrocêntrica parte de pensamentos críticos e de construções coletivas orientadas para o reposicionamento da história e cultura dos povos africanos e afrodiaspóricos nas narrativas, e busca produzir modos de educar que fomentam o protagonismo/agência das pessoas africanas em diáspora perante seu processo de aprender e de intervir na vida em sociedade.
Para quem não tem familiaridade com o termo, cabe situar que a Afrocentricidade é um paradigma sistematizado por Molefi Kete Asante na década de 1980, sendo definida como um modo de pensamento e ação em que a centralidade dos interesses, valores e perspectivas africanos predomina e articula uma compreensão contra-hegemônica que questiona ideias epistemológicas que estão simplesmente enraizadas nas experiências culturais eurocêntricas (Asante, 2009). Consequentemente, a Afrocentricidade tem como foco o realinhamento das narrativas sobre o povo africano e busca a sua colocação no centro de qualquer análise de fenómenos africanos (Asante, 2014). Como citado por Ferreira (2023a, p. 83), com base na “[...] consciência, na qualidade de pensamento, no modo de análise e na perspectiva de agência dos povos africanos, compreende que as pessoas africanas em diáspora precisam ser agentes de sua própria história e de sua experiência social”.
Considerando tais aspectos, compreendemos que, por meio da educação afrocêntrica, pode-se promover um contexto educativo em que os(as) estudantes pretos(as) aprendam e entendam a si mesmos e ao mundo, sendo estimulados em seu desenvolvimento, em suas aspirações educacionais, em seu engajamento cognitivo, contribuindo com um processo de reafricanização, ou seja, de construção de consciência sobre a cultura e história africana. Ao mesmo tempo, a educação afrocêntrica favorece o desenvolvimento de sua capacidade de organizar, avaliar e classificar adequadamente as informações para lidar com a realidade à luz do que sua cultura define, cria, celebra, sustenta e desenvolve.
Salientamos que construir experiências em salas de aula da Educação Básica e da universidade que articulem diferentes formas de existir e resistir configura-se como um movimento de produção de saberes, o qual mobiliza as demandas insurgentes do cotidiano escolar e fissura propostas epistêmicas e metodológicas hegemônicas que atravessam os currículos escolares e, consequentemente, seus projetos e práticas pedagógicas. Nesse sentido, desde essa perspectiva podemos apresentar valores e conhecimentos sobre nosso povo para as crianças pretas, que contribuam para o realinhamento das narrativas e dos papeis sociais diante de seu processo de ensino e aprendizagem, e ao mesmo tempo conduzimos as crianças não pretas à compreensão de que existe uma diversidade de referências históricas e culturais na estruturação das sociedades e a possibilidade de refletir sobre si mesma, sobre seu povo e sobre a sociedade.
Dessa maneira, a educação afrocêntrica, ao propor outra forma de compreender a realidade, a sociedade e a produção de conhecimento, emerge como uma abordagem com potencialidade para criar rasuras no currículo hegemónico e permitir que os(as) estudantes aprendam por meio de outras lentes de saberes. Isso porque, conforme salientado por Ferreira (2023a, p. 86):
A educação afrocêntrica desloca a centralidade da experiência de existir europeia nos currículos, práticas e teorias educacionais, contribuindo para estabelecer o lugar dos/as africanos/as na história, mediante nossas próprias referências teóricas, históricas, culturais, sendo uma forma de restaurar a autoconsciência e a humanidade africana.
Nesse sentido, uma docência que habita os espaços educativos orientando-se desde a Afrocentricidade procura, por meio de estratégias pedagógicas, contribuir para estabelecer um processo de aprendizagem que considere a história de vida e o legado das pessoas africanas em diáspora. Para alcançar tal objetivo, entre outras ações, far-se-á necessária a realização de um mergulho na produção intelectual e científica africana e diaspóricas e a construção de uma análise afrocêntrica do currículo, a fim de mobilizar experiências pedagógicas que possam articular as necessidades de ensino e aprendizagem com os saberes afrocêntricos.
Em linhas gerais, percebemos que uma docência orientada pela Afrocentricidade terá como fundamento para sua prática pedagógica elementos como o reconhecimento e a valorização das existências pretas, o reconhecimento e a valorização das crianças, famílias e suas comunidades, a construção de iniciativas de escuta e diálogo, o estudo da Afrocentricidade e seus desdobramentos nas diferentes áreas de conhecimento, a análise afrocêntrica do currículo e a articulação didática, a organização do espaço e do trabalho pedagógico em perspectiva afrocêntrica, a prática cotidiana da pesquisa, seleção e produção de material considerando os saberes afrocêntricos.
Desse modo, como docentes nos caberá ainda, partindo da experiência de existir africana e afrodiaspórica, considerar teorias de aprendizagem e desenvolvimento desde perspectivas africanas e/ou afrocêntricas, para produzir práticas educativas que considerem as reais necessidades e potencialidades dos (as) estudantes. Isso porque, como salientado por Safisha Madhubuti (1990), a maioria das teorias de aprendizagem e desenvolvimento produzidas pelas pesquisas na educação ocidental tem a tendência a reforçar e reproduzir paradigmas eurocêntricos, os quais têm em sua base sujeitos brancos como norma universal de aprendizagem e desenvolvimento, sem considerar as realidades que atravessam a história de vida das crianças, jovens e adultos (as) pretos (as).
Mediante tal compreensão, a tentativa de encaixar as experiências de existir das crianças pretas da escola pública em teorias produzidas a partir da vivência de crianças brancas europeias nos leva a reproduzir o projeto colonizador marcado pela monoculturalidade, que elege a matriz europeia como norma e sufoca outros modos de ser e expressões culturais (Severino, 2022). Desse modo, considerando-se as reflexões de Severino (2022, p. 15-16), entendemos que:
A inspiração de uma prática educacional, gestada a partir da vivência cultural da africanidade e compromissada com o compartilhamento dela com as novas gerações da sociedade brasileira, expressa uma tomada de consciência da condição alienada e alienante de colonialidade de nossos modos de ser e saber demandando uma crítica e propostas para sua superação.
Dessa maneira, a construção de uma análise e ação em torno da educação desde a Afrocentricidade permite operarmos uma tecnologia de cuidado, para cuidar de si mesmo e para cuidar dos nossos pares, mobilizando um conjunto de conhecimentos, ferramentas e/ou estratégias para os sujeitos aprendentes e ensinantes a encontrarem o melhor de si, e amplia e fortalece as aspirações educacionais, comunitárias, espirituais, e o engajamento cognitivo dos(as) estudantes e docentes.
É importante ainda registrar que, como sinalizado por Ferreira (2023a), a educação em perspectiva afrocêntrica no contexto escolar não deve dizer respeito apenas à prática de inserção da história, cultura e produção científica africana na sala de aula, mas sobretudo nos provoca a repensar a instituição educativa em toda sua complexidade, perpassando por reflexões e reconfigurações em torno das concepções e práticas coletivas sobre educação e questões étnico-raciais nas dimensões interpessoais, administrativas, pedagógicas, formativas, entre outras.
4 CIRCULANDO SABERES: MOVIMENTOS DE INDAGAÇÃO PEDAGÓGICA E A CONSTRUÇÃO DE EXPERIÊNCIAS AFROCÊNTRICAS
A Afrocentricidade é um paradigma que no Brasil começa a ter uma maior expressão a partir dos anos 2000, e isso se revela na produção de pesquisas e consequentemente na conscientização de professores(as) pretos(as) sobre sua importância e sobre o legado africano e afrodiaspórico. Tal movimento culmina no exercício de pensar e construir modelos educativos que se oponham ao historicamente instituído e, por conseguinte, na busca destes(as) por espaços coletivos de formação, para aprofundar conhecimentos e construir processos educativos centrados na experiência de vida de africanos(as) do continente e diáspora (Ferreira, 2022).
É partindo do movimento de fortalecimento da educação afrocêntrica como modo de habitar a docência que aqui buscamos revelar práticas pedagógicas que demonstram a potencialidade dessa perspectiva para construção de caminhos a novos modos de ver, pensar, sentir e viver o currículo e a escola. Aqui são tomadas como dispositivos de investigação e espaço de produção de sentidos de memórias pedagógicas que emergem das nossas experiências educativas como estudantes e da vivência na rede municipal de ensino de Salvador, partindo de uma docência orientada pela Afrocentricidade. As memórias que aqui são tecidas buscam contribuir no que diz respeito à articulação da produção de autoria/ agência pedagógica em relação à análise afrocêntrica do currículo e à produção de aulas nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental.
Costumamos pontuar que a construção de uma análise afrocêntrica do currículo perpassa sobretudo por nos fazermos perguntas e fazermos perguntas ao currículo que fundamenta a educação no território brasileiro, e, particularmente, o currículo da cidade/estado em que atuamos. Dessa maneira, a primeira indagação que podemos nos fazer perpassa por analisar: quais as memórias de África habitam nossa experiência educativa (escolar e social)? Outras indagações que podemos fazer consiste na interrogação do currículo e das práticas. Por isso, ao pensar o ensino de História, Geografia, Matemática, Ciências, Línguas Estrangeiras, Língua Portuguesa, Filosofia, Química, Física, Biologia, quais são nossas memórias sobre a África? O que os(as) docentes ao longo da nossa vida, enquanto estudantes, construíram de aprendizagens e experiências de sentido sobre esse continente, suas histórias, culturas e produção de conhecimento e sobre os legados que existiram nas diásporas? Que memórias enquanto docente tenho produzido nos(as) estudantes?
Compreendemos as indagações como estratégias importantes, porque acreditamos que construir a docência também significa olhar para nossa trajetória no exercício de ser estudante, para as experiências educativas que nos atravessam e para as experiências docentes que conhecemos. Uma vez que as experiências que vivenciamos influenciam de maneira significativa a forma como construímos nosso modo de educar, seja para manutenção de certas práticas, seja para o desenvolvimento de práticas em oposição a tais experiências, ao mesmo tempo, as memórias que construímos contribuem muito para a forma como lidamos com determinados conhecimentos.
Ademais, muitos (as) profissionais que atuam na educação tiveram experiências educativas centradas em narrativas distorcidas e que contribuíam para o apagamento da trajetória africana, o que se aprendia na escola sobre a África era ligado à escravidão, guerra, fome, miséria. Esse era (e em muitos espaços ainda é) o espaço dado pelo currículo eurocêntrico às narrativas sobre o continente africano. Kemet (Egito) até era retratado em toda sua riqueza cultural, política, científica, mas seu pertencimento ao continente africano era esquecido nas narrativas escolares. Quantas oportunidades houve para conhecermos sobre as diferentes formas de organização de governo, as diferentes áreas de conhecimento e o modo de desenvolvimento das sociedades africanas, os modos de famílias e valores civilizatórios africanos?
Quantos de nós tiveram oportunidade de conhecer sobre as Per Anhk e os diferentes modos de ensinar sobre as formas de espiritualidade, de criação de alfabetos, de produção intelectual, seja na antiguidade, seja no mundo atual?
Quantos de nós aprendemos sobre as diferentes lideranças e suas formas de resistência, sobre Timbuktu e conhecimento produzidos pelos milhares de povos que estão e estiveram no continente? Quem nunca ouviu falar sobre teoremas associado a Pitágoras? Quantas vezes você não ouviu que o pensamento abstrato e filosófico nasceu na Grécia? Que geometria foi um campo desenvolvido por um filósofo grego?
Quem nunca ouviu que todas as ciências nascem na Grécia? Isso nunca causou estranheza? Com tantos povos e lugares no mundo, por que apenas nesse pedacinho de terra surgiria tudo que diz respeito ao conhecimento?
Normalmente, aprendemos sobre Einstein, Galileu, Newton e muitos outros nomes, mas não sobre Imhotep, Merit Ptah, Daniel Hale, Roy Allela, Cheikh Anta Diop, Mae C. Jemison, entre tantos (as) outros (as) intelectuais africanos continentais e diaspóricos. Em Ciências, aprendemos sobre técnicas de saneamento construídas por pesquisadoras ugandenses? Em Química, aprendemos sobre as técnicas desenvolvidas no Kernet envolvendo embalsamento de corpos? Em Biologia e em Física, aprendemos sobre as pesquisas desenvolvidas por pessoas como Muntaseer Ibrahim ou Nashwa Abo Alhassan Eassa?
Pensar sobre nossas memórias e sobre as memórias que queremos construir com nossos(as) estudantes é um excelente ponto de partida para iniciar a construção de uma docência que olha para os sujeitos e para as diferentes experiências de existir. Do mesmo modo, olhar e interrogar os currículos, nossas práticas e as narrativas que assumimos como prioridades em nosso fazer docente. É partindo dessa compreensão que, ao considerar as diferentes áreas de conhecimento e a construção das práticas educativas no ensino fundamental, temos adotado a estratégia da indagação como forma de refletir sobre o currículo e propor novos caminhos, observando o que nos foi negado e buscando mudar essa rota na construção das experiências educativas de nossos(as) estudantes.
Nós nos alinhamos ao entendimento do currículo como um conjunto de aprendizagens oportunizadas aos(às) estudantes no ambiente escolar, que está implicado com a produção de identidades e que pode tanto subjugar pessoas e grupos sociais como ser espaço em que os diferentes grupos sejam representados (Ferreira, 2023b); assim, as indagações em torno do currículo nos ajudam a entender as suas fragilidades e as potencialidades e nos permitem buscar o aprofundamento de nossas bases teóricas para construção de novas práticas pedagógicas.
Aqui nos colocamos a compartilhar/relatar algumas iniciativas que têm se feito presentes no exercício docente orientado pela Afrocentricidade, tentando colaborar para a construção de experiências educativas ancoradas em compreensões positivas e críticas de si e de povo. Mergulhando nas indagações para pensar ações objetivas, estabelecemos alguns caminhos para estudar e planejar nossas aulas dentro de uma perspectiva afrocêntrica.
Tais caminhos incluíram primeiramente a localização de referências teóricas sobre a Afrocentricidade e sobre a educação afrocêntrica para compreensão do pensamento e de diferentes aspectos do paradigma; desse modo, buscamos identificar os(as) autores(as) com produção sobre esse campo de estudo e aprofundamos a leitura nos escritos de Molefi Kete Asante, Joice E. King, Nah Dove, Ricardo Matheus Benedicto, Maria Conceição Reis, Gabriel Swahili Sales de Almeida, Amos Wilson, Saheedat Adetayo, Ama Mazama, Maulana Karenga, Kmt G. Shockley e Rona M. Frederick, entre outros(as).
Em seguida, nós nos colocamos em diálogo com outras pessoas que se interessam e pesquisam o campo, para analisar as possibilidades de aproximação com as práticas educativas e contexto, como Gabriel Swahili Sales de Almeida4, Nini Kemba Nayo5, Carol Adesewa6, Dlaman Kobina7, Carla Souza8, Luana Vidal, Renilza Ramos, Ashley Causey-Golden9, entre outros(as) profissionais. Posteriormente, buscamos conhecer as experiências educativas afrocêntricas desses(as) profissionais que pudessem nos ajudar a pensar nas nossas próprias possibilidades.
Mediante as leituras, pesquisas, e intercâmbios entre pares, foram nascendo movimentos de cuidado que incluíram uma interrogação mais direta ao currículo e culminaram em ações voltadas para elencar os conteúdos e identificar quais saberes afrocêntricos poderiam ser desenvolvidos, para considerar a organização do espaço pedagógico como dimensão da prática pedagógica, para selecionar e produzir material didático-pedagógico desde uma perspectiva afrocêntrica, estabelecendo critérios analíticos. Em face desses traçados, na construção de práticas pedagógicas afrocêntricas, algumas premissas têm sido consideradas:
Atenção às concepções de humanidade, tradição, comunidade, natureza, conhecimento e tempo alinhados aos processos de ensino e aprendizagem. Ao pensar as propostas educativas, partir de valores civilizatórios africanos e suas concepções em relação a essas dimensões e à forma de apresentá-las nas práticas pedagógicas, inclusive em relação ao tempo de aprendizagem, à humanidade presente nos corpos dos(as) estudantes, a relação desses(as) estudantes com sua comunidade, com a natureza, com o conhecimento e o tempo de aprender.
Fomento ao protagonismo/agência das crianças no aprendizado, dialogando sobre os planejamentos, as propostas educativas, os modos de construção das atividades, dando-lhes oportunidade de intervir no próprio processo de ensino e aprendizagem. No processo de construção de planejamento, sempre apresentar as propostas às crianças, oportunizando momentos de escuta e de intervenção dos(as) estudantes diante das atividades planejadas, incorporando suas sugestões e garantindo ajustes que favoreçam com que se percebam atores do processo de ensino e aprendizagem em construção.
Construção de propostas de ensino que considerem a compreensão e legitimação de fontes de conhecimentos partindo da localização e agência do povo preto, e de conhecimentos produzidos na própria comunidade, de forma a priorizar autoria preta, teorias afrocêntricas e o saber experiencial nas diferentes formas de pensar o processo educativo. Ou seja, priorizar autoria africana e afrodiaspórica na seleção de material de estudo, de material didático, de literaturas, oportunizar o conhecimento das crianças e de pessoas da comunidade e da própria escola no desenvolvimento de práticas, fomentar a realização de pesquisas para identificar saberes ancestrais presentes nas famílias e nas comunidades e, assim, articular tais conhecimentos nas propostas. Considerar teóricos afrocêntricos ao pensar a apresentação dos conteúdos em contraponto ao modo tradicional do currículo.
O reconhecimento e a valorização das práticas culturais da comunidade, em que a prática educativa é desenvolvida, na medida em que uma prática inspirada na afrocentricidade não pode se fazer deslocada da relação com famílias e comunidades, elaborando propostas em que as famílias e as comunidades possam se fazer presentes na escola e na sala de aula; oportunizar momentos de escuta, pesquisa, iniciativas que valorizem os talentos da comunidade e ampliem a troca entre saberes e práticas culturais.
A valorização dos diferentes povos africanos, quilombolas e povos tradicionais e seus diferentes modos de existir, e diferentes modos de organização sociopolítica presentes no continente africano e na diáspora, fugindo das hierarquizações postas no currículo oficial, para que os(as) estudantes percebam e compreendam os conceitos geográficos alinhados a um olhar de agência, localização, autoconsciência. Ou seja, propor o desenvolvimento de ações educativas de pesquisa e de sistematização de conhecimento, em que os(as) estudantes possam ampliar suas aprendizagens de forma objetiva e coletiva sobre povos africanos continentais, povos quilombolas e outros povos tradicionais, estudando em profundidade os modos de existência desses povos.
Nesse cenário, aqui tecemos algumas partilhas de como estamos buscando reconstruir os caminhos e as memórias educativas sobre África na sala de aula; para tanto, elencamos algumas experiências produzidas com duas turmas de quarto ano do ensino fundamental, a fim de contribuir com a construção de uma imagem mais concreta sobre como a análise afrocêntrica do currículo tem sido colocada em ação em nossa realidade.
Para realizar este trabalho, primeiramente, buscamos desenvolver os processos de indagação do currículo proposto para as disciplinas de Matemática e Geografia, observando o referencial curricular municipal que orienta o trabalho das escolas em Salvador. Assim, refletimos especialmente sobre a concepção por área - ensino, aprendizagem e orientações pedagógicas e didáticas10 - e os indicadores de avaliação da aprendizagem por área11, os quais aparecem como aspectos a serem considerados na prática educativa, e sobre os materiais didáticos adotados pela unidade escolar. Por meio dessa análise, foram considerados os conteúdos a serem trabalhados no quarto ano de escolarização.
Partindo dessa análise, foram identificadas quais as possibilidades de articulação com a perspectiva afrocêntrica na organização do processo de ensino aprendizagem e as potenciais estratégias pedagógicas. Nesse sentido, para cada grupo de conteúdos e aprendizagens esperadas, foram traçadas estratégias de contextualização e de ampliação dos conhecimentos, mediante não estarem previstos pelo material disponível no currículo oficial.
Desse modo, primeiramente realizamos um diálogo com as turmas, para identificar seus conhecimentos prévios e apresentar a proposta de ensino em torno dos conteúdos; buscamos identificar sugestões da turma para a construção de experiências pedagógicas que fossem percebidas como prazerosas; e, partindo dos momentos de escuta e sugestões, foram produzidos materiais de suporte, propostas de pesquisa e propostas de oficinas pedagógicas como modos de ampliação das estratégias de estudo e de sistematização das aprendizagens.
Nesse contexto, ao trabalhar o componente curricular matemática, no estudo do sistema de numeração decimal, optou-se pela produção de e-books sobre a história da matemática, considerando os artefatos matemáticos africanos, os sistemas de contagem e os diferentes sistemas de numeração decimal existentes no continente africano. Por meio desse material conhecemos os diferentes artefatos, sua relação com o conhecimento matemático, os diferentes sistemas de numeração e sua relação com a matemática praticada no nosso cotidiano, para, posteriormente, adentrarmos nos conceitos mais específicos apresentados no livro adotado pela escola.
Foram elaborados quatro e-books sobre a história da matemática, e, além de aspectos conceituais, foram apresentadas propostas de brincadeiras e atividades, como, por exemplo, a produção de registros numéricos considerando o sistema de numeração kemetico, maias e babilónios, a reprodução de modelos dos artefatos matemáticos estudados (Osso/Bastão de Ishango, Artefato de Biombos, Osso de Lebombo, entre outros) e a produção de diferentes formas de contagem de objetos. Tais atividades poderiam ser desenvolvidas em grupo em sala de aula ou em casa com as famílias.
Utilizamos materiais como argila, palitos, pedras, cordas, para os momentos de oficina em sala de aula com foco na reprodução dos modelos e dos diferentes registros numéricos. As turmas realizaram pesquisas na própria comunidade, para identificar se existiam formas alternativas de registros numéricos e de contagem, especialmente entre pessoas que estiveram fora do sistema formal de ensino e em rodas de conversa apresentaram algumas narrativas partilhadas por seus mais velhos, que se assemelhavam a modos também presentes no continente africano.
Por sua vez, ao estudarmos sobre geometria, além de identificar os conceitos de campo de conhecimento, e de identificar os conhecimentos prévios dos (as) estudantes, começamos nossas aprendizagens observando a arquitetura presente na construção de casas e nas pinturas das casas do nosso bairro e, posteriormente, ampliamos para o estudo das casas e tecidos de diferentes povos africanos (pinturas Soniké, pinturas Ndebele, pinturas Suri, pinturas Kassena, pinturas Basotho, pinturas Ma’allimat), elaboramos conjuntamente catálogos com imagens de referência dos tecidos e das casas. Para tanto, realizamos uma pesquisa sobre os referidos povos, buscamos imagens na internet e, em sala, construímos em uma pasta o catálogo que ficava disponível para visita às casas dos estudantes, para realização de trocas com suas famílias, e também disponível em sala; realizamos jogos e brincadeiras coletivas utilizando as cartinhas Kadi Tecidos Africanos12 e o recurso pedagógico Aso ìbúsùn: Meu Livro de Tecidos Africanos13, produzidos por Jonathas Santana; por meio da iniciativa Amandla, construímos pequenos modelos inspirados nas sociedades em estudo e, aos poucos, fomos observando os conceitos geométricos presentes nessas referências e articulando os conceitos apresentados pelo livro didático. Os modelos foram construídos utilizando materiais como caixa de papelão, argila, blocos de tijolo, tecidos brancos, entre outros, ao alcance das crianças e do acervo pedagógico.
Quando em Geografia tínhamos como proposta curricular estudar sobre urbanização, cidade, paisagens e localização geográfica, estabelecemos como ponto de partida a história da comunidade em que a escola está instalada e discutimos conceitos como território, lugar, paisagem, espaço; posteriormente, estudamos sobre pesquisadores(as) africanos(as) (continentais e diaspóricos) inseridos no contexto da Geografia para pensar outras formas de conceber os conceitos geográficos. Desse modo, realizamos entrevistas com moradores das comunidades em que as crianças moram e em que a escola está inserida, desenhamos os territórios, pesquisamos paisagens antigas e paisagens atuais, refletimos sobre os problemas e as formas de resolução dos problemas identificados pelas crianças em relação à estrutura física na cidade.
Para pensar a formação inicial da Bahia e do Brasil, compreendera expansão do território brasileiro, relacionar a história da cidade com a história do país e de outros povos, identificar e entender a Bahia na Colónia e refletir criticamente sobre o papel da Bahia na independência do Brasil, assuntos previstos no componente curricular de História, nós nos dedicamos primeiramente a pensar sobre processos históricos e de produção de conhecimento sobre tais dimensões previstas no currículo, percebendo o que sabíamos coletivamente, e aos poucos fomos desmontando as narrativas deturpadas. Primeiramente, fizemos uma roda de conversa, em que as crianças compartilharam o que sabiam da história oficial e, por meio de uma caixa com indagações, fomos colocando as versões oficiais em “xeque” e discutindo coletivamente outras narrativas. Posteriormente, estudamos sobre aspectos geopolíticos e históricos ligados ao contexto atual e antigo do continente e dos territórios diaspóricos com presença de povos africanos. Nós nos dedicamos a tentar responder a indagações tais como: como eram as organizações dos reinos e impérios africanos? Quais aspectos econômicos movimentavam os reinos e impérios africanos? Olhando para aspectos históricos, culturais e sociais de grupos étnicos/povos e seus territórios e modos de organização sociopolítica. Utilizamos alguns materiais didáticos da Amandla, entre esses, as Kadi Realezas14, as Cartas de Desafio15, Marakwet16 e Civilizações do Nilo17.
Estudamos os processos migratórios forçados e voluntários, analisando criticamente sua relação com a constituição da história do Brasil, da Bahia e de Salvador; desse modo, por meio de rodas de conversa, de caixinhas de indagações, de conversas com professores convidados, refletimos sobre as lutas de resistência e os modos de governo ligados à construção da autonomia e da soberania no continente e nos territórios diaspóricos com presença de povos africanos, pesquisamos sobre os territórios quilombolas e populações tradicionais e aspectos ligados à educação, soberania alimentar, valores culturais, modos de existência, relações com a natureza, apresentando vídeos com trechos de entrevistas de intelectuais como Nego Bispo e Eliete Paraguaçu.
Para contribuir com a compreensão de processos relacionados ao tratamento de água e defesa do direito à água tratada e ao esgotamento sanitário para todas as comunidades, conforme as aprendizagens esperadas no componente curricular de ciências, inicialmente dialogamos sobre a nossa relação com a natureza, com o tempo e com o conhecimento; pensamos sobre como os diferentes povos originários, tradicionais e africanos concebem essa relação ao longo da história e como outros povos têm estabelecido essa relação; dialogamos e pesquisamos sobre os problemas e impactos ambientais que as populações marisqueiras da Ilha de Maré têm enfrentado em função das grandes indústrias, fazendo leituras de notícias de jornal físico e online, ouvindo podcasts e vendo vídeos sobre o assunto.
Os conhecimentos produzidos nestas experiências foram compartilhados por meio da construção de Circuitos de Aprendizagem com outras turmas. Os circuitos confíguram-se como espaços de circulação dos saberes da turma e oportunidade de fomentar por meio da agência das próprias crianças a ampliação do repertório dos(as) colegas de outras turmas. Cabe comentar que essa estratégia emerge da proposição das próprias crianças ao refletirem sobre como tais conhecimentos as motivaram na construção da aprendizagem.
As experiências mencionadas ocorreram ao longo do ano letivo, em diferentes momentos e unidades de ensino, por meio de estratégias que apresentaram tempos diferenciados de realização e que buscaram proporcionar aprendizagens significativas e situadas para os(as) estudantes. Em alguns momentos, os planejamentos eram reconfigurados, mediante o fluxo das próprias turmas, incorporando ideias e propostas que surgiam no momento das próprias atividades.
Ao mergulhar nas memórias pedagógicas, percebemos que coletivamente construímos experiências educativas ancoradas em “novas racionalidades, novos paradigmas, novas formas de ser, agir, de aprender, de desaprender, de sentir e de olhar para si e para o outro” (Ferreira, 2023a, p. 94), e ao mesmo tempo buscamos demonstrar como o movimento formativo-reflexivo construído no chão da escola, desde uma perspectiva afrocêntrica, tem o potencial de mobilizar a reconstrução de ações, conceitos e comportamentos em relação às questões étnico-raciais na escola, que tomam os(as) estudantes como agentes/protagonistas que podem atuar sobre sua própria imagem cultural e de acordo com seus próprios interesses humanos.
5 ALINHAVES
Chegamos ao momento de alinhavar nossa conversa e, compreendendo a circularidade e que nosso fazer se conecta ao movimento de começo, meio e começo anunciado por Nego Bispo, esperamos que nossas reflexões e memórias pedagógicas afrocêntricas possam motivar outros(as) educadores(as) a tecer oportunidades de encontro com a Afrocentricidade e com os novos modos de produção de sentidos e currículos.
Tratar de questões étnico-raciais em nossa sociedade ainda se caracteriza, sobretudo, como um grande desafio, pois implica no atravessamento de conflitos em um contexto marcado historicamente por valores eurocêntricos, os quais ainda são proliferados e que renegam a multiplicidade de culturas, identidades raciais e legados dos diferentes povos na estruturação das sociedades, fazendo germinar preconceitos e ações discriminatórias nos mais diversos espaços sociais.
Dessa maneira, compreendemos que as políticas de conhecimento produzidas desde a educação afrocêntrica contribuem para a vivência de modos de educar que rompem com a centralidade eurocêntrica e com a centralidade do racismo no currículo, bem como promovem processos de aprendizagem centrados na própria cultura, história, produção intelectual e agência, fomentando o protagonismo discente e docente, estabelecendo novos caminhos, novos pensamentos, olhares e ações em torno da educação.
Partimos, ao longo desta escrita, do entendimento de que a construção de uma análise afrocêntrica do currículo e da prática docente contribui para que os(as) estudantes e docentes africanos(as) em diáspora sejam compreendidos(as) e estimulados(as) e se compreendam como sujeitos ativos e com autonomia para aprender e ensinar desde sua própria história, de forma que pensar o contexto da educação básica, e especialmente na educação pública, onde se encontra a maior parte das pessoas africanas em diáspora, consiste em um exercício desafiador, contudo necessário e urgente.
A construção da consciência de continuidade histórica e sua identidade racial são fatores fundamentais para o fortalecimento dos(das) estudantes mediante a construção da sua excelência cognitiva e emocional em meio ao processo de aprendizagem. Por isso, dos nossos lugares, percebemos a importância de criarmos caminhos, espaços e estratégias para produção de escuta, de fortalecimento e de circulação dos saberes e das experiências de pessoas africanas em diáspora, as quais são singulares e coletivas e emergem da escola transformando as formas de ensinar e aprender. E esperamos que a prosa aqui tecida, mais do que qualquer outra coisa, contribua para que aqueles(as) que nos leem sigam fazendo perguntas e construindo caminhos para aprendizagem e felicidade de si e de nossos(as) estudantes.