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Série-Estudos

versão impressa ISSN 1414-5138versão On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.29 no.67 Campo Grande set./dez 2024  Epub 12-Dez-2024

https://doi.org/10.20435/serieestudos.v29i67.1988 

Artigo

O Cursinho Pré-Vestibular Zumbi dos Palmares e a construção da identidade de mulheres negras

Zumbi dos Palmares Preparatory Course and the construction of black women’s identity

El Curso Preuniversitario Zumbi dos Palmares y la construcción de la identidad de las mujeres negras

Luzia Aparecida do Nascimento

Luzia Aparecida do Nascimento: Mestre em Educação pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Assessora Parlamentar. E-mail:luzia_iuri@hotmail.com

1 
http://orcid.org/0009-0004-8392-2541

José Licínio Backes

José Licínio Backes: Doutorado em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação. Bolsista Produtividade CNPq 1C. E-mail:backes@ucdb.br

1 
http://orcid.org/0000-0001-9013-8537

1Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil


Resumo

O artigo tem como objetivo mostrar a importância que o Cursinho Pré-Vestibular Zumbi dos Palmares tem para a construção da identidade de mulheres negras. Para darmos conta do objetivo, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com cinco mulheres negras que frequentaram o Cursinho e se formaram na educação superior. A análise deu-se de forma qualitativa, com base nos autores do campo dos estudos étnico-raciais. No primeiro momento, situa-se a análise, considerando-se a luta histórica do movimento negro e, em especial, das mulheres negras contra o racismo e em defesa da construção positiva da identidade negra. Em seguida, apresentam-se os resultados da pesquisa de campo. Pela análise efetuada, observa-se que o Cursinho Pré-Vestibular Zumbi dos Palmares contribuiu positivamente para a construção da identidade das mulheres negras entrevistadas: algumas apontaram que houve contribuição para a construção da identidade positiva como mulher negra em sua família, e outras deram grande destaque ao Cursinho nessa construção.

Palavras-chave: identidade; mulher negra; resistência.

Abstract

This article aims to show the importance of the Zumbi dos Palmares Preparatory Course for constructing the identity of black women. In order to achieve this aim, semi-structured interviews were carried out with five black women who attended the Course and graduated from higher education. A qualitative analysis was carried out based on authors from the field of Ethnic and Racial Studies. Firstly, the analysis is performed by considering the historical struggle of the black movement and, particularly, of black women against racism and in defense of the positive construction of black identity. Next, the results of the field research are presented. The analysis has shown that the Zumbi dos Palmares Preparatory Course contributed positively to the construction of the identity of the black women interviewed: some pointed out the contribution to the construction of a positive identity as a black woman in their family, and others strongly emphasized this construction enabled by the Course.

Keywords: identity; black woman; resistance.

Resumen

El artículo tiene como objetivo mostrar la importancia que el Curso Preuniversitario Zumbi dos Palmares tiene para la construcción de la identidad de las mujeres negras. Para lograr este objetivo, se realizaron entrevistas semiestructuradas con cinco mujeres negras que asistieron al Curso y se graduaron en educación superior. El análisis se llevó a cabo de forma cualitativa con base en los autores del campo de los estudios étnico-raciales. En el primer momento, se sitúa el análisis, considerando la lucha histórica del movimiento negro y, en especial, de las mujeres negras contra el racismo y en defensa de la construcción positiva de la identidad negra. Luego, se presentan los resultados de la investigación de campo. Mediante el análisis efectuado, se observa que el Curso Preuniversitario Zumbi dos Palmares contribuyó positivamente a la construcción de la identidad de las mujeres negras entrevistadas: algunas señalaron que hubo una contribución para la construcción de una identidad positiva como mujer negra en su familia, y otras destacaron en gran medida al Curso en esta construcción.

Palabras clave: identidad; mujer negra; resistencia.

1 INTRODUÇÃO

O artigo tem como objetivo mostrar a importância que o Cursinho Pré-Vestibular Zumbi dos Palmares tem para a construção da identidade de mulheres negras. Inicialmente denominado de Cursinho Pré-Vestibular Gratuito Novos Rumos, o curso surgiu em 2006, com a iniciativa do professor Dr. Flávio Antônio da Silva Nascimento (UFMT) e de militantes do Movimento Negro de Rondonópolis, como uma forma de aumentar o número de estudantes ingressantes pobres e negros nas universidades públicas, combatendo de forma concreta o racismo praticado contra esses estudantes em Rondonópolis e buscando igualdade de oportunidades e de condições. Desde 2009, foi assumido como política pública pela Prefeitura de Rondonópolis, passando a denominar-se Cursinho Pré-Vestibular Zumbi dos Palmares.

No artigo, para darmos conta do objetivo, faremos referência à fala de cinco mulheres negras que frequentaram o Cursinho e se formaram na educação superior. As falas foram obtidas por meio de entrevistas semiestruturadas, e a análise deu-se de forma qualitativa, com base nos autores do campo dos Estudos Étnico-Raciais. Os nomes das entrevistadas citadas no artigo são pseudônimos, como forma de manter o anonimato dos sujeitos.

No primeiro momento, situamos a análise, destacando a luta histórica do Movimento Negro e, em especial, das mulheres negras contra o racismo e em defesa de uma construção positiva da identidade negra. Em seguida, trazemos a análise das falas de cinco mulheres negras, salientando a relevância do Cursinho. Por fim, apresentamos algumas observações.

2 SITUANDO A ANÁLISE

É muito importante compreender a resistência das mulheres negras ao racismo, que persiste no século XXI. Essas mulheres continuam ocupando a base da pirâmide social e econômica do país, mais de 130 anos do fim do escravismo de negras e negros no Brasil. Para Ribeiro (2019, p. 42), “[...] as mulheres negras estão em uma situação em que as possibilidades são menores materialmente”.

Estamos falando de uma população sequestrada de seu mundo, seu país, sua família, sua vida, sua história, sua cultura, para viver em um mundo outro, totalmente desconhecido. Sem chance de retorno à pátria mãe, essa população viveu sob torturas, aprisionada, tratada como seres que não tinham alma, não tinham inteligência nem sentimentos. Eram seres humanos despidos de humanidade - enfim, houve um real genocídio de negras e negros.

A escravidão no Brasil, oficialmente, teve seu término marcado pela promulgação da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, sob a concessão da princesa Isabel. Contudo, hoje, no século XXI, compreendemos que essa tal liberdade não passa de uma falácia de libertação. A ‘liberdade’ desestruturada manteve em curso o projeto político e ideológico escravocrata, que reverbera até os dias atuais nos corpos negros (Correa; Silva Júnior; Carvalho, 2022, p. 4).

Com o fim da escravização de negros e negras, essas pessoas foram abandonadas à própria sorte pelas ruas das cidades, sem direitos básicos, como saúde, alimentação, moradia e nem mesmo água potável. Substituídos por colonos brancos trazidos da Europa em um contexto bem diferente, os negros já não tinham nenhuma serventia, segundo a lógica da sociedade capitalista, branca e elitista. Tornaram-se, então, estorvos que precisavam ser eliminados, pois sua presença nas ruas e vielas incomodava quem dominava o cenário produtivo no Brasil.

Desde a colonização, há um projeto de extermínio dessa população pelo Estado brasileiro, um projeto com várias frentes, que incluía matar e/ou deixar morrer:

A partir da perspectiva racial, o Estado passaria não somente a selecionar quem pode viver e quem pode morrer, como também viria a atuar diretamente no exercício de ‘fazer viver e deixar morrer’, indicando quem ou quais grupos devem ser exterminados, onde toda e qualquer ação estatal em direção ao colonizado se traduziria em políticas de morte (Costa; Martins; Silva, 2020, p. 8).

O poeta, escritor e ativista negro Abdias Nascimento (2016), um dos mais eloquentes pesquisadores da história da população negra brasileira pós-escravidão, em seu livro O genocídio do negro brasileiro, cita falas de autoridades e escritores brasileiros e estrangeiros que tratam da questão e demonstram que o genocídio da população negra era intencional e planejado. Essa política de morte citada por Abdias Nascimento nos anos 1930, de algum modo, é praticada ainda no contexto atual.

Mbembe (2016, p. 128), referindo-se ao biopoder, assevera que “[...] existe uma divisão visível dos que possuem direito à vida, daqueles que têm direito a ter direitos, enquanto se apartam os que não devem gozar dessa possibilidade, e para além disso, devem ser excluídos, mortos”. Portanto, para alguns, há uma política de morte, pois lhes é negado o direito de viver, o que Mbembe (2016, p. 146) chama de necropolítica, caracterizada pelas

[…] várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, armas de fogo são implantadas no interesse de destruição máxima de pessoas e de criação de ‘mundos de morte’, formas novas e únicas da existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o status de ‘mortos vivos’.

No caso brasileiro, a necropolítica se dá também no sistema educacional: é a necroeducação, efetuada pela inexistência ou ineficácia das políticas públicas direcionadas à população negra. Segundo Costa, Martins e Silva (2020, p. 8), a necroeducação “[...] não é um mero acaso, mas faz parte da estratégia das políticas de morte utilizadas no genocídio do negro brasileiro”.

Outra frente de extermínio da população negra é a teoria do branqueamento2 da raça, que nada mais é do que uma estratégia de genocídio mediante o processo de miscigenação, “[...] fundamentado na exploração sexual da mulher negra, erguido como um fenômeno de puro e simples genocídio” (Nascimento, 2016, p. 84).

O projeto de extermínio da população negra foi e é uma realidade muito presente, que mata mais pessoas nas favelas e subúrbios do Brasil do que em muitas guerras. Olhando os dados do mapa da violência, vemos que as pessoas assassinadas são majoritariamente negras. Para Mbembe (2016, p. 18), “[...] a política da raça, em última análise, está relacionada com a política de morte [...] com efeito em termos foucaultianos, racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder: este velho direito de matar”.

Mbembe (2016, p. 18) afirma ainda que, “[...] na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções assassinas do Estado”. É notório que essa função assassina do Estado pesa seu braço sobre a população negra. Conforme Mbembe (2016, p. 5), “[...] a expressão máxima da soberania reside no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer e, por isso, matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais”.

Quando o Estado negligencia a segurança e a proteção daqueles que entende que não têm direito à vida, permite o surgimento de milícias e justiceiros, especialmente nas grandes metrópoles, os quais recorrem à violência, julgam e matam pessoas nas periferias e favelas do Brasil, onde estão concentrados os mais pobres, que são também os negros e negras. Vêm sendo recorrentes os relatos de pessoas das favelas, conforme podemos ver e ouvir nos telejornais e nas mídias sociais, de que policiais entregam jovens negros nas mãos da milícia ou de traficantes para, segundo palavras de policiais, “aplicarem um corretivo”.

Bem sabemos onde termina esse corretivo. Ele termina na vala comum, sem que o Estado imprima formas de punição aos policiais e/ou uma investigação séria dos assassinos e mandantes de assassinatos de jovens negros. Não há interesse, pois os que morrem são ilustres desconhecidos, pretos e favelados, que, segundo a lógica colonial, não têm direito à vida, em função do racismo historicamente construído. Fanon (2008, p. 82) diz que “[...] o racismo é uma chaga da humanidade. Mas é preciso que não nos contentemos com essa frase. É preciso procurar incansavelmente as repercussões do racismo em todos os níveis de sociabilidade”.

Essas sábias palavras de Fanon (2008) têm sido rigorosamente uma fonte de inspiração para a resistência e as lutas de negras e negros pelo direito de viver, tanto que o projeto vil do colonizador não tem conseguido o sucesso esperado. A cada ano, vemos as estatísticas pontuando o crescimento da população negra, que tem resistido e forjado espaços de existência, na contramão do planejado pela branquitude. Entendemos a branquitude “[...] como uma guardiã silenciosa de privilégios” (Bento, 2014, p. 15) dos brancos. Por meio dela, responsabilizam-se os negros pelas mazelas que sofrem, e eximem-se os brancos das injustiças históricas que praticaram e continuam praticando contra negros e negras.

Diante da nova realidade do aumento da população negra, não só no Brasil como também no mundo, torna-se crucial que as autoridades reformulem políticas e concepções para atender às demandas dessa população, que cresce e precisa de espaços para viver e prosperar. Na perspectiva da necessidade de reformulação de políticas públicas de inclusão da população negra, acompanhamos a aprovação da reformulação da Lei de Cotas pelo Senado. Dentre algumas mudanças, está a inclusão dos quilombolas entre os beneficiários da reserva de vagas em instituições federais de educação superior e do Ensino Médio e Técnico. A lei contempla, ainda, estudantes de baixa renda, negros, indígenas e pessoas com deficiência.

É sabido que a implantação, a implementação e a reformulação da legislação só aconteceram e acontecerão mediante a luta dos movimentos negros. Nesse sentido, as mulheres negras vêm se organizando, construindo pautas positivas para que a inclusão seja de fato uma realidade em nosso país.

Na construção de estratégias para a superação das dificuldades decorrentes do racismo no Brasil, as mulheres negras estão acostumadas a trabalhar nas brechas. Para Candau (2016, p. 69), “[...] as brechas são as consequências, em grande medida, da resistência e insurgência, dos movimentos sociais”. Nessa insurgência, e diante da urgência de discutir políticas públicas efetivas direcionadas para esse público, em especial, para as mulheres negras, o Movimento Negro tem sido protagonista, inclusive para contar a história sob a perspectiva decolonial.

Quando não se conhecem ou se conhecem de forma colonial os efeitos perversos da história da população negra brasileira, especialmente para mulheres negras, que sofrem a dupla violência de machismo e sexismo, não se compreendem as razões pelas quais as mulheres negras chegaram à contemporaneidade em uma situação de tamanha vulnerabilidade.

É importante lembrar que o projeto racista sempre encontrou resistência; nunca foi pacífico, nunca houve passividade por parte da população negra nem das mulheres negras. Essas relações sempre foram permeadas por tensões, conflitos, embates políticos, sociais, culturais e econômicos. A população negra também quer ocupar espaços de poder, adentrar na educação superior, ocupar postos de trabalho que não sejam na subalternidade, enfim, quer a garantia dos direitos previstos na Constituição Federal. O Movimento Negro segue lutando para garantir que o projeto de extermínio da população negra brasileira nunca se torne uma realidade.

Também graças à luta do Movimento Negro, a partir dos anos 2000, o Brasil reformulou algumas políticas e concepções raciais, de maneira a incluir a população negra, o que demonstra a força do Movimento Negro para impactar a política nacional. O país vem se tornando cada vez mais um país de pretos e pardos, com avanços que trazem a esperança de dias melhores para a população negra. Tolentino (2023, p. 162) destaca que não podemos deixar de reconhecer

[…] a expansão do Ensino Superior e das cotas, ações de combate à injustiça racial, implementada no Brasil a partir de 2003. Elas têm sido fundamentais para recentes mudanças nas configurações de cor, raça e classe do meio acadêmico e, consequentemente, para melhoria das condições de vida dos negros que conseguem alcançar esses espaços, o que ficou nítido nas eleições de 2020.

Ainda estamos longe de alcançar a igualdade de direitos. A representatividade da mulher negra nos postos de poder e de decisão ainda é pouco significativa, porém, o Movimento Negro tem sido incansável na resistência e tem avançado em pautas positivas que promovem a inclusão de pessoas negras.

Certamente, não é sem tensão. Temos momentos de conquistas, momentos de perdas de direitos, mas caminhamos para a frente, sem ilusões, cientes de que a perda é uma possibilidade real, como presenciamos durante o governo Bolsonaro, que desmontou políticas públicas ou as ignorou, prejudicando a população negra.

A convivência com negros e negras, mesmo após a abolição e na contemporaneidade, sempre foi “tolerada”. De acordo com Skliar (2003, p. 131), tolerar significa “[...] tolerar o que é outro, tolerar a diversidade, tolerar a diferença; fazer da tolerância um princípio indesculpável, uma fonte de conhecimento, um lugar de comunicação”, o que, no fundo, revela a pretensa superioridade dos brancos. Muitos toleram até certo ponto, mas não têm escrúpulos de se tornarem intolerantes se virem seus privilégios ameaçados.

Essa é a realidade da convivência entre negros e brancos. Skliar (2003, p. 132) afirma: “[...] a intolerância, uma essência da vida moderna, se esconde sob a máscara da tolerância”. Bauman (1996, p. 82) diz que essa questão pode ser assim expressa: “[...] você é detestável, mas eu, sendo generoso, vou permitir que continue vivendo” - desde que não questione meus privilégios.

Ao analisar as lutas da população negra, a sensação é a de que os negros só têm direito à vida enquanto não questionarem os privilégios da branquitude. As vidas negras estão sempre em risco, estão sempre por um fio. Bauman (1996, p. 82) assevera:

A tolerância não inclui a aceitação do valor do outro; pelo contrário, é uma vez mais, talvez de maneira mais sutil e subterrânea, a forma de reafirmar a inferioridade do outro e serve de antessala para a intenção de acabar com sua especificidade, junto ao convite ao outro para cooperar na consumação do inevitável. A tão aclamada humanidade dos sistemas políticos tolerantes não vai além de consentir a demora do conflito final.

Todo esse processo de intolerância travestida de tolerância é sempre “[...] uma política imbuída em minar qualquer chance de ascensão por parte de pretos e pobres” (Tolentino, 2023, p. 163). Ainda segundo Tolentino (2023, p. 163), “[...] em um país racista como o Brasil, é de se esperar que as ações que objetivam diminuir as desigualdades sociorraciais encontrassem forte oposição entre os grupos mais conservadores e as elites dominantes”, ou seja, não se toleram ações que levem à diminuição das desigualdades.

Basta olhar os ataques feitos recentemente pelo próprio ex-presidente da República Jair Messias Bolsonaro e sua trupe às políticas de ações afirmativas. Em sua fala, carregada de preconceitos e racismo, dizia que é preciso acabar com o coitadismo. Segundo eles, políticas públicas não são uma forma de reparação, mas sim coitadismo, que predomina entre homossexuais, negros, mulheres e nordestinos. Assim como em outras áreas, predominou o negacionismo. Em vez de aceitar a existência do racismo contra negras e negros no Brasil, optou-se por responsabilizar os negros pela situação de desigualdade.

Conforme Jaccoud (2008) afirma, as desigualdades raciais no Brasil são influenciadas de maneira determinante pela prática passada e presente da discriminação racial. Essas afirmações são resultado de estudos e pesquisas, mas nada disso foi suficiente para evitar que o governo Bolsonaro, desde sua campanha à Presidência, afirmasse que extinguiria as ações afirmativas instituídas no Brasil. Quando eleito, atacou e precarizou as políticas afirmativas em nosso país. De fato, houve um desmonte dessas políticas, exigindo de nós muita resistência, lutas e embates nas ruas.

O novo governo, velho conhecido, foi eleito com o apoio e o trabalho intensos de negros e negras, de trabalhadores e trabalhadoras. Agora são novos tempos, são novas perspectivas, e a expectativa é a de que consigamos nos organizar cada vez mais, em busca da equidade para a população negra deste país. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no seu terceiro mandato, promove Programas Federais de Ações Afirmativas para promover direitos e equiparações de oportunidades voltadas à população negra.

Gomes (2020, p. 130) afirma que

[...] a organização dos negros e das negras da atualidade é capaz de suscitar um tipo de subjetividade desestabilizadora que desvie do conformismo perante o racismo para a subversão, superação do mesmo e para a construção de políticas radicais de igualdade racial.

Essa organização de movimentos negros fortalece os indivíduos e grupos negros. Muitas são as lutas e estratégias; entre elas, destacamos o Cursinho Pré-Vestibular Zumbi dos Palmares e sua contribuição para a afirmação da identidade da mulher negra.

3 A CONTRIBUIÇÃO DO CURSINHO PRÉ-VESTIBULAR ZUMBI DOS PALMARES PARA A AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE DE MULHER NEGRA

A identidade da mulher negra não é essencial nem natural, mas uma construção histórica e cultural. Gomes (2002, p. 39) afirma que “[...] a identidade é entendida como um processo contínuo, construído pelos indivíduos nos vários espaços, sejam eles institucionais ou não, nos quais circulam”. Em sintonia com Gomes (2002), entendemos que, se nossas identidades são construídas continuamente e nos diversos espaços, podemos pensá-las também construídas na trajetória do Cursinho Pré-Vestibular Zumbi dos Palmares.

Podemos avaliar a importância que esse Cursinho ganha ao proporcionar a mulheres negras a oportunidade que precisavam para adentrarem no espaço da educação superior. Corrêa (2011, p. 76) afirma que “[...] os cursinhos populares ou alternativos têm um papel importante na luta pelo acesso ao Ensino Superior, trabalham com a perspectiva social e promovem práticas pedagógicas de extrema relevância para os segmentos sociais de baixa renda”.

Quando questionada se considerava que o Cursinho Pré-Vestibular Zumbi dos Palmares havia contribuído para o processo de formação de sua identidade, Simone Biles responde:

Sim. Porque a maioria dos professores, na minha época, era de mulheres negras, homens negros. Eram poucos professores, bem poucos mesmo, que eram brancos. Eles, mesmo sem discutir racismo, eram exemplos a serem seguidos. Você vê, eu tinha muita discriminação, até com o meu cabelo, tinha muita vontade de alisar. Aprendi com minhas professoras negras, e muito mais pelo exemplo do que pela fala, que eu não preciso disso. Eu posso ser quem eu sou, ter o cabelo que eu tenho. Independentemente de tudo, posso ser uma mulher negra muito batalhadora do jeito que eu sou. Eu não preciso mudar quem eu sou para agradar à sociedade (Entrevista concedida por Simone Biles, em maio de 2023).

Ao responder que sim, que o Cursinho lhe mostrou que poderia ser ela mesma, Simone Biles expressa que aprendeu, pelo exemplo de suas professoras negras, que não precisa assimilar identidades outras para afirmar-se como mulher negra. Ao contrário, quando ela assume quem é, com todos os marcadores raciais que são parte dela, ela resiste e afirma sua identidade. Como diz Kilomba (2019, p. 28), ela “[...] se torna a oposição absoluta do que o projeto colonial predeterminou”. Ela se torna sujeito de si mesma, da sua história, pois sujeito é aquele que tem o poder de definir sua identidade e contar sua história (hooks, 1995).

Quando não somos capazes de ser sujeitos de nossas histórias, nós nos tornamos objetos. E objetos são aqueles que têm a “[...] realidade definida por outros, a identidade criada por outros e a história designada somente de maneira que definem (nossa) relação com aqueles que são sujeitos” (Kilomba, 2019, p. 28).

Na fala de Simone Biles, vemos que ela se torna sujeito de sua história a partir do aprendizado no Cursinho e, como ela mesma diz, muito mais pelo exemplo do que por falas. Isso significa dizer que só o fato de o Cursinho existir já é capaz de orquestrar mudanças e influenciar na construção de identidades negras de quem por ele passa.

Simone Biles relata que a grande maioria de seus professores era negra e que pouco se falava sobre questões raciais. No entanto, ela aprende com o exemplo, com a simbologia, a partir do comportamento, da maneira de ser e de viver de seus professores.

Com Gomes (2018, p. 120), lembramos que “[...] a ação das ativistas negras constrói saberes e aprendizados políticos, identitários e estéticos-corpóreos específicos”. Por tal razão, torna-se fundamental a participação das mulheres negras no movimento, visto que ele as municia de saberes políticos e identitários que mantêm vivas as perspectivas e o ânimo para os enfrentamentos cotidianos a que são submetidas.

Em relação à contribuição do Cursinho Pré-Vestibular Zumbi dos Palmares para a construção de sua identidade de mulher negra, Tereza de Benguela afirma o seguinte:

Nossa! Muito, muito, embora, Luzia, lá no Cursinho, o nome é muito emblemático, mas no Cursinho a gente quase não falou sobre isso, sobre Zumbi dos Palmares, sobre essa afirmação negra. Porque acho que a visão da Prefeitura é mais voltada para pessoas de baixa renda mesmo, acredito que o Cursinho se chama Zumbi dos Palmares porque a maioria do povo de baixa renda é de negras, e ele, quando surgiu, surgiu com o movimento negro, que era o pessoal do movimento negro, aí, exatamente, acho que 2010, 2009, 2010, ele passa para a Prefeitura e, quando ele passa para a Prefeitura, ele perde um pouco dessa identidade da luta, o que é uma pena, mas, por questões financeiras, o Movimento Negro foi fazendo parceria com a Prefeitura, até que a Prefeitura assumiu em definitivo. A partir daí, ele perdeu um pouco essa característica mesmo de movimento, perde um pouco a identidade de pertença (Entrevista concedida por Tereza de Benguela em maio de 2023).

Tereza afirma que o Cursinho contribuiu sobremaneira para a construção de sua identidade de mulher negra, mas aponta que, quando o Cursinho passa para a Prefeitura, ele perde um pouco a identidade de movimento e de luta.

Para Tereza de Benguela, a partir do momento em que a Prefeitura Municipal assume a responsabilidade de continuar implementando essa política pública, ela dá outro caráter ao Cursinho, que perde, em parte, sua identidade de luta e resistência. O Cursinho, se antes formava pelo exemplo, pela simbologia, hoje talvez já não tenha mais essa representatividade, pois a escolha de seus professores passa a ser por processo seletivo da Prefeitura. Com isso, muitos dos que compõem o quadro de profissionais do Cursinho atualmente são pessoas brancas, que nem sempre acreditam na existência do racismo, não são comprometidas com a luta antirracista e ignoram a invisibilidade e o silenciamento de mulheres negras. Suas motivações para estarem ali certamente não são as mesmas do grupo que iniciou esse trabalho. Gomes (2017, p. 25) lembra que

[…] ao longo do tempo é possível observar como o campo educacional se configura como um espaço-tempo inquieto, que é ao mesmo tempo indagador e indagado pelos coletivos sociais diversos. Enquanto espaço de formação humana e pelo qual passam as mais diferentes gerações, grupos étnico-raciais, pessoas de origens socioeconômicas diferentes, credos e religiões, é possível refletir que tanto os processos institucionais de educação [...] quanto as experiências de educação popular, de jovens e adultos, diferenciadas e antirracistas, construídas no cotidiano e nos processos de lutas sociais, são repletos ao mesmo tempo, de um dinamismo incrível e de uma tensão conservadora.

Concordando com Gomes (2017), entendemos que, além de um espaço-tempo inquieto, o campo educacional - especialmente a educação popular, como espaço de formação humana diferenciada e antirracista - é profundamente afetado pelas condições socioeconômicas. É perceptível, nas entrevistas realizadas com as mulheres negras egressas do Cursinho Pré-Vestibular Zumbi dos Palmares, que este é um exemplo de como a educação popular pode ser afetada pelas questões econômicas.

Vamos, assim, utilizando as brechas, encontrando espaços nas fissuras para produzir modos outros de incluir populações excluídas. Walsh (2016, p. 72) afirma que as fissuras são como brechas que se transformam “[...] no lugar e no espaço, a partir do qual a ação, militância, resistência, insurgência e transgressão são impulsionadas, onde as alianças se constroem, e surge um modo-outro que se inventa, cria e constrói”.

Falando de resistência, insurgência e modos outros de construção, é muito bom ouvir as respostas das entrevistadas. Elas mostram como veem a construção de sua identidade, as contribuições do Cursinho para esse processo e como percebem a ressignificação de sua identidade ao longo do tempo em que permaneceram no Cursinho. Elas são capazes de fazer a análise do antes e do depois da passagem por ele. Vejamos, por exemplo, a resposta de Rosa Parks, quando perguntada sobre a possibilidade de o Cursinho Pré-Vestibular Zumbi dos Palmares ter contribuído para o seu processo de afirmação de identidade de mulher negra:]

Com certeza. Primeiro, porque, como eu estudava lá no ensino fundamental e médio, no interior, não era muito voltada para história da população negra, e, no Cursinho, eles trouxeram bastante a história dos negros, e eu mesma não conhecia a minha história. Hoje em dia, no meu ambiente de trabalho, a gente observa que as pessoas não têm consciência de pertença quando você pergunta se a pessoa se considera pardo, negro, amarelo ou indígena. Eu vejo tanto negros falando que são pardos, quando na verdade são negros, da pele retinta. Eu lembro que o professor Flávio Nascimento, que me deu algumas aulas, falava muito isso. Tem pessoas que se acham brancas, sendo que não são. É difícil hoje, no Brasil, saber quem é negro ou branco, a não ser que a pessoa veio de outro país, como da Alemanha, e não teve miscigenação com ninguém. O pai e a mãe eram todos de lá, da Alemanha, e só vieram para cá, porque, se um deles se envolver com uma pessoa aqui, que já nasceu aqui no Brasil, com certeza, vai ter uma miscigenação muito forte. Todas as aulas que eu tive em relação a essa parte de relações étnicas, eu procuro compreender bastante. Quando eu posso, sempre falo:Acordem! O racismo é uma realidade perversa que está batendo em nossa porta’ (Entrevista concedida por Rosa Parks, março de 2023).

Rosa Parks, que fez o Cursinho Pré-Vestibular Novos Rumos em 2006 e 2007, afirma que ele contribuiu sobremaneira para o seu processo de formação da identidade de mulher negra. Ela relata que, quando fez o Ensino Fundamental e Médio no interior, não se falava da história da população negra.

O que explica o fato de a escola de Rosa Parks não ter trabalhado a história do povo negro; mesmo existindo uma lei que obriga esse ensino, não é o acaso, tampouco a localização no interior. A escola pauta-se sistematicamente na seleção dos conhecimentos hegemônicos, considerados legítimos, e os demais são vistos como não legítimos. Os conteúdos curriculares são bem selecionados e retratam a visão de mundo de uma sociedade colonizadora, não dos colonizados.

Conversando com Dandara e questionando-a sobre a possibilidade de o Cursinho Pré-Vestibular Zumbi dos Palmares ter contribuído para a afirmação de sua identidade de mulher negra, ela, com a calma que lhe é peculiar, responde:

Sim, contribuiu muito. Na verdade, ele concretiza aquilo que minha mãe já vinha trabalhando. No Cursinho, eu reafirmei minha afirmação de identidade, pois minha mãe, como participante do Movimento e uma das primeiras professoras do Cursinho, já falava e nos orientava sobre nossa identidade de mulher negra. Então, quando fui para o Cursinho, já tinha consciência de pertença, mas certamente ele foi importante para reafirmar minha identidade, me deu mais convicção de quem eu era, me senti mais segura, até porque conhecimento é segurança, e isso o Cursinho me deu; ficou mais evidente a questão do letramento racial (Entrevista concedida por Dandara, em maio de 2023).

Dandara é uma jovem psicóloga proveniente de uma família muito envolvida com o Movimento Negro, e sua mãe foi uma das primeiras professoras do Cursinho, trabalhando como voluntária. Seu pai, um sacerdote da religião de matriz africana, umbandista respeitado e muito querido, também é muito envolvido com o Movimento. Podemos observar que Dandara tem consciência de pertença, fala muito em letramento racial, é uma jovem mulher negra forjada na luta; estudiosa das relações raciais, tem mestrado na área. Seu lugar de fala e de existência é outro; é filha de mulher negra com curso superior, engajada na luta desde muito jovem. Na família, tanto ela quanto a irmã passaram pelo Cursinho e fizeram curso superior, sempre participando do Movimento Negro.

Movimento é isso - é segurança, é apoio, é coletivo. Como afirma hooks (2017, p. 24), “[...] é transgressão, é um movimento contra as fronteiras e para além delas”. Dandara encerra sua resposta à questão apontando que o letramento racial é um processo de reeducação racial, cujo intuito é desconstruir formas de pensar e agir naturalizadas e normalizadas socialmente em relação a pessoas. Lembramos Vieira (2022, p. 63) quando diz: “Letramento racial pode ser compreendido como um esforço de sistematização de práticas discursivas que se insurgem contra o racismo, tanto na sua dimensão epistêmica, como simbólica e letal”.

Ao questionarmos Carolina de Jesus sobre as contribuições do Cursinho para a afirmação de sua identidade, observamos que sua resposta foi muito semelhante à de Dandara; contudo, mesmo na semelhança, podemos notar diferenças. Vejamos:

Ah, sim. Não só o Cursinho, porque a gente já tem essa base de consciência racial, da identidade de pertença dentro de casa, não é? Então, essa parte de não só racial, mas social também, isso daí para a gente, aqui em casa, é um assunto que é sempre muito debatido e é muito claro, sim. Desta forma, com certeza, contribuiu ainda mais para nossa formação e consciência de pertença (Entrevista concedida por Carolina de Jesus, em junho de 2023).

Assim como Dandara, Carolina relata que teve as questões raciais pautadas em casa, no seio familiar. Segundo ela, sempre houve esse debate e essas conversas em casa. Quando passa a frequentar o Cursinho, fortalece seus conhecimentos e afirma ainda mais sua identidade de mulher negra.

Podemos notar que tanto Dandara quanto Carolina evidenciam seu aprendizado nas questões raciais, o que significa afirmação da identidade negra de meninos e meninas em casa e depois no Cursinho. Não ouvimos, durante as entrevistas, relatos de que esse tema tenha sido debatido na escola ou de que houve aprendizagem sobre a história afro-brasileira, embora exista uma lei que obriga esse ensino há 20 anos. Salientamos que todas as entrevistadas passaram pela escola pública nas duas últimas décadas, ou seja, depois da Lei 10.639 (Brasil, 2003).

Gomes (2002) afirma que a estrutura da escola brasileira não é pensada para acolher e muito menos para pautar as questões raciais, o que significaria dar a meninos e meninas o conhecimento e a segurança necessários para afirmação de sua identidade de pessoas negras, de modo que se sintam representados no seio da escola. Pelo contrário, o que prevalece é a exclusão desses alunos de várias maneiras:

Essa exclusão concretiza-se de maneiras diversas: por meio da forma como alunos e alunas negros são tratados; pela ausência ou pela presença superficial da discussão da questão racial no interior da escola; pela não-existência dessa discussão nos cursos e centros de formação de professores/as; pela baixa expectativa dos professores/as em relação a esse aluno/a; pela desconsideração de que o tempo de trabalho já faz parte da vida do aluno/a negro/a e pobre; pela exigência de ritmos médios de aprendizagem, que elegem um padrão ideal de aluno a ser seguido por todos a partir de critérios ditados pela classe média branca, pelo mercado e pelo vestibular, sem considerar a produção individual do aluno e da aluna negra, assim como de alunos de outros segmentos étnicos/raciais (Gomes, 2002, p. 41).

Diante dessa realidade, afirmar a identidade de mulher negra, de fato, torna-se um dilema. Gomes (2002, p. 41) observa que “[...] não é fácil construir uma identidade negra positiva convivendo e vivendo num imaginário pedagógico que olha, vê e trata os negros e sua cultura de maneira desigual”. A escola, local ímpar para trabalhar essas questões, tem sido, como já apontado, negligente e, em muitos casos, reforça a colonialidade.

Por isso, quando dizíamos da semelhança entre as falas de Dandara e Carolina, foi no sentido de que, na casa delas, sempre se discutiam as questões raciais, sempre houve a afirmação da identidade, que se fortaleceu a partir do Cursinho, e não da escola. A semelhança entre essas duas mulheres negras não se resume às respostas muito parecidas, pois Dandara e Carolina vieram de uma geração de mulheres negras com Ensino Superior, com traços de letramento racial. Porém, Dandara tem forte intimidade com a religião de matriz africana e aprendeu desde cedo a enfrentar não só o racismo pela cor da pele, mas também o racismo religioso. Ela é uma liderança, estando à frente de um movimento negro (Associação Araxá) com forte presença no desenvolvimento de projetos sociais que combatem o racismo. Dandara é uma dessas mulheres que, segundo Correia (2017), são de suma importância para a luta e resistência negra, desempenhando trabalhos relevantes na luta contra o racismo e o sexismo, bem como na afirmação da identidade de outras mulheres. Nesse sentido:

A reflexão sobre o papel das mulheres objetiva perceber a importância, não somente do seu papel enquanto liderança, mas enquanto agente de resistência e desconstrução de uma ordem machista calcada em valores militares e operacionalizado pela estrutura da violência, seja ela institucionalizada pelo aspecto psicológico, de gênero, racial, cultural e outros (Correia, 2017, p. 177).

Dandara praticamente nasceu no seio da militância. Seus pais sempre foram militantes na luta antirracista e na defesa da religião de origem africana. Dandara também exerce participação ativa na militância e tem uma estrutura familiar forte e comprometida com o movimento e a luta antirracista. Isso é fundamental para que seja a mulher forte e determinada que é. Correia (2017, p. 180) observa:

Em uma realidade de um país em desenvolvimento como o Brasil, com um passado escravista e colonização portuguesa e europeia de exploração, o papel da mulher é ainda muito mais inferiorizado e subjugado a uma importância menor, sendo que as relações sociais extremamente marcadas pelo machismo vão fazer da mulher um ser frágil e de constantes depreciações da ordem moral e social.

Todo esse histórico de exclusão, subjugação, inferiorização, provocou em algumas mulheres negras a sensação de que a luta era inútil e de que a organização de movimentos não daria conta de proteger as negras aviltadas pelo racismo. Assim, algumas mulheres negras, ainda que apresentem certo letramento racial, mantêm-se distantes da luta e da organização de movimentos, mas esse não é o caso de Dandara e não é o caso de tantas mulheres negras que continuam resistindo e lutando pela afirmação de sua identidade.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma das razões que nos levaram a pesquisar o Cursinho Pré-Vestibular Zumbi dos Palmares foi mostrar a importância de políticas públicas propostas pelo Movimento Negro, no sentido de contribuir para que a população negra e, de forma especial, as mulheres negras possam sair do ciclo de violências a que foram submetidas, sendo a maior delas o racismo. Ele gera outras formas de violência, inclusive, a violência da falta de acesso à universidade. As universidades brasileiras foram e ainda são territórios hostis aos corpos negros e, durante muitos anos, funcionaram como um reduto da branquitude, mas o Movimento Negro está mudando essa realidade.

Pela análise efetuada, entendemos que o Cursinho Pré-Vestibular Zumbi dos Palmares é um espaço importante para a construção da identidade da mulher negra. Embora para algumas das entrevistadas essa percepção seja menos evidente, com base nos autores que utilizamos e na pesquisa realizada, observamos que um contexto formativo que concretiza o acesso à educação superior contribui para o questionamento dos estereótipos negativos e fortalece a construção positiva da identidade da mulher negra.

As cinco entrevistadas citadas neste artigo foram unânimes em reconhecer a importância do Cursinho: algumas apontaram que houve contribuição para a construção da identidade positiva como mulher negra em sua família, e outras deram grande destaque ao Cursinho nessa construção. Ressaltamos que a escola não foi mencionada como espaço de afirmação da identidade da mulher negra, o que reforça a necessidade de continuar lutando por uma educação antirracista e antissexista.

2 Para Nascimento (2016), essa política de embranquecer a população estruturava-se de forma a limitar o crescimento da população negra.

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Recebido: 30 de Julho de 2024; Aceito: 01 de Outubro de 2024

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