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Revista Internacional de Educação Superior

versão On-line ISSN 2446-9424

Rev. Int. Educ. Super. vol.8  Campinas  2022  Epub 12-Ago-2022

https://doi.org/10.20396/riesup.v8i0.8658379 

Artigos

Educação Para a Democracia no Contexto Neoliberal: Contribuições da Universidade Para Superar a Subjetividade Concorrencial

Red de Apoyo y Permanencia de Estudiantes Residentes en Viviendas de Estudiantes de Educación Superior

1,2,3Universidade de Passo Fundo


RESUMO

O presente artigo de natureza bibliográfica objetiva aprofundar os desafios de uma educação democrática num contexto de hegemonia do pensamento neoliberal, que prima pela construção de subjetividades concorrenciais. Entende-se, aqui, o neoliberalismo para além dos pressupostos classicamente considerados de política econômica que defendem um Estado mínimo na economia e nas políticas socioeducacionais. As contribuições de Dardot e Laval (2016), de Biesta (2013), Dewey (1979), entre outros, possibilitam ampliar a compreensão de como os pressupostos neoliberais adentram as subjetividades e produzem novos modos de vida. Conceitos como neossujeito, empresário de si, concorrência, competição, entre outros, traduzem esses novos pressupostos. Nesse contexto as instituições educativas, especialmente as Universidades, são desafiadas a problematizar essas tendências e contribuir na construção de pressupostos humanizadores e democráticos. As instituições de ensino superior têm um compromisso importante na formação de sujeitos democráticos. Na conclusão, reafirma-se a tese de que somente uma educação democrática é capaz de qualificar os pressupostos de sociabilidade em vista de uma vida em comum.

PALAVRAS-CHAVE: Educação escolar; Democracia; Neoliberalismo; Subjetividade concorrencial; Sociabilidade

RESUMEN

El presente artículo de carácter bibliográfico tiene por objetivo profundizar los desafíos para la formación de sujetos democráticos en un contexto de hegemonía del pensamiento neoliberal que prima por la construcción de subjetividades concurrenciales. Se entiende, aquí, el neoliberalismo más allá de los supuestos clásicamente considerados de política económica que defienden un Estado mínimo en la economía y en las políticas socioeducativas. Las contribuciones de Dardor y Labal (2016) amplían los horizontes de esa comprensión y problematizan como los supuestos neoliberales adentran las subjetividades y producen nuevos estilos de vida. Conceptos como neosujeto, empresario de si, concurrencia, competición, entre otros, traducen esos nuevos supuestos. Buscando traducir esa intención el artículo inicia con una problematización general de la cuestión; reconstruye los principales argumentos de Dardot y Laval sobre la “nueva razón del mundo”, en diálogo con autores como Sennett y Antunes; en la secuencia, profundiza algunos supuestos de la educación escolar visando a la formación de sujetos democráticos, especialmente con la contribución de Biesta. En la conclusión se reafirma la tesis de que solamente una educación democrática es capaz de calificar los supuestos de sociabilidad en vista de una vida común.

PALABRAS CLAVE: Educación escolar; Democracia; Neoliberalismo; Subjetividad concurrencial; Sociabilidad

ABSTRACT

This bibliographical article aims to deepen the challenges of a democratic education in a context of hegemony of neoliberal thought, which emphasizes the construction of competitive subjectivities. Neoliberalism is understood here beyond the classically considered assumptions of economic policies that defend a minimal State in the economy and in socio-educational policies. The contributions of Dardot and Laval (2016), Biesta (2013), Dewey (1979), among others, make it possible to broaden the understanding of how neoliberal assumptions enter subjectivities and produce new ways of life. Concepts such as neo-subject, entrepreneur of self, competition, competition, among others, translate these new assumptions. In this context, educational institutions, especially universities, are challenged to problematize these trends and contribute to the construction of humanizing and democratic assumptions. Higher education institutions have an important commitment in the formation of democratic subjects. In conclusion, we reaffirm the thesis that only a democratic education is capable of qualifying the assumptions of sociability in view of a life in common.

KEYWORDS: School education; Democracy; Neoliberalism; Competitive subjectivity; Sociability

Considerações Introdutórias

O fundamental é compreender que nada pode nos

eximir da tarefa de promover outra racionalidade.

(DARDOT; LAVAL, 2016, p. 402)

O artigo põe em debate a temática da formação democrática no âmbito da educação, um dos principais desafios contemporâneos. Para tanto, urge problematizar a racionalidade neoliberal ancorada no desempenho e pautada no princípio da competição. Essa é uma das características dominantes no cenário contemporâneo em termos de subjetividade que constitui numa cultura e traduz-se em modos de vida. Ao diagnosticar essa tendência, pretende-se evidenciar como ela é reducionista, bem como pensar nas possibilidades de sua superação através de uma intervenção qualificada da Universidade na contituição de novos pressupostos baseados em princípios democráticos e a instauração de novas sociabilidades, ou como afirmam Dardot e Laval (2017), assentados no principio político do ‘comum’.

Como base nas reflexões de Dardot e Laval (2016), será feito um diagnóstico a respeito do avanço da racionalidade de desempenho, ou concorrencial, buscando identificar os pressupostos e as principais características desse modo de vida que resulta num sujeito neoliberal ou neossujeito e suas implicações políticas, culturais e educativas. As transformações em curso ressaltam de modo agressivo as virtudes da competição como princípio que permitirá aos mais hábeis e com mais poder um sucesso pessoal. Daí o destaque para pedagogias da prosperidade calcadas na meritocracia que foca estritamente o indivíduo como possibilidade de ascensão social. O outro, no caso, é concorrente e inimigo. No contexto dessa disputa, são destituídos ou esvaziados os espaços de uma formação democrática, dialógica e humanizadora. Essa lógica vem adentrando as instituições educativas, de modo intenso na educação superior, criando um clima de animosidade entre as próprias instituições. As relações de solidariedade que deveriam pautar essas instituições educativas republicanas são catapultadas por relações de concorrência, muitas vezes, profundamente antiéticas e imorais.

Nesse contexto de destruição dos pressupostos democráticos, somos desafiados a dialogar com autores que fundamentaram suas reflexões sobre a formação democrática e o papel das instituições educativas, especialmente as de ensino superior, e a contribuição da pesquisa nesse processo. A formação democrática como se propõe discutir aqui está ancorada nas contribuições de Biesta e, particularmente, de Dewey (1979, p. 93), ao defender a sua tese de que ala “é mais que uma forma de governo; é, primacialmente, uma forma de vida associada, de experiência conjunta e mutuamente comunicada”. Dessa perspectiva, resulta uma compreensão de democracia que vai muito além da participação em processos eletivos de representantes. Por isso mesmo, ela implica processos educativos, ou seja, não há democracia sem uma formação para a democracia e sem sujeitos democráticos. Tudo isso implica na formação de sujeitos críticos, investigadores e cidadãos.

A educação para a democracia ocorre em múltiplos espaços, mas os espaços formais constituem-se, conforme Benevides (1996, 223-237), em espaços privilegiados dessa formação. Essa mesma tese é defendida por Biesta, na obra ‘Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro humano’ (2013), e por Dewey na obra ‘Democracia e educação’ (1979). O enfrentamento da lógica de mercado que adentra as relações sociopolíticas e culturais e as subjetividades, somente terá êxito quando a educação for capaz de preparar pessoas capacitadas para conviverem socialmente com as outras. Assim, um primeiro movimento a ser feito é o de problematizar a natureza da própria educação, concebida como processo de mediação entre pessoas e comunidades racionais, ou seja, é fundamental pensar a educação como um espaço aberto no qual a democracia seja experimentada a partir de múltiplas iniciativas e que as relações entre sujeitos sejam construídas com base no diálogo. Nesse processo ganha relevância a pesquisa que se desenvolve em diferentes espaços das instituições de educação superior, tanto na graduação quanto nos cursos stricto sensu.

O movimento que consolidou a racionalidade de desempenho elevando-a a uma posição hegemônica na atualidade é resultante de embates históricos, por isso, é também passível de mudanças. Neste sentido, é fundamental pensar em outras formas de racionalidade que também podem ser desenvolvidas na sociedade, especialmente nas instituições educativas, e na constituição de novas subjetividades. Neste aspecto, a educação formal em todos os níveis e modalidades tem um papel formativo primordial, mesmo não sendo exclusivo. A educação tem de propiciar ambientes positivos para a convivência com a diversidade e preparar pessoas para conviveram socialmente. Como afirmava Durkheim (1967), a educação tem um papel fundamental na constituição do ser social, ou seja, de constituir uma base moral que dê condições para que as pessoas possam conviver socialmente.

A Racionalidade de Desempenho como Modo de Vida Contemporâneo

A constituição do modo de produção capitalista em suas diferentes fases e características ocorreu através de múltiplos embates. Thompson é, certamente, um dos historiadores que contribui qualificadamente na compreensão sobre como os capitalistas burgueses, particularmente na Inglaterra do século XVIII, forjaram de múltiplas formas novos modos de vida e de sociabilidades concorrenciais em contraposição aos valores oriundos da tradição de uma cultura popular. A esse respeito, pode-se destacar, entre outras, duas obras: ‘Costumes em comum: estudos sobre a cultural popular tradicional’ (1998) e ‘Senhores e caçadores: a origem da lei Negra’ (1987). Suas investigações evidenciavam que o capitalismo é muito mais do que um modo de produção de bens econômicos ao destacar a dimensão moral da nova ordem em construção no século XVIII na Inglaterra. O controle, a disciplina do tempo e a concorrência constituem-se, para o capitalismo, em princípios fundamentais. Progressivamente as lógicas do mercado e da organização produtiva capitalista avançam sobre as subjetividades, transformando os indivíduos em seres competitivos, pautados por uma lógica concorrencial de desempenho. Chega-se, assim, ao século XXI com uma progressiva destruição das bases de uma sociabilidade pautada em princípios democráticos.

A obra de Dardot e Laval: ‘A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal’ (2016) é uma referência importante para um diagnóstico das transformações em curso na sociedade atual em seu estágio neoliberal. Sem desconsiderar as múltiplas formas como o neoliberalismo adentra as políticas socioeducacionais e transforma o Estado em seu agente, esses autores evidenciam como as lógicas de desempenho individualistas configuram seres competitivos e concorrenciais que, por sua vez, aprofundam as subjetividades concorrenciais e como elas compõem novos modos de vida que mobilizam os sujeitos à ação.

Mecanismos e Estratégias de Constituição da Nova Subjetividade

O desafio está em compreender o neoliberalismo para além dos pressupostos político-econômicos em defesa do “Estado mínimo”, ou seja, como ele constitui uma cultura transversalizada por uma racionalidade concorrencial. O desafio, portanto, está em desvendar em que condições e como se dá a formação do sujeito neoliberal e a transformação da concorrência em princípio absoluto, estendido para todos os âmbitos da vida, desde as transações econômicas às relações pessoais cotidianas e às subjetividades. A educação em sentido amplo não está imune a essas influências. Nesta tarefa, Dardot e Laval (2016) sugerem fugir de duas armadilhas: a que faz crer tratar-se de uma subjetividade que se configurou naturalmente, sem “intervenção estratégica”, e a que sustenta a existência de um complô pró-mercado, resultante de uma predeterminação de marionetes pré-programadas. “A lógica normativa que acabou se impondo constituiu-se ao longo de batalhas inicialmente incertas e de políticas frequentemente tateantes” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 24).

Observar os fatos em sua historicidade ajuda a perceber como os atores que interpretam o cenário e agem estrategicamente têm maiores chances de fazer prevalecer seus interesses nos embates em que se envolvem. As estratégias empregadas na formação do sujeito neoliberal foram eficientes, criando condições para transformar a subjetividade e convencendo as pessoas a agirem com base no cálculo e no interesse individual. “A originalidade do neoliberalismo está no fato de criar um novo conjunto de regras que definem não apenas ‘outro regime de acumulação’, mas também, mais amplamente, outra sociedade” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 24). A participação do Estado na criação de condições pró-mercado e na constituição da “mercantilização implacável de toda a sociedade” foi fundamental.

Compreender politicamente o neoliberalismo pressupõe que se compreenda a natureza do projeto social e político que ele representa e promove desde 1930. Ele traz em si uma ideia muito particular da democracia, que, sob muitos aspectos, deriva de um antidemocratismo: o direito privado deveria ser isentado de qualquer deliberação e qualquer controle, mesmo sob a forma do sufrágio universal. (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 8)

O tipo específico de capitalismo, transformado em racionalidade concorrencial, resulta de confrontos com diferentes perspectivas político-econômicas e consolidou-se a partir de ações estratégicas pensadas para responder a circunstâncias históricas particulares. Aproveitando-se da sensação de esgotamento do Estado de bem-estar social (Welfare State), que havia dado boa resposta no período pós II Guerra Mundial, em que foi implementado, os pressupostos neoliberais encontraram terreno favorável. A crise dos anos de 1970 foi uma “oportunidade de ouro” para a concretização desses novos pressupostos. As estratégias de intervenção atingiram inicialmente alguns governos e as ações visaram à redução do papel do Estado, progressivamente ganhando amplitude espacial, bem como distintas dimensões da vida, constituindo-se em nova subjetividade, ou seja, num novo modo de vida.

O neoliberalismo é, muitas vezes, reduzido a uma política econômica que defende um Estado mínimo no âmbito das políticas socioeducacionais. Contrariamente ao que pressupõe o senso comum, o neoliberalismo tem promovido um Estado forte e transformou-se em guardião do direito privado. Boaventura de Sousa Santos afirma que o avanço neoliberal necessita de um Estado forte para enfraquecer o próprio Estado. Ele trata de um dilema do Estado no contexto neoliberal, visto que ele próprio precisa produzir o seu enfraquecimento, ou seja, “é necessário um Estado forte para produzir essa fraqueza eficientemente e sustentá-la coerentemente” (2008, p. 329). As transformações provocadas no Estado do bem estar social pelo avanço neoliberal têm contribuído de modo intenso para fortalecer a formação de um sujeito concorrencial e de desempenho resultando, daí, numa cultura baseada na lógica da concorrência, tendo como base uma lógica empresarial. A produção de ranqueamentos avaliativos entre cursos e instituições educativas, particularmente, em instituicoes de educação superior, em praticamente todos os âmbitos da sociedadetem tido a contribuição fundamental do Estado e de Organismos multilaterais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial (BM) e Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Essas instituições constituíram-se em instrumentos de pressão para a promoção dos princípios do mercado neoliberal, financiando de modo condicionado algumas políticas públicas, intermediando negociações de dívidas externas de países periféricos a juros elevados, forçando-os a seguir as regras estabelecidas pelo Consenso de Washington com suas propostas de ajuste estrutural (GENTILI, 1998). O discurso baseado na ideia de salvar os países da crise escondeu o que a realidade veio a demonstrar: o aprofundamento das desigualdades sociais.

No mundo do trabalho, ocorrem, também, embates ideológicos com grande repercussão na lógica pró-mercado e na precarização das relações trabalhistas com impactos profundos nas subjetividades, como bem analisam Antunes (1999; 2005) e Sennett (2005). A substituição de legislações com algumas garantias trabalhistas por relações flexíveis produziu um enfraquecimento das organizações coletivas e reforçou a responsabilização individual pelas condições de trabalho e empregabilidade. Nessa lógica, o combate ao desemprego não deveria ser preocupação governamental ou do Estado, pois a sociedade é regida pela concorrência. O regime de trabalho entra nas lógicas dos sistemas de recompensas, punições e estímulos, próprios de um mercado guiado por escolhas e conduta individual (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 217). Prevalece o ideário meritocrático que concebe os direitos trabalhistas como inibidores da iniciativa pessoal e promovem uma acomodação social. O embate sai do campo da economia e vai para o campo da moral, na medida em que esse novo contexto responsabiliza unicamente o indivíduo pelo sucesso ou fracasso. A possibilidade da escolha e a promoção da iniciativa pessoal são constitutivas da nova subjetividade.

Esse controle da subjetividade somente é operado de maneira eficaz dentro de um contexto de mercado de trabalho flexível, em que a ameaça de desemprego está no horizonte de todo assalariado. [...] O cúmulo do autocontrole, que também mostra o mecanismo perverso que transforma cada um em “instrumento de si mesmo”, ocorre quando o assalariado é convidado a definir não somente as metas que ele deve atingir, mas também os critérios pelos quais ele quer ser julgado. (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 229. Grifo dos autores)

O trabalho flexível sustenta-se na ideologia que propaga a participação dos trabalhadores, a liberdade de fazer escolhas e a diminuição de controles hierárquicos. Na prática, ocorre a internalização das normas de eficiência produtiva e de desempenho individual, o emprego de novas tecnologias de contabilidade, o registro e a comunicação, além da diminuição das fronteiras entre o dentro e o fora da empresa a partir da subcontratação e da terceirização (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 226). A estratégia é ampliar o máximo situações de mercado para levar o indivíduo a fazer as suas escolhas pressupondo que as regras do jogo sejam dadas e que o cálculo tenha, como base, o interesse pessoal. Dessa forma, é “impossível conceber um sujeito que não seja ativo, calculista, à espreita das melhores oportunidades” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 223). À medida que o indivíduo internaliza o “desejo de vencer” ingressa naturalmente no jogo da concorrência e as consequências são transformadas em novas exigências para conquistar a premiação. É como um game onde passar de fase implica dificuldades extras e o desejo de superação é o combustível mobilizador.

Os sujeitos nunca teriam se “convertido” de forma voluntária ou espontânea à sociedade industrial e mercantil apenas por causa da propaganda do livre-câmbio ou dos atrativos do enriquecimento privado. Era preciso pensar e implantar, “por uma estratégia sem estrategistas”, os tipos de educação da mente, de controle do corpo, de organização do trabalho, moradia, descanso e lazer que seriam a forma institucional do novo ideal de homem, a um só tempo indivíduo calculador e trabalhador produtivo. Foi esse dispositivo de eficácia que forneceu à atividade econômica os “recursos humanos” necessários, foi ele que produziu incessantemente as mentes e os corpos aptos a funcionar no grande circuito da produção e do consumo. (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 324. Grifos dos autores)

Uma breve incursão pela história evidencia que o capitalismo foi impondo-se, mas com muitas resistências. O fato é que progressivamente há um domínio do capital sobre os indivíduos que se dá por pressões, mas também por meio de discursos que usam da força simbólica. O discurso da meritocracia instrumentalizado pelos defensores do neoliberalismo joga toda a responsabilidade pela ascensão social ou o fracasso exclusivamente sobre o individuo, retirando de cena os múltiplos componentes presentes. Assim, há uma pressão excessiva sobre o individuo para assegurar o emprego e as condições de vida. É nesse contexto de pressão que muitos indivíduos incorporam os princípios do empreendedorismo para adaptarem-se ao novo mundo, baseando as suas decisões no cálculo de interesse pessoal. Instaura-se, assim, uma nova subjetividade e constitui-se um novo sujeito.

A Ação do Sujeito Orientado pela Racionalidade de Desempenho

O sujeito neoliberal, concorrencial ou de desempenho não é resultado, como se busca evidenciar, de uma simples decisão pessoal. Como as mudanças que vêm ocorrendo são processadas ao ponto de forjar um novo sujeito? Conforme afirmam Dardot e Laval,

Se existe um novo sujeito, ele deve ser distinguido nas práticas discursivas e institucionais que, no fim do século XX, engendraram a figura do homem-empresa ou do ‘sujeito empresarial’, favorecendo a instauração de uma rede de sanções, estímulos e comprometimentos que tem o efeito de produzir funcionamentos psíquicos de um novo tipo. (2016, p. 322. Grifo dos autores)

Para os autores, as mudanças que ocorrem desde o final do século XX resultam na emergência de um novo sujeito que assume para si todos os riscos de sucesso ou fracasso. A noção de “empresário de si mesmo” cria a ilusão de que tudo o que pode ocorrer está ao alcance de decisões individuais. O problema é que não basta a capacidade calculista, visto que cresce a competição entre indivíduos em disputas, muitas vezes, pelos mesmos espaços. Consequentemente, nem todos podem vencer. Discursos que amparam essas novas lógicas exacerbam a meritocracia individual, configurando uma subjetividade predatória dos possíveis inimigos e acentuando, nos indivíduos, a tensão e a ansiedade (SENNETT, 2005; HAN, 2017a, 2017b; ANTUNES, 2005).

Para Dardot e Laval, “o sujeito produtivo foi a grande obra da sociedade industrial” (2016, p. 326. Grifo dos autores). Em termos históricos, a emergência desse novo sujeito decorre das transformações que se processam gradativamente, visto que o capitalismo como modo de produção muda as formas de acumulação do capital, da precarização do trabalho e das condições de vida. A imposição de um modo utilitarista de gestar o trabalho e de um agir com base no cálculo e no interesse pessoal assenta-se em fundamentos do Direito e de Políticas Sociais, ou seja, a norma da eficácia econômica continua misturada a outras concepções teóricas, ganhando homogeneidade em torno da racionalidade produtiva e avanço do conceito de “homem empresa”, que ganha centralidade com a consolidação histórica do neoliberalismo (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 326).

O que emerge de novo no contexto neoliberal é “o homem competitivo, inteiramente imerso na competição mundial” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 322. Grifo do autor). Esse sujeito assume para si a responsabilidade sobre a própria formação e seu destino. Não que ele consiga por si só produzir-se sem a existência de condições mínimas. No entanto, esse novo indivíduo é moralmente pressionado a fazer escolhas, a tomar as suas decisões, obviamente, assumindo, com exclusividade, as consequências de tais opções. Mas o que faz esse homem “novo” a aventurar-se é, acima de tudo, uma pseudoliberdade de fazer escolhas, de planejar o seu futuro, de buscar as melhores técnicas disponíveis no mercado para ampliar o seu capital humano e conseguir as melhores oportunidades, projetando-se ativamente e engajando-se na busca de realização em todas as dimensões de vida. É um sujeito predisposto a romper barreiras e a assumir riscos, embora estes possam parecer atenuados diante do que se vislumbra como oportunidade futura destinada aos que fizeram por merecer.

Trata-se do indivíduo competente e competitivo, que procura maximizar seu capital humano em todos os campos, que não procura apenas projetar-se no futuro e calcular ganhos e custos como o velho homem econômico, mas que procura sobretudo trabalhar a si mesmo com o intuito de transformar-se continuamente, aprimorar-se, tornar-se sempre mais eficaz. O que distingue esse sujeito é o próprio processo de aprimoramento que ele realiza sobre si mesmo, levando-o a melhorar incessantemente seus resultados e seus desempenhos. (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 333. Grifo dos autores)

Ser empresa de si mesmo e desenvolver o seu capital humano em vista da concorrência passa a ser a grande obsessão que orienta a nova subjetividade. Há muitas maneiras de atender ao objetivo da formação de si mesmo, podendo ser identificada por, pelo menos, duas estratégias distintas: a primeira refere-se à oferta de uma gama de treinamentos com base em escolhas pessoais; a segunda acha-se vinculada ao estabelecimento de metas e à mensuração dos resultados por parte da empresa. A primeira delas diz respeito ao uso de técnicas na linha do coaching, da programação neurolinguística, da análise transacional ou de procedimentos ligados às “escolas” ou “gurus”. São métodos em formato de training que pensam o governo de si e o governo dos outros, “tal como pensada na ética grega clássica: aquele que é incapaz de se governar é incapaz de governar os outros” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 339). Daí o empenho em aumentar o domínio de si, de superar o estresse, as relações com clientes ou colaboradores, chefes ou subordinados. O lema desse empreendimento pessoa é, conforme Dardot e Laval: “fazer o que for preciso para conseguir o que realmente se quer. Desde que se saiba o que se quer” (2016, p. 340-341).

O pano de fundo da tarefa de transformar-se em especialista, empregador de si, inventor e empreendedor de si mesmo, está na crença de que todos os recursos necessários para isso estão de posse do indivíduo, desde que seja criativo. É próprio da racionalidade neoliberal intimar o eu a agir sobre si mesmo como forma de fortalecer-se para a sobrevivência no mundo da competição. As técnicas empregadas possuem um fundo psicológico associado a fórmulas e depoimentos de sucesso para produzir um efeito psicológico de autoestima. A comunicação é outro campo de atuação de tais métodos, pois o controle de quesitos elementares dessa área torna possível o emprego da palavra certa para a obtenção do objetivo almejado como ocorre, em muitos casos, na venda de um determinado produto. É uma espécie de reprogramação cerebral, baseada na ativação de motivações e no reforço à autoestima que vai permitindo o planejamento e a projeção de objetivos claros, uma espécie de simplificação de metas, as quais atingem desde o campo dos relacionamentos até e, especialmente, o campo profissional e financeiro. O pressuposto dessa racionalidade é transformar o indivíduo, através da incorporação do princípio de domínio de si em vista do poder influenciar os outros, começando desde muito cedo com a criança, transformando-a em “empreendedora de seu saber” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 336).

As técnicas de training e coaching não são, no entanto, suficientes para garantir o desempenho almejado. “A instauração de técnicas de auditoria, vigilância e avaliação visa a aumentar essa exigência de controle de si mesmo e bom desempenho individual [...] A ‘avaliação’ tornou-se o primeiro meio de orientar a conduta pelo estímulo ao ‘bom desempenho’ individual” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 350-351. Grifos dos autores). A avaliação de desempenho é uma técnica utilizada, inicialmente, no setor privado, mas que foi se aprimorando a partir do estabelecimento de metas, da análise do rendimento cotidiano e da superação dos próprios limites. Tal prática aplica-se cada vez mais ao setor público, mesmo quando o critério da mensurabilidade é frágil. Esse é mais um elemento que reforça o quanto esse processo não é natural, mas resultante da “fabricação” do homem responsável, do sujeito que passa a ser mensurável pela sua participação enquanto força de trabalho, relativizando também a própria formação acadêmica. “A técnica de si mesmo é uma técnica de bom desempenho num campo concorrencial. Ela não visa apenas à adaptação e à integração, ela visa à intensificação do desempenho.” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 352-353).

No contexto dessas transformações são produzidos, no mundo do trabalho, novos conceitos que ganham centralidade: liberdade, autonomia e criatividade. Isso tudo constitui uma nova ética do trabalho com a conjunção entre as aspirações individuais e os objetivos de excelência da empresa; entre o projeto pessoal e o projeto da empresa. Isso somente é possível se cada indivíduo torna-se uma pequena empresa que pressupõe, segundo Dardot e Laval, concebê-la “como uma entidade composta de pequenas empresas de si mesmo” (2016, p. 334). Para os autores, “a empresa de si mesmo é uma ‘entidade psicológica e social, e mesmo espiritual’, ativa em todos os domínios e presente em todas as relações”, tornando possível a substituição do “contrato salarial por uma relação contratual entre ‘empresas de si mesmo’” (2016, p. 335. Grifos dos autores). A responsabilidade pessoal, a competência e a ambição são atitudes de primeira grandeza e constituem-se em amálgama dessa mentalidade empreendedora.

Como bem observa Ball (2014, p. 64) as mudanças provocadas pelo neoliberalismo são estruturais, mas também, subjetivas. Assim, diz Ball

o neoliberalismo envolve a transformação das relações sociais em calculabilidades e intercâmbios, isto é, na forma de mercado, e, portanto, a mercantilização da prática educacional - por exemplo, nas economias de valor aluno, por meio da remuneração de desempenho, gestão de desempenho e flexibilização e substituição do trabalho. As tecnologias neoliberais trabalham em nós para produzir um corpo docente e discente “dócil e produtivo”, e professores e alunos responsáveis e empreendedores

O modelo de empres, segundo Dardot e Laval, tende a ser a principal instituição distribuidora de regras, categorias e proibições, além de ter legitimidade para estabelecer regras e identidades sociais (2016, p. 361). De outra parte, o enfraquecimento “dos coletivos de trabalho” reforça o isolamento e deixa o indivíduo extremamente fragilizado e vulnerável (2016, p. 363).Assim, as suas escolhas deixam de ser possibilidade, visto que se apresenta um caminho único. O modo de agir reconhecido e apresentado como modelo a ser seguido reforça uma falsa ideia de governança, minimiza riscos e limita a subjetividade ao ideário de “empreender de si mesmo”. Consciente ou inconscientemente, o indivíduo assimila e aceita essas responsabilidades que lhe são imputadas.

O risco profissional, hoje normal, põe o indivíduo numa situação de vulnerabilidade constante, que os manuais de gestão interpretam positivamente como um estado de exaltação e enriquecimento (‘uma prova que nos faz crescer’). Quando o sujeito empresarial vincula seu narcisismo ao sucesso de si mesmo conjugado com o da empresa, num clima de guerra concorrencial, o menor ‘revés do destino’ pode ter efeitos extremamente violentos. A gestão neoliberal da empresa, interiorizando a coerção de mercado, introduz a incerteza e a brutalidade da competição e faz os sujeitos assumi-las como um fracasso pessoal, uma vergonha, uma desvalorização. (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 363)

A racionalidade neoliberal construída em cima de uma aparente liberdade de escolhas projeta toda a responsabilidade no próprio sujeito que tanto pode obter sucesso quanto fracasso (SENNETT, 2005). Mas será que é o indivíduo o verdadeiro premiado ou é a empresa que almeja aumentar de forma contínua a produtividade e seus lucros? Será mesmo que essa nova racionalidade, apoiada no caráter natural da reciprocidade do mercado, é a consagração capitalista onde todos ganham? “Se o indivíduo deve ser aberto, ‘sincrônico’, ‘positivo’, ‘empático’, ‘cooperativo’, não é para a felicidade dele, mas sobretudo e em primeiro lugar para obter do ‘colaborador’ o desempenho que se espera dele” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 343-344. Grifos dos autores). Essa ética individualista parece uma “oportunidade de jogar todos os custos nas costas do sujeito, por mecanismos de transferência do risco que não tem nada de ‘natural’” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 350. Grifos dos autores).

A pseudoliberdade de escolha implica, em qualquer das hipóteses, o aprofundamento de um modo de vida orientado por uma lógica sem retorno. Jogar a partida exige, nesse contexto, desenvolver uma das principais qualidades que se espera do indivíduo neoliberal: a ‘mobilidade’, associada ao desapego e à indiferença que resulta dele. Por sua vez, esse tipo específico de desprendimento corrói os laços sociais de generosidade, fidelidade, lealdade, solidariedade e de tudo o que faz parte da reciprocidade social e simbólica no cotidiano do trabalho (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 365). Dessas novas relações de trabalho, resulta uma ética individualista que enfraquece a coletividade e corrói as relações e a própria personalidade, ou seja, destrói o caráter (SENNETT, 2005, p. 13-76).

Assumir todos os riscos por conta própria é o preço da escolha de produzir-se em todos os campos, desde o corpo, às predisposições psicológicas e ao planejamento da sonhada estabilidade financeira. Tudo parece depender da capacidade de fazer planejamento e montar boas estratégias tendo o próprio eu como principal recurso. É dessa maneira que a racionalidade neoliberal atua “ordenando os meios de governá-lo para que ele se conduza realmente como uma entidade em competição e que, por isso, deve maximizar seus resultados, expondo-se a riscos e assumindo inteira responsabilidade por eventuais fracassos” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 328). Afinal, continuam os autores, “trata-se de fazer com que a norma geral de eficácia que se aplica à empresa seja substituída, no nível individual, por um uso da subjetividade destinado a melhorar o desempenho do indivíduo” (2016, p. 343).

O novo sujeito, guiado por uma racionalidade de desempenho, vive alguns dilemas, mesmo que estes sejam atenuados em nome da liberdade de escolhas e da autonomia pessoal. Ele deve entregar-se integralmente ao trabalho e curvar-se às exigências que lhe são impostas. A liberdade torna-se uma obrigação de desempenho, visto que a gestão neoliberal de si mesmo consiste em “fabricar para si mesmo um eu produtivo, que exige sempre mais de si mesmo e cuja autoestima cresce, paradoxalmente, com a insatisfação que se sente por desempenhos passados” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 345). É a crença suprema de que a fonte da eficácia está no indivíduo e não mais numa autoridade externa. Daí a necessidade de um trabalho intrapsíquico em busca de motivações profundas e, dessa forma, “a coerção econômica e financeira transforma-se em ‘autocoerção’ e ‘autoculpabilização’, já que somos os únicos responsáveis por aquilo que nos acontece.” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 245. Grifos dos autores).

Há elementos patológicos que completam o quadro clínico desse sujeito obcecado pelo próprio desempenho, pelo sucesso, pela realização. O impacto de possíveis fracassos é proporcional ao investimento emocional, psicológico, de tempo e até de vínculos perdidos. Se o sucesso vem, o efeito narcísico manifesta-se; o revés, no entanto, não deixa de produzir seus efeitos com intensidade também proporcional (HAN, 2017a; 2017b). O estresse, o assédio e outros sintomas produzem patologias mentais e estão imbricados à intensificação do trabalho, aos fluxos tensos e às consequências perversas da redução das condições de trabalho sobre as exigências de produtividade (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 362). Isso faz do neossujeito um indivíduo de dupla fisionomia: “o rosto triunfante do sucesso sem pudor e o rosto deprimido do fracasso diante dos processos incontroláveis”, assim, condenado a um jogo duplo: “mestre em desempenhos admiráveis e objeto de gozo descartável” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 374). A racionalidade de desempenho pressupõe um indivíduo autoprogramado cujo fim é o bom desempenho, a concorrência e o cálculo de interesse pessoal. Daí a crescente oferta de situações que submetem esse indivíduo à lógica do mercado, tecendo a subjetividade concorrencial.

O que se observa é uma tendência crescente de aprofundamento dessa racionalidade instrumental. A racionalidade neoliberal tende a tomar conta dos indivíduos que se consideram sujeitos de si mesmos e as consequências já são perceptíveis e traduzidas em aumento de ansiedade, depressão, hiperatividade, transtornos de personalidade limítrofe, síndrome de Burnout, entre outros, que são sintomas em crescimento no século XXI, o que leva Byung-Chul Han a afirmar que será um século com problemas neuronais, mais do que bacteriológico ou viral (2017b, p. 7). Nas obras: Sociedade da transparência (2017a) e Sociedade do Cansaço (2017b), Han analisa tendências na sociedade atual e conclui que elas produzem vazios de sentido da vida. Dessa forma, é preciso imaginação sociológica e epistemológica para identificar, diagnosticar qualitativamente o que está em curso, bem como construir alternativas sustentadas em outras racionalidades para além da racionalidade neoliberal. Por isso, é fundamental fortalecer iniciativas amparadas em perspectivas democráticas, na coletividade e na política do comum (DARDOT e LAVAL, 2017). A educação tem, neste sentido, um papel importante de formação humana e de preparar pessoas para viverem em sociedade. Essa temática será aprofundada na sequência.

Para Além da Racionalidade do Desempenho: O Papel Crítico da Universidade na Formação de uma Cultura Democrática

A Universidade como instituição socioeducativa não fica isenta das consequências dessa nova racionalidade neoliberal. Além de receber indivíduos que internalizaram algumas das características da racionalidade de desempenho, as próprias instituições ajudam, muitas vezes, a reforçar discursos de caráter meritocrático, fortalecendo subjetividades neoempresariais. Para compreender como se dá o entrelaçamento entre a dinâmica social e a Universidade, é preciso problematizar questões educacionais mais profundamente. Pensar o papel da Universidade numa perspectiva de resistência ao modelo da racionalidade de desempenho exige compreendê-la para além de uma concepção instrumental, ou seja, como instrumento para modelar alguma coisa em alguém.

O problema, como aponta Biesta (2013), é que, para os dias de hoje, é preciso compreender a educação e o ensinar para além do controlar e normatizar os indivíduos. Antes, é preciso refletir sobre a responsabilidade pela “vinda ao mundo” de seres singulares, únicos, e também conscientes de sua responsabilidade pelo mundo, um mundo de pluralidade e diferença. Ao colocar-se o desafio para as instituições de Educação Superior para além da ideia de educação instrumental, assume-se a tarefa de repensar os processos educacionais dentro de uma concepção possível. Como afirma Biesta, “não devemos abordar a educação do ponto de vista de um educador tentando produzir ou liberar alguma coisa. Em lugar disso, afirmo que devemos focar as maneiras pelas quais o novo início de cada indivíduo pode se tornar ‘presença’” (2013, p. 26. Grifo do autor).

Para Biesta, cresce um discurso educacional assentado no conceito de aprendizagem que adentra as instituições educativas, tanto as de educação básica quanto as de ensino superior. É necessário estar atento porque, nessa mudança, ocorre um reducionismo da linguagem da educação em detrimento da linguagem da aprendizagem, identificada com a lógica do mercado que é satisfazer o cliente. O foco da reflexão em torno da aprendizagem propõe novas teorias baseadas no aprender fácil e na emancipação dos estudantes, no sentido de colocar o estudante como o centro e o professor, coadjuvante. Além disso, acaba por estimular um individualismo autodidata ao propor um aprendizado para vida toda1 e a erosão do Estado de bem estar social, comprometendo em grande medida os direitos sociais coletivos.

Em alternativa à linguagem da aprendizagem, Biesta propõe que se deve retomar a linguagem da educação, baseando-se principalmente em três pontos: O primeiro diz respeito à confiança, pois a educação consiste em correr riscos. O aprendente tem que estar disposto a isso. Não se pode prever resultados da aprendizagem.A educação pode percorrer caminhos inesperados e a confiança sem fundamento específico. O segundo ponto trata da violência transcendental, no qual a educação é vista sob o ponto de vista dos processos de aprendizagem, ainda que numa perspectiva de algo que possa ser aprendido de fontes externas. O autor propõe que se entenda a aprendizagem como resposta, como uma tentativa de reorganizar e reintegrar, mas não de dominar, internalizar e adquirir. A educação diz respeito à individualidade, à subjetividade dos estudantes como seres únicos e não simplesmente repetidores do que já está dado. “A aprendizagem como aquisição consiste em obter mais e mais, a aprendizagem como resposta consiste em mostrar quem você é e em que posição está”. Assim sendo, não se pode encarar a educação como uma simples aprendizagem agradável e fácil, em que o aluno é sempre feliz. A educação envolve uma violência transcendental (BIESTA, 2013, p. 47). O terceiro e último ponto envolve a responsabilidade do educador pela subjetividade do estudante. Se a educação abarca questões difíceis e é por isso que ela torna-se possível, o educador possui um papel importante no sentido de assumir a responsabilidade por algo que não se conhece e não se pode conhecer antecipadamente. Não é um papel de saber o resultado das ações educativas sabendo o resultado dos esforços e intervenções educacionais. A educação não é um processo de inserção e adaptação, ou mesmo de produção de uma determinada ordem social, mas se refere à formação de seres únicos, singulares. O educador é um arquiteto desafiado a duas funções: o de criação e o de constante desfazer dessa criação num espaço de outridade e diferença. Ao educador cabe a reflexão constante do que se vive, tendo em mente a ideia do universal, pensando no contexto geral, do conhecimento sobre o que é ser humano e a complexidade das relações em um contexto de globalização, onde os sujeitos estão a mercê de uma subjetividade condicionada a sujeitos consumidores (BIESTA, 2013).

Biesta propõe, ainda, que é preciso entender a concepção de ser humano como radicalmente aberto. Tornando-se sujeito na relação com o outro, é preciso que a educação auxilie a pensar condições para a ação humana. A partir dessas visões e das suas relações com a educação é que se pode pensar em sociedades alternativas e em resistências à racionalidade do desempenho. Pode-se, pois, “desfazer-se da ilusão de que o sujeito alternativo poderia ser encontrado de uma forma ou de outra como ‘já aí’ [...] A questão se resume, então, em saber como articular a subjetivação à resistência ao poder”. (DARDOT, LAVAL, 2016, p. 397-399. Grifo dos autores).

Possibilidades Educativas Numa Perspectiva Democrática

O impacto da racionalidade neoliberal do desempenho incide diretamente sobre as tendências educacionais globais na atualidade que incidem, fortemente sobre a educação superior, conforme Marcon (2015, p. 264-286), Ball (2014), Santos (2004), Biagini e Peychaux (2014), Laval (2004), entre outros. Documentos e acordos de organismos transnacionais estabelecem diretrizes curriculares e orientações político-educativas para diferentes nações, baseando-se principalmente no desenvolvimento de habilidades e competências para o modelo neoliberal de sociedade. Aliando-se a esse modelo de ensino, os testes padronizados de desempenho dos estudantes são apresentados com o propósito de garantir a qualidade da educação, mas ocasionam, muitas vezes, um engessamento do processo de ensino e são focados num caráter exclusivamente mercadológico2.

É importante frisar, como afirma Biesta (2012, p. 810), que os testes padronizados também são utilizados em nível nacional visando oferecer informações acerca do desempenho relativo de escolas. “Eles têm uma lógica complicada, combinando elementos de responsabilização (accountability) e de escolha com um argumento de justiça social que diz que todos devem ter acesso à educação de mesma qualidade”. Os dados dos testes são empregados para identificar as ditas “escolas mal sucedidas” e, em alguns casos, os “professores mal sucedidos” nas escolas. Isso reduz a ação do educador, pois ele acaba cedendo à pressão dos testes e submetendo-se ao fazer docente em função dos resultados, do contrário o seu trabalho e, consequentemente, a sua escola “não possuem qualidade”.

Essa tendência cria problemas no espaço escolar e no próprio entendimento do que é educação, bem como das instituições educativas. Com o fortalecimento e a disseminação dos valores éticos neoliberais, todas as esferas sociais submetem-se a uma conduta mercadológica, incluindo a Universidade que, em parte, opera na formação do sujeito empresa, da racionalidade do desempenho, da competição e da autocoerção e autoculpabilização. Por estar disseminada em todos os espaços sociais, essa nova racionalidade ganha espaço no âmbito educacional que, progressivamente, amplia-se para todas os níveis e modalidades, transformando o ato de educar num instrumento de formação da subjetividade neoliberal. A educação passa a ser pensada numa lógica exclusiva de uma aprendizagem instrumental. A preocupação em como o aluno aprende e o que ele deve aprender tende a instrumentalizar a educação para a construção de uma subjetividade neoliberal, de sujeitos adaptados, flexíveis e motivados (BIESTA, 2013).

Essas questões gerais e os caminhos que a educação tem tomado, especialmente nas últimas décadas, necessitam de um olhar mais aprofundado se desejamos formular críticas e propor alternativas ao modelo de educação neoliberal calcano numa racionalidade que interfere na própria experiência dos seres humanos no mundo. “Há muitas discussões sobre os processos educacionais e como melhorá-los, mas muito poucas acerca do que esses processos supostamente causarão” (BIESTA, 2012, p. 814).

A constituição de um sujeito crítico pode contribuir para superar uma concepção essencialista e naturalizada de desigualdade, pois, de acordo com o autor, não se pode conhecer a natureza/essência do ser humano, muito menos educar numa perspectiva de moldar o sujeito para alguma coisa. A Universidade, como bem observa Santos (2005) tende a focar no desenvolvimento econômico, no desejo do mercado ou na satisfação do cliente e perde-se as deliberações sobre a educação em si, ou seja, uma educação emancipadora. Para Biesta (2012, p. 816),

há até possibilidades emancipatórias na nova linguagem da aprendizagem, na medida em que ela pode empoderar indivíduos para assumir o controle de suas próprias agendas educacionais. Mas há também vários problemas ligados a essa nova linguagem - e não se deve subestimar as formas como a linguagem estrutura as formas possíveis de pensar, fazer e raciocinar em detrimento de outras formas de pensar, fazer e raciocinar.

Ao pensar a educação é preciso ter em mente que ela constitui-se num espaço aberto de construção de oportunidades. Para uma experiência emancipadora no mundo, é importante que as crianças sejam aguardados e que as propostas educacionais sejam constituídas em diálogo com os sujeitos. É preciso superar a ideia de que a educação deva servir a uma formação assujeitada para um determinado tipo de sociedade. Os educadores, sujeitos inseridos nas práticas educativas em diferentes níveis, desde a infantil até a superior, tem uma função primordial questionar e constantemente aprendero, não sendo submissos ao lifelong learnig no sentido de desenvolvimento econômico. É preciso criar condições para os estudantes libertarem-se de um sistema educacional e social que programa racionalmente as subjetividades e os comportamentos.

Concentrar-se na vinda de novos inícios e novos iniciadores ao mundo não significa que os educadores devem simplesmente se manter à parte e deixar as coisas acontecerem - o que é a razão de a linguagem da aprendizagem não ser a linguagem da educação. Ao mesmo tempo, entretanto, o seu compromisso não deve tentar produzir um tipo particular de subjetividade, não deve tentar gerar um tipo particular de ser humano segundo uma definição particular do que significa ser humano. A responsabilidade do educador é uma responsabilidade pelo que vai acontecer, sem conhecimento do que vai acontecer. (BIESTA, 2013, p. 192).

O desenvolvimento de um pensamento crítico, da capacidade de argumentação e percepção do Eu enquanto humano, vulnerável e social, é pressuposto para construir a resistência ao avanço de políticas neoliberais no campo educacional e nas formas de subjetivação-sujeição do sujeito empresa na atualidade. Compreender os processos e as decisões políticas é importante para o “desenvolvimento de formas políticas de ser e fazer (subjetivação), justamente como um forte foco na socialização em uma ordem de cidadania particular pode realmente levar à resistência, que, em si, pode ser encarada como um sinal de subjetivação” (BIESTA, 2012, p. 821).

Quando se deixa de refletir sobre esses os aspectos políticos da educação e não se tem clareza sobre as visões acerca dos objetivos e seus fins, correm-se riscos, como aponta Biesta (2012, p. 823), de as estatísticas e os rankings tomarem essas decisões por nós. “Precisamos, portanto, manter a questão da finalidade - a questão do que constitui uma boa educação - em posição central em nossas discussões educacionais e empreendimentos mais amplos”.

As instituições educativas em todos os níveis precisam colocar-se na condição de agente, pois são responsáveis tanto pelos que são iniciantes quanto pela formação profissional. Nesse sentido, o trabalho docente, que não é um trabalho qualquer na medida em que implica em ajudar a compreender os fenômenos em curso e também projetar novas perspectivas. Toda acao docente interfere no futuro, por isso, são políticas. Daí o desafio de uma formação crítica dos agentes sociais, independente da idade, desenvolvendo a responsabilidade pelas suas ações e pelas ações que irão produzir em relação aos outros. Isso implica repensar as formas de subjetivação neoliberal de tal forma que as práticas sociais não estejam mais besaeadas “numa noção de racionalidade ou autonomia, mas ligada à ideia de um tipo de singularidade que vem à luz na capacidade responsável de responder à alteridade e à diferença” (BIESTA, 2012, p. 820).

O desafio é pensar numa educação capaz de superar o senso comum no sentido de ingenuidade e fragmentação e, por outro lado, colocar em pauta as reflexões sobre as questões educacionais, tanto no que diz respeito à qualidade, quanto àquelas que tem uma base nostálgica que presupõe um tempo em que a educação era perfeita e a sociedade era melhor. “A tarefa que temos pela frente hoje não é a de não reproduzir o passado, mas antes a de perguntar como devemos responder educacionalmente às questões e desafios que hoje nos confrontam” (BIESTA, 2013, p. 132). Para Biesta (2013), o fato de vivermos numa comunidade de racionais, não se pode negar nem esquecer que, enquanto educadores, essa é uma das principais razões para as escolas existirem. A nossa tarefa enquanto educadores é assegurar que existam oportunidades dentro das diferentes instituições educativas de tornar possível a existência de oportunidades para que os alunos sejam sujeitos criativos e capacitados para contrapor à racionalidade do desempenho. Nesse sentiodo, é fundamental pensar possibilidade de resistência, começando nas instituições educativas pois, como dizem Dardot e Laval (2017), “essa norma da concorrência não nasce espontaneamente em cada um de nós como produto natural do cérebro: não é biológica, é efeito de uma política deliberada”.

Uma perspectiva que se apresenta fecunda para superar a lógica competitiva tem com base uma concepção da pessoa democrática. Nesse sentido, as reflexões de Dewey ajudam a pensar no sujeito democrático que se constitui efetivamente a partir da educação e da prática democrática.

Para Biesta (2013, p. 173), a educação e a democracia em Dewey são entendidas como interligadas em decorrência das interações sociais e dos interesses compartilhados conscientemente. “A ideia do sujeito como um formador das condições que modelam a subjetividade é central na compreensão da pessoa democrática apresentada por Dewey”.

Biesta (2013) propõe algumas questões que escolas e instituições educacionais podem refletir visando a uma educação democrática. É na ação que somos sujeitos, pois há outro implicado numa relação de troca. Não se aprende a ser um sujeito, mas se aprende com o fato de ser e ter sido um sujeito. Isso implica pensar não tanto em como as instituições educativas podem ensinar os estudantes a serem cidadãos democráticos, mas em quantas oportunidades de experiências democráticas existem no contexto escolar e como os estudantes podem iniciar a ação num mundo de pluralidade e diferença. Isso requer que as instituições educativas em todos os níveis não estejam engessadam e reprodutoras de conteúdos exigidos por currículos elaborados por pressões do mercado. O desafio, segundo Biesta, é compreender que as escolas

não mostram interesse pelo que os estudantes pensam ou sentem, onde o currículo só é visto como matérias que precisam ser inseridas nas mentes e nos corpos dos estudantes, e onde nunca se leva em conta a questão do impacto dos inícios de uma pessoa sobre as oportunidades de os outros começarem, são claramente lugares onde é extremamente difícil agir e ser um sujeito democrático. (BIESTA, 2013, p. 184. Grifo do autor).

Essa responsabilidade não pode ser vista como exclusiva das instituições escolares. A sociedade em geral possui uma parcela de compromisso na constituição do cidadão democrático. Biesta questiona-se a respeito de quanta ação é possível na sociedade. Não é possível pensar em uma educação para a democracia constituída somente pelos sujeitos, quando nem todos os sujeitos têm permissão para agir, ou somente alguns grupos têm permissão. Além, disso, é importante questionar se todos os cidadãos desejam participar das discussões republicanas sobre educação e outras políticas sociais. Dessa forma, com diz Biesta, “não podemos simplesmente culpar a educação pelo fracasso da democracia. A única maneira de aperfeiçoar a qualidade democrática da sociedade é tornar a sociedade mais democrática, isto é, providenciar mais oportunidades para a ação” (BIESTA, 2013, p. 186).

Há, portanto, duas considerações importantes no que concerne aos interesses dos educadores e responsáveis pela educação: primeiro, que educação sozinha não pode salvar a democracia - mas podem possibilitar espaços de ação, onde os diferentes sujeitos tenham a possibilidade de experienciar a participação como sujeitos; segundo, que a própria sociedade também é responsável pela educação democrática, pois “na medida em que a ação e a subjetividade são possíveis nas escolas e na sociedade, as escolas podem executar a tarefa mais modesta e mais realista de ajudar as crianças e os estudantes a aprender e a refletir sobre as frágeis condições para que todas as pessoas possam agir, para que todas as pessoas possam ser um sujeito” (BIESTA, 2013, p. 190).

Dentro de uma perspectiva crítico-dialética a educação tem de ser pensada numa dupla possibilidade: reforçar os discursos calcados nos pressupostos neoliberais que individualizam o sucesso ou fracasso nas instituições educativas ou, aprofundar as potencialidades do desenvolvimento de reflexões críticas e emancipadoras. O pressuposto neoliberal do mercado, assentado na concorrência e competição, não pode se estendido para asinstituicoes educativas. No âmbito das instituições educacionais, conforme preceitos estabelecidos pela Constituição de 1988 (BRASIL, 1988), a função é garantir “o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Aqui há uma compreensão de educação que, mesmo sofrendo críticas, aponta para horizontes distintos daqueles defendidos pelos neoliberais.

Considerações Finais

No texto, problematizou-se o modelo de subjetivação que vem ganhando espaço na sociedade contemporânea e que resulta num tipo de racionalidade de desempenho que avança num controle interior de cada sujeito, reduzindo a própria condição humana. Através de uma série de mecanismos de assujeitamento, cresce cada vez mais uma falsa ideia de liberdade e autocontrole subjetivo, mas que atende essencialmente aos interesses do mercado econômico. Fica claro que a subjetividade de desempenho atua diretamente na perspectiva da produtividade e no fortalecimento do consumo.

Os neossujeitos, como denominam Dardot e Laval (2016), vivem como se todas as esferas da vida dependessem unicamente de seu desempenho, e que automaticamente os seus fracassos são assumidos como responsabilidades exclusivamente individuais. Isso resulta num ser humano profundamente angustiado e ansioso que encontra dificuldades para pensar em formas alternativas de vida em sociedade para além da competitividade. Não é surpreendente a ampliação das doenças mentais e da medicalização na atualidade em função disso.

É no contexto desse diagnóstico que a educação ganha novas significações e é desafiada a contribuir numa reflexão crítica do modelo de sujeito como empresa de si mesmo e, ao mesmo tempo, ajudar a pensar na formação de sujeito democráticos e colaborativos. As tendências do modelo concorrencial e competitivo são evidentes e suas consequências são relativamente previsiveis. Diante dessa lógica competitiva e conocorrencial é imprescindiviel pensar em novas formas de sociabilidade. A educação para a vida democrática abre um conjunto fecundo de possibilidades e as instituições educativas podem contribuir nessa formação em diferentes níveis. A educação infantil tem suas peculiariedades, assim o como o ensino fundamental e médio. À educação superior cabe o desafio de preparar pessoas qualificadas profissionalmente, mas também capacitadas para viverem socialmente. À pós-graduação cabe o desafio de contribuir com pesquisas sobre os mais diversos temas e problemas para a superação das divisões e conflitos entre os humanos, bem como, ajudar na superação do sofrimento humano.

Daí o desafio de aprofundar as críticas ao modelo de subjetividade que o neoliberalismo projeta, bem como estabelecer contrapontos que outras perspectivas de vida social, de produção da sobrevivência, de novas formas de sociabilidade. O grande desafio está em como superar a visão que parte dos educadores e gestores assumiram em relação ao discurso em defesa de um modelo empresarial de educação. Como bem adverte Laval (2004), a educação tem de formar sujeitos capacitados para viverem em sociedade. A lógica da concorrência e da competição tende a afrontar permanentemente as pessoas nas disputas por melhores colocações e por ranqueamentos. Enquanto essa lógica adentra as subjetividades, o quadro fica muito complexo. Nessa lógica competitiva, não há espaço para todos.

A educação para uma vida democrática e cidadã assenta-se em outros pressupostos que são negados pela ideologia neoliberal. A educação instrumental pressupõe a transgressão dos processos de constituição de um sujeito que vive coletivamente. Com base nos argumentos apresentados, reforça-se a tese de que é possível educar para a convivência social, que é sempre tensa e permeada de conflitos. Educar para a democracia implica a formação para a resolução desses conflitos e tensões. Essa preparação somente é possível pela educação em suas múltiplas expressões e formas. Essas tarefas cabem a todas as instituições educativas, mas a Universidade tem um papel fundamental de formadora de ideias através da qualificação de profissionais nos diferentes níveis, desde a graduação, aos especialistas, mestre e doutores.

A educação superior é desafiada a ampliar os horizontes de intervenção, para além das lógicas concorrências e que primam pelo aligeiramento e um ensino instrumental. Como bem observam Santos (2005; 2010, p. 187-233) e Nussbaum (2010) as humanidades têm um papel fundamental na formação humana crítica, cidadã e democrática em todas as áreas do conhecimento. Antes de qualquer formação profissional específica somos seres que precisamos aprender a viver juntos como bem observa Dewey (1079).

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1O conceito de life long learnig persegue os sujeitos neoliberais como uma atualização constante semelhante a aparelhos eletrônicos. Ou o sujeito está sempre em formação (atualização), ou seu sistema para de funcionar. No passado, a aprendizagem ao longo da vida era vista como um bem pessoal e como um aspecto inerente à vida democrática. Hoje a aprendizagem ao longo da vida é entendida em termos da formação do capital humano e como investimento para o desenvolvimento econômico (BIESTA, 2006, p. 169).

2Talvez a manifestação mais proeminente desse fenômeno possa ser encontrada em estudos comparados internacionais tais como as Tendências nos Estudo Internacional de Matemática e Ciências (Trends in International Mathematics and Science Study - TIMSS), o Progresso no Estudo Internacional de Compreensão da Leitura (Progress in International Mathematics and Science Studies - PIRLS) e o Programa de Avaliação Internacional de Alunos da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (Programme for International Student Assessment - PISA - DECD). (BIESTA, 2012, p. 810).

Recebido: 15 de Dezembro de 2020; Aceito: 03 de Maio de 2021; Publicado: 02 de Junho de 2021

Correspondência ao Autor1 Telmo Marcon E-mail: telmomarcon@gmail.com Universidade de Passo Fundo Passo Fundo, RS, Brasil CV Lattes http://lattes.cnpq.br/7659184664426945

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