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Revista Internacional de Educação Superior

versão On-line ISSN 2446-9424

Rev. Int. Educ. Super. vol.8  Campinas  2022  Epub 12-Ago-2022

https://doi.org/10.20396/riesup.v8i0.8659242 

Artigos

O Programa Ciência sem Fronteiras nas Atas dos Conselhos Superiores da CAPES: Desenvolvimento e Suspensão da Política Pública de Mobilidade Estudantil na Graduação

El Programa Ciencia sin Fronteras en las Actas de los Consejos Superiores de la CAPES: Desarrollo y Suspensión de la Política Pública de Movilidad Estudiantil de Grado

Viviane Xavier de Araujo Cruz1 
lattes: 3044024975934769; http://orcid.org/0000-0003-4667-9322

Marcelo Eichler2 
http://orcid.org/0000-0001-5650-9218

1,2Universidade Federal do Rio Grande do Sul


RESUMO

Este trabalho teve como objetivo analisar a política pública de mobilidade estudantil na graduação, que ocorreu por meio do Programa Ciência Sem Fronteiras - CsF, implantada em 2011 e suspensa oficialmente em 2016. A pesquisa, de caráter exploratório, analisou as 20 atas do Conselho Superior e as 40 atas do Conselho Técnico Científico da Educação Superior da CAPES, órgão gestor do programa, publicadas de janeiro 2011 a maio de 2016, separando-as nos dois mandatos do governo Dilma. De forma híbrida, utilizaram-se a análise textual e a análise de conteúdo, sendo que a primeira evidenciou, com apoio do software Iramuteq, cinco classes a partir da Classificação Hierárquica Descendente: Desenvolvimento Humano; Setor Privado; Orçamento e Execução; Proficiência em Inglês; e Desenvolvimento da Indústria e das Universidades. Assim, à luz da teoria do ciclo de políticas públicas de Stephen Ball, buscou-se discutir por que a política pública de mobilidade estudantil na graduação foi suspensa e não reorientada ou reformulada. Evidenciou-se uma mudança de entendimento por parte dos conselhos da CAPES acerca do programa conforme havia mudanças de governo para, por fim, entenderem que, para desenvolver a indústria (um dos principais objetivos do CsF segundo o Decreto que o instituiu), deveria se focar não no desenvolvimento de estudantes em nível de graduação, mas em nível básico, pois seriam pessoas com essa formação de que precisariam para ocupar as fábricas. O Ministério da Educação chegou a sugerir priorizar ações de mobilidade de alunos de ensino médio, mas isso não chegou a se concretizar.

PALAVRAS-CHAVE: Internacionalização da educação; Definição da política educacional; Educação para o trabalho; Divisão do trabalho; Análise de conteúdo; Análise textual

RESUMEN

Este estudio tuvo como objetivo analizar la política pública de movilidad estudiantil de grado, que ocurrió a través del Programa Ciencia sin Fronteras - CsF, implementada en 2011 y suspendida oficialmente en 2016. La investigación exploratoria analizó las 20 actas del Consejo Superior y las 40 actas del Consejo Técnico Científico para la Educación Superior de la Capes, el órgano de gestión del programa, publicadas entre enero de 2011 y mayo de 2016, separándolas en los dos términos de gobierno de Dilma. De manera híbrida, se utilizaron el análisis textual y el análisis de contenido, de los cuales el primero evidenció, con el apoyo del software Iramuteq, cinco clases a partir de la Clasificación Jerárquica Descendiente: Desarrollo humano; Sector Privado; Presupuesto y ejecución; Dominio del Inglés; y Desarrollo de la industria y de las universidades. Así, a la luz de la teoría del ciclo de políticas públicas de Stephen Ball, buscamos discutir por qué la política pública sobre movilidad estudiantil en los cursos de graduación ha sido suspendida y no redirigida o reformada. Se puso un cambio en la comprensión del programa por parte de los consejos de CAPES mientras habia cambios de gobierno, y llegaron a entender que para desarrollar la industria (uno de los principales objetivos del CSF según el Decreto que lo instituyó) no deberia centrarse en el desarrollo de los estudiantes en el nivel de grado, sino en el nivel básico, porque serían personas con esa formación que necesitarían para ocupar las fábricas. El Ministerio de Educación incluso sugirió priorizar las acciones de movilidad para estudiantes de la escuela secundaria, pero esto no se materializó.

PALABRAS CLAVE: Internacionalización de la educación; Definición de política educativa; Educación para el trabajo; División del trabajo; Análisis de contenido; Análisis textual

ABSTRACT

This study aimed to analyze the public policy of student mobility at undergraduate level, which took place through the Science Without Borders Program - CsF, implemented in 2011 and officially suspended in 2016. This exploratory research analyzed 20 minutes of the Superior Council and 40 minutes of the Technical Scientific Council for Higher Education of Capes, the program's managing body, published from January 2011 to May 2016, separating them in the two terms of Dilma administration. A hybrid model which combines textual and content analysis were used, having the first been carried out on Iramuteq software and revealing five classes from the Descendant Hierarchical Classification: Human Development; Private Sector; Budget and Execution; Proficiency in English; and Development of Industry and Universities. Thus, in the light of Stephen Ball's public policy cycle theory, we sought to discuss why public policy on student mobility in undergraduate courses was suspended and not reoriented or reformulated. In addition to that, it was shown a change of understanding by CAPES councils about the program as government changes to ultimately understand that, in order to develop the industry (one of the main objectives of the CSF according to the Decree that instituted it), it should focus on developing people at the basic level, not developing students at the undergraduate level, since those would be people with the training they would need to occupy the factories. The Ministry of Education even suggested prioritizing mobility actions for high school students, but this did not materialize.

KEYWORDS: Internationalization of education; Definition of educational policy; Education for work; Division of labor; Content analysis; Textual analysis

1 Introdução1

A internacionalização da educação superior tem se tornado cada vez mais relevante nas discussões acerca de políticas públicas de educação. Conceito de grande magnitude, que engloba uma série de ações, a internacionalização da educação tem como principal elemento a mobilidade acadêmica (VAN DAMME, 2001; TEICHLER, 2004).

A importância atribuída ao fortalecimento do ensino superior para o desenvolvimento dos países foi exaustivamente defendida na Conferência Mundial de Ensino Superior organizada pela UNESCO, em Paris, em 1998. Dela, saiu a Declaração Mundial sobre Educação Superior no Século XXI: Visão e Ação, segundo a qual uma educação superior subsidiada por instituições de pesquisa que formem adequadamente massa crítica é essencial para garantir um genuíno e sustentável desenvolvimento aos países e atenuar as assimetrias que separam os países em desenvolvimento dos países desenvolvidos.

Nesse documento também se encontra a tese de que a internacionalização, envolvendo atividades conjuntas entre as universidades, é um dos meios para o desenvolvimento institucional e deve ser vista como um processo transformador no âmbito da educação superior na medida em que significa a inserção de uma dimensão internacional ou intercultural em todos os aspectos da educação e da pesquisa, possibilitando o enfrentamento dos problemas e dilemas resultantes de conjunturas política e socioeconômica complexas. Essa ideia, que vem ganhando fôlego desde o fim da Segunda Guerra Mundial como instrumento para reconstrução dos países de forma a receberem assistência técnica para o desenvolvimento (WIT, 2008), é reiterada na Conferência Mundial sobre Ensino Superior, intitulada “As novas dinâmicas do ensino superior e pesquisas para a mudança e o desenvolvimento social”, realizada pela UNESCO, em 2009, em Paris (CASTRO & CABRAL NETO, 2012).

Nesse contexto, em 2011, pela primeira vez na história do Brasil pensou-se em implementar uma política pública em larga escala de mobilidade estudantil internacional na graduação. O Programa Ciência Sem Fronteiras - CsF surgiu naquele ano com a meta de conceder, até 2014, 101 mil bolsas de mobilidade estudantil e docente, com grande volume de recursos envolvido. Nessa primeira fase, 79% das bolsas foram de graduação-sanduíche, cujo financiamento público nunca tinha sido priorizado dessa forma.

No entanto, após o impedimento da Presidenta Dilma Rousseff, as bolsas para a graduação foram suspensas. Em setembro de 2016, em entrevista ao jornal Estado de São Paulo, o recém-empossado Ministro da Educação sustentou que o programa teria eficácia discutível, não atingindo a população de baixa renda e tendo pouco impacto científico (ESTADO DE SÃO PAULO, 2016).

Segundo ele, seriam eliminadas do programa as bolsas para graduação porque o custo era muito alto e comparou o recurso gasto com o que seria gasto em um programa federal de merenda escolar. Afirmou, então, que o MEC optou por priorizar intercâmbios de pós-graduandos e de alunos de ensino médio de baixa renda.

Ao encontro dessa ideia, em fevereiro de 2016, em reunião extraordinária do Conselho Superior da CAPES, entidade gestora do programa, um dos conselheiros já havia pontuado que, apesar da importância do Programa Ciência sem Fronteiras para o setor empresarial, uma vez que oportuniza que o cidadão saia do país e volte “com uma visão mais crítica”, a prioridade deve ser a formação de pessoal na educação básica “porque são as pessoas com esse nível de ensino as responsáveis pela produção nas fábricas”.

Tudo isso dentro de um contexto que Casara (2017) chamou de “Estado Pós-Democrático”, que, segundo ele, é a forma atual de se governar em que se retoma o neoliberalismo economicamente e politicamente há a preocupação com a manutenção da ordem e a ampliação das condições de acumulação de capital. Dessa forma, o mercado, a circulação do dinheiro e dos bens ganham mais relevância que os direitos fundamentais, os quais passam a representar um obstáculo à mercantilização acentuada e passam a ser tratados como mercadoria. Um desses direitos fundamentais é o direito à educação, onde se situa o CsF.

Nos últimos anos, foram realizadas algumas avaliações do programa, como a realizada pelo Data Senado em parceria com a Comissão de Ciência e Tecnologia do Senado - CCT em 2015, que teve como foco a opinião dos bolsistas (BRASIL, 2015a). Vários outros trabalhos trouxeram contribuições ao analisar a perspectiva do estudante como na questão da proficiência em língua (ARCHANJO, 2015, 2016, 2017; BORGES; GARCIA-FILICE, 2016; COSTA, 2018) ou na formação e currículo (CONCEIÇÃO; FRANÇA; JACINTO, 2018; FAGUNDES; LUCE; SILVEIRA, 2019). Também foi explorado o ponto de vista de professores e ex-bolsistas de graduação (CRUZ, 2016; ANDRADE, 2018)

Além disso, identificaram-se alguns trabalhos que buscaram avaliar o programa e a política pública sob o olhar da gestão a partir de documentos oficiais (GUIMARÃES-IOSIF; ZARDO; SANTOS; MCMANUS & NOBRE, 2017) ou com foco em internacionalização e relações internacionais (DUTRA & AZEVEDO, 2016; MANÇOS & COELHO, 2017; MENDES, 2019).

Todavia, evidenciou-se uma lacuna de pesquisa dado que não se encontrou, até agora, nenhum artigo que relacionasse o referido programa e os conselhos superiores do órgão gestor do programa, para buscar entender porque a política não foi aperfeiçoada e, sim, suspensa.

É importante destacar que não eram esses conselhos os gestores oficiais da política, uma vez que foi instituído órgão deliberativo do CsF um comitê executivo, chamado Comitê de Acompanhamento e Assessoramento - CAA, composto por um representante da Casa Civil da Presidência da República, um do MEC, um do então Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação - MCTI, um do Ministério das Relações Exteriores - MRE, um do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior - MDIC, um do então Ministério da Fazenda e um do então Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão - MPOG, o Presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq e o Presidente da CAPES, além de representantes de entidades privadas que participam do financiamento do programa. Esse comitê tinha, entre outras atribuições, propor áreas prioritárias de atuação, metas e indicadores de desempenho, estabelecer cronograma de execução, critérios de seleção dos bolsistas e das instituições estrangeiras, identificar centros e lideranças no exterior de interesse prioritário e estratégico para o Brasil, etc.

De toda sorte, os conselhos superiores da Capes, em especial o Conselho Superior, que também conta com a participação do MEC, do MRE, do Presidente do CNPq (a outra agência gestora do programa), do Presidente da Financiadora de Estudos e Projetos - FINEP, além de representantes das instituições de ensino superior, do setor empresarial, entre outros, mostram-se como importante registro histórico da gestão do programa.

A partir desse cenário, este estudo ex-post-facto, de caráter descritivo e exploratório, tem como objetivo principal descrever como ocorreu o ciclo dessa política pública, desde a sua implementação até sua suspensão, pela perspectiva dos conselhos superiores da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, órgão colegiado que também conta com a participação de representante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, o segundo gestor do programa junto a CAPES. Nesse sentido, este artigo apresenta uma análise documental das atas das reuniões do Conselho Superior - CS e do Conselho Técnico Científico da Educação Superior - CTC-ES da CAPES, de 2011 a maio de 2016, período do governo Dilma e de implantação e suspensão do CsF como política pública de mobilidade acadêmica em nível de graduação.

2 O Ciclo de Políticas Públicas de Ball

Para entender como se deu a trajetória do CsF, da implementação à suspensão, buscaram-se na literatura modelos que explicassem como se dão as políticas públicas. Ball e Bowe (1992) trazem uma tese particularmente relevante por serem estudiosos da área de políticas educacionais, mas desenvolvida no Reino Unido.

Eles propuseram um método para pesquisar e teorizar as políticas públicas por meio do ciclo de políticas públicas, visando a ressaltar a complexidade que permeia as políticas educacionais como parte de um processo cíclico e não-linear, mostrando a intersecção entre micro e macropolíticas. Trata-se de um referencial complexo que oferece elementos teórico-metodológicos para o desenvolvimento de pesquisas. Esse modelo insere-se no contexto da Policy Sociology (ou Sociologia das Políticas), a partir de uma análise crítica das políticas (desde a sua formulação até seus resultados e consequências) por meio do uso de teorias e métodos da sociologia (MAINARDES; ALFERES, 2014).

Em uma primeira proposta, Ball e Bowe (1992) buscaram caracterizar o processo político sugerindo a noção de um ciclo contínuo em que ocorreriam três arenas políticas: a política proposta, a política de fato e a política em uso.

Numa segunda versão, mais refinada da teoria, eles rejeitaram os modelos tradicionais de política educacional que separavam as fases de formulação e de implementação da política, porque assim ignorariam as disputas e os embates sobre a política, e propuseram um ciclo contínuo constituído por três contextos principais inter-relacionados: o contexto de influência (quando as políticas são elaboradas e diferentes grupos discutem e articulam-se em torno de suas finalidades), o contexto da produção de texto (quando as políticas são traduzidas para discursos, textos jurídicos oficiais, documentos de política, apresentações públicas de políticos e funcionários e traduzidas para a linguagem do interesse público geral) e o contexto da prática (ações que os sujeitos exercem nas localidades, fazendo com que a política seja reinterpretada e recriada, já que os autores não podem controlar a forma como serão compreendidos os significados dos textos que escrevem). Cada contexto apresentaria arenas e grupos de interesse e envolveria disputas e embates (BOWE; BALL; GOLD, 1992).

Dois anos depois, Ball (1994) incluiu no modelo dois outros contextos: o contexto dos resultados ou efeitos (preocupado com questões de justiça, igualdade e liberdade individual, com como a política impacta nas desigualdades existentes) e o contexto da estratégia política (apanhado de atividades sociais e políticas necessárias para lidar com as desigualdades criadas ou reproduzidas pela política investigada).

Nesse momento, Ball (1994) já falava da relevância de os pesquisadores identificarem os ajustes na política desenvolvidos pelos professores e demais atores envolvidos na sua implementação. Em 2012, é apresentada a teoria da atuação (theory of policy enactment), segundo a qual as políticas são sujeitas a processos de recontextualização e recriação (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2012).

O ciclo de políticas públicas de Ball mostra-se particularmente apropriado para discutir formas de suspensão ou descontinuidade de políticas públicas porque trata de reinterpretação, recontextualização e recriação dessas políticas a partir da Policy Sociology, considerando as diversas disputas, embates e atores envolvidos.

3 Procedimento Metodológico

Com base no modelo de Ball, esta é uma pesquisa exploratória, realizada por meio de uma abordagem qualitativa de maneira a ilustrar, descritiva e analiticamente o fenômeno analisado. O campo empírico da pesquisa se deu em dois grupos: a análise das atas do CS e as do CTC-ES, ambos órgãos colegiados da CAPES, que contam também com a presença de outras instituições relevantes, como o CNPq. A coleta de dados foi realizada por meio da seleção das partes relacionados ao Programa Ciência sem Fronteiras nas atas desses conselhos de 2011 a maio de 2016.

Para análise do corpus, utilizou-se um método híbrido, com um software de análise textual e um procedimento de análise de conteúdo. A opção por adotar um software destinado ao tratamento de dados qualitativos foi feita com o intuito de minerar uma grande quantidade de dados para que possam ser potencializados ao ponto de servirem como informação relevante não antes percebidas pelo pesquisador (DOWBOR, 2001).

Para análise de conteúdo, buscou-se seguir os passos indicados por Creswell (2010) para a pesquisa qualitativa, quais sejam: 1) organização e preparo dos dados para a análise; 2) leitura e releitura de todos os dados; 3) codificação; 4) utilização do processo de codificação para descrever o cenário e as categorias de análise; 5) informação de como a descrição e os temas são representados na narrativa qualitativa, sustentados pela literatura; e 6) extração do significado dos dados e apresentação dos resultados.

As categorias analíticas foram selecionadas a posteriori, a partir da análise das atas do Conselho Superior com auxílio do software IRAMUTEQ (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires), que agrupou os textos em classes de palavras, as quais foram utilizadas como categorias de análise. Em um segundo momento, foram analisadas as atas do Conselho Técnico Científico da Educação Superior com as categorias pré-estabelecidas.

3.1 Análise Textual

O primeiro passo foi a análise textual das atas do CS (por serem em número menor que as do CTC-ES), com o auxílio de um software livre chamado IRAMUTEQ, criado por Pierre Ratinaud.

Inicialmente, foi adotado o processo de análise de frequência, para verificar as palavras que mais aparecem em uma nuvem de palavras. Na sequência, foi utilizada a classificação hierárquica descendente (CHD), na qual os segmentos de texto são classificados pelo software de acordo com seus vocabulários, o que permite o agrupamento das palavras estatisticamente significativas e a análise qualitativa dos dados (CAMARGO; JUSTOS, 2013).

Para isso, três etapas foram percorridas: a preparação e a codificação do texto inicial, a classificação hierárquica descendente, realizada pelo processamento dos dados, e a interpretação das classes.

No software, cada ata corresponde a uma Unidade de Contexto Inicial (UCI). As UCIs são processadas e agrupadas quanto às ocorrências das palavras por meio de suas raízes, originando as Unidades de Contexto Elementar (UCE), o que resulta na criação de um dicionário com formas reduzidas. Para a criação desse dicionário, o programa utiliza o teste qui-quadrado (χ2), que revela a força associativa entre as palavras e a sua respectiva classe. Quanto maior valor do qui-quadrado, maior a relação entre as variáveis (CAMARGO; JUSTOS, 2013).

Após o processamento e o agrupamento quanto às ocorrências das palavras, a CHD cria o dendograma das classes, apresentando as classes e a ligação entre elas. E assim categorias a posteriori foram criadas, a partir da organização dos elementos textuais encontrados nas atas do Conselho Superior.

O mesmo processo de análise textual foi realizado para as atas do CTC-ES. No entanto, os dados não se mostraram satisfatórios, com baixo aproveitamento de unidades de texto pelo IRAMUTEQ. Por isso, utilizaram-se as categorias do CS como ponto de partida para a análise de conteúdo das atas do CTC-ES.

Dessa forma, o IRAMUTEQ permitiu fazer algumas análises do corpus textual, e outras análises se basearam na técnica de análise de conteúdo (BARDIN, 2011).

3.2 Análise de Conteúdo

A análise de conteúdo é uma técnica que pode ser quantitativa e qualitativa. Ela costuma ser realizada por meio do método de dedução frequencial - enumerar a ocorrência de um mesmo signo linguístico que se repete com frequência - ou análise por categorias temáticas - categorizar um seguimento colocando-o em uma das categorias definidas, a partir das significações dadas pelo codificador (BAUER, 2002).

A análise de conteúdo possibilita tratar todo o material textual, diferentemente do IRAMUTEQ, que só analisa formas reduzidas de acordo com a frequência, o que pode representar um problema por descartar sinônimos menos utilizados.

Utilizando as categorias mais frequentes, provenientes da Análise de Conteúdo, é possível realizar nova leitura dos dados. O resultado desse processo é a representação gráfica da rede de relações entre os elementos.

Bardin (2011) define três etapas para a análise de conteúdo: pré-análise; exploração do material; tratamento dos resultados obtidos e interpretação. A pré-análise é uma etapa de organização, de seleção do material (corpus) a ser analisado, identificação dos objetivos da análise e sistematização dos indicadores para a interpretação final.

Na segunda etapa, exploração do material, os dados são sistematizados e codificados a partir de categorias: unidades de registro e unidades de contexto, que levam a eixos temáticos. “A Unidade de Registro é a menor parte do conteúdo, cuja ocorrência é registrada de acordo com as categorias levantadas” (FRANCO, 2008, p. 41). Estabelecidas essas unidades, busca-se pelas unidades de contexto, apontadas por Franco (2008) como o “pano de fundo” que fornece significado às unidades de análise.

Na última etapa, realiza-se o tratamento dos resultados obtidos e a interpretação (processo inferencial) das informações, por meio de quantificações simples (frequência e porcentagens) ou mais complexas, o que permite apresentar os dados em tabelas, gráficos ou quadros de resultados (BARDIN, 2011).

3.3 Corpus

Foram analisadas as atas das reuniões ordinárias e extraordinárias do Conselho Superior e do Conselho Técnico Científico da Educação Superior durante o período do Governo Dilma, uma vez que o programa Ciência Sem Fronteiras era um dos grandes motes desse governo.

As atas dos conselhos são documentos públicos, sob guarda da CAPES, e foram solicitados e coletados via e-sic (Serviço de Informação ao Cidadão), conforme a Lei de Acesso a Informação (Lei nº 12.527/2011). A própria CAPES, em resposta ao pedido feito no site do SIC, foi quem concedeu todo o material ora analisado.

Ademais, assim diz o Decreto nº 8.977, de 30 de janeiro de 2017:

Art. 25. As reuniões dos Conselhos Técnico-Científicos da Educação Superior e da Educação Básica serão públicas, ressalvadas as matérias cujo sigilo seja imprescindível, previamente justificado, e ocorrerão ordinariamente duas vezes ao ano, e, extraordinariamente, quando convocados por seus presidentes ou pela maioria dos seus membros (BRASIL, 2017; grifo nosso)

Dividiu-se a análise em Governo Dilma I (2011 a 2014) e Governo Dilma II (2015 a 12 de maio de 2016, quando o Senado autoriza a abertura do processo de impeachment e determina o afastamento da presidente da República do cargo pelo período de até 180 dias).

Com relação ao Conselho Superior, foram analisadas todas as 20 atas do Conselho Superior emitidas no período, das quais verificou-se que 15 tratam diretamente do CsF (75%), incluindo a única reunião extraordinária da época, como se vê na Tabela 1.

Tabela 1 Atas do Conselho Superior da CAPES 

Ano Nº total de reuniões Nº de reuniões em que se tratou diretamente do CsF % de reuniões que trataram diretamente do CsF
2011 5 ordinárias 4 80%
2012 4 ordinárias 4 100%
2013 3 ordinárias 2 66,67%
2014 4 ordinárias 2 50%
2015 2 ordinárias 2 100%
2016 (até 12 de maio) 2 (1 ord. e 1 extraord.) 1 (extraord.) 50%
Total 20 15 75%

Fonte: Elaborada pelos autores.

Das 15 atas, foram separados os trechos que se referiam ao programa para análise no IRAMUTEQ, e esse material foi dividido em dois grupos: Dilma 1 (2011 a 2014) e Dilma 2 (2015 a 12 de maio de 2016). As classes foram extraídas do material Dilma 1, e optou-se por utilizar no Dilma 2 as mesmas classes como categorias para fins de comparação.

Com relação ao CTC-ES, foram analisadas todas as 40 atas do CTC-ES emitidas no período, das quais verificou-se que 17 tratam do CsF (42,5%), como se vê na Tabela 2.

Tabela 2 Atas do Conselho Técnico Científico da Educação Superior - CTC-ES 

Ano Nº total de reuniões Nº de reuniões em que se tratou diretamente do CsF % de reuniões que trataram diretamente do CsF
2011 9 ordinárias 4 44,44%
2012 10 ordinárias 5 50%
2013 8 ordinárias 2 25%
2014 6 ordinárias 4 66,67%
2015 5 ordinárias 2 40%
2016 (até 12 de maio) 2 ordinárias 0 0%
Total 40 17 42,5%

Fonte: Elaborada pelos autores.

Da mesma forma, foram separados das 17 atas os trechos que se referiam ao programa para análise no IRAMUTEQ, e esse material foi dividido em dois grupos: Dilma 1 (2011 a 2014) e Dilma 2 (2015 a 12 de maio de 2016). Foram utilizadas as mesmas categorias extraídas do Conselho Superior para fins de comparação.

4 Análises e Resultados

Considerando os contextos do ciclo de políticas públicas de Ball, verifica-se que os contextos de influência e de produção de texto podem ser pouco explorados por meio do corpus selecionado, uma vez que, quando o tema chegou aos conselhos, já estava definida sua implementação pela Presidência da República. Dessa forma, utilizou-se a pesquisa bibliográfica para tecer alguns comentários acerca desses contextos.

No contexto da influência, destaca-se o fato de que, no governo Lula (2003-2010), ciência, tecnologia e inovação (C,T&I) foram vistos como decisivos para o desenvolvimento do país, de forma que buscou-se aproximá-las de modelos internacionais. E o governo Dilma deu continuidade a essa política (PEREIRA, 2011).

Nos governos Lula, houve significativa expansão no orçamento para Bolsas de Estudo no Exterior e Cooperação Internacional (passando de R$ 101.218.984 em 2004 para R$ 169.173.527 em 2010) e proporcional expansão na concessão de bolsas de mobilidade estudantil na pós-graduação, especialmente as de doutorado-sanduíche, que passaram de 796 para 1.391. No total, em 2004, a entidade mantinha 2.977 bolsistas no exterior, e em 2010 esse número passou para 4.958, um aumento de mais de 66% (CAPES, 2011). Já o CNPq manteve, no período, uma média de 477 bolsas concedidas anualmente (CNPq, 2015b).

O Plano Nacional de Pós-Graduação - PNPG 2005-2010 já apresentava como sugestão a “ampliação do intercâmbio institucional de estudantes de graduação, visando a seu futuro ingresso na pós-graduação” (CAPES, 2010, p.36)

Em sua tese de doutorado, publicada em 2010, o Ministro da Educação de Dilma, Aloísio Mercadante, fala sobre as bases do novo desenvolvimentismo no Brasil, iniciado no governo Lula e continuado no governo Dilma, e da importância da sociedade do conhecimento:

No campo específico da ciência e tecnologia, torna-se necessário, além de manter e incrementar os investimentos estatais em pesquisa e na formação de recursos humanos, desenvolver uma nova política de estímulo específico à inovação produtiva, um modelo “neoschumpeteriano” que conduza as empresas nacionais a investir muito mais em pesquisa aplicada e que articule, de forma mais consistente, o saber gerado nas universidades e nos institutos de pesquisa com os interesses e as necessidades tecnológicas das firmas brasileira (OLIVA, 2010, p. 47).

Para ele, o principal desafio:

refere-se às nossas notórias insuficiências na educação e no desenvolvimento científico e tecnológico, o que nos impede ainda de construir, no Brasil, uma sociedade do conhecimento capaz de gerar dinamismo tecnológico e informacional em escala adequada ao desenvolvimento econômico e social de longo prazo (OLIVA, 2010, p. 471).

A mudança nos discursos dos conselhos muda na virada de 2015, quando o governo Dilma entra em crise, culminando em um impeachment e na ascensão de um governo menos disposto a investir maciçamente em educação. Essas mudanças são notadas no contexto da prática, em que as interpretações dos discursos e dos textos políticos mudam segundo cada profissional atuante nesse contexto, com suas visões e valores pessoais, de forma a possibilitar reinterpretações e manipulações da política (JOHNSON, 2014).

Ball, em entrevista à Mainardes e Marcondes, explica que a partir do momento em que se coloca a política em prática, é preciso fazer alguns ajustes, envolvendo interpretação e criatividades dos atores (BALL apudMAINARDES; MARCONDES, 2009). Dessa forma, passamos às atas propriamente ditas para discuti-las à luz da teoria.

4.1 Reuniões do Conselho Superior da CAPES

O Conselho Superior da CAPES é um órgão colegiado deliberativo que tem como competência estabelecer prioridades e linhas orientadoras das atividades da instituição, deliberar acerca da proposta do Plano Nacional de Pós-Graduação, subsidiar a elaboração do Plano Nacional de Educação - PNE, apreciar critérios, prioridades e procedimentos para a concessão de bolsas e auxílios, aprovar a proposta orçamentária da CAPES, entre outros (BRASIL, 2012).

Têm assento no CS o Presidente da CAPES o Secretário de Educação Superior e o Secretário de Educação Básica do MEC, o Presidente do CNPq, o Presidente da FINEP, o Diretor-Geral do Departamento de Cooperação Científica, Técnica e Tecnológica do MRE, o Presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior - ANDIFES, além de representantes dos setores acadêmico e empresarial, do Fórum Nacional de Pró-Reitores de Pesquisa e Pós-Graduação - FOPROP, da Associação Nacional de Pós-graduandos - ANPG, do CTC-ES e do Conselho Técnico Científico da Educação Básica - CTC-EB da CAPES.

4.1.1 Governo Dilma 1 (2011 a 2014) e a Extração das Categorias

O corpus do CS foi composto por 12 textos (UCI), separados em 90 segmentos de texto, com aproveitamento de 75,56%. De um total de 3.273 ocorrências, observaram-se 1.104 palavras distintas, sendo que 738 apareceram apenas uma vez.

A primeira análise foi feita a partir da nuvem de palavras produzida pelo software (Figura 1). Apesar de ser uma análise textual mais simples, achou-se apropriado verificar no início da pesquisa, pois possibilita rápida identificação das palavras-chaves do corpus e pode facilitar a comparação com os demais grupos.

Fonte: Elaborado pelos autores por tratamento dos dados no software IRAMUTEQ.

Figura 1 Nuvem de palavras dos trechos selecionados nas atas do CS, de 2011 a 2014  

Numa primeira análise, observa-se que o corpus é bem descritivo, falando de bolsas, estudantes, área, universidade, país, curso, CAPES e CNPq. Destaque para “graduação-sanduíche”, o que mostra a relevância dessa modalidade de bolsa nesse programa (cerca de 75% das bolsas), e para a problemática da proficiência em língua inglesa. Num nível abaixo, observam-se em destaque Presidenta Dilma e Estados Unidos, principal país de destino dos bolsistas.

O conteúdo analisado foi categorizado, por meio de classificação hierárquica descendente, em 5 classes: Classe 1 (22,1% do texto), relacionada com a Classe 5 (20,6%); Classe 4 (22,1%) relacionada com as classes 2 (16,3%) e 3 (19,1%). Como se nota na Figura 2, as classes se agruparam em dois subcorpus: A e B. Para cada classe foi computada uma lista de palavras geradas a partir do teste qui-quadrado (χ2).

Fonte: Elaborado pelos autores por tratamento dos dados no software IRAMUTEQ.

Figura 2 Representação do dendograma pelas palavras de destaque nas atas do CS, de 2011 a 2014  

Com o dendograma foi possível visualizar as classes e palavras de maior ocorrência. Para dar nomes aos subcorpus e às classes, observaram-se as ocorrências que apareceram qui-quadrado maior que 3,8 e p<0,05.

Com base na lista de palavras fornecida pelo software, demos nomes às classes indicadas. O subcorpus A (42,7%), que denominamos por “Desenvolvimento”, é composto pela Classe 1 (Desenvolvimento humano) e pela Classe 5 (Desenvolvimento da Indústria). O subcorpus B (57,4%), denominado “Gestão do programa”, é composto pela Classe 4 (Proficiência em Inglês) e por uma nova ramificação composta pelas classes 2 (Setor Privado) e 3 (Orçamento e Execução).

A Classe 1 (Desenvolvimento humano) é composta de palavras como “exterior” (x²=36,12, p<0,0001), “pesquisador” (x²=23,25, p<0,001), “cientista” (x²=15,02, p=0001), “instituição” (x²=8,62, p=0,00331), “estudante” (x²=8,06, p=0,00453) e “jovem” (x²=6,93, p=0,00846).

Essa classe fala sobre o investimento no estudante, especialmente o jovem graduando, trata também da distribuição das bolsas e acordos de cooperação com instituição de ensino estrangeiras. A classe apareceu de forma mais destacada no ano de 2011, quando se falava da concepção do programa, lançado oficialmente somente em dezembro.

A Classe 5 (Desenvolvimento da Industria e das Universidades) é composta de palavras como “inovação” (x²=16,39, p<0,0001), “indústria” (x²=16,39, p<0,0001) e “tecnologia” (x²=4,08, p=0,04350).

Essa classe fala da internacionalização das universidades, sobre as áreas prioritárias e sobre aumentar o conhecimento inovador de pessoal das indústrias do segmento tecnológico e atrair jovens talentos científicos e investigadores altamente qualificados para trabalhar no Brasil. Essa classe teve destaque em 2011 e em 2012, quando foi anunciada a exclusão de algumas subáreas do programa, em especial, a Indústria Criativa.

A Classe 4 (Proficiência em Inglês) é composta de palavras como “língua” (x²=23,25, p<0,0001), “teste” (x²=11,09, p=0,00086), “inglês” (x²=7,62, p=0,00578) e “nível” (x²=6,93, p=0,00848). Essa classe fala da preocupação desde o nível com a falta de proficiência em língua estrangeira dos estudantes brasileiros, e teve destaque em dezembro de 2011 e em 2013, ano em que foi criado o Inglês sem Fronteiras.

A Classe 2 (Setor Privado) é composta de palavras como “empresarial” (x²=22,02, p<0,0001), “setor” (x²=9,66, p=0,00188) e “incentivo” (x²=5,9, p=0,01513) e trata da ideia inicial de a iniciativa privada bancar 25% das bolsas do programa, fato que acabou não se concretizando. O tema foi relevante no ano de 2011 e início de 2012.

Por fim, a Classe 3 (Orçamento e Execução) é composta de palavras como “CNPq” (x²=28,14, p<0,0001), “CAPES” (x²=19,9, p<0,0001), “agência” (x²=27,84, p<0,0001) e “orçamento” (x²=4,59, p=0,03217) e trata da execução do programa e da questão orçamentária. A Classe 3 teve especial destaque em 2012 e 2014, quando surgiu a primeira restrição orçamentária citada no CS.

A partir da Análise Fatorial por Correspondência (AFC), foi possível realizar associação entre palavras do texto, representando-as em um plano cartesiano (ver Figura 3).

Fonte: Elaborado pelos autores por tratamento dos dados no software IRAMUTEQ.

Figura 3 Representação fatorial do conteúdo das atas do CS, de 2011 a 2014  

Ainda na Figura 3, observa-se que a Classe 5 (Desenvolvimento da indústria), principal objetivo do programa segundo o Decreto que o instituiu, é a classe mais afastada no centro do plano cartesiano, mais distinta de todas as outras. Observa-se, ainda, que a Classe 2 (Setor Privado), relacionada à Classe 3 (Orçamento e Execução) no dendograma, está bastante afastada da Classe 1 (Desenvolvimento humano), pois trazem conteúdos distintos identificados na CHD, o que parece um contrassenso, já que os assuntos deveriam ter sido interconectados.

Partindo para uma análise mais profunda dos textos e lembrando que o CsF foi oficialmente lançado em dezembro de 2011, nota-se que, nas atas de 2011, fala-se da concepção do programa, sempre de forma muito positiva. Nas atas de 2012 a 2014, também se nota a visão positiva do programa, que era sempre saudado, com sua importância ressaltada ou apresentado de forma mais descritiva, sem discussões profundas.

Em 2011 e início de 2012, destacava-se também o interesse da iniciativa privada no programa (Classe 2) e o problema da proficiência em língua estrangeira (Classe 4). Em 2012, inicia-se algum questionamento por parte dos conselheiros, mas na verdade com a intenção de ampliar o programa, que era a questão da exclusão da área de humanas entre as contempladas pelo programa:

O Conselheiro Guilherme Cardoso Alves Velho registrou a necessidade de se estar atento à diversidade, e que projetos e temáticas da área de Ciências Sociais que tenham a ver com questões do desenvolvimento do país sejam contemplados no Programa (Ata da 59ª Reunião Ordinária, 2012).

Meses depois o tema foi tratado pelo mesmo conselheiro:

O Conselheiro Otávio Guilherme Cardoso Alves Velho chamou a atenção para a necessidade de se reconhecer a importância das Ciências Sociais no desenvolvimento da ciência e tecnologia do país e de formar especialistas em relação aos países para onde são mandados os estudantes, e também ter um estudo aprofundado a respeito dos institutos de pesquisas desses países. Outro ponto, a diversificação dos países de destino e o estudo dos diferentes modelos de desenvolvimento disponíveis. (Ata da 60ª Reunião Ordinária, 2012)

Ainda na 60º Reunião, outros problemas começam a ser apontados no âmbito do Conselho Superior, como “desafios a serem vencidos como os que envolvem os egressos do Programa” e a questão do aproveitamento de créditos, que envolvia a necessidade de um planejamento para que os discentes brasileiros fossem encaminhados para instituições de ensino que já possuíssem algum tipo de parceria com a sua instituição de origem (Ata da 60a Reunião Ordinária, 2012). De qualquer forma, a avaliação geral ainda era positiva.

Em dezembro de 2012, a CAPES anuncia a exclusão de algumas subáreas do programa, como a Indústria Criativa. E uma preocupação que surge novamente na reunião refere-se ao não-retorno dos estudantes ao Brasil:

a direção da CAPES, por sugestão do Procurador e do Auditor, publicou uma Portaria que versa sobre os casos de estudantes que pelos diversos motivos não voltam ao país após o período de estudos. Em geral, essas ocorrências não chegam a 1%, mas a previsão é de que possam aumentar com o Programa Ciência sem Fronteiras (Ata da 61ª Reunião Ordinária, 2012).

Em março de 2013, é anunciado o programa Inglês sem Fronteiras, com o objetivo de tentar solucionar o problema da falta de proficiência da maioria dos candidatos a vagas no exterior, especialmente na graduação. Na representação fatorial (Figuras 6 e 7), observa-se como a Classe 4 (Proficiência em Inglês, marcada em azul) teve destaque em dezembro de 2011 e em março de 2013.

Segundo Lingnau e Navarro (2021), apesar das dificuldades linguísticas, os alunos de graduação do CsF permaneceram nos países estrangeiros, finalizando o período de intercâmbio por conta do foco no ensino, já que pesquisa e extensão ficaram muito comprometidas pela falta de proficiências dos discentes brasileiros.

Em março de 2014, aparece pela primeira vez no CS uma restrição orçamentária: “No que se refere ao orçamento de 2014, houve necessidade de se pedir um crédito suplementar de R$ 1,8 bilhão, para atendimento do Ciência sem Fronteiras e do Portal de Periódicos” (Ata da 65ª Reunião Ordinária, 2014).

Essa restrição orçamentária parece fazer parte da crise econômica brasileira 2014-2017, resultado de um conjunto de choques de oferta e de demanda ocasionados, segundo alguns estudiosos, por procedimentos adotados no âmbito da "Nova Matriz Econômica" (NME) que geraram um custo fiscal elevado e levaram a uma diminuição da capacidade de crescimento da economia. A NME, grosso modo, foi uma política adotada a partir de 2011/12, de forte intervenção do governo na economia, que combinava política monetária de redução da taxa básica de juros com política fiscal de controle de preços, investimentos direcionados e concessão de subsídios (BARBOSA FILHO, 2017). Segundo o Comitê de Datação do Ciclo Econômico da Fundação Getúlio Vargas, no segundo trimestre de 2014 a economia brasileira entrou formalmente em recessão, e o PIB per capita caiu por volta de 9% entre 2014 e 2016.

Em julho de 2014, o Presidente da CAPES anunciou no CS o Programa Ciência sem Fronteiras II, que foi incluído no PNPG 2011-2020 em dezembro de 2014.

Em julho de 2014, observou-se na 66ª Reunião Ordinária a primeira e única vez em que o CsF foi tratado no âmbito do CS explicitamente como parte de uma política pública de internacionalização das universidades brasileiras:

O Presidente da CAPES destacou o trabalho pela internacionalização das universidades brasileiras, com ênfase ao projeto em elaboração pela Capes, a pedido do Ministro da Educação, que foca duas facetas: a primeira é a experiência das universidades brasileiras com o Programa Ciência sem Fronteiras; e a segunda refere-se à experiência dos melhores cursos de pós-graduação do país na internacionalização (Ata da 66ª Reunião Ordinária, 2014).

Nessa reunião, o Presidente da CAPES relatou, ainda, que os programas de pós-graduação brasileiros de excelência, com conceitos 6 e 7, foram consultados sobre o programa e sobre que ações esperavam do governo, e as respostas mais frequentes foram:

cursos em língua estrangeira, sobretudo em inglês; intercâmbio de estudantes tanto no sentido Brasil-exterior quanto no sentido oposto; melhores condições de trabalho e maior facilidade na aquisição de equipamentos; e, mais importante, a questão da flexibilidade de contratação de quadros nacionais e, principalmente, estrangeiros (Ata da 66ª Reunião Ordinária, 2014).

Com base no modelo de Ball, no contexto da influência, destaca-se que talvez a percepção de que se tratava de uma política de internacionalização do ensino tenha se dado de forma tardia, já que o programa teve início em 2011, com uma política criada e implementada de forma abrupta, sem ter sido bem planejada, tendo surgido na Presidência da República sem ter sido suficientemente discutida junta à CAPES, ao CNPq e às universidades. O tema já vinha sendo discutido no âmbito do CTC-ES, como veremos a seguir, desde novembro de 2012, um conselho mais técnico, formado primordialmente por membros da comunidade acadêmica.

Manor (1999) explica que muitas vezes há uma centralização exagerada no processo de planejamento nos países em desenvolvimento, faltando articulação entre as agências responsáveis ou mesmo havendo conflitos entre os órgãos. Najam (1995) explica, ainda, que, na verdade, os países em desenvolvimento têm maiores dificuldades técnicas, financeiras e culturais no processo de planejamento e implementação de políticas públicas. Primeiro porque nesses países o sistema político, Estado e sociedade civil não estão bem articulados e nem funcionando de maneira apropriada. Depois porque a falta de recursos limita a sua capacidade de dar continuidade a políticas públicas de maneira que tenham resultados efetivos. E por último, faltam recursos humanos capacitados, equipamentos, experiência e competência técnica dos órgãos responsáveis para planejar bem as políticas públicas.

Segundo Oliveira (2006), no Brasil se dá muita ênfase ao planejamento como forma de se tentar controlar a economia, “em vez de vê-lo como um processo de decisão construído política e socialmente com os diversos atores interessados e afetados pela decisão”. Dessa forma, o planejamento de políticas públicas deve ser visto não apenas como um produto técnico, mas como um processo, cuja importância se dá principalmente na implementação, que se trata justamente de como as políticas sofrem alterações à medida que passam de diretivas administrativas para a prática.

4.1.2 Governo Dilma 2 (Janeiro de 2015 a Maio de 2016)

O grande destaque das atas do CS nesse período gira em torno do termo “avaliação”, como se vê na Figura 4. Isso é de se esperar, uma vez que a primeira fase do programa acabara de se encerrar, mas a forma como o programa foi tratado não foi nos termos de aprimoramento da política, mas questionamento acerca da sua relevância, ou seja, nos contextos dos resultados ou efeitos e da estratégia política de Ball. Nota-se também o destaque para o programa PIBID, destinado à Educação Básica.

Fonte: Elaborado pelos autores por tratamento dos dados no software IRAMUTEQ.

Figura 4 Análise de similitude das atas do CS, no governo Dilma 2  

Analisando o conteúdo por categorias, observa-se que o principal tema nesse período foi o referente à Classe 3 (Orçamento e Execução). No contexto da crise econômica iniciada em 2014, foi anunciado no CS em março de 2015 que havia sido atingida a meta de 100 mil bolsas, pela primeira vez no âmbito do conselho, foi relatado o problema de endividamento do programa referente ao atraso nos pagamentos ainda de 2014 aos parceiros internacionais: “A CAPES deve 100 milhões de dólares para os Estados Unidos e as universidades já estão retendo os históricos escolares dos alunos”, evidenciando o destaque da Classe 3 (Orçamento e Execução).

Além disso, foi dito que tais problemas ainda não haviam sido relatados ao Ministro da Educação e à Presidente da República: “a Diretora expressou a sua impressão de que o problema não estava chegando ao Ministro Aloizio Mercadante e à Presidenta Dilma Rousseff”. O CNPq sinalizou o mesmo problema:

o Presidente do CNPq, Hernan Chaimovich Guralnik, observou que, por enquanto, o CNPq está conseguindo pagar os bolsistas que estão no exterior, por dois ou três meses, mas se as dívidas não forem honradas, não terá condições de continuar pagando (Ata da 69ª Reunião Ordinária, 2015).

Segundo Manços (2017, p. 122), o custo inicial para pagamento das bolsas de R$ 3 bilhões foi “extrapolado em mais de três vezes, gerando dúvidas e críticas quanto à eficiência do projeto e às fontes orçamentárias”.

Em outubro de 2015, foi apresentada ao CS a Síntese dos Seminários de Acompanhamento de Meio Termo do Sistema Nacional de Pós-Graduação (SNPG). Tais seminários reuniram na CAPES 3280 coordenadores de pós-graduação para fazer uma análise da pós-graduação nos anos de 2013 e 2014. Sobre o CsF, o relatório sugeriu que: “além de enviar estudantes da graduação, que seja repensado no sentido de uma cooperação mais forte com professores, com programas e com redes para ajudar a melhoria da qualidade da avaliação” (Ata da 70ª Reunião Ordinária, 2015). Na mesma reunião do CS, sugeriu-se que, para uma melhor aplicação dos recursos, fosse realizada uma avaliação do CsF e do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência - PIBID, relacionando o CsF a um programa para a educação básica:

Também houve solicitação para que o Programa Ciência sem Fronteiras seja mudado para que as universidades possam participar mais ativamente. Foi proposto que haja discussão sobre o orçamento, com participação da comunidade acadêmica e científica, com a qual o Presidente da Capes concordou (Ata da 70ª Reunião Ordinária, 2015).

Em fevereiro de 2016, em reunião extraordinária do CS, aconteceu uma discussão crucial para o CsF, quando se questionou sua relevância para a internacionalização da ciência brasileira:

Aberta a palavra, os Conselheiros pediram esclarecimentos e deram sugestões. Como muitos falaram sobre a necessidade de avaliação do custo benefício do Programa Ciência sem Fronteiras, foi esclarecido que o programa está suspenso e que está sendo avaliado pela Capes e CNPq para que se estabeleçam os novos rumos a serem seguidos, dentro daquilo que de fato contribua para a internacionalização da ciência brasileira (Ata da 2ª Reunião Extraordinária do Conselho Superior, 2015; Grifos nossos).

Na mesma reunião, a então Presidente da Andifes, pontuou que “o PIBID representa cerca de 20% do valor do Programa Ciência Sem Fronteira, e que é um instrumento importantíssimo para atacar um dos problemas mais relevantes que o País tem a enfrentar, que é a questão de formação de professores” (Ata da 2ª Reunião Extraordinária do Conselho Superior, 2015). Para ela, deveria se avaliar o PIBID, atrelando-o à política de formação de professores, e “ter foco para deixar de pulverizar recursos públicos em programas que não estão centrados em políticas muito bem consolidadas” (Ata da 2ª Reunião Extraordinária do Conselho Superior, 2015).

Nesse conjunto de atas do governo Dilma 2, não houve menção à questão da proficiência em línguas (Classe 4) nem ao desenvolvimento da indústria (Classe 5). O foco certamente foi na questão orçamentária (Classe 3).

O setor privado (Classe 2) foi citado uma única vez, nos seguintes termos:

Ricardo Menna Barreto Felizzola considerou que para o setor empresarial o Programa Ciência sem Fronteiras é essencial pela oportunidade que se dá para o cidadão sair do país e voltar com visão mais crítica. Por outro lado, a formação de pessoal para educação básica é prioridade, porque são as pessoas com esse nível de ensino as responsáveis pela produção nas fábricas (Ata da 2ª Reunião Extraordinária do Conselho Superior, 2015).

Tomando como base o ciclo de políticas públicas de Ball, a fala do conselheiro leva a se pensar sobre a relação entre educação e trabalho, mais especificamente nos projetos de país que se pensam com relação a esses dois fatores. Além disso, é oportuno questionar, no contexto de resultados/efeitos e no de estratégia política, por que o programa foi suspenso, e não reorientado e redimensionado.

Apesar das críticas recebidas e das correções que se faziam necessárias, muitos autores apontavam resultados positivos do CsF, como Chichoski, Rubin-Oliveira, Teixeira (2018), que analisaram como a experiência de internacionalização no programa resultou no desenvolvimento humano dos estudantes de graduação. Por sua vez, McManus e Nobre (2017) verificam impacto positivo do CsF na entrada dos egressos em programas de pós-graduação (mais de 20% dos bolsistas de graduação do CsF contra 5% dos alunos com desempenho similar no ENEM mas que não participaram do programa).

Outro ponto de destaque foi que, em 2015, o programa foi selecionado pela Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática do Senado Federal na pauta de avaliação de políticas públicas de formação de recursos humanos, tendo como produto final um relatório com uma boa avaliação do programa. Para tanto, a comissão encomendou uma pesquisa, realizada em 2015 pelo DataSenado, com os beneficiários do programa. Entre os 14.627 estudantes que responderam à pesquisa, 92% se disseram satisfeitos com o programa, 57% afirmaram que estimulou o interesse pela pesquisa e 53% disseram que os fez aumentar a dedicação aos estudos. Além disso, 58% consideraram que o programa proporcionou a fluência na língua do país onde estudaram, 67% acreditam que estimulou o contato acadêmico com outras instituições no exterior após o término do intercâmbio e 68% afirmaram que conseguiram passar os conhecimentos adquiridos aos professores e alunos no Brasil (BRASIL, 2015a)

No relatório final da comissão, embora tenham sido destacados problemas de execução, devido à forma súbita como o CsF foi planejado e executado, defendeu-se a contribuição do CsF no processo de internacionalização do ensino superior brasileiro e no campo da ciência e tecnologia:

O número de estudantes estrangeiros nas universidades norte-americanas constitui um dos mais relevantes indicadores do nível de internacionalização da educação superior dos demais países. (...) O Brasil foi o país que mais cresceu [quanto ao número de estudantes em universidades estado-unidenses] no intervalo (78%, contra 10% da média), saltando da 10ª para a 6ª posição. O avanço foi, sem dúvida, produto do CsF. Permitir que esse impulso se enfraqueça seria lamentável para a internacionalização da educação superior brasileira e para o desenvolvimento da CT&I em nosso País (BRASIL, 2015b, pp. 40-41).

Ainda que apontasse diversas sugestões de aprimoramento, a comissão defendeu a continuidade do programa, apontando como seus méritos ter conseguido estender a internacionalização para o ensino de graduação, estimulando a apreensão de novos conhecimentos e a adoção de novas metodologias e práticas educativas, e diversificar a lista de países com os quais o Brasil mantém intercâmbio estudantil. Assim foram dispostas as recomendações finais da comissão, entre outras:

1. Promover a continuidade do Ciência sem Fronteiras: ainda que se considere o momento de dificuldades fiscais do País, é preciso que sejam garantidos recursos mínimos, não apenas para honrar os encargos já assumidos junto a bolsistas e parceiros nacionais e internacionais, mas também para a concessão de novas bolsas, de forma a valorizar projetos estratégicos para o desenvolvimento do País;

2. Assegurar que o CsF se configure como política de Estado, e não apenas de governo, (...)

4. Em relação às bolsas no exterior, conferir prioridade à concessão de bolsas de pós-graduação, nas modalidades doutorado pleno, doutorado sanduíche, pós-doutorado e mestrado, sem deixar de contemplar a graduação; (...) (BRASIL, 2015b, p.62)

Apesar de tudo isso, o programa foi suspenso, sendo as bolsas para graduação as primeiras a serem suspensas oficialmente. A explicação talvez tenha como ponto de partida o achado de McManus e Nobre (2017) de que 52% dos bolsistas de graduação-sanduíche do programa vinham de famílias com renda de até seis salários mínimos e 75%, até 10 salários mínimos. Na pesquisa, eles mostraram os resultados de um questionário da CAPES aplicado aos egressos do CsF que recebeu 62 mil respostas, dentre os quais 31% haviam feito o Ensino Médio em escolas públicas e 20% em escolas particulares com bolsa.

Dessa forma, o programa parecia quebrar uma lógica da educação como reprodutora das desigualdades sociais, conforme sugerem Bourdieu e Passeron (2011), ao levar para o exterior estudantes de menor renda. Nesse sentido, Jessé de Souza (2009) fala sobre o sucesso do indivíduo na sociedade atual diretamente ligado ao conhecimento que possui (correspondente ao “capital cultural” de Bourdieu) e questiona o fato de as escolas públicas, em sua maioria, falharem quanto a tarefa de oferecer aos jovens pobres possibilidades objetivas de desenvolvimento socioeconômico.

No caso do CsF, poder-se-ia entender que o programa seria uma forma de o estado oferecer a pessoas com hipossuficiência econômica a oportunidade de obter um tipo de conhecimento privilegiado, nas melhores universidades do exterior, porém, no Conselho Superior da CAPES, verificou-se a orientação de que o país precisa em suas indústrias apenas trabalhadores com nível básico de escolaridade, o que parece reforçar a divisão da educação de que tratou Saviani (2007): uma para a classe dominante (proprietários) e outra para os dominados (não- proprietários).

Além disso, deve-se destacar a tese de Bourdieu e Passeron (2011) de que o principal critério de seleção dos estudantes para ascenderem ao ensino superior é o capital linguístico, do qual a família tem importância fundamental para a construção. O capital linguístico é o que permite decodificar os signos e assimilar o conhecimento. Interessante comparar esse problema que dificulta o acesso à educação para as classes menos favorecidas com o problema da proficiência em língua estrangeira no CsF.

Outrossim, Borges (2015) aponta que o problema da falta de proficiências em línguas estrangeiras no CsF expôs as deficiências na educação brasileira, especialmente na educação básica, cujo ensino de idiomas ainda é precário. O problema parece se agravar na rede pública de ensino.

4.2 Reuniões do Conselho Técnico Superior de Educação Superior - CTC-ES

O CTC-ES é um órgão colegiado da CAPES ao qual compete assistir a Diretoria Executiva da CAPES na elaboração das políticas e diretrizes concernente à formação de recursos humanos de alto nível, ao sistema de pós-graduação e ao sistema nacional de desenvolvimento científico e tecnológico, colaborar na elaboração da proposta do Plano Nacional de Pós-Graduação, opinar sobre a programação anual da CAPES na área específica da Educação Superior e sobre critérios e procedimentos para a distribuição de bolsas e auxílio institucionais e individuais, entre outros (BRASIL, 2012).

O CTC-ES tem como membros o Presidente da CAPES, o Diretor de Avaliação e o Diretor de Programas e Bolsas da CAPES, além de representantes da comunidade acadêmica, da Associação Nacional de Pós-Graduandos e do Fórum Nacional de Pró-Reitores de Pesquisa e Graduação.

A seguir serão discutidas as atas desse Conselho conforme as categorias descritas na Figura 2.

4.2.1 Governo Dilma 1 (2011 a 2014) Pela Perspectiva do CTC-ES

No âmbito do CTC-ES, verifica-se maior ênfase na parte educacional, nas instituições, no aluno, na pesquisa, no conhecimento e na (não) participação das áreas de humanas no programa, como se vê na Figura 5. Ainda em 2011, o Presidente da CAPES também já tratava da preocupação das instituições com a falta da área de Humanas no programa: “O Presidente tranquilizou as áreas de Ciências Humanas e Sociais que não estão incluídas no Programa Ciência sem Fronteiras, porém terão mantidos e reforçados os programas normais da CAPES e do CNPq.” (Ata da 129ª Reunião do CTC-ES, 2011).

Em abril de 2013, surge novamente a indagação da comunidade acerca da exclusão de certas áreas no programa: “Design, Desenho Industrial e Arquitetura estão contemplados no Ciência sem Fronteiras, porém, há exclusão de certos cursos que não têm explicitamente o viés tecnológico exigido pelo programa” (Ata da 145ª Reunião do CTC-ES, 2013).

Apesar das críticas recebidas nesse sentido, Manços (2017) mostra que o CsF, embora tenha sido restrito às áreas tecnologias e de engenharias, gerou um efeito positivo aumentando a oferta de bolsas no exterior em todas áreas, incluindo humanas. Além disso, o programa não retirou recursos das bolsas no país, como muitos questionaram, havendo para ele um orçamento suplementar.

Fonte: Elaborado pelos autores por tratamento dos dados no software IRAMUTEQ.

Figura 5 Nuvem de palavras dos trechos selecionados nas atas do CTC-ES, de 2011 a 2014  

Como se vê na Figura 5, nessas atas pouco se tratou, por exemplo, como era de se esperar, de questões orçamentárias. Essa diferença em relação ao CS se dá pelo CTC ser um conselho mais técnico, formado em sua maior parte por Professores universitários, com tratamento mais prático ou técnico das questões. Nota-se um destaque para a Classe 1 (Desenvolvimento Humano), que permeia todo o texto, e a Classe 3 (Orçamento e Execução), no que diz respeito à execução do programa.

Foi em agosto de 2011 que o CsF foi citado pela primeira vez em atas das reuniões do CTC-ES, quando o então Presidente da Capes relatou a viabilidade de se implementar as bolsas do programa na CAPES (Classe 3 - Orçamento e Execução): “Especificamente para a CAPES serão 40 mil bolsas, o que é considerado viável de implementação já que a Agência possui longa tradição na área de bolsas no exterior. Nos últimos seis anos foram financiados 25 mil bolsistas no exterior” (Ata da 128a Reunião do CTC-ES, 2011). Vale lembrar que nessa época o Brasil passava por uma boa fase econômica, com recursos disponíveis.

Em outubro de 2011, o Presidente da CAPES comentou sobre a expertise da CAPES (Classe 3) em conceder bolsas de graduação-sanduíche, maior que a do CNPq, e sobre a necessidade de cooperação das universidades, especialmente no que se refere ao reconhecimento dos créditos obtidos no exterior. Expôs também as regras básicas do programa, que incluíam: “o mínimo de pontuação no exame de TOEFL para línguas; para as instituições que usam o Enem, alunos com mais de 600 pontos; alunos que tenham sido oriundos das olimpíadas de Matemática e Ciências; que sejam preferencialmente também de iniciação científica, etc.” (Ata da 130ª Reunião do CTC-ES, 2011).

Em março de 2012, o então Diretor de Relações Internacionais da CAPES, expressou preocupação em fazer uma avaliação do programa e sugeriu “a inclusão na avaliação de itens que valorizem o doutorado sanduíche e indicação, por cada área, de uma pessoa para acompanhar a execução do Programa CsF” (Classe 3; Ata da 134ª Reunião do CTC-ES, 2012).

Em maio, o mesmo Diretor apontou para a possibilidade de se agraciar os programas de pós-graduação que usam mais e melhor as bolsas de doutorado-sanduíche. “Pensou-se em conceder uma bolsa no país a cada doutorando enviado ao exterior. A medida visa a auxiliar o cumprimento das metas do Programa Ciência sem Fronteiras” (Classe 3; Ata da 136ª Reunião do CTC-ES, 2012).

Em novembro de 2014, anunciou-se a inclusão da modalidade de bolsa para Mestrado Profissional no âmbito do programa: “um projeto-piloto criado com a intenção de servir como alternativa mais curta ao doutorado pleno, o que capacita os estudantes, em menos tempo, a entrarem no mercado de trabalho” (Ata da 155ª Reunião do CTC-ES, 2014). Na época, foram concedidas cerca de 700 bolsas para os Estados Unidos nessa modalidade.

Quanto à questão educacional, destaca-se a preocupação com a proficiência em língua estrangeira (Classe 4):

A grande preocupação é a questão do idioma, em específico o domínio do inglês, a qualificação dos estudantes para fazerem o teste TOEFL, requisito mínimo internacional, principalmente para os candidatos a graduação-sanduíche e doutorado pleno (Ata da 128ª Reunião do CTC-ES, 2011).

Em novembro de 2012, o programa é tratado pela primeira vez como parte de uma política de internacionalização do ensino. E o Presidente da CAPES afirmou que o CsF “já está modificando a cultura de internacionalização nas universidades brasileiras, ainda muito precária. Há casos de alunos de graduação que já receberam convites para fazerem o doutorado pleno nas instituições estrangeiras, de modo que o impacto no futuro será considerável” (Ata da 141ª Reunião do CTC-ES, 2012).

Sobre o assunto, Manços e Coelho (2017) concluíram que, apesar das dificuldades de articulação com as universidades, o programa mostrou-se positivo por aumentar a visibilidade internacional da educação superior brasileira e por possibilitar a inserção de instituições de ensino brasileiras em programas de pesquisa de cooperação internacional.

Em março de 2014, o Presidente da CAPES trata do CsF como foco da política de internacionalização das universidades (Classe 5 - Desenvolvimento das Universidades). “No caso das universidades federais, o plano deve ser amarrado com as prioridades do Ciência sem Fronteiras e com outras prioridades do MEC e das próprias instituições” (Ata da 151ª Reunião do CTC-ES, 2014). Os conselheiros demostraram preocupação com a possibilidade de os marcos do plano de internacionalização fossem estabelecidos com base CsF uma vez que ele não inclui as áreas de humanas, o que pode representar um prejuízo para essas áreas. (Ata da 151ª Reunião do CTC-ES, 2014).

Em setembro de 2014, o Presidente da CAPES destacou a importância de as instituições de ensino propiciarem treinamento na indústria (Classe 5 - Desenvolvimento da Indústria), sobretudo nas áreas tecnológicas. E reiterou que um dos caminhos para a internacionalização é a experiência do Programa Ciência sem Fronteiras, além de salientar “a importância das empresas e da indústria na internacionalização das universidades, tipo de cooperação pouco desenvolvido no Brasil” (Ata da 154ª Reunião do CTC-ES, 2014).

4.2.2 Governo Dilma 2 (Janeiro de 2015 a Maio de 2016) pela Perspectiva do CTC-ES

Nesse período, houve apenas duas reuniões do CTC-ES, mas já é possível perceber uma guinada no tratamento da questão. Em março de 2015, o Diretor de Avaliação da CAPES falou das restrições orçamentárias impostas pelo governo e dos atrasos nos pagamentos do programa (Ata da 157ª Reunião do CTC-ES, 2015).

Em junho, o novo Presidente da CAPES emitiu seu desejo de “ver uma maior atuação das universidades na graduação-sanduíche, no sentido de acompanharem os alunos, além de facilitarem a absorção dos créditos cursados no exterior” (Ata da 159ª Reunião do CTC-ES, 2015). E nada mais se tratou do programa, que parece ter deixado de ser foco de interesse do conselho.

4.3 Educação para o Trabalho

A partir da conclusão do Conselho Superior da CAPES de que, para desenvolver o país e a indústria, se deveria ter como prioridade não programas de mobilidade estudantil na graduação, mas sim a educação básica “porque são as pessoas com esse nível de ensino as responsáveis pela produção nas fábricas”, faz-se necessário buscar entender essa concepção de “educação para o trabalho” em termos de política pública.

Ao relacionar educação e trabalho, é preciso diferenciar, em primeiro lugar,

o entendimento do trabalho como categoria específica do ser social - dimensão ontológica - das formas que assume o trabalho na escravidão, no servilismo e no trabalho como mercadoria, como força de trabalho - trabalho/emprego, trabalho assalariado no capitalismo (FRIGOTTO, 2001).

Nessa perspectiva, Bourdieu e Passeron (2011) mostram como a educação é um instrumento que produz e reproduz o poderio de uma classe sobre a outra, preparando alguns para perpetuarem a detenção do poder e alienando outros para continuarem vendendo sua força de trabalho. Freire (2005) também viu na escola uma função conservadora, refletora e reprodutora das desigualdades sociais, no entanto viu também a possibilidade de ser um instrumento de resgate da cidadania.

O alto índice de analfabetismo e a educação verticalizada levaram Freire (2015) a pensar em um projeto político-pedagógico que resgatasse a cidadania e pensasse a educação como instrumento para que as pessoas pudessem transformar o mundo e escrever sua própria história. Seria uma forma que possibilitasse os marginalizados, os oprimidos, saírem da estrutura que os transforma em “seres para outro”, transformando-a para se tornarem “seres para si” (FREIRE, 2005).

Para Freire (1986), o analfabetismo possui sua origem histórica em situações de exploração e opressão, impostos por um regime de dominação. Nesse sentido, a Educação seria, portanto, um ato libertador, por meio do qual as pessoas poderiam operar e transformar o mundo.

A orientação pedagógica dos organismos internacionais e do Banco Mundial para a educação profissional têm-se disseminado no intelectual coletivo e tem “como eixo a adaptação e a conformação do trabalhador, no plano psicofísico, intelectual e emocional, às novas bases materiais, tecnológicas e organizacionais da produção” (FRIGOTTO, 2001, p. 82).

A educação pretendida por esses organismos tem como foco a educação básica e a capacitação técnica e tem como base a transmissão de conhecimentos tecnológicos e suas inovações, de forma a criar condições favoráveis para o aumento da produtividade e do capital, para consequente desenvolvimento dos países (NEVES; PRONKO, 2008).

No Brasil, especificamente, observa-se que

a Educação Profissional subordina-se ao ideário do mercado e do capital e de um modelo de desenvolvimento excludente, concentrador de renda, predatório. Mercado e capital sem controles da sociedade - flexível e desregulamentado que gera desemprego, subemprego e exclusão. Neste horizonte a educação em geral e, particularmente, a educação profissional se vincula a uma perspectiva de adestramento, acomodação, mesmo que se utilizem noções como as de educação polivalente e abstrata (FRIGOTTO, 2001).

Ou seja, o empresariado tem reforçado o discurso dessas organizações, de forma que a educação se insere na nova divisão do trabalho, afastando-se da perspectiva de uma educação para a emancipação da classe trabalhadora (NEVES, 2000). O que se observa na fala do conselheiro é a ideia de uma educação voltada para o trabalho simples.

Marx, em 1867, em O Capital, já diferenciava o trabalho simples do trabalho complexo, dentro da divisão social do trabalho. O trabalho complexo, ao contrário do simples, caracteriza-se por ser de natureza especializada, ou seja, requerer maior formação, sendo ao mesmo tempo produção de valor de uso e produção de valor.

Nesse sentido, o trabalho complexo seria o trabalho simples potenciado ou multiplicado de tal forma que uma quantidade pequena de trabalho complexo equivalesse a uma grande quantidade de trabalho simples, de forma que esse aumento ocorre sob condições de dominação e de exploração (MARX, 1988).

Nos primórdios do capitalismo industrial, o trabalho complexo era realizado por um pequeno grupo de trabalhadores, responsável pelo controle e manutenção das máquinas, e que possuía formação superior, de caráter científico ou de domínio de um ofício. Esse trabalho complexo foi ficando cada vez mais especializado.

Peternella (2016) aponta para o fato do desenvolvimento tecnológico e da criação de máquinas cada vez mais automatizadas acirrarem ainda mais a contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais de produção. Se, por um lado, há uma suposta valorização da qualificação humana, por outro, ocasiona formas de trabalho precárias com aumento de trabalhadores contratados temporariamente, por tempo parcial, terceirizados ou admitidos na economia informal.

A autora destaca, ainda, que essa nova realidade tem levado a reformas educacionais cada vez mais distantes da dita “sociedade do conhecimento”, já que, quanto mais sofisticada a tecnologia, mas simples é a forma de operá-la, o capital tem necessitado na verdade de mão-de-obra com habilidades básicas. Nesse sentido, a Declaração Mundial de Educação para Todos, por exemplo, especificou como necessidades básicas de aprendizagem leitura e escrita, expressão oral, cálculo e solução de problemas.

Assim, sendo o Ciência sem Fronteiras um programa que buscava trazer conhecimento sofisticado para uma parcela razoavelmente grande da população acadêmica, sua suspensão com o argumento de que se deveria, enquanto país, focar em ter pessoas com formação de nível básico para ocupar as fábricas vai contra o ideário de uma educação para a emancipação da classe trabalhadora e do país.

5 À Guisa de Conclusões

É consenso na literatura a importância atribuída à internacionalização do ensino superior, mais especificamente à mobilidade estudantil, para o desenvolvimento das universidades e até do país. Nesse contexto, em 2011, pela primeira vez na história do Brasil pensou-se em implementar uma política pública em larga escala de mobilidade estudantil internacional na graduação, por meio do Programa Ciência Sem Fronteiras.

Neste estudo, utilizaram-se, de forma híbrida, a análise textual e a análise de conteúdo para análise das atas dos conselhos superiores da Capes, sendo que a primeira evidenciou, com apoio do software Iramuteq, cinco classes a partir da Classificação Hierárquica Descendente: 1) Desenvolvimento Humano; 2) Setor Privado; 3) Orçamento e Execução; 4) Proficiência em Inglês; e 5) Desenvolvimento da Indústria e das Universidades. A partir delas, foram analisados os textos.

Um ponto que se destaca é o fato de que, após o impedimento da Presidenta Dilma Rousseff, as bolsas para a graduação foram suspensas. A forma como se deu essa mudança de política no CsF a partir do impeachment será melhor discutida em trabalhos futuros, mas pode-se adiantar que, até 2014, não se contestava que o CsF fazia parte de uma política pública que iria desenvolver o país. A partir de 2015, o programa começou a ser questionado pela opinião pública, principalmente com relação ao seu custo.

Em fevereiro de 2016, em reunião extraordinária, o CS anunciou que o programa estava suspenso e questionou-se sua relevância para a internacionalização da ciência brasileira, apontando para a necessidade de “que se estabeleçam os novos rumos a serem seguidos, dentro daquilo que de fato contribua para a internacionalização da ciência brasileira”. Nessa reunião, concluiu-se que se deveria focar na educação básica “porque são as pessoas com esse nível de ensino as responsáveis pela produção nas fábricas”.

Sobre o assunto, vimos que é preciso distinguir

o projeto de Educação Profissional patrocinado pelos organismos internacionais - Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento, etc. - aceito de forma subordinada pelo atual governo federal, do projeto que se busca construir, em diferentes espaços de nossa sociedade, numa perspectiva de emancipação da classe trabalhadora (FRIGOTTO, 2001).

A ideia de desistir de se investir na educação superior para investir apenas na educação básica reforça o que Tiburi (2021) chamou de “complexo de vira-lata” ao expandir o termo cunhado por Nelson Rodrigues para tratar da derrota da seleção brasileira de futebol para o Uruguai na final da Copa do Mundo de 1950 no Maracanã. Tiburi (2021, p. 159-160) trata do complexo de vira-lata como um problema narcísico dos brasileiros, “uma alegoria da colonização”, uma “inferioridade autopromovida perante o mundo”.

Não que não seja importante investir na educação básica, muito pelo contrário. E o CsF não tirou recursos desse nível de ensino (CRUZ, 2021). O ponto é que, no caso do CsF, o complexo de vira-lata mostra-se quando se defende que o país priorize formação para profissões que exigem pouca qualificação e se dispensa formação mais sofisticada que possibilitaria desenvolver atividades que agregam mais valor. Analogamente, durante muito tempo no Brasil Colônia optou-se por produzir cana, exportá-la e importar açúcar refinado da Holanda a preços exorbitantes. Além disso, Souza (2018) aponta que o conhecimento útil do trabalhador do chão de fábrica é subvalorizado e isso acaba sendo uma dimensão invisível e legitimadora da desigualdade.

O CsF foi criado em um contexto em que se buscava alterar a estrutura das nossas indústrias e elevar nossa produção nacional para outro patamar, aliado à vontade de tornar a educação a prioridade das prioridades. Dessa forma, o programa, por ter como objetivo desenvolver a indústria nacional por meio da educação, foi uma das bandeiras de frente do governo Dilma. Não por acaso, programa entrou em crise junto com o governo e foi suspenso logo após o impedimento da presidente.

O programa mostrou fragilidades de forma sistêmica, desde a identificação do problema e a formação da agenda até sua implementação e avaliação (GRANJA; CARNEIRO, 2021). No entanto, após a análise a que este estudo se propôs se debruçando sobre as atas dos conselhos superiores da Capes e revisitando a teoria do ciclo de políticas públicas de Ball (1994), que fala de um ciclo contínuo constituído por cinco contextos inter-relacionados (influência; produção de texto; prática; resultados ou efeitos; e estratégia política), observamos um destaque para uma mudança importante no contexto da influência (discussão e articulação de diferentes grupos em torno das finalidades da política) que impactou direta e fortemente no programa. Isso porque, segundo Cruz e Eichler (2021), o CsF não cabia mais no modelo neoliberal que ascendeu após a queda da presidente e que reduziu o fomento científico de modo geral.

Talvez a explicação venha do conceito de Casara (2017) de “Estado Pós-Democrático”, um Estado neoliberal onde o mercado e a circulação do dinheiro e dos bens ganham mais relevância que os direitos fundamentais, dentre os quais está a educação, tratados como mercadoria.

O CsF fazia parte de um ideário para o futuro, o sonho de elevar o nível dos estudantes de graduação do país de uma forma como nenhuma outra política conseguiu e, dessa forma, contribuir para o desenvolvimento da indústria nacional. Teremos novamente um governo que sonhe esse sonho, seja por meio do CsF ou de qualquer outro programa educacional?

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1Agradecemos à Professora Ana Maria Justo, do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina, pelas contribuições e apontamentos referentes a este artigo.

Recebido: 21 de Março de 2020; Aceito: 23 de Outubro de 2021; Publicado: 14 de Janeiro de 2022

Correspondência ao Autor1 Viviane Xavier de Araujo Cruz E-mail: Viviane.xavier@gmail.com Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil CV Lattes http://lattes.cnpq.br/3044024975934769

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