SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.9Transformações e inovações no Ensino Superior: comunicação e divulgação científica em debatePerfil dos estudantes de Odontologia no uso do Instagram como ferramenta de aprendizagem móvel e ubíqua: estudo transversal índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Revista Internacional de Educação Superior

versão On-line ISSN 2446-9424

Rev. Int. Educ. Super. vol.9  Campinas  2023  Epub 27-Mar-2025

https://doi.org/10.20396/riesup.v9i00.8668939 

Artigo

Contribuições dos Indígenas para a Ressignificação do Currículo Cosmopolita Hegemônico

Contribuciones de los Indígenas para la Resignificatción de un Plan de Estudio Cosmopolita Hegemónico

José Licínio Backes1  , Conceituação, Investigação, Metodologia, Administração do Projeto, Redação - rascunho original, Supervisão, Metodologia, Administração de projetos, Redação - revisão e edição, Curadoria, Análise formal, Aquisição de financiamento, Recursos, Software, Validação
http://orcid.org/0000-0001-9013-8537; lattes: 9226900461088151

Ruth Pavan2  , Conceituação, Investigação, Metodologia, Administração do Projeto, Redação - rascunho original, Supervisão, Metodologia, Administração de projetos, Redação - revisão e edição, Curadoria, Análise formal, Aquisição de financiamento, Recursos, Software, Validação
http://orcid.org/0000-0001-8979-1125; lattes: 8227786473173731

1Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande, MS, Brasil. E-mail: backes@ucdb.br

2Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande, MS, Brasil. E-mail: ruth@ucdb.br


RESUMO

No artigo, analisam-se as contribuições dos indígenas para a construção de um currículo cosmopolita subalterno. A pesquisa de campo envolveu entrevistas semiestruturadas com estudantes indígenas de cursos de licenciaturas de uma universidade brasileira. Pela análise qualitativa efetuada com base nas teorizações curriculares cosmopolitas e no campo da educação indígena, concluiu-se que os indígenas contribuem para a construção de currículos cosmopolitas subalternos de diferentes formas: luta contra os estereótipos; valorização das línguas maternas; reconhecimento de que a subalternização não se rompe com uma educação que subalterniza; necessária articulação entre conhecimento e contexto cultural; construção de laços de solidariedade com outros grupos subalternizados; e insistência em construir pontes e diálogo, mesmo com quem historicamente não o deseja.

PALAVRAS-CHAVE: Currículo; Indígenas; Cosmopolitismo subalterno

RESUMEN

En el artículo se analizan los aportes de los indígenas para la construcción de un plan de estudio cosmopolita subalterno. La investigación de campo involucró entrevistas semiestructuradas con estudiantes indígenas de cursos de licenciaturas de una universidad brasileña. A través del análisis cualitativo efectuado con base en teorías curriculares cosmopolitas y en el campo de la educación indígena, se concluyó que los indígenas contribuyen a la construcción de planes de estudio cosmopolitas subalternos de diferentes maneras: lucha contra los estereotipos; valorización de las lenguas maternas; reconocimiento de que la subalternización no se rompe con una educación que subalterniza; articulación necesaria entre conocimiento y contexto cultural; construcción de lazos de solidaridad con otros grupos subalternizados; e insistencia en construir puentes y diálogo, inclusive con quien históricamente no lo desea.

PALABRAS CLAVE: Plan de estudio; Indígenas; Cosmopolitismo subalterno

ABSTRACT

In this article, the contributions of indigenous people to the construction of a subaltern cosmopolitan curriculum are analyzed. The field research involved semi-structured interviews with indigenous students from undergraduate courses at a Brazilian university. Through a qualitative analysis based on both cosmopolitan curriculum theories and the field of indigenous education, it was concluded that indigenous people have contributed to the construction of subaltern cosmopolitan curricula in different ways: fight against stereotypes; valorization of their mother tongues; recognition that subaltern education does not break subalternization; necessary articulation between knowledge and cultural context; building bonds of solidarity with other subaltern groups; and insistence on building bridges and dialogue, even with those who historically have not been open to that.

KEYWORDS: Curriculum; Indigenous; Subaltern cosmopolitanism

Introdução

Os estudos no campo da educação indígena têm se intensificado no Brasil, impactando os currículos das escolas indígenas. De maneira geral, coerente com a realidade da diversidade cultural indígena, esses estudos baseiam-se em uma etnia específica, com ênfase em seus modos próprios de lidarem com as escolas, na perspectiva de construírem-na de modo intercultural, bilíngue e diferenciado.

Longe de opormo-nos a esses estudos, neste artigo, com base na análise de entrevistas semiestruturadas realizadas com alunos indígenas, argumentaremos que, além dos conhecimentos próprios de cada etnia, os indígenas têm dado contribuições importantes, recorrendo à expressão de Santos (2007), para a construção de um cosmopolitismo subalterno, mais especificamente, de um currículo cosmopolita subalterno.

O conceito de currículo, como todos os conceitos, é polissêmico. Apesar de reconhecermos a polissemia do campo do currículo, tal como os autores utilizados neste artigo, com destaque para Pinar (2007a, 2007b, 2007c), pensamos que tanto a polissemia do conceito quanto a diversidade de teorias que o sustentam não são um sinal de fragilidade e imaturidade do campo, mas a expressão de sua riqueza e vitalidade.

Da mesma forma que o currículo, principalmente com base em Santos (2007, 2008a, 2008b, 2017, 2019), o cosmopolitismo pode ter diferentes significados: um cosmopolitismo hegemônico - com acento em uma lógica na ótica do mercado - e um cosmopolitismo subalterno. Pensando nesses termos, pode-se dizer que também no campo do currículo é possível identificar um cosmopolitismo hegemônico, via mercantilização do currículo em conformidade com o ideário neoliberal, e um cosmopolitismo subalterno, que defende um currículo com interesses públicos, preocupado com a justiça cognitiva e em evitar epistemicídios e desperdício de experiências (SANTOS, 2019) - um currículo que contribui para evitar os riscos mundiais (BECK, 2015) e promove a defesa de todas as formas de vida.

No primeiro momento deste artigo, problematizaremos o currículo cosmopolita hegemônico e argumentaremos em favor de um currículo cosmopolita subalterno. No segundo momento, com base nos conhecimentos indígenas obtidos por meio da realização de entrevistas semiestruturadas, mostraremos que esses conhecimentos são imprescindíveis para a construção de um currículo cosmopolita subalterno. Nas considerações finais, destacaremos a necessidade de incluir os conhecimentos dos indígenas como forma de ampliar as possibilidades de um currículo cosmopolita subalterno.

2 Por um Currículo Cosmopolita Subalterno

Uma das questões que surgem quando se escreve sobre um currículo cosmopolita é sobre sua pertinência, considerando-se a diversidade de povos e culturas, seja em contextos locais e nacionais; obviamente, essa diversidade é ainda muito maior no contexto global. Encontramos em Beck (2015) elementos que nos ajudam a pensar sobre isso. Para Beck (2015), o fato de vivermos riscos mundiais que não encontram soluções dentro da ciência moderna e ainda não fora dela nos conduz à necessidade de sermos cosmopolitas. Não se trata mais simplesmente de evitar a presença da diferença, pois essa tarefa se tornou impossível e não é eticamente desejável, mas de encontrar formas de viver com ela, criando laços de solidariedade e convivência pacífica, como forma de evitar os riscos ou de, pelo menos, atenuá-los. Também não se trata de fingir ou negar que não vivemos em uma sociedade de risco mundial, já que tal atitude só aumenta as possibilidades de os riscos (ecológicos, nucleares, terroristas, de catástrofes climáticas...) se tornarem mais rapidamente uma realidade.

Se, por um lado, a sociedade de risco mundial tem sido utilizada para justificar a existência de Estados autoritários, guerras preventivas ou um maior controle sobre nós mesmos, tais estratégias, longe de diminuírem os riscos, os exponencializam. Diante desse cenário, dispomos das nossas ainda frágeis experiências de solidariedade, que se produzem quando efetivamente os riscos viram realidade. Para Beck (2015), as catástrofes, sejam da ordem natural ou resultantes da ação humana, embora geralmente as primeiras também derivem das ações humanas, mais especificamente daquelas guiadas pela ciência moderna, mesmo que por ela não sejam reconhecidas como tais, costumam produzir três reações: “negação, apatia ou transformação” (BECK, 2015, p. 100).

A primeira atitude é típica da ciência moderna, incapaz de autocrítica e, portanto, de reconhecer-se como agente produtor também de riscos mundiais; a segunda, apesar de reconhecer os riscos e até mesmo associá-los à modernidade, ressente-se e vê-se incapaz de intervir; a terceira, a atitude transformadora, Beck (2015) denomina de cosmopolita. Com esta atitude, mesmo reconhecendo que, em certo sentido, é impossível prever as catástrofes, sobretudo as naturais, pois é justamente por isso que assim são denominadas, é possível “[...] antecipar e impedir as catástrofes geradas por ela própria [pela ciência moderna], em suma, lidar com as inseguranças criadas” (BECK, 2015, p. 103). Embora, do ponto de vista econômico, a sociedade de risco tenha se tornado um grande negócio, com indústrias que lucram bilhões com a promessa de vender segurança e eliminar os riscos, tal qual os governos autoritários, que prometem medidas para aumentar a segurança, mas apenas restringem a liberdade, elas também vendem somente a ilusão da segurança e da eliminação do risco.

A possível diminuição dos riscos não passa pela adoção e intensificação dessas medidas, pois se baseia na normalidade das ações humanas e em suas consequências, quando no contexto atual os maiores riscos não estão nas ações normais, mas justamente nas exceções e nas razões pelas quais são produzidos. Nesse sentido, precisamos de um novo paradigma: “[...] é preciso colocar as condições sociais globais de constituição do risco no centro das atenções, e não começar pela superação das suas consequências” (BECK, 2015, p. 105).

Ao refletirmos sobre as condições sociais da constituição do risco e suas características (deslocalização, imprevisibilidade e não compensabilidade), podemos encontrar soluções nessa reflexão, sem ignorar o conhecimento científico, mas completando-o “[...] com a força da imaginação, a suspeita, a ficção e o medo” (BECK, 2015, p. 130), inclusive em relação à ciência e à modernidade. São possibilidades além das falsas promessas das indústrias de segurança dos Estados autoritários (com destaque para os Estados Unidos, com suas genocidas guerras preventivas que só fazem aumentar os riscos mundiais). Trata-se de soluções que vislumbram caminhos promissores para construir uma sociedade civil não refém do Estado neoliberal - que visa apenas a instrumentalizar-se para otimizar e legitimar os interesses do capital -, mas capaz de produzir um Estado cosmopolita que se envolve “[...] na aura dos direitos humanos, da justiça global e da luta pela nova grande narrativa de uma globalização radicalmente democrática” (BECK, 2015, p. 130).

Essas alternativas estão disponíveis e, de certa forma, são produzidas pela própria sociedade de risco mundial. Os riscos são incontáveis, e muitos deles diretamente ligados ao desenvolvimento do capitalismo/neoliberalismo, com suas estratégias de acumulação flexível e desmantelamento das proteções sociais, que produzem uma desigualdade abissal, sem contar a destruição rápida da natureza. O sistema “[…] capitalista é hoje mais voraz pelos recursos naturais do que alguma vez foi, a destruição da natureza parece igualmente imparável, sendo trivializada pelo cinismo público, pela negação ou por pseudorremédios, como é o caso do capitalismo verde” (SANTOS, 2019, p. 49).

Esse aumento dos riscos traz em curso uma percepção generalizada de que, para fazerlhes frente, o caminho passa pelo reconhecimento de que nenhuma nação sozinha resolverá o problema. Com isso, cria-se “[...] um jogo de soma positiva, já que os envolvidos também estão obrigados a multiplicar o benefício dos outros” (BECK, 2015, p. 127).

Embora, para Beck (2015), esse processo esteja em curso, entendemos que, se efetivamente queremos um mundo cosmopolita, precisamos pensar em uma educação cosmopolita, um currículo cosmopolita. Porém, salientamos que esse currículo não pode ser imposto por experts, nem imposto via avaliação, mas gestado em diferentes contextos, com suas especificidades e voltado ao mesmo tempo aos interesses locais, reconhecendo que estes hoje são afetados por interesses globais. O que seria esse currículo cosmopolita?

Um dos autores que têm se ocupado com a discussão de um currículo com essa característica é Pinar (2007b). Além de trazer o cosmopolitismo, ele escreve sobre o currículo planetário e a internacionalização do currículo, questões habitualmente abordadas por autores que escrevem sobre o currículo cosmopolita. Para o autor, ao pensarmos o currículo, é fundamental considerar a produção intelectual do campo, sem, contudo, cair na armadilha de apresentá-la de forma sequencial, como se tivesse se dado em um passo a passo, sem a presença da subjetividade e as especificidades de um determinado contexto histórico.

Assim como a própria teorização curricular, um currículo “[...] incorpora a imprevisibilidade do presente. Enquanto vestígio do passado, o presente é uma previsão do futuro que está por vir” (PINAR, 2007b, p. 32). Também é importante considerar que, diferentemente da versão modernista de progresso, baseada no consumismo e nos avanços tecnológicos, que nos quer fazer crer que o “novo” é sempre “melhor”, portanto, sempre desejável, um currículo precisa ser “[...] pensado cuidadosamente, que é o mesmo que dizer respeitosamente, para que os participantes [...] possam fazer seus próprios juízos” (PINAR, 2007b, p. 33).

E isso efetivamente não ocorre com as atuais políticas curriculares pensadas pelas agências transnacionais. As políticas curriculares têm assumido um caráter mais transnacional, supranacional, por meio de um referencial global: “[...] o currículo é cada vez mais um projeto definido pelas políticas de partilha de conhecimento, com origem nos organismos transnacionais e supranacionais, tornando-o um dispositivo de regulação para a qualidade e eficiência” (PACHECO, 2014, p. 66).

Apesar de essas agências mencionarem a incorporação das autoavaliações, no fundo, não se trata de autoavaliações, dado que os parâmetros de avaliação são impostos de fora. Ainda que professores, alunos e demais agentes educativos possam fazer sua avaliação em relação ao currículo, esta só será aceita pelos agentes externos se estiver de acordo com os indicadores já definidos; não há espaço para levar em consideração as críticas à própria lógica do sistema: “[...] as escolas [e universidades] são negócios dirigidos por aquilo que interessa: os resultados nos testes” (PINAR, 2007b, p. 34).

Mesmo assim, como destaca Pinar (2007b), os currículos não se reduzem ao que é imposto pelos órgãos de controle. Os currículos estão sempre marcados pelo “mundanismo das escolas, dos professores e das crianças que ensinam” (p. 33). No contexto atual, lembrando que o presente é sempre imprevisível e traz os vestígios do passado, mas é também uma possibilidade de futuro, esses currículos articulam-se com questões planetárias, seja pelos problemas, que assumem cada vez mais características planetárias, seja pela busca de soluções, que não são só locais, mas planetárias. De modo semelhante a Beck (2015), Pinar (2007b) vê nos problemas planetários atuais a possibilidade de construir vínculos de solidariedade planetários que podem unir os teóricos do currículo em defesa de algumas questões centrais, com destaque para a defesa da escola pública fora da lógica do mercado. A existência de um inimigo comum - a escola atual, com seu currículo empresarial - pode fazer e, de certo modo, já está fazendo com que os teóricos críticos, sem eliminar suas divergências e diferenças, se unam para encontrar alternativas ao currículo vigente no contexto do neoliberalismo.

Para Pinar (2007a), isso não é exatamente uma novidade no campo do currículo. Algo semelhante aconteceu com os teóricos reconceptualistas da década de 1970. Apesar de suas divergências (sobretudo pela ênfase que um grupo dava ao indivíduo, e o outro, ao coletivo), eles se uniram na crítica ao modelo curricular tyleriano, trazendo questões políticas, culturais, históricas e de gênero para o centro do debate curricular. Os reconceptualistas “[...] sugeriam que a função dos estudos curriculares não era o desenvolvimento e a gestão, mas sim o entendimento sábio e disciplinado da experiência educacional, particularmente nas suas dimensões políticas, culturais, de gênero e históricas” (PINAR, 2007a, p. 202).

Ainda segundo o autor, outra possibilidade de união pode estar nos perigos iminentes que estão à nossa volta e que são também planetários (como a questão ecológica), para os quais não há soluções apenas locais, e que a lógica do currículo da escola neoliberal acaba potencializando. A alternativa a esses perigos poderia provisoriamente ser traduzida como a sustentabilidade. O autor, mesmo reconhecendo que a pergunta “qual conhecimento é mais importante?” requer uma reiteração permanente e que as respostas não serão consensuais, entende que a sustentabilidade é uma resposta coletiva: “naqueles que ameaçam ser os Últimos Dias, a sustentabilidade é certamente a resposta coletiva” (PINAR, 2007b, p. 37). A resposta à pergunta, portanto, não é instrumental, mas política e planetária. Podemos ter causas comuns em torno das quais é possível nos unirmos para a “[...] reconstrução subjetiva e social através da educação do público” (PINAR, 2007b, p. 34).

Outro autor que nos ajuda muito a pensar um currículo cosmopolita e que é utilizado recorrentemente nos campos da educação e do currículo no Brasil, embora não seja desses campos, é Santos (2005, 2007, 2008a, 2008b, 2019). Com o intuito de marcar uma posição clara em relação às pretensões de um processo de globalização econômica e internacionalização neoliberal, o autor tem defendido “[...] a busca de um cosmopolitismo subalterno, construído a partir de baixo nos processos de troca de experiências e de articulação de lutas entre os movimentos e organizações de excluídos e seus aliados de várias partes do mundo”. (SANTOS, 2019, p. 49).

Portanto, trata-se de pensar uma resistência em âmbito mundial, capaz de colocar em xeque o pensamento abissal que, por meio de sua epistemologia fascista, produz epistemicídios. “O fascismo epistemológico existe sob a forma de epistemicídio, cuja versão mais violenta foi a conversão forçada e a supressão dos conhecimentos não ocidentais levadas a cabo pelo colonialismo europeu e que continuam hoje sob formas nem sempre subtis” (SANTOS, 2008a, p. 28).

O autor traz uma contribuição importante para um currículo cosmopolita (subalterno) ao levar para o centro da questão a epistemologia ocidental e seu caráter totalitário e fascista, que não reconhece - ou, no mínimo, desqualifica e inferioriza - os conhecimentos que não tenham sido produzidos nessa lógica. Esse processo vem desde a colonização, quando os conhecimentos científicos, vistos como superiores e capazes de explicar quem era o outro colonial, sua organização social, sua vida e suas crenças, foram produzindo a morte dos conhecimentos e epistemologias dos povos colonizados, com destaque para as epistemologias indígenas e africanas. Esse processo foi decisivo para produzir, por um lado, uma superioridade ocidental e, por outro, uma inferioridade nos não ocidentais, ou seja, construiu-se uma epistemologia abissal (SANTOS, 2007), que se mantém até hoje.

Inspirados em Santos (2005, 2007, 2008a, 2008b, 2017, 2019), podemos dizer que, assim como no contexto da colonização o colonizador recorria à sua epistemologia e aos seus conhecimentos para rotular e produzir o outro como incapaz de governar-se e, portanto, necessitado de uma ação civilizadora, no contexto atual, os organismos internacionais ligados aos países economicamente hegemônicos impõem os conhecimentos que consideram necessários para todos, via sistema de avaliações internacionais, replicadas nos contextos nacionais. Isso serve para mostrar a suposta falta de conhecimentos de alguns (sistematicamente negros, indígenas, latinos e pobres de modo geral) e a suposta excelência de outros (brancos, ocidentais e alguns orientais, notadamente de países desenvolvidos), apresentando a falta de conhecimentos dos primeiros como motivo para seu atraso e subdesenvolvimento, ao passo que o alto nível de conhecimento e a excelência servem para explicar o desenvolvimento e a riqueza dos poucos. Nesse processo, a história de colonização e os mecanismos contemporâneos de espoliação, saque, dominação e massacre, seja pelo mercado financeiro, seja mediante guerras em nome da defesa dos direitos humanos e da democracia (SANTOS, 2007), são invisibilizados, assim como os conhecimentos autóctones que sustentaram povos e culturas durante milhares de anos sem a presença do conhecimento colonizador, o qual, prometendo salvação e civilização, trouxe a morte, o genocídio, o epistemicídio.

Nesse sentido, a reflexão teórica e a produção de um currículo cosmopolita (subalterno) passa também por uma questão epistemológica, pela capacidade de colocar em xeque a epistemologia ocidental: “[...] a resistência política deve ter como postulado a resistência epistemológica” (SANTOS, 2007, p. 83). Além de incluir os teóricos dos países denominados periféricos, como Portugal e Brasil, como destaca Pinar (2007), importa fazer um exercício decolonial que, de um lado, faça uma autocrítica e, de outro, reconheça que a diversidade epistemológica continua, apesar dos séculos de fascismo epistemológico. “É preciso um novo pensamento, um pensamento pós-abissal” (SANTOS, 2007, p. 83). Importa ainda aprender com as lutas dos movimentos sociais, com suas epistemologias, seus conhecimentos; talvez esses sejam nossos interlocutores mais importantes para que possamos fazer uma autocrítica permanente que potencialize um currículo cosmopolita (subalterno).

Esse processo de (auto)crítica, mais do que em relação à epistemologia positivista/moderna, alicerce da sociedade neoliberal, sobre a qual não há dúvidas em relação aos interesses que a movem e aos quais ela serve, pois os teóricos críticos e pós-críticos deram conta de mostrá-los, implica uma crítica interna, implica olhar para o interior das teorias críticas e pós-críticas. Isso para, em um primeiro momento, identificar práticas fascistas e epistemicidas, para então poder lutar contra elas, reconhecendo que não há conhecimento que seja só emancipatório - ele não está dado, ele é sempre um processo no qual, não raro, nos enganamos. Não raras vezes, ainda que sem querer, o que pensamos é utilizado para produzir opressão, legitimar hierarquias, reforçar um pensamento abissal. Portanto, uma vigilância epistemológica cotidiana, mesmo que não dê conta de evitar a construção de teorias e currículos que produzem efeitos que não controlamos, pode ajudar-nos a atenuá-los e mais rapidamente a darmo-nos conta de que convém investir nossas energias em outras teorizações e práticas.

O que é animador é que, segundo Santos (2007), é possível perceber sinais da emergência do cosmopolitismo subalterno desde a década de 1970. Trata-se de um cosmopolitismo pensado não a partir de quem pode usufruí-lo, isto é, como privilégio de um grupo que vive de forma cosmopolita porque tem condições de viajar e conhecer o mundo, mas justamente nas práticas de grupos e sujeitos culturais invisibilizados pelo uso hegemônico do conceito. Conforme o autor, historicamente, o conceito tem sido utilizado, quer como instrumento político, quer como ferramenta epistemológica, com a suposição de uma inclusão abstrata, “[...] para defender os interesses exclusivistas de um qualquer grupo específico. Em certo sentido, o cosmopolitismo foi sempre um privilégio apenas ao alcance de alguns” (SANTOS, 2017, p. 53). Portanto, é necessária uma atitude desconstrutiva para dar-lhe outro sentido e construí-lo como cosmopolitismo subalterno.

Santos (2007) aponta os indígenas da América como aqueles que mais podem contribuir com suas concepções e práticas para a construção do cosmopolitismo subalterno, pois neles é possível perceber aquilo que o autor denomina de pensamento pós-abissal. Portanto, é um pensamento que não cria um abismo entre os modos de pensar diferentes, que não desperdiça experiências, que não supõe a existência de um pensamento único, enfim, que não se move na lógica do fascismo epistemológico.

Ainda segundo Santos (2007), é importante caracterizar o cosmopolitismo, pois, sem a adjetivação, ele perde sua especificidade. Trata-se de pensar um cosmopolitismo que, porque baseado nas lutas contra-hegemônicas, se constitui em um movimento contra-hegemônico global, contra o capitalismo global/neoliberal.

O cosmopolitismo subalterno se manifesta mediante os diversos movimentos e organizações que configuram a globalização contra-hegemônica, lutando contra a exclusão social, econômica, política e cultural gerada pela mais recente encarnação do capitalismo global, conhecida como “globalização neoliberal” (SANTOS, 2007, p. 83).

Como a desigualdade e a exclusão social historicamente baseiam-se e continuam a basear-se no contexto neoliberal, nas assimetrias de poder, os diferentes movimentos sociais movem-se tendo como horizonte a redistribuição dos diferentes recursos (políticos, materiais, sociais, culturais), o que, como Santos (2007) postula, não se torna possível sem uma justiça cognitiva, que podemos traduzir no campo da educação; que não se torna possível sem a transformação do currículo neoliberal e a construção de um currículo cosmopolita subalterno que traga para o centro os conhecimentos historicamente silenciados pela epistemologia fascista. Nesse sentido, “[…] quanto mais compreensões não ocidentais forem identificadas, mais evidente se tornará o fato de que ainda faltam muitas outras por identificar e que as compreensões híbridas - com elementos ocidentais e não ocidentais - são virtualmente infinitas” (SANTOS, 2007, p. 84).

Portanto, para que o cosmopolitismo subalterno adquira cada vez mais força, necessário se faz reconhecer a inesgotável diversidade epistemológica e tomá-la como método de construção dos conhecimentos (cosmopolitas), o que implica “[…] uma ruptura radical com as formas de pensamento e ação da modernidade ocidental” (SANTOS, 2007, p. 85).

Significa reconhecer que há muito mais a aprender com os países e sujeitos que possuem epistemologias não ocidentais do que se pode supor neste momento. Os conhecimentos desses povos têm uma diversidade e riqueza inesgotáveis, e os conhecimentos ocidentais, longe de serem únicos e universais, representam apenas mais uma das várias formas de conhecer possíveis. Assim, não existe uma epistemologia universal ou geral. Talvez, como afirma Santos (2007), neste período de transição de saída da epistemologia abissal, tenhamos que reter a ideia geral, uma espécie de “[…] epistemologia geral da impossibilidade de uma epistemologia geral” (SANTOS, 2007, p. 86).

Mas essa impossibilidade de uma epistemologia geral não significa que os conhecimentos locais devem ficar nos limites do local. É importante encontrar formas de articulação que permitam sua circulação em nível global: “dado que a resistência contra as linhas abissais precisa ocorrer em uma escala global, é imperativo desenvolver algum tipo de articulação entre experiências subalternas por meio de ligações entre o local e o global” (SANTOS, 2007, p. 89).

Também é importante encontrar formas de tradução que viabilizem o diálogo e que estão muito além das traduções linguísticas, para ver quais as preocupações comuns, quais são passíveis de ser aproximadas e quais (ainda) não são passíveis de tornar-se comuns. Novamente, a vigilância epistemológica sem trégua torna-se mister para que esses processos de tradução não sejam uma versão atualizada do pensamento abissal ou uma versão mais “branda” do imperialismo e do colonialismo. Se temos sinais da emergência desse cosmopolitismo subalterno, inclusive no campo do currículo, percebidos nas críticas em diferentes partes do mundo ao currículo neoliberal, esses sinais parecem-nos mais intensos ao analisarmos a presença dos indígenas na universidade e seus conhecimentos.

3 Algumas Contribuições de Indígenas

Neste artigo, faremos menção a seis acadêmicos indígenas de diferentes licenciaturas e etnias presentes nos estados de Mato Grosso do Sul e Mato Grosso que estudam em uma instituição de educação superior localizada em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. A fim de manter o anonimato garantido quando da realização das entrevistas, nomearemos os indígenas apenas por letras e não forneceremos nenhum elemento de identificação. As entrevistas, em função do contexto da pandemia de COVID-19 foram realizadas via Google Meet.

Entende-se que as entrevistas, de caráter semiestruturado, são um instrumento de coleta de dados bastante legitimado no campo da educação, no caso de pesquisas qualitativas, sendo importante a atitude de escuta: “este é um grande desafio, pois frequentemente somos capturados em lógicas de repetição que nos fazem ouvir o que sempre ouvimos, perguntar o que sempre perguntamos e pensar o que sempre pensamos” (SOUSA, 2015, p. 87).

A escolha de acadêmicos indígenas de cursos de formação de professores (Biologia, Educação Física, Letras, Pedagogia, História), segundo nosso entendimento, contribui para mostrar o quanto os indígenas estão ocupando diferentes espaços, sem perderem a dimensão da luta e da resistência, e vão contribuindo, como destacado a partir de Santos (2007), para a construção de um currículo cosmopolita subalterno. A análise, além dos autores já citados, deuse com base no campo da educação indígena.

Entendemos que os conhecimentos produzidos são sempre o resultado de relações sociais e históricas, são conhecimentos articulados com a cultura. Por mais que a epistemologia ocidental insista na existência de um sujeito epistemológico puro, a rigor, todo sujeito epistemológico é um sujeito epocal e contextual (HALL, 2003). No caso das populações indígenas, seus conhecimentos resistem historicamente à imposição dos conhecimentos ocidentais e à epistemologia que os produz, sobretudo, no que se refere ao conhecimento produzido sobre os indígenas.

A fala do indígena A, conforme veremos a seguir, mostra a necessidade de desconstruir os estereótipos inventados pela epistemologia ocidental/fascista (SANTOS, 2007), e a forma de fazê-lo é ouvir o indígena. Ele lembra que esses estereótipos estão presentes nos currículos, principalmente nos livros didáticos, vindo ao encontro do que apontam as pesquisas do campo da educação indígena: “[...] estereótipos, imagens e representações negativas dos povos originários como preguiçosos, selvagens, primitivos, culturas atrasadas etc. são reproduzidas nos processos de formação nas escolas e, ainda, constam nos livros didáticos”. (BICALHO, OLIVEIRA E MACHADO, 2018, p. 1594). Porém, no encontro entre alunos indígenas e não indígenas nos cursos de licenciaturas, todos são afetados, e, nesse encontro intercultural, há mudanças: “[...] acadêmicos não indígenas são surpreendidos com temas nunca discutidos em sala de aula, como território, territorialidade, indígenas urbanos, natureza como cosmovisão, conhecimento não fragmentado, contradisciplinaridade e epistemologias outras” (NASCIMENTO, VIEIRA E LANDA, 2019, p. 403).

O indígena A menciona também que sua cultura não permanece a mesma, ela muda de acordo com novas necessidades. De certa forma, pode-se dizer que ele aponta a incompletude de sua cultura, vindo ao encontro de Santos (1997), que afirma que, para podermos pensar em construir um currículo cosmopolita subalterno, é importante reconhecer que todas as culturas são incompletas. Se, para os povos indígenas, isso parece ser uma realidade vivida cotidianamente, não se pode dizer o mesmo da lógica epistemológica ocidental, que, como vimos, no contexto atual, tenta impor um conjunto de conhecimentos por meio de currículos cosmopolitas articulados com os interesses do mercado. O indígena A traz outros conhecimentos:

A maioria dos docentes do curso são professoras, e elas gostam muito quando eu envolvo isso. Eu acho que é bem desconhecido ainda. Por mais que tenha muita coisa, muitas pessoas que já trabalharam em pesquisar os indígenas, ainda tem muitas coisas em descoberta. Porque a gente fica muito preso ainda lá naquele livro, que a gente aprende na escola que índio é só flecha, índio só tem aquele cabelinho liso. Aquele estereótipo que a gente inventa que o indígena é. E eu falo muito nas aulas que a gente tem que saber que cultura a gente nunca deixa de ter, a gente sempre vai ter a nossa cultura indígena. Mas também as aldeias, a relação pessoal da sociedade indígena dentro de uma aldeia, ela também muda conforme o tempo, porque a gente já fez esse contato com a cidade, com o povo branco. A gente aprendeu da cultura do povo branco. Então, é bem provável que, conforme o tempo, vai mudando para atender às nossas necessidades. Eu acredito que a nossa cultura também, a nossa sociedade indígena dentro de uma aldeia, ela também muda para atender às nossas necessidades conforme o tempo. Então, eu acho que as professoras gostam muito que eu fale disso na escola [...] Toda vez que eu tive que fazer um trabalho que era livre, pediam que eu trouxesse alguma coisa indígena para dentro da sala. (INDÍGENA A)

Assim, chega-se à primeira contribuição dos povos indígenas para um currículo cosmopolita subalterno: lutar contra os estereótipos, insistir no direito de dizer-se por meio de epistemologias autóctones, mostrar aos outros que todas as culturas passam invariavelmente por transformações, inclusive a própria, e que é possível aprender com outras culturas. Essa é uma contribuição importante, porque os indígenas têm uma experiência histórica de como não se dobrar à lógica ocidental, mesmo em condições abissais (SANTOS, 2007) de relações de poder. Eles vivem intensamente essa realidade.

Outra questão importante quando se pensa em um currículo cosmopolita é a da língua. Pinar (2007a) critica o fato de a língua inglesa ser vista como a língua do cosmopolitismo (hegemônico) e o quanto os estadunidenses, por não estudarem outras línguas, deixam de aprender com as experiências das outras culturas, por exemplo, dos países de língua portuguesa. No contexto indígena, o ensino de língua inglesa torna-se mais problemático ainda: o “[...] histórico do inglês como a língua do colonialismo e o possível dano que o ensino da língua representa nos contextos subalternos tornam [o] diálogo de vital importância para evitar a imposição de sistemas de saberes ocidentais aos estudantes indígenas” (RODRIGUES, ALBUQUERQUE E MILLER, 2019, p. 10). Os indígenas, de forma mais radical que Pinar (2007a), argumentam em favor do uso da língua materna e da necessidade de o outro aprender a sua língua para entender sua cultura. Novamente, estamos diante de uma experiência histórica de como, apesar de aprender a língua do colonizador, não deixar de reconhecer a relevância da língua nativa para a sua cultura e identidade. Os indígenas, embora tenham passado por um processo violento de imposição da língua portuguesa, hoje, em muitas escolas, têm o ensino bilíngue, garantido pela Constituição Federal de 1988, não como dádiva do Estado, mas como fruto de uma conquista coletiva, protagonizada pelos povos indígenas. Como diz o indígena B:

Uma questão muito importante é a língua. A língua na escola indígena não é Terena. Muitos lutam para ter uma língua estrangeira. Nós lutamos para ter a nossa língua trabalhada na escola porque é importante. Por exemplo, você não sabe nada da língua Terena, como você vai se comunicar comigo? Como vai entender minha cultura? Em vez de estudar língua inglesa, poderia estudar Terena. (INDÍGENA B).

Portanto, como segunda contribuição dos povos indígenas para um currículo cosmopolita subalterno, vemos que a comunicação com o outro não se dá pela imposição de uma língua hegemônica, tampouco se entende a cultura do outro ignorando e desqualificando a sua língua. Mais do que estudar línguas hegemônicas, para ampliar as possibilidades de um currículo cosmopolita subalterno, importa aprender a língua dos subalternizados. Se for para aprender a língua dos sujeitos hegemônicos, que seja para defender-se e afirmar a própria cultura e identidade, com também nos ensinam os indígenas.

Assim como a língua, o processo educativo é fundamental para que se possa pensar em um currículo cosmopolita subalterno. A educação não pode ser uma imposição; é necessário um diálogo permanente para que os estudantes percebam a importância de estarem na escola e dos conhecimentos em circulação nesse espaço. Não se educa para a liberdade por meio da repressão, seja esta física ou simbólica. O estudante precisa sentir-se bem nas escolas, estar lá porque vê sentido nelas e nas relações que estabelecem entre si e os demais sujeitos da escola:

Agora, eu vejo que a criança tem que saber a importância da escola, sem ninguém a obrigar. Entendeu? “Ai, você tem que ficar na sala de aula”. Não. Ela tem que entender que ela precisa daquilo ali, que tem a hora do recreio, que ela pode sair, pode ir embora, que ninguém está prendendo ela. Entendeu? Eu acho isso. Achei bem legal, tanto que fizeram a reunião com a gente, com os pais, perguntando se a gente queria que fosse igual à da cidade. Se quisesse, fechava. Só abria para ir embora e para voltar. Mas aí o pessoal não aceitou porque isso é como se fosse uma cadeia, entendeu? [...] A criança tem que ter autonomia e saber o que é bom para ela. (INDÍGENA C).

Estamos, pois, diante de mais uma contribuição dos indígenas para a construção de um currículo cosmopolita subalterno: não se rompe com os processos de subalternização e hierarquização, seja de sujeitos, conhecimentos, culturas ou outros, por meio de uma educação que subalterniza, que se pauta em relações abissais de poder (SANTOS, 2019) entre professores e alunos. Como mostra a fala do indígena, assim como inúmeras pesquisas realizadas em escolas indígenas, estas, apesar de terem sido impostas como uma instituição colonizadora, a serviço do colonizador, ao serem apropriadas pelos indígenas, se tornam espaços/tempos de valorização do modo der ser indígena: “resultante de processos bem criativos [...] temos visto nas práticas docentes metodologias diversas e inovadoras, tais como alfabetizar cantando, ensinar por meio de jogos, aulas dialogadas, além de uma vasta produção de materiais didáticos que são utilizados em sala de aula” (BRAZ E VALADARES, 2021, p. 5).

Nesse sentido, novamente, ressalta-se a experiência dos indígenas. Eles sabem como decolonizar espaços/tempos coloniais. Sabem como transformar instituições que nasceram para subalternizar, como foi o currículo da escola nas comunidades indígenas, em espaços/tempos de fortalecimento cultural e identitário, portanto, radicalmente contra os processos de subalternização. Lembramos que “[...] qualquer noção sobre currículo é sempre um modo concreto de referenciar uma dada abordagem do conhecimento” (PACHECO, 2016, p. 100).

A questão é saber quais conhecimentos são importantes, para que servem e como abordá-los. Conhecimentos dissociados da vida e da cultura dos estudantes, além de fazerem com que estes fiquem na escola por obrigação, no mínimo, são uma grande possibilidade perdida de construir conhecimentos que fortalecem os sujeitos em suas lutas contra os processos de subalternização. Não se pode ignorar que, “[...] nas escolas urbanas, a cultura indígena normalmente esteve relacionada com o dia do índio, na maioria das vezes apresentando uma cultura romantizada, estereotipada e preconceituosa” (BRAZ E VALADARES, 2021, p. 3). Por isso, ao reconhecer-se que o conhecimento é importante, não se está dizendo que qualquer conhecimento o é. Precisa ser um conhecimento articulado com a vida, e a abordagem pedagógica vai fazer toda a diferença no processo de construção dos sujeitos.

A maneira de ensinar é diferente nas escolas indígenas e precisa ser diferente. O conhecimento é importante, mas a maneira de ensinar, de abordar o assunto, deve ser diferente, porque o ensino numa aldeia é bem diferente. Então, a maneira de o professor abordar isso, ele precisa adaptar à realidade indígena, como Paulo Freire fazia. Na maneira de ele ensinar, usar uma linguagem da vivência das crianças indígenas, da cultura indígena. (INDÍGENA D).

Eis, portanto, a quarta contribuição dos indígenas para a construção de um currículo cosmopolita subalterno: os conhecimentos são importantes, mas precisam ser trabalhados pedagogicamente de modo a fazerem sentido para os alunos. Portanto, um conhecimento não é importante porque foi produzido por um grupo hegemônico que, em um determinado contexto, tem condições de impô-lo no currículo. Um conhecimento é importante se ele dialogar com a vivência dos estudantes, se estiver articulado à cultura. Salienta-se que as escolas indígenas têm paulatinamente conseguido estabelecer um diálogo entre diferentes conhecimentos, não pela lógica da hierarquização, mas pela lógica da complementaridade dos conhecimentos, por meio de pedagogias próprias.

Na perspectiva de um currículo cosmopolita subalterno, a questão é perceber quais lutas e quais grupos também passam por processos de subalternização, e é possível estabelecer alianças para fortalecer a luta dos diferentes grupos subalternizados. Os indígenas resistem há mais de cinco séculos à imposição da cultura ocidental e de seu modo de produção. Eles lutam em favor da retomada dos territórios e contra um modo de vida predatório, como é o modelo neoliberal vigente.

Porque dentro da universidade, nós, indígenas, negros, a gente tem que mostrar o nosso potencial também, para todo mundo saber que a gente também tem o direito de estar ali, para estudar, ter uma boa educação de qualidade e mostrar que a gente está à frente também, que a gente pode. [...] “Por que índio quer terra? Porque eles não trabalham”. Tipo assim, essas coisas que você ouve. Porque, mesmo na nossa aula que a gente teve de cultura indígena, o professor falou muito sobre isso. Aí, alguns alunos perguntam: “Por quê? Se ele tem que morar lá no mato, continuar morando lá, não pode ter celular, não pode ter internet”. Tem aquela visão bem fechada. Então, isso, sim, chega a doer os ouvidos, porque a gente sempre escuta isso. Mas é uma causa em que a gente ainda tem muitas barreiras a enfrentar. (INDÍGENA E).

Como se observa, os indígenas veem nos grupos negros, que também passam sistematicamente por processos de subalternização, uma possibilidade de criar laços de solidariedade para afirmar seu modo de vida e sua cultura. A criação de laços de solidariedade entre os grupos subalternizados potencializa a luta por uma educação de qualidade que engloba a diversidade de sujeitos e culturas. Eles contribuem para perceber que incorporar algumas tecnologias ocidentais (celular, internet) não faz com que a identidade desapareça e que ela não é fixa, mas construída em função dos contextos vivenciados: “povos indígenas não deixam de ser quem são ao usar coisas e métodos não indígenas. Embora seja resultado da violenta e sistemática remoção dos povos tradicionais de suas terras, para muitos foi a única maneira de sobreviver” (ANDRADE, 2019, p. 326).

Os indígenas mostram que a terra não precisa ser fonte de lucro e riqueza para poucos; ela pode ser vista como território que afirma todas as formas de vida, que vê a interdependência de todos os seres. Da mesma forma, o trabalho não precisa ser uma forma de exploração de seres humanos por seres humanos, tampouco uma forma de depredação da natureza: “[...] a realidade recente insiste em nos mostrar que só poderemos salvar o planeta e preservar a vida digna se nos dispusermos a aprender com os conhecimentos excluídos e oprimidos” (SANTOS, 2019, p. 57).

Assim, estamos diante da quinta contribuição dos indígenas para a construção de um currículo cosmopolita subalterno: formar laços de solidariedade entre os diferentes grupos historicamente subalternizados, com destaque para os negros, para afirmar com mais intensidade outras formas de ver a cultura e a identidade (como dinâmica, não estereotipada), de relacionar-se com a natureza (não para depredá-la, mas para ver- se indissociável dela) e de entender o trabalho (não como acúmulo de riqueza e exploração do ser humano e da natureza). Enfim, os indígenas mostram-nos não só que é possível outro mundo, outro modo de produção, outra forma de relacionar-se com a natureza, como também que estes efetivamente sempre existiram e continuam existindo e que suas experiências são fundamentais para a criação de um currículo cosmopolita subalterno.

Por fim, além de construir laços de solidariedade com outros grupos subalternizados, com os indígenas, aprendemos a estabelecer um diálogo, mesmo quando esse não é desejado pelo outro. Historicamente, os sujeitos produzidos pela lógica ocidental têm dificuldade de dialogar com os indígenas, pois, em vez de ouvi-los e de reconhecê-los como sujeitos de conhecimento, se pautam em uma epistemologia que os invisibiliza e os subalterniza, não estabelecendo um diálogo. Entretanto, “essa falta de diálogo com outras culturas e a inadaptação da universidade, [...], aos olhos da sociedade, são equivocadamente interpretadas como incapacidade do indígena, aquele que não consegue acompanhar, o atrasado”. (LISBÔA E NEVES E, 2019, p. 11). Mesmo assim, os indígenas, ao falarem de suas identidades e culturas, procuram estabelecer pontes, convidando os outros a ouvirem e a conversarem com eles:

[...] a gente apresentou um trabalho. O professor pediu que a gente apresentasse um trabalho sobre como que é. E eu e os outros acadêmicos indígenas também, de Pedagogia e Biologia, nós apresentamos um trabalho sobre nossa cultura. Eu achei muito bom falar sobre isso. [...] Assim, para nós, que somos indígenas, é um pouco difícil, porque muita gente não conversa muito com a gente. No começo do semestre, principalmente. Eu tinha algumas amigas que conversavam comigo. [...] Aí foi um pouco difícil. (INDÍGENA F)

Então, como sexta contribuição dos indígenas para a construção de um currículo cosmopolita subalterno, temos que é preciso resistir, insistir e continuar construindo pontes para o diálogo. Se há mais de cinco séculos os indígenas sistematicamente não são ouvidos pela epistemologia abissal (SANTOS, 2019), eles sabem que isso não significa que o que dizem (seus conhecimentos) não têm relevância, mas que é preciso continuar a luta, porque é uma luta em favor da vida, não só dos que vivem este tempo, mas, sobretudo, das possibilidades de vida futura. “O conhecimento indígena está sempre disposto a ir até as últimas consequências para proteger a vida, em todas as suas formas, pequenas e grandes, frágeis e fortes, pois são partes de uma mesma teia da vida, de uma mesma cultura humana” (ANDRADE, 2019, p. 326).

Portanto, com os indígenas, aprendemos que o processo de construção de um currículo cosmopolita subalterno não é algo que se dá de forma rápida; é um processo que ocorre no cotidiano e em longo prazo. Mais ainda, não é porque a luta é ignorada pelos sujeitos hegemônicos que ela deve ser posta sob suspeita. Os indígenas ensinam-nos que, mesmo sendo uma luta secular, ela é necessária para que a vida possa continuar em suas múltiplas formas.

4 Considerações Finais

Talvez como em nenhum outro momento histórico, o campo do currículo tenha que assumir o compromisso de, além de fazer a crítica à escola e ao currículo a serviço do mercado, dar visibilidade mundial aos inúmeros currículos e pensamentos não abissais (SANTOS, 2019) praticados em diferentes partes do mundo.

Há muito para ser analisado e desnaturalizado nestes tempos de currículo cosmopolita hegemônico e de sua internacionalização via mercado. Sobretudo, cabe analisar como o campo do currículo tem ou não resistido, total ou parcialmente, não só no sentido de opor-se ao currículo neoliberal, como também no de continuar pensando e praticando outros currículos.

A circulação das experiências alternativas e das resistências locais pelas várias partes do mundo, seja de teóricos, seja de professores e alunos, mas especialmente de movimentos sociais, com destaque para as experiências indígenas, contribui para criar uma atmosfera curricular que provoca fissuras na hegemonia do currículo neoliberal, colaborando para a sua desconstrução e a criação de um currículo cosmopolita subalterno. Essas experiências colocam em xeque o desperdício da experiência que o currículo cosmopolita hegemônico provoca, a subalternização que ele reitera, a injustiça cognitiva que ele mantém (SANTOS, 2007, 2008a, 2017, 2019), a barbárie que ele produz.

Precisamos ter atitudes transformadoras e, como procuramos demonstrar, temos muito a aprender com os indígenas. Precisamos continuar mostrando os riscos e efeitos negativos de um currículo cosmopolita neoliberal, mas sem abrir mão de pensar e propor alternativas transformadoras capazes de articular e colocar em comunicação experiências teóricas e práticas de diversas partes do mundo (currículo cosmopolita subalterno), sem a pretensão de estabelecer hierarquias que inferiorizam, comparações que subalternizam, ranqueamentos que desqualificam, competições que dividem.

É preciso manter a vigilância permanentemente para que prevaleçam as experiências que potencializam o diálogo, as diferenças que permitem que uns aprendam com os outros, a cooperação que nos fortalece e a solidariedade que nos une em torno de coisas pelas quais vale a pena continuar lutando coletivamente. Nesse processo, quanto mais entendermos que os conhecimentos indígenas são imprescindíveis para a construção de um currículo cosmopolita subalterno, tanto mais passos daremos para a sua construção.

Reconhecimentos:

Não aplicável

Referências

ANDRADE, Edson Dorneles de. O indígena como usuário da Lei: um estudo etnográfico de como o movimento da literatura indígena entende e usa a Lei nº 11.645/2008. Cadernos Cedes, Campinas, v. 39 n. 109, p. 321-356, set.-dez., 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ccedes/a/JY48whrPwyqKVCmdb9v9Z6f/?lang=pt. Acesso em: 10 mar. 2022. [ Links ]

BICALHO, Poliene Soares dos Santos; OLIVEIRA, Fernanda Alves da Silva; MACHADO, Márcia. “Mas Eles São Índios de Verdade?”: representações indígenas na sala de aula. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 43, n. 4, p. 1591-1612, out./dez. 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edreal/a/rNFkv6dF3DpRhygnppWPLQb/?format=pdf&lang=pt Acesso em 10 mar. 2022. [ Links ]

BECK, Ulrich. Sociedade de risco mundial: em busca da segurança perdida. Lisboa (Portugal). Edições 70, 2015. 448 p. ISBN: 978-9724418575. [ Links ]

BRAZ, Werymehe Alves; VALADARES, Juarez Melgaço. Educação na aldeia e escola indígena de Muã Mimatxi: o tehêy de pescaria de conhecimento. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 47, e236053, 2021. Disponível em: http://educa.fcc.org.br/pdf/ep/v47/1517-9702ep-47-e236053.pdf Acesso em: 15 mar. 2022. [ Links ]

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003. 223 p. ISBN: 9788570413567. [ Links ]

LISBÔA, Flávia Marinho; NEVES, Ivânia dos Santos. Sobre alunos indígenas na universidade: dispositivos e produção de subjetividades. Educação & Sociedade, Campinas, v.40, e0219239, 2019. Diponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/FQQTxZ4FNgMCtXS9TTSmxZk/?format=pdf&lang=pt Acesso em: 20 mar. 2022. [ Links ]

NASCIMENTO, Adir Casaro; VIEIRA, Calos Magno Naglis; LANDA, Beatriz dos Santos. Experiências interculturais na universidade: a presença dos indígenas e as contribuições à Lei n° 11.645/08. Cadernos Cedes, Campinas, v. 39 n. 109, p. 397-416, set.-dez., 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ccedes/a/5KTZZqkpwkdPkgLCFySyktt/?format=pdf&lang=pt Acesso em: 20 mar. 2022. [ Links ]

PACHECO, José Augusto. Currículo, aprendizagem e avaliação. In: MORGADO, José Carlos; QUITEMBO, Alberto Domingos. Currículo, avaliação e inovação em Angola: perspectivas e desafios. Benguela (Angola): Ondjiri, 2014. 136 p. ISBN: 9899912816. [ Links ]

PACHECO, José Augusto. Para a noção de transformação curricular. Revista Cadernos de Pesquisa, São Paulo, Fundação Carlos Chagas, v.46, n.159, p.64-77, mar. 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cp/a/xNRqdsZNCHt3dBBv69gjWGn/?format=pdf&lang=pt Acesso em: 20 mar. 2022. [ Links ]

PINAR, William. A reconceptualização dos estudos curriculares. In: PARASKEVA, João M. (Org.). Discursos curriculares contemporâneos. Mangualde (Portugal): Edições Pedago, 2007a. 227 p. ISBN 978-972-8980-31-3. [ Links ]

PINAR, William. Introdução. In: PARASKEVA, João M. (Org.). Discursos curriculares contemporâneos. Mangualde (Portugal): Edições Pedago, 2007b. 227 p. ISBN 978-9728980-31-3. [ Links ]

PINAR, William. O que é a teoria do currículo. Porto (Portugal): Porto editora. 2007c. 432 p. ISBN: 978-972-0-34825-8. [ Links ]

RODRIGUES, Walace; ALBUQUERQUE, Francisco Edviges; MILLER, Micho. Decolonizando o Ensino de Língua Inglesa para Populações Indígenas Brasileiras. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 44, n. 2, e81725, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edreal/a/43bj8bSQDpQYPjQTX9jK9jb/?format=pdf&lang=pt Acesso em: 02 mar. 2022. [ Links ]

SANTOS, Boaventura de Sousa. Uma concepção multicultural de direitos humanos. São Paulo: Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 39, p. 105-201, jan-abr., 1997. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ln/a/gVYtTs3QQ33f63sjRR8ZDgp/?format=pdf&lang=pt Acesso em: 10 mar. 2022. [ Links ]

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos Estudos - CEPRAP, n. 79, p. 71-94, 2007. Disponível em: https://www.scielo.br/j/nec/a/ytPjkXXYbTRxnJ7THFDBrgc/?format=pdf&lang=pt Acesso em: 02 mar. 2022. [ Links ]

SANTOS, Boaventura de Sousa. A filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de Pascal. Revista de Ciências Sociais, n. 80, p. 11-43, março, 2008a. Disponível em: https://www.ces.uc.pt/bss/documentos/A_filosofia_a_venda_RCCS80_Marco2008.pdf Acesso em: 20 mar. 2020. [ Links ]

SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2008b. 511p. ISBN: 978-85-249-1242-9. [ Links ]

SANTOS, Boaventura de Sousa. As bifurcações da ordem: revolução, cidade, campo e indignação. Coimbra: Almedina, 2017. 408 p. ISBN: 978-8524925016. [ Links ]

SANTOS, Boaventura Sousa. Direitos humanos, democracia e desenvolvimento. In: SANTOS, B. S.; MARTINS, B. S. (orgs.). O pluriverso dos direitos humanos: a diversidade das lutas pela dignidade. Coimbra: Edições 70, 2019. 584 p. ISBN: 9789724419695. [ Links ]

SOUSA, Edson Luiz André. Entrevistar. In: FONSECA, T. M. G.; NASCIMENTO, M. L.; MARASCHIN, C. Pesquisar na diferença: um abecedário. Porto Alegre: Sulina, 2015. 263 p. ISBN: 978-8520506462. [ Links ]

Financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Aprovação ética: Sim.

data-not-available

Disponibilidade de dados e material: Não aplicável.

Recebido: 04 de Abril de 2022; Aceito: 18 de Maio de 2022; Publicado: 28 de Setembro de 2022

Conflitos de interesse:

Os autores certificam que não têm interesse comercial ou associativo que represente um conflito de interesses em relação ao manuscrito.

Editor de Seção:

Andréia Aparecida Simão

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons