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Revista Brasileira de Política e Administração da Educação

versão impressa ISSN 1678-166Xversão On-line ISSN 2447-4193

Revista Brasileira de Política e Administração da Educação vol.35 no.3 Goiânia maio/ago 2019  Epub 21-Jul-2020

https://doi.org/10.21573/vol35n32019.96132 

Dossiê: Militarização da escola pública

Escola militar para quem? O processo de militarização das escolas na rede estadual de ensino do Piauí

Military school for whom? the process of militarization of schools in the state education network of Piauí

¿Escuela militar para quién? el proceso de militarización de las escuelas en la red estatal de enseñanza de Piauí

MARINA GLEIKA FELIPE SOARES

SAMARA DE OLIVEIRA SILVA

LUCINE RODRIGUES VASCONCELOS BORGES DE ALMEIDA

LUCINEIDE MARIA DOS SANTOS SOARES

ROSANA EVANGELSITA DA CRUZ


RESUMO

Esse artigo tem por objetivos expor o debate estabelecido no Estado do Piauí sobre a proposta de militarização do ensino; apresentar a experiência da escola militarizada Centro de Educação em Tempo Integral Dirceu Mendes Arcoverde e problematizar o Projeto de Lei em tramitação da Assembleia Legislativa do Estado do Piauí (ALEPI) que propõe a expansão da militarização das escolas na rede estadual de educação. A pesquisa consistiu em estudo documental e observação participante. As referências centrais foram Freitas (2005), Ricci (2019), Benevides e Soares (2019), as quais contribuíram para a compreensão dos elementos implicados na inserção da militarização do ensino na rede estadual de educação do Piauí. Os resultados informam a resistência dos movimentos sociais às propostas militarização das escolas; a existência de uma escola militarizada no Estado e o avanço de propostas de militarização no Piauí, com o aval da Secretaria de Educação, a qual assegura tratamento diferenciado a essa proposta, em detrimento das demais escolas da rede estadual de educação.

Palavras-Chave: Educação Básica; Militarização das Escolas; Gestão da Educação

ABSTRACT

This article aims to expose the debate established in the state of Piauí on the proposal of militarization of teaching; to present the experience of the militarized school full time Education center Dirceu Mendes Arcoverde; and problematize the bill in the processing of the Legislative Assembly of the State of Piauí (ALEPI) that proposes the expansion of the militarization of schools in State Education Network. The research consisted of documentary study and participant observation. The central references were Freitas (2005), Ricci (2019), Benevides and Soares (2019), which contributed to the understanding of the elements involved in the insertion of the militarization of teaching in the state education network of Piauí. The results inform the resistance of social movements to the militarization proposals of schools; the existence of a militarized school in the State and the advancement of militarisation proposals in Piauí, with the endorsement of the Secretariat of Education, which ensures differentiated treatment to this proposal, to the detriment of the other schools of the state Education network.

Key words: Basic education; the militarization of schools; management of education

RESUMEN

Este artículo tiene por objetivos exponer el debate establecido en el Estado de Piauí sobre la propuesta de militarización de la enseñanza; presentar la experiencia de la escuela militarizada Centro de Educação em Tempo Integral Dirceu Mendes Arcoverde y problematizar el Proyecto de Ley en trámite de la Asamblea Legislativa del Estado de Piauí (ALEPI) que propone la expansión de la militarización de las escuelas en la red estatal de educación. La investigación consistió en estudio documental y observación participante. Las referencias centrales fueron Freitas (2005), Ricci (2019), Benevides y Soares (2019), las cuales contribuyeron para la comprensión de los elementos implicados en la inserción de la militarización de la enseñanza en la red estatal de educación de Piauí. Los resultados informan la resistencia de los movimientos sociales a las propuestas de militarización de las escuelas; la existencia de una escuela militarizada en el Estado y el avance de propuestas de militarización en Piauí, con la garantía de la Secretaría de Educación, la cual asegura tratamiento diferenciado a esa propuesta, en detrimento de las demás escuelas de la red estatal de educación.

Palabras-clave: Educación Básica; Militarización de las Escuelas; Gestión de la Educación

INTRODUÇÃO

A educação pública brasileira tem sido campo de interesse do mercado educacional desde a década de 1990, especificamente no contexto em que as empresas e corporações educacionais se lançaram na captura de recursos públicos das redes educacionais em todo o país. Essas empresas oferecem serviços nas áreas de gestão, avaliação e atividades fins do processo educativo, por meio de assessorias técnicas, cursos de formação e venda de materiais didáticos com conteúdo educacional, que contemplam uma perspectiva mercadológica, embora comercializados com a promessa da garantia de qualidade na oferta dos chamados serviços educacionais.

Em nova empreitada privatista para captura de recursos públicos da educação, o setor passa a ser palco de disputa quanto ao tipo de formação a ser oferecido aos estudantes. Nesse contexto, reafirmando o caráter de aparelho ideológico do Estado, vêm ocorrendo processos nos quais perspectivas militarizantes ou evangélicas passam a ocupar espaços nas redes públicas de ensino, oferecendo ‘serviços’ na área da educação, esporte e ‘formação cívica’, contrariando os princípios educacionais da legislação brasileira.

Para Ricci (2018 , s/p.), “entre as iniciativas de captura das redes públicas de ensino, a mais esdrúxula foi a entrega de sua gestão às corporações militares”, como ocorreu em estados como Goiás, Distrito Federal, Roraima, Pará, Amazonas, Bahia, Santa Catarina, Ceará, Tocantins, Sergipe e Piauí. Os governos desses estados, sob gestão de diferentes matizes político-partidárias, convergem na adoção da militarização da gestão das escolas públicas. Os motivos alegados são, invariavelmente, fincados em relatos de violência no interior do ambiente escolar.

Desse modo, a crescente violência no ambiente escolar contra professores, alunos e servidores e os casos de tráfico de drogas têm levado à propagação da proposta de militarização das escolas como proposição salvacionista, tida como resposta mais eficiente ao combate da criminalidade intra e extraescolar.

Dessa forma, nos termos de Freitas (2005 , p. 912), "os variados espaços dos sistemas de ensino são disputados por propostas políticas e por diversas concepções educativas" que, muitas vezes, rompem com "direitos arduamente conquistados nas lutas sociais, entre eles o direito de acesso ao conhecimento historicamente acumulado por meio dos processos escolares”, rompimento que se expressa, também, em processos de militarização do ensino.

Diferentemente da proposta de ‘Colégios Militares’, que direcionam a formação de seus alunos para o preenchimento das fileiras das instituições militares (marinha, exército e aeronáutica), em todo o território brasileiro, as ‘Escolas Militarizadas’, embora possuam algumas similaridades, pelo fato de a estrutura ser militarizada/hierarquizada, não possuem como finalidade a formação de quadros para as carreiras militares.

Portanto, a ‘Escola Militarizada’ assume como característica a inserção das instituições de segurança do Estado brasileiro na gestão das escolas públicas, com a transferência da gestão administração para órgãos de Segurança Pública, mediante parceria com Secretarias Estaduais de Educação.

Esse novo “modelo” de gestão tem, entre os principais desdobramentos, a supressão da gestão democrática; a padronização do ensino; a intensificação da precarização do trabalho docente; a instituição de processos de terceirização; a realização de parcerias entre as escolas e outras instituições; a desigualdade nas condições de oferta entre escolas da mesma rede e a inserção das forças militares nas escolas públicas.

A inserção da perspectiva militar no ambiente escolar fere princípios constitucionais como o direito à educação, a gestão democrática e o pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, situação que vem correndo no Estado do Piauí mediante a entrega da gestão de escola estadual de Ensino Médio para a corporação militar. A proposta de militarização das escolas restringe o acesso mediante a inserção de teste seletivo e impõe o controle das atividades de gestão escolar e pedagógica em favor de uma lógica militarizada. No Piauí, está em tramitação um Projeto de Lei que transfere para a estrutura da Política Militar um conjunto de escolas da Secretaria de Educação do Piauí (SEDUC-PI) para a Polícia Militar do Piauí (PM/PI), que passará a assumir a gestão de escolas da rede estadual, tendo a SEDUC-PI com mantenedora.

Em que pese a gravidade da proposta, o tema militarização do ensino ainda não tem sido enfrentado nos estudos sobre política educacional no Estado do Piauí, não obstante a importância de investigações sobre o impacto dessa proposta de gestão na dinâmica de funcionamento do trabalho escolar, em suas dimensões administrativa, financeira e pedagógica, principalmente porque a militarização não se coaduna com os preceitos da CF/88 ( BRASIL, 1988 ) que tem, entre seus princípios basilares, a gestão democrática da escola pública e o pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, condição para assegurar o direito humano à educação.

Este artigo representa os resultados de um estudo preliminar acerca da política de militarização de escolas no Piauí, tendo por objetivos expor o debate estabelecido no Estado sobre a proposta de militarização do ensino; apresentar a experiência da escola militarizada ‘Centro de Educação em Tempo Integral Dirceu Mendes Arcoverde’, abordando aspectos como gestão, acesso e permanência dos alunos, condições de oferta e avaliação externa; e problematizar o Projeto de Lei em tramitação na Assembleia Legislativa do Estado do Piauí - ALEPI (PIAUÍ, 2019), que propõe a expansão da militarização das escolas na rede estadual de educação.

Os subsídios para a discussão e compreensão crítica desse processo no Estado do Piauí têm como base a análise documental da legislação, do Projeto de Lei n° 51/2019 ( idem ), de matérias jornalísticas e da Recomendação do Ministério Público do Piauí sobre a lotação de militares nas escolas (PIAUÍ. 2016). Ademais, a observação participante das autoras nos momentos de tensionamento dessa política, mediante participação no Fórum em Defesa da Educação Pública, com o objetivo de barrar o processo de militarização das escolas no Estado do Piauí, constitui material do presente artigo.1

O recorte temporal abrange os anos de 2015 a 2019, englobando, portanto, os anos mais recentes das políticas educacionais do Estado do Piauí, sob a gestão governador José Wellington Barroso de Araújo Dias, do Partido dos Trabalhadores.

O estudo dialogou com autores como Freitas (2005) , Ricci (2018) , Benevides e Soares (2018) , os quais contribuíram para a compreensão dos elementos implicados na inserção da militarização do ensino da rede estadual de educação do Piauí.

Este artigo está dividido em três seções, além desta introdução e das considerações finais. A primeira discorre sobre a iniciativa da Secretaria Estadual de Educação do Piauí (SEDUC-PI) de instituição de processo de militarização das escolas e sobre a luta dos movimentos sociais contra esse processo. A segunda caracteriza a única escola militarizada do Estado do Piauí, o Centro de Educação em Tempo Integral “Dirceu Mendes Arcoverde”. A terceira seção se debruça sobre o Projeto de Lei nº 51, de 26 de março de 2019 (PIAUÍ, 2019), que tramita na Assembleia Legislativa do Estado do Piauí (ALEPI), dispondo sobre a proposta de militarização das escolas.

O PROCESSO HISTÓRICO DE MILITARIZAÇÃO DAS ESCOLAS NA REDE ESTADUAL DO PIAUÍ

A gestão da Secretaria de Educação do Estado do Piauí adquire contornos específicos quando, no ano de 2015, é assumida por uma Bacharela em Direito e Administração, a esposa do governador e atual Deputada Federal Rejane Dias, do Partido dos Trabalhadores.

Sob a justificativa da necessidade de combater o avanço da violência na sociedade, com seus reflexos na educação, a SEDUC-PI lança um projeto, em 2015, de militarização de escolas no Estado do Piauí. Esse Projeto foi elaborado após visitas da Secretária a alguns Estados e capitais do Brasil, tendo como referência as experiências de escolas militares ou militarizadas do Ceará, de Manaus e do Paraná. A proposta inicial era de parcerias com a Polícia Militar, o Corpo de Bombeiros e o Exército, conforme exposto pela SEDUC/PI nos meios de comunicação. Como projeto piloto, foi inaugurada, em 11 de agosto de 2015, a primeira escola militarizada do Estado, o "Colégio Militar Dirceu Mendes Arcoverde”, mais conhecido como Colégio da PM/PI, localizado no Bairro Morada do Sol, em Teresina-PI. Em que pese a adoção do nome Colégio Militar, gravado na fachada da Escola, a mesma não se caracteriza como militar nos termos definidos neste artigo, porque não tem por objetivo formar quadros para a Marinha, Exército ou Aeronáutica.

Na inauguração estavam presentes o Governador do Estado, a Secretária de Educação, o presidente da ALEPI, vários deputados estaduais, as principais mídias do Estado, em que todos ressaltaram a importância da proposta para o futuro da juventude, enfatizando a disciplina adotada, a segurança, a prevenção da violência e do uso das drogas, dentre outras questões.

No início de 2016, dando prosseguimento ao projeto, estava prevista a militarização de mais duas escolas, as quais foram selecionados por serem na periferia e com altos índices de violência2 .

Paralela a esse processo, houve a intensificação do investimento financeiro para a criação dos projetos de “Pelotão Mirim”, em bairros periféricos da cidade de Teresina, capital do Piauí, e no interior do Estado, atividade coordenada pela polícia militar, corpo de bombeiros e igrejas evangélicas, por meio de parceria entre Política Militar, SEDUC/PI e Secretaria de Assistência Social (SASC).

A intenção da SEDUC-PI era a militarização de 14 escolas, em 2016, sendo uma em cada região da capital e nas maiores cidades do Estado. A proposta de militarização levou os movimentos a se contraporem ao Projeto que, na opinião dos mesmos, objetivava interiorizar e intensificar um modelo de educação para as populações pobres e periféricas que negava o próprio direito à educação.

Entidades como o Comitê Piauí da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o SINTE, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Confederação dos Trabalhadores no Brasil (CTB), a comunidade científica, estudantes, vários movimentos sociais e educacionais reuniram-se para combater a expansão dessa política que estava sendo amplamente defendida pela SEDUC/PI. Dessa organização, surge o Fórum em Defesa da Educação Pública, agregando um conjunto de entidades na luta por políticas públicas educacionais voltadas aos reais anseios democráticos, efetivando debates, audiências públicas, panfletagens pelos meios digitais e articulação com entidades nacionais, como a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a CNTE, a CUT, o Fórum Nacional da Educação (FNE), dentre outras.

A partir da referida ação foi realizada denúncia junto ao Ministério Público (MP/PI) sobre a proposta de militarização, o que implicava policiais militares exercerem funções de natureza civil, como diretor, coordenador ou supervisor escolar. A Procuradoria do MP/PI argumentou que se tratavam de servidores (militares ativos) em desvio de função, o que fere o artigo 75, XII, da Lei nº 3.808 de 16 de julho de 1981 (PIAUÍ, 1981). O processo resultou na Notificação de Recomendação nº 06, de fevereiro de 2016 (PIAUÍ, 2016), do MP/PI, recomendando a suspensão de implantação de quaisquer escolas militarizadas no âmbito da SEDUC-PI, bem como o fornecimento da relação de todos os Policiais Militares à disposição daquela Secretaria, especificando cargo, função, lotação e data da posse.

De acordo com a referida Notificação do MP/PI, os militares ativos, em exercício no âmbito da SEDUC-PI em Escola Militarizada, encontravam-se sem ato de posse do governador para a sua lotação, exercendo função civil em desacordo com o que determina a Lei nº 3.808, de 16/07/1981 - Estatuto dos PM/PI (PIAUÍ, 1981). Esta Lei estabelece que esses afastamentos na função civil só poderiam estender-se por um período máximo de dois anos, sob pena de os policiais militares ativos serem agregados, ou seja, irem para a reserva. Com isso, a promotoria estadual recomendou à SEDUC/PI, “a suspensão imediata da implantação de quaisquer ‘escolas militares’ geridas pela Secretaria Estadual de Educação, sem o cumprimento dos dispositivos legais supracitados” (PIAUÍ, 2016).

A aguerrida militância das entidades do Fórum em Defesa da Educação Pública, acrescida da intervenção do MP/PI, contribuiu para que os Policiais Militares fossem desestimulados e o governo estadual recuasse do projeto de expansão de militarização de escolas da rede estadual, permanecendo apenas uma escola militarizada, denominado de "Colégio Militar" Dirceu Mendes Arcoverde, como passamos a tratar.

A ESCOLA MILITARIZADA “COLÉGIO MILITAR" DIRCEU MENDES ARCOVERDE

A Escola Estadual “Governador Dirceu Mendes Arcoverde”, fundada em março de 1978 está localizada em um bairro de classe média de Teresina-PI, cujo rendimento mensal dos domicílios particulares permanentes é bem acima dos demais bairros da cidade (TERESINA, 2018).

A escola, desde sua inauguração, tem a direção sob a responsabilidade da polícia militar, embora não tenha assumido característica de escola militarizada até a SEDUC-PI encampar a proposta de militarização.

Em 2015, sob a direção de duas Oficiais da Polícia Militar em articulação com a SEDUC-PI, definiu-se pela militarização da escola com o objetivo de prestar serviço educacional e social a toda a comunidade, no entanto, com custeio e manutenção pela SEDUC-PI. Para isto, as gestoras elaboraram um Projeto inspirado na experiência de escolas militares desenvolvidas em outras Unidades da Federação com apoio irrestrito da SEDUC-PI, vislumbrando uma educação com disciplina para proporcionar ao educando a formação necessária ao desenvolvimento de suas potencialidades, autorrealização e o preparo para o exercício consciente da cidadania. Nessa perspectiva a Escola passou a ter como lema: Educar é Disciplinar para a Vida.

A escola funciona, desde 2009, com o Ensino Médio em Tempo Integral, adotando a seguinte nomenclatura “Escola Estadual de Tempo Integral Governador Dirceu Mendes Arcoverde – Colégio da Polícia Militar do Piauí”, passando a ser subordinada ao Comando Geral da PM-PI, junto à Diretoria de Ensino, Instrução e Pesquisa, com o apoio técnico, pedagógico e financeiro da SEDUC-PI, sua mantenedora.

A Escola atende os estudantes de ambos os sexos, na faixa etária dos 15 aos 18 anos. O ingresso ocorre no 1º ano do Ensino Médio, conforme normas fixadas em Edital, sendo necessário a idade máxima de 15 anos na data da matrícula e a aprovação do estudante em teste seletivo, das vagas ofertadas: 10% são destinadas à alunos vindos de escolas particulares, 60% para escolas públicas e 30% são reservadas para dependentes de militares, conforme site da SEDUC-PI3 . O processo seletivo e a reserva de 10% das vagas à alunos vindos de escolas particulares e 30% das vagas para filhos de militares viola o princípio da igualdade de condições de acesso e permanência na escola segundo inciso I do art. 206, CF/88 ( BRASIL,1988 ). Ademais, a referida igualdade de condições é violada quando a SEDUC-PI prioriza certas unidades escolares em detrimento de outras, como ocorre na escola militarizada, pois a Secretaria faz dispêndios em fardamento e investimento diferenciado na estrutura e demais insumos exigidos no fazer educacional.

As condições privilegiadas de execução do trabalho e a seleção dos alunos leva ao questionamento quanto ao objetivo de diminuição da violência e de melhoria do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), tão propagandeados pela SEDUC-PI e a PM-PI. Ora, se já foram selecionados os estudantes através de teste para estarem nessa escola, que indisciplina essa escola visa a combater? Pois, ao determinar o corte etário e a reserva de vagas por meio de processo seletivo altamente concorrido (1.500 inscritos para 175 vagas no último edital), pressupõe-se que esses discentes já serão diferenciados dos demais.

Destaca-se que os professores das escolas de tempo integral do Estado submetem-se a um seletivo e recebem uma gratificação também estendida aos demais trabalhadores da escola, formando um quadro docente também diferenciado.

O IDEB, como política de avaliação, ao adotar indicadores restritos (taxa de aprovação e nota em avaliações em larga escala), não leva em consideração fatores determinantes do aprendizado. No entanto, sendo um índice propagandeado pelo Governo como parâmetro de qualidade, apresentamos o Quadro 1 , que demonstra o IDEB das 17 escolas públicas de ensino médio melhor classificadas do Piauí, em ordem decrescente:

QUADRO 1 IDEB das escolas estaduais do Piauí em ordem decrescente (ensino médio) 

Nome do Município Nome da Escola IDEB 2017 - MÉDIO (N x P) Matriculas Matriculas Tempo Integral Turmas Turnos de Funcionamento Salas de Aula Docentes Total de Funcionários INSE
Teresina CETI JOAO HENRIQUE DE ALMEIDA SOUSA 5,7 336 336 9 1 8 18 35 3
Oeiras UNID ESC DESEMBARGADOR PEDRO SÁ 5,6 325 325 10 1 11 19 38 2
Cocal dos Alves ENSINO MEDIO AUGUSTINHO BRANDAO 5,4 316 210 12 2 7 18 26 2
Piripiri UNIDADE ESCOLAR JOSE NARCISO DA ROCHA FILHO 5,3 400 353 12 2 10 23 33 2
Campo Maior UNID ESC PATRONATO N S DE LOURDES 5,2 931 68 30 2 25 56 66 3
Castelo do Piauí UNID ESC CONEGO CARDOSO 5,2 862 162 29 3 7 35 43 3
Teresina CETI PROFESSOR RALDIR CAVALCANTE BASTOS 5,1 348 348 10 1 10 19 48 3
Piracuruca UNIDADE ESCOLAR PRESIDENTE CASTELO BRANCO 4,9 137 137 6 1 6 11 29 2
Teresina CEPTI GOV. DIRCEU MENDES ARCOVERDE 4,9 487 487 15 1 15 26 70 2
Monsenhor Hipólito UNIDADE ESCOLAR JOSE ALVES BEZERRA 4,7 819 149 35 3 7 39 50 2
Teresina CETI PROFESSOR DARCY ARAUJO 4,7 379 379 11 1 11 18 70 3
Oeiras UNID ESC ROCHA NETO 4,6 316 316 13 2 13 18 32 1
Landri Sales UNIDADE ESCOLAR DR JOSE PINHEIRO MACHADO 4,5 829 46 30 2 5 37 37 1
Aroazes UNIDADE ESCOLAR JARBAS MARTINS 4,4 151 35 6 2 3 20 27 -
Picos UNID ESC OZILDO ALBANO 4,4 244 105 10 2 5 22 35 3
Tanque do Piauí UNIDADE ESCOLAR SAO SEBASTIAO 4,3 120 13 6 2 4 10 15 1
Teresina CETI ZACARIAS DE GOIS 4,3 801 687 25 3 21 54 91 2

Fonte: INEP, 2017

No Quadro 1 , tem-se as 17 escolas, em ordem decrescente do IDEB, das quais oito têm o IDEB melhor do que a escola militarizada Dirceu Mendes Arcoverde, sendo duas da capital e seis do interior do Estado. Dessas, apenas as duas de Teresina-PI são de tempo integral.

O Quadro 1 revela que, para uma escola avançar no IDEB, não é necessário que ela seja militarizada. Com relação às oito escolas com IDEB abaixo da escola da Dirceu Mendes Arcoverde, pode-se observar que a diferença é muito pequena.

Estudo elaborado por Alesandra de Araújo Benevides - UFC, Campus de Sobral e Ricardo Brito Soares - Caen/UFC ( BENEVIDES; SOARES, 2018 ), intitulado “Diferencial de desempenho das escolas militares: o caso das escolas públicas do Ceará”, relativiza a relação entre gestão militarizada e desempenho escolar de seus alunos. Segundo os autores, “Esta atribuição direta do diferencial como efeito escola é questionável dado que seus alunos são diferenciados tanto por características familiares como pelo acúmulo de conhecimentos (condição inicial), e o próprio processo de seleção que as escolas militares estabelecem” (BENEVIDES, SOARES, 2018, p. 1).

A análise dos autores encaminha para a compreensão de que a militarização das escolas públicas “é mais uma faceta dessa experimentação que assola o meio educacional brasileiro, cujos resultados são pouco estudados e o impressionismo é seu maior avalista” ( RICCI, 2018 s/p.). Neste sentido, a dimensão pedagógica é alterada drasticamente pelas regras militares no cotidiano da escola e da vida do estudante. Nesse processo, a dimensão pedagógica do aprendizado é substituída pela repressão e por normas rígidas de comportamento, sendo que os estudantes são obrigados a adotar o uniforme militar completo, nos moldes das fardas dos militares, financiado pelas famílias e pela SEDUC-PI, cujo custo médio é de R$ 650,00 ( kit completo), muito maior que as outras escolas.

A padronização de vestimentas e de comportamentos e a imposição de um modelo único representam práticas que desrespeitam o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas - inciso III do art. 206, CF/88) - ( BRASIL, 1988 ) numa política de docilização dos corpos e controle social pela disciplina ( FOUCAULT, 2009 ).

A estrutura da escola militarizada foi analisada em comparação com outras escolas que compõem o grupo das melhores classificadas, expresso no Quadro 2:

O Quadro 2 revela que a maioria das escolas incluídas como de melhor qualidade pela SEDUC-PI, inclusive a escola Dirceu Mendes Arcoverde, possui biblioteca, laboratório de ciências, laboratório de informática, acesso à internet, banda larga, computadores para os alunos, pátio coberto/descoberto, auditório, quadra de esportes coberta/descoberta. Uma estrutura diferenciada se relacionada com as demais escolas da rede estadual de educação.

QUADRO 2 Espaços de aprendizagens e equipamentos 

Nome do Município Nome da Escola Biblioteca Sala de Leitura Lab de Ciências Lab de Informática Acesso Internet Banda Larga Computadores Alunos Pátio descoberto Pátio Coberto Auditório Quadra Esporte Coberta Quadra Esporte Descoberta
Teresina CETI JOAO HENRIQUE DE ALMEIDA SOUSA S S S S S S S N S N N S
Oeiras UNID ESC DESEMBARGADOR PEDRO SA S N S S S S S N S S N N
Cocal dos Alves ENSINO MEDIO AUGUSTINHO BRANDAO S S S S S N S N S N S N
Piripiri UNIDADE ESCOLAR JOSE NARCISO DA ROCHA FILHO S N S S S S S N S S S N
Campo Maior UNID ESC PATRONATO N S DE LOURDES S S S S S S S S S S S N
Castelo do Piauí UNID ESC CONEGO CARDOSO S N N S S S S N S N N S
Teresina CETI PROFESSOR RALDIR CAVALCANTE BASTOS S N N S S S S S S S N N
Piracuruca UNIDADE ESCOLAR PRESIDENTE CASTELO BRANCO S S N N S S N S N S N N
Teresina CEPTI GOV. DIRCEU MENDES ARCOVERDE S N S S S S S N S N S N
Monsenhor Hipólito UNIDADE ESCOLAR JOSE ALVES BEZERRA S N S S S S S N S N N N
Teresina CETI PROFESSOR DARCY ARAUJO S S S S S S S S N N N N
Oeiras UNID ESC ROCHA NETO S S S S S S S N S N N N
Landri Sales UNIDADE ESCOLAR DR JOSE PINHEIRO MACHADO N N N N N N N N N N N S
Aroazes UNIDADE ESCOLAR JARBAS MARTINS S N N S S S S S S N S N
Picos UNID ESC OZILDO ALBANO S N N N S S S S N N N S
Tanque do Piauí UNIDADE ESCOLAR SAO SEBASTIAO N N N S S S S N N N N S
Teresina CETI ZACARIAS DE GOIS S S S S S S S S N S S S

Fonte: INEP, 2017

No que se refere aos profissionais da educação, verificou-se que, a partir da política de militarização das escolas, têm-se, também, a violação das políticas de valorização e de reconhecimento da identidade profissional dos educadores das escolas públicas - Incisos V e VIII e parágrafo único do art. 206, CF/88 - ( BRASIL, 1988 ). O que se observa no ‘Colégio Militar’ Dirceu Mendes Arcoverde é o remanejamento de militares encarregados pela segurança pública ostensiva na sociedade para atuar na escola pública, substituindo os profissionais do magistério, que detêm formação específica na área educacional.

Com relação aos salários (referente à Tabela salarial de 2019), o vencimento de um professor licenciado na Rede Estadual de Ensino Público do Piauí, em início de carreira é R$ 3.373,16. Se estiver no final da carreira, com Doutorado, seria de R$ 6.370,70. O vencimento do Policial Militar depende de sua patente: soldado R$ 3.483; cabo R$ 3.700; Capitão R$ 9.840 e o Major R$ 13.200. A gestão da escola analisada é efetuada por uma capitã da PM/PI. Aos professores que atuam nessa escola é acrescida uma gratificação chamada de “condição especial de trabalho”, no valor de R$ 800, assegurada a todos os professores lotados em escolas de tempo integral. Esse valor foi implementado em 2009, não tendo ocorrido reajuste desde então. Ressalta-se que no ano de 2019, o reajuste do Piso de 4,17% não foi concedido pelo governo aos docentes da rede estadual.

Por esse contexto, verifica-se uma grande disparidade entre o salário do professor e o dos militares, situação que explicita desvalorização tanto salarial como profissional, minimizando a importância da formação docente e da experiência adquirida pelo professor ao longo de sua carreira.

No que concerne à violação da garantia de padrão de qualidade - inciso VII do art. 206, CF/88 – ( BRASIL, 1988 ), há tempos que medidas de privatização e mercantilização da educação pública estão no cenário piauiense, contribuindo para sua precarização, como, por exemplo, em propostas como a chamada Mediação Tecnológica. No entanto, com a expansão da militarização das escolas públicas, como denunciado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Educação (CNTE, 2019), o que se pretende é uma maior seletividade, que implica em exclusão, isto porque abre a:

Possibilidade de as mesmas poderem contar com mais recursos financeiros, pedagógicos e administrativos. Ou seja: os que militarizam as escolas reconhecem que suas estruturas são carentes e necessitam de mais investimentos. Todavia, ao invés de priorizarem o investimento em todas as escolas, inclusive aumentando o atendimento integral, optam por medidas seletivas e repressivas a fim de mascarar os verdadeiros problemas da educação pública. (CNTE, 2019, s.p.)

Na realidade, a Rede Estadual de ensino do Piauí propicia enorme desigualdade dentro da própria rede, ao criar escolas que são “ilhas de excelência”, pois, são modelos isolados priorizados com maior investimento, melhor estrutura, seleção de alunos por testes, medidas seletivas que não repercutem em todas as escolas da rede. Isso promove um desmonte e apartheid da educação pública, mascarando os verdadeiros problemas das escolas, como falta de recursos financeiros, transporte escolar, de professores, de infraestrutura, de políticas de formação inicial e continuada, de assistência estudantil e de gestão democrática, dentre outros.

Outro ponto importante diz respeito à violação do princípio da gestão democrática do ensino público - inciso VI do art. 206 - CF/88 - ( BRASIL, 1988 ), considerando que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB 1996 (BRASIL, 1996), no artigo 67 estabelece que:

Art. 67. Os sistemas de ensino promoverão a valorização dos profissionais da educação, assegurando-lhes, inclusive nos termos dos estatutos e dos planos de carreira do magistério público: [...] §1o A experiência docente é pré-requisito para o exercício profissional de quaisquer outras funções de magistério, nos termos das normas de cada sistema de ensino4 .

§2º Para os efeitos do disposto no § 5º do art. 40 e no § 8º do art. 201 da Constituição Federal, são consideradas funções de magistério as exercidas por professores e especialistas em educação no desempenho de atividades educativas, quando exercidas em estabelecimento de educação básica em seus diversos níveis e modalidades, incluídas, além do exercício da docência, as de direção de unidade escolar e as de coordenação e assessoramento pedagógico .5

A LDB/96 (BRASIL, 1996) determina que a experiência docente é pré-requisito necessário para o exercício de quaisquer outras funções de magistério, sendo considerados função do magistério, além do exercício da docência, a direção, a coordenação e o assessoramento pedagógico. Corroborando a LDB/96 ( Idem ), a Lei Complementar nº 71/2006, que estabelece Plano de Cargos Carreira e Vencimento dos Trabalhadores em Educação Básica do Estado do Piauí, no Art. 116, define que “fica proibida, a qualquer título, a admissão, contratação, nomeação, designação e indicação de pessoas não habilitadas, para o exercício de cargos ou funções de magistério” (PIAUÍ, 2006, s.p.).

No "Colégio Militar" Dirceu Mendes Arcoverde a direção é exercida por uma capitã da PM-PI, o que fere o disposto na LDB/96 (BRASIL, 1996) e na Lei Estadual, o que dificulta a implementação da gestão democrática, implicando o rompimento desse princípio constitucional a obstrução dos demais canais de democratização da gestão escolar: Conselhos escolares, Grêmios Estudantis, entre outros.

As atitudes antidemocráticas que restringem a autoformação necessária à construção da autonomia se expressa nessa escola também pela obrigatoriedade em cortar cabelo (meninos), de manter cabelo preso (meninas) e proibir uso de brincos grandes, piercings , e a expulsão dos alunos que não se enquadrarem nesse perfil, sem direito a retornarem para essa escola, sob o argumento de disciplina e combate à violência.

Esse modelo de gestão perdura de 2016 até os dias atuais com essa única escola militar. Em 2019, o Deputado Estadual Coronel Carlos Augusto apresenta proposta de lei para criação de colégios militares no Estado do Piauí.

O RETORNO DA PROPOSTA DE MILITARIZAÇÃO PROJETO DE LEI Nº 51 DE 26/03/2019

Em 2019, ressurge a proposta de militarização das escolas, por iniciativa do Deputado Estadual Cel. Carlos Augusto, Ex Comandante Geral da Policial Militar, mediante apresentação de projeto para regularizar em lei os ‘colégios militares’ no Estado do Piauí.

Essa medida alinha-se a ações federais como a institucionalização, no Governo Bolsonaro, da Subsecretaria de Fomento às Escolas Cívico-Militares (Secim), favorecendo a implantação desse modelo de educação. A referida Subsecretaria, no âmbito do Ministério da Educação, foi criada pelo Decreto Federal de nº 9.665, de 2 de janeiro de 2019, que define no artigo 11, XVI, os objetivos de “promover, fomentar, acompanhar e avaliar, por meio de parcerias, a adoção por adesão do modelo de escolas cívico-militares nos sistemas de ensino municipais, estaduais e distrital, tendo como base a gestão administrativa, educacional e didático-pedagógica adotada por colégios militares do Exército, Polícias e Bombeiros Militares” (BRASIL, 2019), portanto incentivando a militarização.

O Projeto de Lei de nº 51, de 04 de março de 2019 (PIAUÍ, 2019), que tramita na Assembleia Legislativa do Piauí (ALEPI), tem por objetivo autorizar a criação de escolas militarizadas "Colégios Militares" na Polícia Militar do Estado do Piauí. Segundo o projeto as escolas deverão integrar as estruturas organizacionais da PM/PI, sendo subordinados administrativamente e operacionalmente a esta, cujo funcionamento se dará em parceria com a SEDUC-PI, entidade mantenedora, referente aos recursos humanos, patrimoniais e financeiros. A parceria se daria por Convênio e abrangeria o corpo de professores do quadro efetivo e substituto, servidores gerais e administrativos.

Seguindo a mesma lógica da escola militar em funcionamento, o ingresso dos alunos se daria através de teste seletivo, 20% das vagas seriam destinadas aos dependentes dos Policiais Militares da ativa, da reserva e reformados, sendo as demais vagas ocupadas pela comunidade em geral no Art. 5º § 4º (PIAUÍ, 2019).

O movimento social organizado com várias entidades como o SINTE, NUPPEGE/UFPI, Campanha Nacional pelo Direito à Educação Comitê Piauí, dentre outros, mobilizaram-se a partir da apresentação do projeto e em articulação com Deputados Estaduais. Atualmente o projeto de lei encontra-se em processo final de tramitação, aguardando as alterações para a redação final, para em seguida ser encaminhado ao plenário na ALEPI para votação e posteriormente para o executivo sancionar6 .

O projeto de lei, por tratar-se de iniciativa de parlamentar, é, portanto, inconstitucional, por ferir o artigo 61, § 1º, II, “d” da CF/88 ( BRASIL, 1988 ), e o artigo 75, § 2º, II, “d” da Constituição Estadual do Piauí (PIAUÍ, 2013), que trata de matéria de iniciativa de lei do chefe do poder Executivo, representando uma afronta à separação dos poderes.

Art. 75. A iniciativa das leis complementares e das leis ordinárias cabe a qualquer membro ou comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma prevista nesta Constituição. [...] § 2º São de iniciativa privativa do Governador as leis que: [...] II - disponham sobre: [...] d) criação e extinção de secretarias e órgãos da administração pública; ( PIAUÍ, 2013 )

Ressalte-se que o projeto de lei, ainda que queiram defini-lo como de caráter autorizativo, visa, em regra, a contornar sua inconstitucionalidade. Contudo, quaisquer projetos autorizativos são inconstitucionais, obrigando ou não o Poder Executivo à criação de órgãos na administração pública estadual, nesse caso, a criação de ‘colégios militares’ na PM/PI, tendo a SEDUC-PI como mantenedora.

O referido projeto de lei menciona no artigo 2º, Parágrafo Único (PIAUÍ, 2019) dispor sobre a cessão da infraestrutura da Escola Estadual Professora Angelina de Moura Leal “CEJA” para implantação do Ensino Fundamental do 6º ao 9º em tempo regular, que passará a integrar a escola militarizada Dirceu Mendes Arcoverde, o que consequentemente criará despesa ao executivo.

Por outro lado, o autor do projeto de lei disse nas mídias sociais7 que “apresentou um projeto para regularizar o "colégio militar" no Estado e sugere que essas escolas militarizadas sejam instaladas em Parnaíba, Picos, Bom Jesus, Piripiri e Floriano”. O que ocorre é que o projeto visa a solucionar a situação dos militares que exercem atividades no ‘Colégio Militar’ Dirceu Mendes Arcoverde e ampliar a quantidade desse modelo de escolas militarizadas no Estado do Piauí.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O movimento de transferência da gestão de escolas públicas para a PM-PI tem seduzido, em diversos estados do Brasil, grande parte da sociedade civil, devido à divulgação de dados de avaliação que evidenciam melhora no desempenho dos alunos nos exames nacionais, bem como o reforço da diminuição dos casos de violência dentro e fora da escola. Esses também foram motivos para o governo estadual do Piauí buscar propagar a militarização das escolas.

Quanto custa a educação em escola pública militarizada? O preço pago pela sociedade é alto, em termos financeiros e educacionais, haja vista a difusão de que esse ‘novo modelo de gestão’ contribui para ‘os bons resultados’ de apenas algumas escolas. A escola pública militarizada no Estado do Piauí é administrada sob a égide da disciplina e hierarquia, aprofundando o dualismo histórico presente na educação brasileira, na qual existe um modelo que serve aos interesses de uma escola que trabalha a coerção para os pobres e uma de formação geral de manutenção das relações de dominação social, econômica e educacional, mantendo o dualismo que evidenciam, de forma latente, dois tipos de formação: uma voltada para formação dos filhos da classe trabalhadora e outra para elite com uma formação propedêutica e, se possível, de natureza privada.

Além disso, a presença de forças militares em ambientes escolares serve para desmobilizar a livre organização dos trabalhadores em educação por melhores condições de trabalho e de salários, ocorrendo também uma divisão entre as classes de trabalhadores, colocando a Polícia Militar contra professores e vice-versa, quando, na verdade, cada um deve entender qual é seu papel dentro da sociedade. A violência não está somente nas escolas, mas na sociedade como um todo, sendo a escola apenas um reflexo dessa violência que ocorre em toda sociedade. A PM/PI deve restringir sua ação à segurança das instituições, dentre elas a da escola, e a segurança dos cidadãos. No sistema educacional, cabe aos professores a organização administrativa, financeira e pedagógica dos trabalhos na escola, cumprindo com sua função de educar.

A polícia militar, ao assumir a função na escola é deslocada do seu eixo funcional, servindo de instrumento de controle utilizado pelo Estado, na medida em que submete a comunidade escolar a padrões de comportamento determinados, tendo em vista que a relação de poder imposta hierarquicamente também contribui para a disciplina controladora de mentes e corpos e promoção do controle social.

Nesse sentido, podemos perceber que a parte mais afetada são os estudantes, os pais e os profissionais da educação. Uma educação de qualidade não se faz apenas com infraestrutura adequada e com estudantes aprovados em testes e vestibulares. Devemos pensar que, para além das aprovações nos exames nacionais será preciso uma reflexão sobre o que se pretende com esse tipo de formação, para quê e para quem se pretende formar. A formação como a entendemos não se limita aos processos de disciplina, treinamento e condicionamento.

A militarização nas escolas é uma das diversas formas que se apresenta no atual cenário para retirar a educação pública brasileira da sua finalidade, fundamentada na CF/1988 ( BRASIL, 1988 ). Assim, cabe aos educadores, oprimidos e entidades comprometidas com a educação pública, gratuita, laica e de qualidade socialmente referenciada, ir à luta teórica e concreta, com resistência, consistência e insistência em defesa de um projeto de nação ancorado na formação cultural livre e emancipada.

REFERÊNCIAS

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1As autoras do artigo participaram do Fórum em Defesa da Educação Pública representando do Comitê Piauí da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas e Gestão da Educação (NUPPEGE/UFPI) e o Sindicato dos Trabalhadores em Educação Básica Pública do Piauí (SINTE).

2Escola Estadual “José Pereira da Silva”, localizada na Santa Maria da Codipi, no Bairro Parque Brasil II, e a Escola Estadual “Martins Napoleão”, localizada no Bairro Promorar.

4Renumerado pela Lei nº 11.301, de 2006

5Incluído pela Lei nº 11.301, de 2006

6Informações obtidas na ALEPI em 22/10/2019.

7Disponível em:< http://www.alepi.pi.gov.br/noticia.php?idNoticia=8436 > Acesso em: 09 jun. 2019.

Recebido: Agosto de 2019; Aceito: Setembro de 2019

MARINA GLEIKA FELIPE SOARES é Professora da Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Possui graduação em Direito (2012) e Licenciatura Plena em Pedagogia (2014). Mestre em Educação pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) (2016) e Pesquisadora Colaboradora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais e Gestão da Educação - NUPPEGE da Universidade Federal do Piauí e do Grupo de Pesquisa E-RESISTÊNCIA: Grupo de Estudos e Pesquisas em Política, História, Formação e Diferenças na educação da Universidade Estadual do Piauí - UESPI. Vem atuando em pesquisas principalmente nos seguintes temas: Remuneração de Professores de Escolas Públicas de Educação Básica no Contexto do Fundef/ Fundeb e do PSPN; Financiamento da Educação Pública, com estudo nas áreas de Gestão e Políticas Educacionais. Membro do Comitê Piauí da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

SAMARA DE OLIVEIRA SILVA é Doutoranda em Educação - UNICAMP, Graduada em Licenciatura Plena em Pedagogia, Especialista em Psicologia da Educação e Mestre em Educação pela UFPI . Atualmente é professora da Universidade Estadual do Piauí, pesquisadora colaboradora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais e Gestão da Educação -NUPPEGE(UFPI), Núcleo de Estudos em Educação e Sociedade -NEPES/ UESPI e do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Polítias Educacionais(GREPPE - UNICAMP) . Vem atuando em pesquisas principalmente nos seguintes temas:Remuneração de Professores de Escolas Públicas de Educação Básica no Contexto do Fundef/ Fundeb e do PSPN; Financiamento da Educação Pública com o estudo nas áreas da gestão e Políticas educacionais. Foi Coordenadora do Curso de Licenciatura Plena em Pedagogia da UESPI, coordenou o Programa de Iniciação Docência(PIBID-CAPES) - Campus Professor Alexandre Alves de Oliveira( Parnaíba-PI). Tem ministrado disciplinas na área de Fundamentos Políticos Administrativos da Educação; Militante da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e do Movimento Interfórum de Educação Infantil do Brasil(MIEIB -PI). Foi professora e coordenadora pedagógica da Educação Básica da Rede Estadual do Piauí e da rede municipal de Teresina no período de 2001 a 2012.

LUCINE RODRIGUES VASCONCELOS BORGES DE ALMEIDA Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Estadual do Maranhão UEMA(1988), é Pós-Graduada em Gestão Pública (2007). Professora da Rede Estadual do Estado do Piauí, atuando na gestão do Sinte-PI na Diretoria de Assuntos Municipais. Atualmente é pesquisadora colaboradora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais e Gestão da Educação -NUPPEGE da Universidade Federal do Piauí. Membro do Comitê Piuaí da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

LUCINEIDE MARIA DOS SANTOS SOARES Possui graduação em Licenciatura Plena em Pedagogia pela Universidade Estadual do Piauí (1998), Mestrado em Educação pela Universidade Federal do Piauí (2011). Atualmente é Professora assistente da Universidade Estadual do Piauí (UESPI), Doutoranda em Educação na Universidade de São Paulo/USP e pesquisadora colaboradora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais e Gestão da Educação -NUPPEGE da Universidade Federal do Piauí. Vem atuando em pesquisas principalmente nos seguintes temas: Financiamento da Educação Pública, Controle Social dos Recursos do FUNDEF/FUNDEB, Valorização dos Profissionais da Educação,Gestão Pública e políticas educacionais brasileira. Membro do Comitê Piauí da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

ROSANA EVANGELSITA DA CRUZ Possui graduação em Pedagogia (1996) e Serviço Social (1989) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e mestrado (2002) e doutorado (2009) em Educação pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professora associada na Universidade Federal do Piauí e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Política e Gestão da Educação. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Política Educacional, atuando principalmente com o tema gestão e financiamento da educação. Membro da rede de pesquisadores em financiamento da educação, do Observatório da Remuneração Docente e da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Direção Estadual da Associação Nacional de Política e Administração da Educação (gestão 2013/2014) e da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (gestão 2015/2017).

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