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Revista Brasileira de Política e Administração da Educação

versão impressa ISSN 1678-166Xversão On-line ISSN 2447-4193

Revista Brasileira de Política e Administração da Educação vol.37 no.2 Goiânia maio/ago 2021  Epub 31-Mar-2022

https://doi.org/10.21573/vol37n22021.117852 

DOSSIÊ “PAULO FREIRE E A GESTÃO EDUCACIONAL”

Entrevita com Nita Freire 1

Interview with Nita Freire

Entrevista con Nita Freire

1Universidade Federal do Espírito Santos, UFES Programa de Pós-graduação Mestrado Profissional em Educação Vitória, ES, Brasil

2Universidade de São Paulo, USP Programa de Pós-graduação em Educação São Paulo, SP, Brasil


1 – Pedimos que fale um pouco sobre o que, na sua visão, Paulo Freire representa para a educação brasileira.

Existe uma dualidade, uma ambiguidade na representação de Paulo Freire no que se refere a seu perfil no âmbito dos envolvidos na educação brasileira e na sociedade em geral.

Me baseio em algumas evidências desde que não há estudos e pesquisas estatísticas sobre o assunto. Há um grande orgulho, é fato inconteste, de grande parte de brasileiros, em terem Paulo como um importante educador, como Patrono da Educação Brasileira. Outro exemplo: o número de tributos feitos a Paulo neste ano no qual completa 100 anos de seu nascimento (19/09/2021) é uma vitrine de sua popularidade e da admiração que lhe conferem pessoas e instituições do Brasil. Até hoje somam-se 14 títulos de instituições brasileiras, total de 45, de Doutor Honoris Causa e mais 5 títulos de instituições brasileira e mais 1 do exterior de grande valor acadêmico, como de Professor e Investigador Emérito, outorgados por instituições do Brasil (acrescentei os do mundo), a Paulo. Tem título de cidadão de 17 cidades e estados brasileiros. Seu nome está em mais de uma centena de Teatros, Salas, Auditórios, Diretórios e Centros Acadêmicos do Brasil. São 361 escolas públicas (quase todas com o nome escolhido pelas comunidades) e privadas no Brasil, com seu nome. São 60 ruas, avenidas e Praças, no nosso país, com seu nome. Medalhas, Condecorações e Prêmios; um Banco Comunitário,na cidade de São Paulo, cuja moeda das transações é o “Freire”, Associações comunitárias; Bibliotecas; Cátedras; Centros de Pesquisa; e Monumentos, estátuas (uma delas em tamanho natural confeccionada por Abelardo da Hora, assentada no campus da UFPE) e pinturas de sua face, tudo em sua homenagem, com seu nome. É letra da música popular brasileira Beradêro . Foi tema do carnaval paulistano, de 1999, pela Escola de Samba Leandro de Itaquera com o tema: “Educação, um salto para a liberdade”, quando se classificou em 4º. lugar; e pela Escola Águia de Ouro, em 2020, com o enredo “ O Poder do Saber – Se saber é poder…quem sabe faz a hora, não espera acontecer ”, (que nos remete a uma canção de protesto de Geraldo Vandré) quando foi a campeã paulista do Carnaval 2020.

Diante de um quadro grandioso de reconhecimento do saber e da imensa criatividade de Paulo contraditoriamente as obras dele não são lidas e estudadas com a profundidade necessária. É comum trabalhos científicos nos quais Paulo é citado através da citação de outro autor ou autora. Estudantes universitários preferem escrever dissertações e teses tendo como base autores estrangeiros. Escrevem sobre a teoria da ação comunicativa de Habermas como algo novo, inédito que o projeta ao ápice da criação filosófica, quando Paulo criou a teoria da ação dialógica mais de 10 anos antes. Por que essas escolhas alienadas? Por que preferência pelo que vem de fora?

A sociedade escravagista brasileira, elitista, machista e preconceituosa determinou na mentalidade de nossa população a crença de que somos inferiores por natureza. Que nestas plagas longe da civilização o que valia era apenas porque aqui “em se plantando tudo dá”. Uma postura colonial que até os dias de hoje nos persegue. Nunca demos, na medida do necessário, o salto qualitativo de “país” dependente de tudo, dependente das ideias de fora para a autonomia nacional e valorização de sua riqueza criativa.

A própria educação jesuítica é a “mãe” desta triste realidade. Nos tempos coloniais fortaleceu esta distorção. Ela não reconhecia que as escolas brasileiras tinham condições da formação intelectual de seus estudantes, embora seguissem, como todas as outras de suas escolas no mundo, o plano geral de educação, o Ratio Studiorum . O ensino era por repetição. As aulas da manhã, eram repetidas de tarde. As aulas da semana, no sábado. De tudo lecionado nos 4 anos escolares, um 5º ano – o curso de Humanidades, para a repetição de tudo ensinado desde o 1º dia de aula.

Após todos os pesados decorares e repetires durante 5 anos, quem quisesse simplesmente o diploma ou continuar os estudos de nível superior teria que ir a Évora ou Lisboa, cuja finalidade era a repetição do que tinha aprendido no Brasil.

Agora, sim, tinha o diploma e todas as benesses que a formação na Europa, e só lá, poderia lhe dar, sobretudo a superioridade, com relação à população, em geral, porque “ele” tinha o título de “doutor”.

Hoje em dia, para a elite brasileira, seus filhos e filhas devem ser bem formados, isto é, devem ir estudar em Harvard ou Cambridge . Esta, a forma mais atual de garantir a separação de classes sociais, os privilégios sociais e econômicos da classe dominante, repetindo de forma mais moderna o mesmo que se passava nos séculos anteriores.

Raramente estes estudantes da elite querem escrever suas teses sobre um “alienígena” desse país, pois se consideram os eleitos pelas suas condições econômicas, de prestígio e de poder, condições estas que julgam serem suficientes de poderem escrever sobre o que mais lhe aprouver e não para colaborar com o desenvolvimento nacional e fazer as denúncias sobre as iniquidades e injustiças de nossa sociedade. Preferem intencionalmente não repercutirem as ideias de Paulo Freire, mas, esses, já vimos, preferem alienarem-se com seus orientadores nos nomes de filósofos, sociólogos ou educadores, no caso da educação, de prestígio na Europa ou EEUU.

Entendo que após o pensamento de Paulo Freire ter sido reconhecido como da mais alta importância e atualidade em duas pesquisas feitas em universidade de países de língua inglesa houve uma repercussão de considerável mudança no sentido de valorização de sua teoria do conhecimento, no Brasil. Mais uma vez o de “fora” repercutindo positivamente “dentro” de nosso país.

O Open Syllabus Explorer , um projeto da Columbia University , que reúne mais de 1 milhão de ementas de estudos universitários em países de língua inglesa afirma que a Pedagogy of the oppressed , é o 99o livro mais citado em trabalhos acadêmicos dos EEUU, Inglaterra, Austrália e Nova Zelândia. Paulo é o único brasileiro entre os 100 autores mais citados e mais solicitado para leitura.2

Outra pesquisa3 , realizada por Elliott Green , professor associado na London School of Economics , analisou as obras mais citadas em trabalhos em língua inglesa disponíveis no Gloogle Scholar e verificou que a Pedagogy of the oppressed é o 3o livro mais citado na área de Ciências Sociais4 .

Enfim, a teoria e a práxis de Paulo são atuais, embora o livro de Paulo Freire considerado na análise, Pedagogia do oprimido , tenha sido escrito entre 1967 e 1968, publicado pela primeira vez, em 1970, nos EEUU.

Brasileiro/a que viaja ao exterior e encontra um leitor/a simplesmente com o livro do educador brasileiro em suas mãos ou lendo o mesmo num ônibus ou no banco da praça pública, fica agitado, se aproxima e diz para a pessoa: este homem é um educador de meu país, é o maior educador do mundo, é o Paulo Freire!

Atualmente, as perseguições do atual mandante do país – que chamou Paulo Freire de energúmeno entre outros xingamentos de baixo calão e prometeu que iria destruir com lança-chamas os livros dele existentes na UnB – e seus asseclas, que determinam a política de educação do pais, estão sendo, contraditoriamente abalados por ações e manifestação públicas, como, principalmente pelo aumento dos leitores e leitoras do educador pernambucano, pois os adolescentes ficam curiosos em saber o que teria dito esse “homem maldito”. Isso é de uma importância fundamental, pois cada dia mais os mais jovens estão fascinados com a teoria amorosa e humanista de Paulo Freire.

Essas contradições que apontei nesta breve resposta resultam por marcar a importância, necessidade e atualidade do pensamento freireano no âmbito de toda a sociedade, muito mais, quero enfatizar, entre os que praticam o ato educativo. Daí a necessidade, por parte dos/as educadores/as da reflexão, do pensar certo, isto é, partir da prática, ir à teoria e voltar à prática.

Concluo, há duas interpretações da presença de Paulo Freire para a educação brasileira nos dias atuais. Diferenças ideológicas antagônicas, de aceitação, eu diria daqueles/as que sabem amar, que querem a educação para todos e todas e um país verdadeiramente democrático; e daqueles/as que se alocam no bloco, diria como Paulo, dos/as “mal amados”, dos/as que querem cada dia mais marcar na carne dos “desvalidos da fortuna”, sua compreensão cruel e elitista da inferioridade intrínseca dos/as que não compactuam com os mal feitos praticados pelos/as nefastos/as donos/as do poder.

2 – Em que, na sua visão, as experiências de Paulo Freire como gestor. Quer na coordenação de programas, quer na direção da escola ou como secretário da educação o ajudaram na construção de sua teoria/ prática educacional.

É claro que as experiências que Paulo foi vivendo ao longo de sua vida de educador, dialeticamente, influenciaram as suas práticas como homem e como educador, e, portanto, a sua compreensão teórica. Tudo o que Paulo produziu intelectualmente é o resultado das suas experiências e do seu pensar, que acumulando-se cresceu em profundidade de amplitude.

Paulo foi gestor em diversas, ou mesmo muitas instituições privadas e públicas, mas selecionei apenas quatro delas que considero as mais significativas para responder à esta questão que me foi proposta:

A – do Serviço de Extensão Cultura (SEC) da Universidade do Recife (hoje UFPE); B – do Serviço Social da Industria, de Pernambuco (SESI/PE); C – do Programa Nacional de Alfabetização (PNA); D – da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (SMEd/SP), que merece maior destaque.

Assim, devo fazer, então, uma análise do pensamento e da práxis freireana dos 4 momentos escolhidos e o decorrente crescimento intelectual e profissional de Paulo Freire que resultaram de suas gestões cada vez mais aprimoradas e eficientes, e, consequentemente, no aprofundamento e na ampliação de sua teoria do conhecimento. E, para explicitar tais momentos me permitirei utilizar estudos, reflexões e escritos que já tive a oportunidade de publicar5 , além de escritos do próprio Paulo Freire presentes tanto em livros quanto em documentos internos aos órgãos e instituições em que atuou.

A) O Serviço de Extensão Cultural (SEC) da Universidade do Recife (hoje UFPE)

O Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife (SEC) foi criado na gestão do reitor João Alfredo Gonçalves da Costa Lima, em 8 de fevereiro de 1962, concretizando um velho sonho de Paulo e do próprio reitor de fazer da Universidade não apenas um espaço exclusivo de aquisição/construção do saber. Paulo queria trazer para a Universidade o senso comum, os sonhos, os desejos, as aspirações e necessidades do povo, para procurar entender pedagógica e politicamente essas condições do povo brasileiro, e criar possibilidades de superação delas por meio da conscientização das camadas populares e daí na inserção crítica do povo nos seus próprios destinos e no do seu país. O SEC tinha, pois, como objetivo primordial devolver sistematizado ao povo o que ele sabe, quer saber melhor ou precisa saber como possibilidade para a concretização da transformação da nossa sociedade.6 Como decorrência desse projeto haveria a formação de quadros de professores para a educação popular.7 O SEC criado por Paulo quase sessenta anos atrás, inegavelmente se antecipou ao tempo histórico. Nele estavam presentes o diálogo amoroso; o respeito ao outro e à outra e à cultura local; a prática da tolerância e da valorização do senso comum e do saber popular, os quais não negados precisariam ser superados. A utopia desapareceu com o arbítrio de 1964, mas hoje é modelo do Plano Nacional de Extensão, embora muitas das nossas universidades ainda estejam longe de aplicá-lo plenamente. de Extensão, embora muitas das nossas universidades ainda estejam longe de aplicá-lo plenamente.

Com a “caça às bruxas” levada a efeito logo nas primeiras horas do golpe civil-militar de 1964, nada sobrou na sua sede da documentação e dos trabalhos educativos do SEC e da atuação dos seus idealizadores e do seu primeiro diretor Paulo Freire

O material do Método de Alfabetização foi apreendido nas dependências do SEC dentro do campus universitário pelo Exército Nacional e grande parte dele apresentado nas TVs do país como “prova da subversão comunista que inunda o país”, diziam os que estavam a favor do poder e contra o povo. A alfabetização do povo era entendida como ato de insanidade dos comunistas às ordens dos governos e dos movimentos autoritários internacionais, absolutamente associada ao perigo ameaçador à segurança nacional, das desordens que levam o caos ao Estado.

Os guaches do artista pernambucano Francisco Brennand – este um homem acima de qualquer suspeita que representavam as situações gnosiológicas, preparadas para as discussões nos círculos de cultura, sobre natureza e cultura no momento de apreensão do conceito antropológico podemos dizer que uma das grandes diretrizes é a abertura ao diálogo, se antes a Universidade abria-se de forma autoritária, verticalizada, “coisificando” o homem, as Universidades Populares, o Movimento Estudantil, tratam de iniciar a construção do diálogo como princípio de trabalho da extensão universitária, ou seja o reconhecimento da capacidade do outro de construir relações com outros e com o mundo.”. Nas suas Considerações Finais, a pesquisadora conclui afirmando: “A ideia de uma extensão a serviço de um processo transformador, emancipatório e democrático; e ainda, de uma extensão desenvolvida no diálogo e no respeito à cultura local nos permite perceber quanto o pensamento freireano foi marcante e está presente no conceito da Extensão das Universidades Públicas Brasileiras.”. http://www.prac.ufpb.br/copac/extelar/atividades/ discussao/artigos/conceitos_de_extensao_universitaria.pdf de cultura pelos alfabetizandos/as – foram apreendidos por denúncia, quando os soldados e o coronel do Exército já partiam do campus da Universidade do Recife.

As forças no poder estavam levando não só as coisas materiais – relatórios, pesquisas e obras de arte do SEC –, de modo especial as relativas à experiência de alfabetização de jovens e adultos, em vários pontos do país, mas, sobretudo, os sonhos e as possibilidades de inserir a população brasileira nos seus próprios destinos e nos de seu país, que, ao lado de Paulo, lutavam pensando num Brasil melhor. Tirando o direito de lerem e escreverem a palavra, “roubavam parte ontológica dos homens e das mulheres, roubavam a sua humanidade”, como dizia Paulo.

É importante dizer que esta instituição da Universidade do Recife foi mais uma ideia pioneira de Paulo: idealizar e concretizar, no Brasil, um Serviço de Extensão de uma universidade pública, com uma estação de rádio universitária, como tática para a educação, para levar informações educativas e culturais, boas músicas e programas educativos lato sensu para todas as camadas sociais. Sobretudo para as camadas populares do Nordeste, que tinham nas programações radiofônicas uma das poucas possibilidades de conhecer. A estratégia era a conscientização, a educação libertadora, transformadora. A compreensão da democracia autêntica.

É importante ainda enfatizar que foi no SEC, que Paulo desenvolveu e sistematizou cientificamente o seu Método de Alfabetização, em diálogo constante com seus pares, professores, que também teorizaram, contribuindo, assim, para o aperfeiçoamento do Método com fins na transformação social.

Paulo Freire, como gestor do SEC fortaleceu mais sua capacidade de criatividade, de pensar o novo, de liderar pessoas, de relacionar redes de saberes, de decidir e optar, de saber mandar com respeito, de criar as condições de um trabalho harmônico entre colaboradores entre si e com ele. Aperfeiçoou o que aprendera desde quando professor no Colégio Oswaldo Cruz, do Recife onde estudou e teve seus primeiros empregos e no SESI/PE.

A criação do SEC-UR (hoje SEC/UFPE) deve ser considerada das mais importantes invenções de Paulo Freire, de sua imaginação sem limites, sob os pontos de vista político, social, ético, estético e epistemológico.

B) O trabalho de Paulo Freire no Serviço Social da Industria, de Pernambuco (SESI/PE)

O convite me chegou através de um grande amigo e colega de estudos desde os bancos do Colégio Oswaldo Cruz, a quem uma grande e fraterna amizade me prende até hoje, jamais abalada por divergências de natureza política. [...] Foi Paulo Rangel Moreira, hoje famoso advogado e professor de Direito da Universidade Federal de Pernambuco que, numa tarde clara do Recife, risonho e otimista, veio à nossa casa, no bairro de Casa Forte, na Rua Rita de Souza, n. 224, e nos falou, a mim e a Elza, minha primeira esposa, da existência do SESI e do que trabalhar nele poderia significar para nós. ( Pedagogia da esperança , p.15-16)

Paulo começou a trabalhar no SESI-PE em 1º de agosto de 1947, como assistente da Divisão de Divulgação, Educação e Cultura. Nesse mesmo ano, quando completou a graduação de bacharel em Direito, Paulo foi promovido a diretor da Divisão de Educação e Cultura. Em 1º.12.1954, aos 33 anos de idade, foi promovido para as funções de diretor Superintendente do Departamento Regional de Pernambuco, cargo comissionado que ocupou até 23.10.1956.

Em 1957, Lídio Lunardi, diretor do Departamento Nacional do SESI, solicitou os serviços de Paulo Freire, que já se mostravam inéditos e especiais. Então, Paulo viajou por alguns estados brasileiros dando assessoria aos educadores regionais do SESI, de outubro de 1957 até 14 de abril de 1961.

Em 20.5.1964, Paulo Freire se dirigiu ao diretor do Departamento Regional do SESI, Pernambuco, adiantando-se ao que queriam fazer os industriais pernambucanos: “... venho em caráter irrevogável requerer a V.S. rescisão de seu contrato de trabalho, com renúncia da estabilidade, a fim de tratar de assunto de seu pessoal interesse”. Esse requerimento só foi protocolado mais de dois anos depois.

Em 30.9.1966, a Portaria n.1.470, de Miguel Vita, diretor Regional do SESI-PE, homem de extrema direita, põe um ponto final na rica atuação de Paulo nesse órgão: “... no uso das atribuições que lhe confere a alínea ‘f ’ do art. 45 do Regulamento do SESI, aprovado pelo Decreto n.57.375 de 8 de dezembro de 1965, do Exmo. Senhor Presidente da República, RESOLVE: Exonerar, a pedido, o Bel. Paulo Reglus Neves Freire do Quadro de Servidores deste Departamento Regional, tendo em vista o pedido sob protocolo 1429 de 17/8/66, com vigência daquela data, extinguindo-se o referido cargo no Quadro de Servidores”.

Não me foi possível saber por que Paulo só foi exonerado de seu cargo no SESI quando há muito já vivia no exílio, no Chile.

Transcrevo a seguir algumas orientações para os educadores/as sesianos, escritas por Paulo Freire, nos anos 1950, em razão de seu ineditismo e de sua capacidade de radicalizar propostas educativas inovando e ousando dentro de um órgão assistencialista patronal num tempo de conservadorismo forte das classes dominantes do país, sobretudo as nordestinas. Nelas podemos constatar o espírito democrático de Paulo, e as ideias e práticas fundamentais da teoria do conhecimento dele, que comporá, posteriormente.

Desde esses anos na sua gestão no SESI/PE que Paulo Freire tem grande preocupação com a questão da formação das professoras e dos professores. Esta foi uma constante em toda a sua vida de educador.

Paulo começou ensinando às professoras como proceder nas reuniões com os pais das crianças que estudavam nas escolas sesianas.

“Sugestões: Como coordenar um Círculo de Pais e Professoras”

  • a) A reunião não deve ser discursiva, mas um debate.

  • b) Deste debate devem participar todas as professoras.

  • c) Entre as professoras e o Diretor do Núcleo deve ser escolhida a pessoa que orientará os trabalhos, que provocará os debates.

  • d) Uma outra professora deve ser escolhida para anotar os tópicos mais interessantes da reunião, durante o seu desenvolvimento, registrando possíveis defeitos durante o processo da reunião, anotando as críticas (respondidas ou não) e chamando a atenção do orientador da reunião, discretamente, quando determinado problema não tenha sido suficientemente esclarecido.

  • e) Cada componente do grupo de professoras, apesar de já conhecer o conteúdo do temário, deve, durante a reunião, ter o seu exemplar na mão, demonstrando interesse ao grupo dos pais, pela reunião.

  • f) Nem o orientador nem nenhum representante da escola deve por falta de participação do grupo e em nome dessa falta de participação tomar para si a própria “vida” da reunião, transformando-a em “discurso”, quando deve ser diálogo. No caso de falta de participação, o que é natural entre nós e explicável por uma série de fatores, intrínsecos uns, extrínsecos outros ao homem, entre eles, principalmente, o baixo nível econômico e educativo, deve o orientador da reunião provocar ao máximo, o nascimento das respostas às perguntas do temário.

  • g) Para provocar comportamento produtivo do grupo, sugerimos ao orientador da reunião:

    • i. Que ao abrir a reunião, diga em rápidas e objetivas palavras a razão da mesma; que a reunião será tanto mais produtiva, quanto maior número dela participar.

    • ii. Que, por se tratar de um grupo de pessoas que se reúnem para debater os assuntos de interesse comum, deve caber a esse mesmo grupo a determinação do término do encontro. Estimular alguém a dar a primeira sugestão. Logo depois, obter outra sugestão e pôr em votação. A reunião deverá encerrar-se sempre na hora exata, determinada pelo grupo. Poderá prorrogar-se. Somente o grupo em maioria, porém, poderá fazê-lo.

    • iii. Em seguida, pedir que, antes de qualquer manifestação a pessoa diga seu nome em voz alta e claramente. Este procedimento facilita o relacionamento humano, não só entre os educadores (Sobretudo o orientador da reunião) e o grupo, mas entre os membros do grupo.

    • iv. Ao orientador cabe ouvir as respostas dadas, repeti-las em voz alta, dizendo o nome da pessoa que as proferir, e obter que outras pessoas se manifestem em torno das respostas. Sua opinião só deve ser dada antes do término dos debates se sentir que a reunião pode tomar um caminho negativo.

    • v. Nunca deve endereçar a pergunta a alguém individualmente. A pergunta deve ser lançada ao grupo para que todo ele se interesse em responder a ela.

    • vi. O orientador deve ter a habilidade capaz de transformar possíveis ataques de ordem pessoal em problemas de ordem geral.

    • vii. O orientador não deve fugir a associações que surjam durante o debate.

    • viii. Nem o orientador da reunião nem as professoras devem assumir comportamento que revele “ar” superior ou paternal.

    • ix. Uma preocupação muito grande deve ter o orientador em face do fato de serem ele e as professoras, de modo geral, pessoas da chamada classe média, com um sistema de valores diferentes em muitos aspectos do da classe do grupo. Muita atenção deve ser dada ao processo de tentativa de mudança de comportamento do grupo – o que deve ser feito com habilidade e respeito para que não resulte negativo o trabalho. Citamos como exemplo, a crença mágica de muitos pais – problema já sentido em Círculos de Pais e Professoras feitos por nós – na “pisa” de muçum para o tratamento da incontenção ( sic ) urinária. Só com habilidade o educador poderá conseguir mudança de comportamento nestes casos. Este comportamento está enraizado numa matriz culturológica.

    • x. Evitar habilmente que uma dessas pessoas “falastronas” tome conta da reunião e termine acabando-a.

    • xi. Estimular os tímidos e inibidos a dar sua opinião com expressões assim: “O senhor aí também poderá ajudar-nos com sua opinião” “que acha o senhor disto?” etc.

  • Como se sente através destes itens todos, deve preocupar-nos levar o grupo a chegar, pelo debate, pela participação de seus membros, a soluções adequadas.

  • De resto, a presença de espírito, o estudo e a experiência do educador lhe indicarão outros caminhos. Paulo Freire.

A passagem de Paulo pelo SESI-PE, é preciso enfatizar, como ele mesmo o disse muitas vezes, abriu-lhe a possibilidade de, pensando sobre o que escutava, via, observava, sentia e refletia, sistematizar a sua compreensão de educação. Ele asseverava: “o SESI foi para mim um tempo fundante”.

O trecho escrito por Paulo Freire para Cartas a Cristina, a décima primeira carta, é a análise dos pontos primordiais de seu trabalho no SESI-PE. Nele Paulo Freire explicita eloquentemente o que aprendeu como gestor da educação, no SESI.

Na perspectiva da classe dominante, enquanto assistencial, o SESI deveria ser assistencialista. Por isso mesmo, qualquer prática de que resultasse ou que implicasse uma presença democraticamente responsável dos sesianos no comando dos núcleos ou centros sociais, que significasse um mínimo de ingerência dos trabalhadores no próprio processo de prestação de serviços de assistência, tendia a ser recusada como perigosa e subversiva. [...] foi exatamente no SESI, como uma espécie de contradição sua, que vim aprendendo, mesmo quando ainda pouco falasse em classes sociais, que elas existem, que elas existem em relação contraditória. Que experimentam conflitos de interesses, que são permeadas por ideologias diferentes, antagônicas [...] eu era progressista porque, recusando uma compreensão mecanicista da história, estava certo de que o futuro teria de ser construído por nós, mulheres e homens, na luta pela transformação do presente malvado. [...] Uma escola democrática teria de preocupar-se com a avaliação rigorosa da própria avaliação que faz de suas diferentes atividades. A aprendizagem dos educandos tem que ver com as dificuldades que eles enfrentam em casa, com as possibilidades de que dispõem para comer, para vestir, para dormir, para brincar, com as facilidades ou com os obstáculos à experiência intelectual. Tem que ver com sua saúde, com seu equilíbrio emocional. A aprendizagem dos educandos tem que ver com a docência dos professores e professoras... Por tudo isso dávamos grande atenção, de um lado, à formação permanente das educadoras; de outro, à formação das mães e dos pais. Aprendemos bastante de nossos erros iniciais [...] com a participação maior dos pais [...] com o envolvimento crítico das professoras e dos alunos, a frequência aos Círculos de pais e professores alcançou níveis bastante elevados. Começamos também a observar diferenças sensíveis na disciplina escolar e no aprendizado [...] Assustou-nos a ênfase nos castigos violentos, no Recife, no agreste, no sertão, em contradição com a quase total ausência de castigos e não só violentos nas zonas praieiras do Estado [...] Maior abertura ao diálogo ao lado de maior compreensão das limitações de cada um de nós [...] A única coisa definida e estabelecida era o direito assegurado à fala, à voz, o direito à crítica , resguardado também o direito de cada um ao respeito de todos [...] Aprendi, na minha passagem pelo SESI, para nunca mais esquecer, a como lidar com a tensa relação entre prática e teoria. (Cartas a Cristina , 2.ed., p.115-46) (grifos nossos).

C) do Programa Nacional de Alfabetização (PNA)

Em 1963, o governo federal levou Paulo para Brasília a convite do ministro da Educação Paulo de Tarso para realizar uma campanha nacional de alfabetização, diante da comprovada competência política e pedagógica de Paulo e seu pensar sobre a educação popular.

A Portaria do MEC n.182, de 28.6.1963, determinou que se iniciariam em Brasília os trabalhos da Comissão de Cultura Popular, presidida por Paulo. A Portaria n.233/63 de 23.7.1963, revogaria as disposições em contrário, estabelecendo as linhas diretivas do movimento em caráter nacional. E por meio da Portaria n.234, de 24.7.1963, o ministro da educação resolve:

Designar os senhores Paulo Freire, Herbert José de Souza, Júlio Furquim Sambaquy, Luiz Alberto Gomes de Souza e Roberto Saturnino Braga para, sob a presidência do primeiro e tendo o segundo como o substituto eventual do Presidente, integrarem a Comissão de Cultura Popular instituída pela Portaria no. 195, de 18 de julho de 1963.

Com os trabalhos de formação dos/as monitores/as já em andamento, possibilitados pela legislação supracitada, é que, por meio do Decreto n.53.465, de 21 de janeiro de 1964, fica instituído o PNA:

Art. 1o Fica instituído o Programa Nacional de Alfabetização mediante o uso do Sistema Paulo Freire, através do Ministério da Educação e Cultura. Art. 2o Para a execução do Programa Nacional de Alfabetização, nos termos do artigo anterior, o Ministério da Educação e Cultura constituirá uma Comissão Especial e tomará todas as providências. [...] Art. 7o Revogam-se as disposições em contrário.

Nasceu assim, sob a coordenação do MEC, o Programa Nacional de Alfabetização (PNA), que pelo “Método Paulo Freire” tencionava alfabetizar politizando cinco milhões de adultos. Estes poderiam, pela lei vigente da época – que exigia ser alfabetizado o eleitor, na prática apenas assinar seu próprio nome –, fazer parte conscientemente do até então restrito colégio eleitoral brasileiro, do início dos anos 60. Para se ter uma ideia da extensão desse Programa, basta lembrar que tinham votado na eleição presidencial da qual saíram vencedores o Sr. Jânio da Silva Quadros e João Belchior Goulart apenas pouco mais de onze milhões e seiscentos mil eleitores.

Como no processo de alfabetização, esses novos eleitores, provenientes das camadas populares, seriam desafiados a se conscientizarem inclusive das injustiças que os/as oprimiam e seriam desafiados/as a sentirem a necessidade de lutar por mudanças, as classes dominantes estiveram, desde o princípio, contra o Programa.

Paulo assim se manifestou sobre o PNA, na entrevista para a revista Pasquim, em 1978:

FREIRE – Foi pouco, mas deu para implantar a coisa em todo o país. O negócio era tão extraordinário que não poderia continuar. Num estado como Pernambuco, que tinha naquela época, um número que pode não ser exato, de 800 mil eleitores, era possível em um ano passar para 1 milhão e 300 mil. Um estado como Sergipe, que tinha 300 mil eleitores, podia passar em um ano para 800 mil. E assim em todos os estados do Brasil. O que poderia ocorrer é que para a sucessão presidencial poderíamos ter no processo eleitoral, já que a lei não admitia o voto do analfabeto, facilmente 5 ou 6 milhões de novos eleitores. Ora, isso pesava demais na balança do poder. Era um jogo muito arriscado para a classe dominante. Não que você pudesse afirmar categoricamente que esses 6 milhões votariam na oposição. Mas era um risco. Um dia eu disse ao ministro: “Ministro, se fosse uma questão apenas de fabricar eleitor, se a minha questão fosse apenas dar uma resposta ao ante-democratismo da lei brasileira, de proibir que um analfabeto vote, o que seria realista, mas seria atender à lei, que exige apenas que o sujeito assinasse o nome e para assinar o nome nós não precisamos mais do que 4 horas. Se fosse assim, nós poderíamos fazer aqui milhões de eleitores em um ano. Agora eu, ministro, me recuso a isso”. Possivelmente me recusaria de novo. Essa conversa com o ministro foi muito importante e eu enfatizo que a posição do ministro era igual à minha.

Miguel [Darcy de Oliveira] – Seria o mesmo erro de encarar o povo como instrumento, como objeto.

FREIRE – Exato. E eu me recusava e me recuso a isso. Eu sou radical, e o ministro concordou inteiramente. Evidente que nós não pensávamos, na época, em pós-alfabetização. Eu dizia, “ministro, a gente tem que correr o risco de não aprofundar os níveis de conhecimento dos primeiros que vão se alfabetizando, exatamente para não cair num elitismo também. Aí eu poderia pegar uma fração dessa gente e fazer cinco anos de trabalho sério e deixar o resto”. A minha proposta era extensiva.

O Sistema Paulo Freire de Educação de Adultos, não somente contém um método ativo de alfabetização, mas um Sistema de Educação que leva os analfabetos a ganharem consciência de sua dignidade de pessoa humana, de sua responsabilidade social.

No Sistema Paulo Freire a utilização de todos os canais possíveis de comunicação conduz a uma série de fatos novos. O professor Tradicional é substituído por um “Coordenador” de debates cuja função é, pelo diálogo franco, informal e sincero retirar das situações sociológicas compactamente programadas nos “Slides” ou “Strip-films”, todo um complexo de informações ligado, através de reduções a vocabulários mínimos, ora à Antropologia Cultural, ora a Sociologia ora à Geografia Humana. Vocabulários esses através dos quais é possível alfabetizar um homem utilizando uma dúzia de palavras tão somente, pesquisadas no universo vocabular do analfabeto e escolhidas entre as de maior densidade emocional e afetiva, a partir das quais ele próprio descobre e recria as milhares de palavras restantes com a ajuda do Coordenador, que aplica durante os debates a maiêutica socrática. Assim a sala de aula cede lugar a um “Círculo de Cultura” e a aula tradicional a um “debate” democrático espontâneo e por isso agradável e autêntico.

Enfim, não mais em caráter experimental, mas cientificamente comprovado, é um método de educação de resultados rápidos objetivos e baratos como exigem as nossas condições.

A direita brasileira, indignada com os movimentos populares e o povo que emergia na cena política, organizou com a elite brasileira e a estrangeira, e as Forças Armadas brasileiras o golpe de Estado de 1o de abril de 1964, que afastou o presidente Goulart e todos os sonhos da esquerda, alegando sobretudo os gastos do Estado e a corrupção generalizada.

Por intermédio desses documentos podemos aquilatar que as autoridades brasileiras que deram o golpe por motivos político-ideológicos da irascível classe dominante brasileira e pela imposição dos Estados Unidos, alimentados ambos esses segmentos pela Doutrina de Segurança Nacional – para manter os seculares privilégios da direita e o sistema capitalista – divulgaram ao mundo os “enormes gastos” do “Sistema Paulo Freire”, inclusive com a compra dos projetores de slides de “países comunistas” (comprados na Polônia), que a aplicação do Método de Alfabetização exigia e os que se encontravam disponíveis no Brasil eram mais caros. Ademais, os aparelhos poloneses tinham ainda a vantagem de funcionar com script filme: num só filme apresentava várias palavras geradoras, o que muito facilitava o trabalho nos Círculos de Cultura.

O estado de exceção autoritário se instalou no Brasil, tendo como seu maior temor a alfabetização das camadas populares, como também na mais eficiente Reforma Agrária elaborada por Celso Furtado jamais pensada no mundo (nunca implantada no Brasil) imediatamente elaborou o Decreto n.53.886, de 14 de abril de 1964, que “Revoga o Decreto n.53.465, de 21 de janeiro de 1964, que instituiu o Programa Nacional de Alfabetização do Ministério da Educação e Cultura”.

Assim, o PNA foi extinto e Paulo, sentindo-se muito cansado pelo ritmo dos trabalhos que vinha realizando e exaurido pelo golpe de Estado, submeteu-se a exames médicos na Fundação Hospitalar do Distrito Federal, tendo o médico, cujo nome no documento é ilegível, atestado que ele estava “necessitando de 30 dias de repouso, a partir de 02/04/64”, tendo sido referendada a prescrição médica até 3.5.1964 pela Universidade do Recife, em despacho assinado pelo reitor, João Alfredo da Costa Lima. Nova licença médica de trinta dias foi concedida a Paulo, de 27.5.1964 a 25.6.1964.

A consequência maior de sua luta por um Brasil melhor e mais justo levou-o a partir de seu país, a deixar para trás a sua cidade querida, quando tinha acabado de completar 43 anos de idade. Escrevi na nota n.7 (p.213) da Pedagogia da esperança: “Seu ‘pecado’ fora alfabetizar para a conscientização e a participação política. Alfabetizar para que o povo emergisse da situação de dominado e explorado e que assim se politizando pelo ato de ler a palavra pudesse reler, criticamente, o mundo. Seu difundido ‘Método de Alfabetização Paulo Freire’ tinha suporte nessas ideias que traduziam a realidade da sociedade injusta e discriminatória que constituímos. E que precisava ser transformada”.

Perseguido, Paulo precisou, para preservar a sua vida, contra sua própria vontade de partir para um exílio de mais de quinze anos, sem passaporte, com um simples Salvo Conduta, sem ter conseguido por em prática em todo o território nacional um processo de alfabetização que, certamente traria a virtude de mudar os índices de analfabetismo, de conscientização e de avanço nos modos de produção. De mudar a leitura de mundo dos alfabetizados que, se conscientizados, sairiam da condição de demitidos da vida para de sujeitos da história.

Com este trabalho para o qual Paulo deu toda a sua inteligência, seu extremo esforço, sua criatividade, sua vontade política generosa em prol da extinção do analfabetismo no Brasil, um dos seus maiores sonhos, aprendeu que lutar pela justiça social, por uma sociedade mais igualitária, verdadeiramente democrática é muito difícil numa sociedade como a nossa de caráter escravagista, interditadora, elitista. A mim Paulo nunca se cansou em denunciar a elite brasileira, como a mais cruel e malvada que ele conheceu entre tantas sociedades quando de suas andanças pelo mundo.

3) – Nita, sabemos que neste percurso do gestor Paulo Freire você deixou para o final a experiência mais recente, talvez sua mais reconhecida e emblemática ação gestora, desenvolvida na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (SMEd/SP). Sabemos que há muita curiosidade sobre o trabalho desenvolvido com a liderança de Paulo Freire naqueles anos pós promulgação da Constituição de 1988, especialmente dos/as mais jovens. Pedimos que divida conosco suas impressões, reflexões e vivências naquele contexto com Paulo Freire.

Bem, quero iniciar falando sobre como tudo começou logo depois das eleições que terminaram com a vitória de Erundina sobre Paulo Maluf. Uma eleição muito importante porque a direita paulistana fora derrotada por uma mulher, nordestina e pertencente ao Partido dos trabalhadores que a partir de 1/1/1989 iria governar a maior cidade do país, a capital de São Paulo. Erundina quis montar um secretariado com os melhores quadros, com nível de ministério, e assim logo em primeiro lugar ela chama Paulo Freire, que em 1980 ajudara a fundar o PT. Esse é um pouco do cenário, mas vamos aos fatos:

Numa tarde de novembro de 1988, a campainha soa, corro para abrir o portão de nossa casa, e de longe fui logo dizendo: “Paulo, Erundina telefonou...”. Ele cortou minha palavra e disse-me: “Eu aceitei, minha mulher, eu aceitei!!!”. Confesso que fiquei perplexa e me perguntava: “E nós, e a nossa vida em comum que há tão pouco tínhamos começado?”. Devo dizer, entretanto, que com a capacidade imensa de Paulo de compatibilizar harmonicamente a sua vida profissional com a vida amorosa jamais me senti “roubada” no meu tempo de mulher dele, e ele jamais se arrependeu do sim que havia dado a Erundina e a Suplicy; na verdade, ao povo paulistano. Ele não tinha sido tomado de surpresa numa sala de aulas na Universidade Estadual de Campinas: ele já havia elaborado claramente em sua consciência a opção que tomaria.

“É um dever cívico e político que tenho diante de mim mesmo e para com o povo da cidade que me acolheu tão generosamente quando voltei do exílio. Será uma oportunidade importante de testar mais uma vez na prática, desta vez nesta imensa rede pública de ensino que é a da cidade de São Paulo, a minha teoria. A minha compreensão de educação”.

Luiza Erundina de Souza foi empossada no cargo de prefeita da cidade de São Paulo no dia 1º de janeiro de 1989, e na mesma cerimônia, na então sede da Prefeitura, no Parque Ibirapuera, empossou todo o seu secretariado, inclusive, obviamente, Paulo. No dia seguinte, Paulo assumir seu cargo de secretário.

Mediante o Título de Nomeação n.08, de 1º de janeiro de 1989, Paulo Freire foi empossado como Secretário de Educação do Município de São Paulo pela prefeita de São Paulo Luiza Erundina de Sousa, justamente porque o Partido dos Trabalhadores, do qual Paulo havia sido um dos fundadores – o único ao qual se filiou durante toda a sua vida –, chegara ao poder com a eleição dessa paraibana lúcida, justa, corajosa, forte e, sobretudo, fiel à ética autenticamente humanista. Assim continuo a considerá-la. Paulo assim a considerava.

A seguir, reproduzo o documento oficial de Paulo como secretário de Educação da cidade de São Paulo, distribuído a toda a Rede, fruto de seus estudos e reflexões, sobre suas pretensões de mudanças, elaborado por ele e pela equipe que o assessorou logo depois de ter aceitado o convite de Luiza Erundina:

Construindo a Educação Pública Popular

Aprender é gostoso. Mas exige esforço.

Um diagnóstico feito durante o mês de dezembro nos mostrou que a situação física de nossas 629 escolas municipais é preocupante: faltam mais de 30.000 conjuntos de carteiras e cadeiras para os alunos e mesas para os professores; a conservação dos prédios é muito deficiente; 40% dos professores estão exercendo suas funções precariamente em comissão; o atendimento à demanda deixa fora da escola muitas crianças, jovens e adultos; a população tem buscado formas de suprir as deficiências do ensino formal, criando alternativas diversificadas de práticas educacionais que não são consideradas pelo sistema oficial.

Nessas condições é muito difícil realizar uma escola que encare o ato de ensinar e de aprender como um ato prazeroso. Ao assumir esta Secretaria, estamos cientes, contudo, de que é preciso partir dessa realidade para realizar a escola que sonhamos. O voto de 15 de novembro foi um voto para a mudança, para mudar inclusive essa escola que temos, para superar as suas precariedades. Só que não vamos fazer isso sozinhos. Pretendemos mostrar a todos os que hoje estão envolvidos com a educação no município de São Paulo que juntos podemos mudá-la construindo uma escola bonita , voltada para a formação social crítica e para uma sociedade democrática.

Entendemos que essa escola deva ser um espaço de educação popular e não apenas o lugar da transmissão de alguns conhecimentos cuja valorização se dá à revelia dos interesses populares; uma escola cuja boniteza se manifesta na possibilidade da formação do sujeito social.

Para isso partimos do princípio da verdade, da transparência. Procuramos fazer circular todas as informações que tivemos sobre a situação real de todos os setores da Secretaria. Mostraremos também os caminhos possíveis de mudança. Queremos imprimir uma fisionomia a essa escola, cujos traços principais são os da alegria, da seriedade na apropriação e recriação dos conhecimentos, da solidariedade de classe e da amorosidade, da curiosidade e da pergunta, que consideramos valores progressistas. Poremos todos os meios de que dispomos a serviço dessa escola necessária.

Não vamos impor ideias, teorias ou métodos, mas vamos lutar, pacientemente impacientes, por uma educação como prática da liberdade. Nós acreditamos na liberdade. Queremos bem a ela.

Os problemas que encontramos já nos são conhecidos há muito tempo, como a evasão – na realidade expulsão – e a repetência, o conservadorismo, a apatia, o número de crianças fora da escola, a inadequação dos processos pedagógicos. Repeti-los aqui seria monótono, já que são frequentemente lembrados por toda a sociedade. Todos estamos de acordo quanto ao diagnóstico.

O quadro de deterioração da escola pública é consequência da falta de vontade política de assumir um projeto pedagógico emancipador. A preocupação com a quantidade, com a construção de novos prédios escolares, deve inserir-se num projeto qualitativo mais amplo. As medidas adotadas não podem ser apenas emergenciais. Devemos imprimir a essas medidas um caráter mais sistemático, gradual e permanente.

Encontramos muito medo, desconfiança e indiferença. A estes sentimentos oporemos a ousadia.

Procuraremos restabelecer integralmente a liberdade de expressão e de organização como elementos constitutivos essenciais da democracia e, consequentemente, de uma política educacional que vise à construção de uma escola pública de qualidade.

Restabelecer a confiança exige reintegrar imediatamente os demitidos (porque fizeram greve em 1987) nos mesmos locais de trabalho, com contagem de tempo corrido e pagamento dos salários (a partir de 05/10/88 conforme prescreve a atual constituição).

Entendemos que é a falta de participação nas decisões que muitas vezes leva ao desânimo e à descrença em relação à escola. Pretendemos implantar os Conselhos de Escola, fortalecer os Grêmios Estudantis e rever o papel das APMs – Associações de Pais e Mestres. Pretendemos substituir gradativamente a atual função de controle burocrático das DREMs – Delegacias Regionais do Ensino Municipal – por Núcleos de Ação Educativa (NAEs), rompendo com uma estrutura hierárquica de tomada de decisões sustentada de cima para baixo, e substituindo por instâncias de assistência, acompanhamento e planejamento participativo da atividade pedagógica. À população organizada – Conselhos Populares – cumpre sempre a função fiscalizadora das DREMs.

Não só as DREMs, mas todo o aparato burocrático da Secretaria necessita de uma compreensão pedagógica de suas funções. Todos os que estamos na escola somos educadores, inclusive os funcionários, as merendeiras, os escriturários, os inspetores, etc.

É nossa intenção realizar, ainda no primeiro semestre, Plenárias Pedagógicas

– embriões dos Conselhos Populares de Educação – em cada região, com a presença dos dirigentes da Secretaria para terem contato direto com pais, professores, alunos e comunidade e manterem essa esperança ativa que ora é demonstrada por numerosos grupos. Entendemos que a mobilização que hoje se manifesta deve ser mantida e estruturada por uma série de encontros em que a política educacional possa ser definida conjuntamente e não burocraticamente. O pretendido encontro entre a Sociedade Civil e o Estado, como caminho para o socialismo, passa pela democratização do Estado. Cremos que não é a escola que transformará a sociedade, mas terá um papel no conjunto das forças que a estão transformando, como o partido, o sindicato, na crítica à ordem capitalista existente e na formação da consciência socialista.

No sentido de democratizar desde já a gestão das escolas, estamos fazendo entrar em vigor a partir de hoje o Regimento Comum das Escolas aprovado pelo CEE – Conselho Estadual de Educação – em 1985, que prevê a implantação de Conselhos de Escola. Devemos iniciar logo a discussão deste Regimento e regularizar a situação escolar da rede municipal de ensino junto ao CEE.

A escola demonstrará maturidade exercendo sua capacidade de autogovernar-se. Devolveremos as programações curriculares e outros materiais arbitrariamente recolhidos no início da administração anterior, por serem patrimônio das escolas. Desencadearemos um processo de discussão para a construção de novas propostas curriculares. A escola precisa ser um espaço vivo democrático onde todas as perguntas sejam levadas a sério, espaço privilegiado da ação educativa e de um sadio pluralismo de ideias.

A Secretaria precisa da burocracia, não do burocratismo; precisa do acadêmico, mas não do academicismo. Precisa de professores que valorizem a unidade teoria-prática, professores curiosos que respeitem a linguagem da criança, que pensem rigorosamente a poesia, que proponham uma forma científica de pensar o mundo, sendo assim capazes de fazer uma reflexão crítica sobre a sua própria prática.

O aluno deverá ser o centro das preocupações, a medida do êxito ou do fracasso de nossa política.

A escola cresceu muito em seus aparatos de fiscalização e controle e pouco em participação e democracia: cresceu no alto, mas não tem pés sólidos. Queremos inverter essa política, fortalecendo as bases da escola. Todo o esforço deve ser feito para valorizar, acima de tudo, a relação professor-aluno.

Nesta direção, terá tratamento urgente a elaboração conjunta de um Estatuto do Magistério, envolvendo os representantes das associações e sindicatos de educadores, que traduza esta nova proposta de atuação educacional na rede pública de ensino municipal, valorizando o trabalho docente em sala de aula.

Neste sentido, concomitantemente com sua prática docente, a formação contínua do magistério será prioritária. Conforme prevê a nova Constituição, realizaremos concursos, rompendo com o fisiologismo e o populismo que utilizam parte do magistério em funções não docentes. O próprio concurso deverá ser motivo de formação permanente dos professores.

O aluno-trabalhador não deve ser tratado como um aluno de segunda categoria. A educação de jovens e adultos não será tratada como caso de assistência social. O Ensino Noturno terá sério tratamento, assim como o Ensino Supletivo, a ser visto na sua relação com o Ensino Regular. Reforçaremos o caráter sistemático da educação de adultos, contra o caráter emergencial das campanhas.

A criança pequena, também ela, deverá ter um atendimento educacional que supere de fato e de vez a concepção do espaço escolar infantil como uma questão simplesmente de “segurança” ou de “guarda”. As EMEIs – Escolas Municipais de Educação Infantil – serão incentivadas a construir, na sua atuação, um projeto educacional que valorize a infância, capacitando-a para a escolarização regular, e que, ao mesmo tempo, traduza as necessidades dos pais que trabalham e precisam ali deixar seus filhos o dia todo.

A qualidade dessa escola deverá ser medida, por isso, não apenas pela quantidade de conteúdos transmitidos e assimilados, mas igualmente pela solidariedade de classes que tiver construído, pela possibilidade que todos os usuários da escola

– incluindo pais e comunidade – tiverem de utilizá-la como um espaço para a elaboração de sua cultura.

Não devemos chamar o povo à escola para receber instruções, postulados, receitas, ameaças, repreensões e punições, mas para participar coletivamente da construção de um saber, que vai além do saber de pura experiência feita, que leve em conta as suas necessidades e o torne instrumento de luta, possibilitando- lhe transformar-se em sujeito de sua própria história. A participação popular na criação da cultura e da educação rompe com a tradição popular na criação da cultura e da educação rompe com a tradição de que só a elite é competente e sabe quais são as necessidades e interesses de toda a sociedade.

A escola deve ser também um centro irradiador da cultura popular, à disposição da comunidade, não para consumi-la, mas para recriá-la. A escola é também um espaço de organização política das classes populares. A escola como um espaço de ensino-aprendizagem será então um centro de debates de ideias, soluções, reflexões, onde a organização popular vai sistematizando sua própria experiência. O filho do trabalhador deve encontrar nessa escola os meios de auto emancipação intelectual independentemente dos valores da classe dominante.

A escola não é só um espaço físico. É um clima de trabalho, uma postura, um modo de ser.

A marca que queremos imprimir coletivamente às escolas privilegiará a associação da educação formal com a educação não-formal. A escola não é o único espaço da prática pedagógica. A sala de aula também não poderá ser o único espaço da prática pedagógica. A sala de aula também não poderá ser o único espaço da veiculação do conhecimento. Procuraremos identificar outros espaços que possam propiciar a interação de práticas pedagógicas de modo a possibilitar a interação de experiências. Consideramos também práticas educativas as diversas formas de articulação de grupos, núcleos, unidades escolares, associações e entidades que visem a contribuir para a formação do sujeito popular enquanto indivíduos críticos e conscientes de suas possibilidades de atuação no contexto social.

Nesta dimensão os educadores, são chamados a apresentar suas propostas e a discutir as diferentes formas de viabilizá-las e a identificar o papel da administração neste processo, de forma a garantir um esforço integrado para viabilizar a mudança.

As medidas concretas surgiram gradativamente. De nada adiantaria um plano de governo elaborado apenas em gabinete, excluindo a presença ativa e deliberativa dos que o executam.

Todos os meios de comunicação, inclusive televisivos, audiovisuais e a informática – importantes meios de educação moderna – devem ser incentivados. O aproveitamento construtivo desses meios utilizados criticamente associa- se à ideia de uma democratização do próprio ensino, tornando-o mais ativo. Proporemos a publicação periódica de informativo que garanta a circulação das diversas propostas pedagógicas e facilite a relação entre as escolas.

A educação é um processo permanente que demanda continuidade e planejamento à longo prazo. Superar o imediatismo, a desinformação e a descontinuidade administrativa que caracterizam a educação de hoje é um grande desafio para uma administração popular. Não se trata de dar uma direção única e burocrática à educação. Trata-se de criar um sistema municipal de educação pública articulado com a sociedade, capaz de superar a atual pulverização.

O atendimento integral como direito do aluno deve ser facilitado pela integração com outras Secretarias:

- com a Secretaria de Higiene e Saúde visando à revisão da forma e ação conjunta no atendimento à população escolarizável;

- com a Secretaria da Cultura visando a projetos conjuntos para resgatar a dimensão cultural da educação;

- com a Secretaria de Bem-Estar Social visando à integração das diferentes formas de escolarização de jovens e adultos e o atendimento da educação infantil de 0 a 4 anos;

- com a Secretaria de Abastecimento para a alimentação e o suprimento das escolas;

- com a Secretaria de Esportes permitindo atividades conjuntas;

- com a Secretaria das Administrações Regionais para manutenção das escolas;

- com a Secretaria de Transportes para programas de educação para o trânsito;

- com a Secretaria do Negócios Jurídicos para promover as ações competentes nos casos de violação das liberdades individuais e da cidadania que venham a ocorrer no âmbito da escola;

- com a Guarda Civil Metropolitana para garantir a segurança nas escolas e reduzir o nível de violência.

Uma escola pública popular não é apenas aquela à qual todos têm acesso, mas aquela de cuja construção todos podem participar, aquela que atende realmente aos interesses populares que são os interesses da maioria; é, portanto, uma escola com uma nova qualidade baseada no compromisso, numa postura solidária, formando a consciência social e democrática. Nela todos os agentes, e não só os professores, possuem papel ativo, dinâmico, experimentando novas formas de aprender, de participar, de ensinar, de trabalhar, de brincar e de festejar.

Reafirmamos que essa nova qualidade não será medida apenas pelos palmos de conhecimento socializado, mas pela solidariedade humana que tiver construído e pela consciência social e democrática que tiver formado, pelo repúdio que tiver manifestado aos preconceitos de toda ordem e às práticas discriminatórias correspondentes.

A escola pública só será popular quando for assumida como projeto educativo pelo próprio povo através de sua efetiva participação. A transformação radical da escola que temos supõe essa participação organizada na definição de prioridades. O primeiro passo é conquistar a velha escola e convertê-la num centro de pesquisa, reflexão pedagógica e experimentação de novas alternativas de um ponto de vista popular.

Nossas propostas são viáveis desde já. Queremos construir progressivamente uma escola pública democrática, popular, autônoma, oniforme (não uniforme), competente, séria e alegre ao mesmo tempo, animada por um novo espírito. Queremos construir escolas para onde as crianças e os jovens, os professores, todos, gostem de ir e sintam que são suas. Não as abandonem. Paulo Freire .

Um dos maiores sonhos de Paulo era reunir em congresso os alfabetizando/as para ouvir deles e delas as suas palavras. Para possibilitar que discutissem sua educação como sujeitos da história e não como simples objetos da incidência dos que determinam as políticas públicas. Paulo gostaria de realizar um evento com a totalidade dos alfabetizandos/ as e por um período de três dias. Entretanto, não havia nem local que comportasse todos eles e elas e nem verba suficiente para evento de tal envergadura. Mas, o I Congresso de Alfabetizandos realizou-se, com alegria e êxito, em 16.12.1990.

Quando Paulo fala da voz dos alfabetizandos nesse encontro organizado por ele e sua equipe da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, refere-se não só a um fato ocorrido pela primeira vez na história da educação – uma assembleia na qual educandos-educadores se reuniram e discutiram o processo de aprender-ensinar, em que estavam engajados epistemológica e politicamente –, mas fala também dos discursos de própria voz emitidos pelos alfabetizandos.

Quero enfatizar que o I Congresso de Alfabetizandos foi o único até hoje realizado nas histórias da educação do Brasil e do mundo. Foi organizado pelo Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (MOVA) e pelo Programa de Educação de Adultos da Diretoria de Orientação Técnica (EDA-DOT) em colaboração com o Fórum dos Movimentos Populares de Alfabetização da Cidade de São Paulo, integrado por 57 entidades. Com o evento se pretendia, sobretudo, estreitar os vínculos entre os alfabetizandos como cidadãos, aprofundar os debates em torno do analfabetismo e alfabetizandos e apresentar as atividades dos alfabetizandos do MOVA e do EDA.

O MOVA é muito mais do que um Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos. Paulo o concebeu e desenvolveu como uma educação popular de alfabetização e pós-alfabetização político-ideológica-epistemológica, quando ia se tornar secretário de Educação da Rede Municipal de São Paulo, segundo concepções sugeridas pelo educador popular e amigo pessoal Pedro Pontual.

Assim, acreditando no/a outro/a abrindo-se às participações dos grupos populares organizados, estes se responsabilizariam e assinariam, em nome das comunidades, como seus representantes e responsáveis, o acordo com a SME-SP. Esta ficaria responsável pela formação pedagógica do/a monitor/a e de pagar-lhes um pró-labore em valor equivalente ao salário de uma professora; pela orientação pedagógica do projeto e pela avaliação do processo de alfabetização. O MOVA tinha também como condição que a iniciativa das salas de alfabetização partisse da própria comunidade nas quais os seus indivíduos sentissem a necessidade e quisessem ler e escrever a palavra. A comunidade apresentava o seu “professor”, o monitor, o homem ou a mulher de confiança, o ou a líder do grupamento; enfim, o/a que tivesse acesso às ansiedades, necessidades, sonhos e preocupações dos alfabetizandos/as. O MOVA inaugurou, assim, sem dúvida nenhuma, um novo tipo de educação popular, de educação de adultos, no qual dialeticamente se envolviam alunos/comunidade/poder estatal organizado.

O MOVA-SP tornou-se modelo de educação popular e de alfabetização de adultos para muitas das Secretarias de Educação de governos progressistas, que até hoje se proliferam em todo o nosso território.5 Considero, como especialista na história da educação brasileira, esta a forma histórica mais acabada, mais completa até hoje possível de alfabetização de adultos.

Após conhecer os resultados dos esforços de seu primeiro ano frente a SME-SP, Paulo escreveu este documento publicado no Diário Oficial do Município , de 13.3.1990, p.37:

COMPARTILHANDO UM AVANÇO

Foi com alegria que recebi os resultados de promoção/repetência dos alunos do 1º Grau da Rede de Ensino Municipal, relativos a 1989. Quero dividir esta satisfação com todos vocês, através da divulgação destes resultados.

Em 1989, obtivemos o mais alto percentual de aprovação verificado nos últimos dez anos: 79,46%. Ou, inversamente, a mais baixa incidência de retenção no conjunto do 1º. Grau em nossa rede (20,54%), no período de 1980-1989. [...] Apesar deste progresso na rede, apresentando declínio de retenção na 1ª e 5ª séries, nas quais tradicionalmente a expulsão dos alunos é mais acentuada como decorrência desta reprovação, ainda continuamos com dificuldades. No ano passado, na 1ª e 5ª séries a incidência de reprovação foi, respectivamente, de 26,93% e 29,43%. Contudo, são estes os menores percentuais apresentados em uma década. Um outro modo de avaliar o significado destes resultados é pensar, por exemplo, no que teria acontecido se, em 1989, houvéssemos repetido o percentual de retenção no 1º Grau verificado em 1988. Neste caso, no ano passado, cerca de 8.100 anos a mais do que ocorreu de fato, teriam sido atingidos pela reprovação.

Estudos mais detalhados estão sendo desenvolvidos em relação a estes resultados, focalizados agora segundo as diferentes áreas da cidade, componentes curriculares, etc.

Quero felicitar os educadores desta rede pelo esforço não poupado, e desejar que no próximo ano o trabalho acumulado permita anunciar resultados bastante mais animadores para todos nós, avançando na construção de uma escola democrática com uma nova qualidade.

Fraternalmente,

Paulo Freire.

Orgulhava-se do fato de, em sua gestão, diferentemente da prática usual após a abertura política, não ter havido nem sequer um dia de greve por parte dos/as professores/as e funcionários/as da Rede Municipal de Ensino. Apenas um dia “de alerta de greve”, nos 29 meses em que foi secretário. Preocupava-se com todos os aspectos que envolviam os/as educadores/as da rede, desde os pedagógicos e políticos até os salários pagos.

Um sucinto relatório das “Principais realizações da Política Pedagógica – 1989-1991”:

1. REORIENTAÇÃO CURRICULAR: “Mudar a cara da escola através dos princípios de autonomia, descentralização e participação, na direção de uma educação pública popular e democrática. De boa qualidade”.

- Projetos próprios das escolas: apoio a cerca de 200 projetos (alteração do ensino noturno, introdução de artes, professores polivalentes...)

- Ação pedagógica da escola pela via da interdisciplinaridade, através do tema gerador (recriando a proposta de Paulo freire no sistema escolar) projeto iniciado com 10 escolas, por adesão. Hoje trabalham 112 escolas de 1o Grau neste projeto e para o próximo ano já se prevê o dobro de escolas aderindo a esta proposta.

- Introdução da informática na educação: concepção e desenvolvimento do projeto Gênese da Informática – trabalha com o sistema logo, integrado à ação pedagógica da escola. Hoje 31 escolas estão neste projeto. Em cada escola há 15 computadores e uma impressora de textos. Estão em funcionamento 3 subnúcleos regionais e um central, para a formação de professores. Em 1992 a instalação dos computadores atingirá 50 escolas, atendendo a 30.000 alunos e contando com 1.500 professores formados.

- Orientação Sexual – projeto opcional para as escolas que já formou cerca de 300 professores que continuam com atendimento permanente atuando, parte deles hoje, em 35 escolas de 1o. Grau, tendo já atingido 5.000 alunos.

2. FORMAÇÃO PERMANENTE: trabalho desenvolvido desde 1989 que entende a formação dos educadores como ação sistemática, com base na ação- reflexão-ação. São incluídos no programa de formação, também, cursos de curta duração, conferências, intercâmbios para troca de experiências, etc.

Os grupos de formação iniciaram-se com professores de 1a séries e de Educação Infantil, bem como os Coordenadores Pedagógicos. A inscrição nos grupos de formação não é obrigatória. Hoje temos a seguinte situação: 70% dos Diretores frequentando os grupos; 95% dos Coordenadores Pedagógicos das escolas e 30% dos professores estão em grupos de formação, como apoio àqueles que devem ser ampliados nas escolas. Hoje temos 500 grupos de formação em funcionamento. Mais de 35% dos professores têm outras modalidades de formação.

OUTRAS AÇÕES DE FORMAÇÃO: formação para professores de 5a séries: todas as escolas estão envolvidas; formação em Direitos Humanos – 500 educadores já participaram deste trabalho que também se integra à ação interdisciplinar da escola. Encontros de vigias, merendeiras e grupos de formação de pais têm se desenvolvido de forma crescente, porém lentamente.

1. CONVÊNIOS COM UNIVERSIDADES: os trabalhos de reorientação curricular e formação permanente contam com assessória mensal de 50 professores universitários da USP, UNICAMP e PUC-SP.

EVENTOS IMPORTANTES:

- I Congresso de Alfabetizandos – reuniu 2.000 alfabetizandos do MOVA e do EDA.

- I Congresso Municipal de Educação – reuniu 7.000 professores, pais, alunos, diretores, coordenadores e funcionários; mais de 300 trabalhos foram apresentados pelas escolas.

- I Encontro de Pais da Rede Municipal de Ensino (dez. 91) – reunirá 400 pais que são representantes dos Conselhos de Escola e grupos de formação.

- Criação dos Conselhos de Representantes dos Conselhos de Escola (CRECES) em cada uma das dez regiões da cidade.

- Conclusão do Estatuto do Magistério Municipal.

- Elaboração e discussão do Novo Regimento das escolas Municipais.

- Criação de projeto de lei de um Conselho Municipal de Educação (novo).

2. ALGUMAS CONQUISTAS:

- Menor índice de reprovação em toda uma década (18,69%) média em todas as séries do 1o. Grau.

- Menor índice de expulsão12 escolar em toda a década (5,34%); neste ano estimamos em 3,5%.

- As salas de leitura foram equipadas com 673.000 livros novos.

- Todas as Escolas de 1o. Grau têm televisão e vídeo. A Secretaria tem hoje mais de 500 de vídeo, câmeras nos NAEs, aparelhos de som, slides em todas as EMEIs e uma ilha de edição de vídeos.

- Foram concluídas 26 novas escolas (hoje são 680 que dão atendimento a

734.000 alunos).

- O MOVA atende hoje (ilegível) (previu-se a ampliação no próximo ano para

2.000 núcleos).

- O sistema de reforma das escolas segue, hoje fluxo regular com reparos necessários em 20% da rede.

Consta ainda outro Relatório, também sem data: “Principais Ações da Secretaria Municipal de São Paulo”, como segue:

  1. Envolvimento da comunidade escolar na organização do Plano Geral de Ação do Plano Orçamentário da Secretaria Municipal de Educação.

  2. Comissão de Reorientação Curricular estuda e elabora propostas, neste momento, para discussão com a rede municipal.

  3. Programa de Formação Permanente do pessoal do ensino que abrange professores, coordenadores pedagógicos, supervisores, funcionários. Este programa se estenderá aos 4 anos de administração.

  4. Salário dos professores mínimo por 20 aulas, mais 2 horas atividades, NCz$ 701,00 contra os NCz$ 450,00 do Estado. Este mês o reajuste foi dado como abono. A partir de setembro entrará em vigor plano de incorporação. Será discutido plano de reposição das perdas salariais dos profissionais de educação e de todo funcionalismo. Para implementação deste plano será necessária aprovação, pela Câmara, do projeto de reforma tributária apresentado pelo PT.

  5. Retomada de construção de 8 escolas paralisadas na administração anterior, reforma de 39 escolas cujas obras estavam paralisadas. Conclusão de reforma de 12 escolas.

  6. Atendimento de 157 escolas: equipamentos, serviços de limpeza de fossa, eletricidade, hidráulica, etc.

  7. Fortalecimento dos grêmios estudantis e Conselhos de Escola.

  8. Projeto “MOVA” - Movimento de Alfabetização e Pós-Alfabetização para a Cidade de São Paulo. Neste projeto estarão engajados movimentos populares, igreja, universidade, partidos políticos etc. A partir de 1990 serão criados 2.000 núcleos do “MOVA” que atingirão cerca de 60.000 alunos por ano.

  9. Integração Inter Secretarias para articulação dos diversos serviços públicos e melhor atendimento à população.

Assim, o trabalho de Paulo foi profícuo, “mudando a cara da escola”, como costumava dizer. Reformou as escolas, entregando-as às comunidades locais dotadas de todas as condições para o pleno exercício das atividades pedagógicas. Reformulou o currículo escolar para adequá-lo também às crianças das classes populares e procurou capacitar melhor o professorado em regime de formação permanente. Não se esqueceu de incluir o pessoal instrumental da escola como agente educativo, formando-o para desempenhar adequadamente tal tarefa. Foram os vigias, as merendeiras, as faxineiras, os/as secretários/as que, ao lado de diretores/as, orientadores/as, professores/as, alunos/as e pais de alunos, que, fizeram do ato de educar um ato de conhecimento, elaborado em cooperação a partir das necessidades socialmente sentidas.

Durante a sua gestão, Paulo inaugurou 31 escolas municipais paulistanas entre as construídas, em maior número do que as reformadas na sua gestão, todas dentro dos critérios de adequabilidade pedagógica e segurança pessoal para a comunidade. Todas foram entregues às populações locais – sem ter colocado nas placas comemorativas das inaugurações, em nenhuma delas, enfatizo, o seu nome como secretário de Educação de São Paulo.

Depois de ter delineado e implantado a política popular de “Mudar a cara da Escola”, Paulo pediu a Erundina, em maio de 1990, para “voltar para casa”: estava ávido por escrever e para ficar mais tempo comigo. Dizia querer lutar em “outra esquina” da vida por uma sociedade brasileira verdadeiramente democrática.

Nos fins deste mesmo ano de 1990, Paulo dizia abertamente entre seus auxiliares que desejava voltar a escrever, que sua cabeça e coração pulsavam no sentido de comunicar sua nova práxis educativa, a notícia se espalhou pela Rede, e muitos diziam; “Fique, professor Paulo Freire”.

Na verdade, ele não deixou os/as educadores/as nem abandonou a prefeita, mas de fato os assistiu até o último dia do Governo Democrático, mesmo quando fora da SME-SP.

Sem ter se arrependido de ter aceitado o convite, sobretudo por ter realmente mudado a “cara da escola”, por tê-la tornado verdadeiramente popular ao ter dado as diretrizes e as táticas para fazê-la mais democrática, Paulo pediu a sua demissão a Erundina depois de 29 meses de atuação ousada e prudente, marcadamente inovadora.

Na manhã do dia 27 de maio de 1991, Paulo leu esta carta de despedida, que tinha escrito para este momento “Aos Educadores e Educadoras, Funcionários e Funcionárias, Alunos e Alunas, Pais e Mães”, que é, na realidade, o registro de sua gestão, a análise do que acrescentou à seu saber educacional, que se alongou no aperfeiçoamento de sua práxis.

Quando assumi a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, minha equipe e eu encontramos as escolas da cidade em estado de abandono.

Abandono resultante de várias ações, de vários governos, de todas as esferas de poder.

O descaso com que foi tratada a educação gerou desesperança, ceticismo, tristeza e dúvida entre todos aqueles que viveram o cotidiano da escola.

E foi com essa realidade que nos defrontamos. Nossa ação se orientou pelo compromisso de construir “uma escola bonita, voltada para a formação social crítica e para uma sociedade democrática, escola essa que deve ser um espaço de educação popular e não apenas o lugar de transmissão de alguns conhecimentos, cuja valorização se dá à revelia dos interesses populares; uma escola cuja boniteza se manifeste na possibilidade da formação do sujeito social”.

Este compromisso guiou a fixação de nossas quatro diretrizes: Direito de acesso à Escola, Gestão Democrática, Qualidade de Ensino, Alfabetização de Jovens e Adultos. (grifos meus)

Estas diretrizes implicaram várias mudanças estruturais na Secretaria e, de nossa parte, um investimento sistemático e permanente no sentido de implantá- las simultaneamente uma vez que cada uma delas é essencial e dependem intrinsecamente uma das outras para gerar verdadeiramente um processo de transformação na escola.

Digo a vocês que o compromisso com essa política nos trouxe tristezas também. Os obstáculos a superar não foram pequenos nem desprezíveis. Eles são, no fundo, o resultado de uma experiência histórica marcada por orientações e práticas de privatização do poder público, que desprezaram os procedimentos éticos e democráticos como condição da construção de um estado garantidor dos direitos sociais básicos.

Mas as alegrias também foram e são muitas. Muitas porque sabemos que estamos transformando o presente e criando também as bases para que, no futuro, a educação pública popular, democrática e de qualidade continue a se desenvolver e ser defendida por um número cada vez maior de educadores, pais, alunos, funcionários e demais segmentos da sociedade.

Não tenho dúvidas de que caminhamos muitos nesta direção.

As escolas que estavam em estado absolutamente precário foram reformadas, e quase todas devolvidas às comunidades.

As escolas foram e estão sendo reequipadas e hoje já contam com recursos para a realização de pequenos reparos.

Este procedimento diz respeito à valorização da autonomia da escola que tem sido incentivada a elaborar projetos pedagógicos próprios e a discutir as diretrizes da Secretaria e sua implantação local e regional junto com os Conselhos de Escola e com os Conselhos de Representantes dos Conselhos de Escola (CRECES).

Os Conselhos de Escola, os Grêmios Estudantis e os CRECES são hoje uma realidade cada vez mais concreta, resultado não apenas de uma diretiva legal, mas de uma ação institucional permanente que aposta na construção da relação dialógica não apenas no espaço da sala de aula.

Esta participação que é parte da construção da cidadania é e poderá ser condição da interferência cada vez mais profunda dos segmentos da escola e dos movimentos sociais nas definições das ações educacionais no plano da escola, das regiões e das cidades.

Nosso desejo é que esta interferência se aprofunde e permaneça como conquista social, independente do governo que esteja à frente da cidade.

Também a política pedagógica seja em nível da educação infantil, do ensino fundamental ou da educação de adultos caminha nesta direção: recuperar a experiência profissional dos educadores e a experiência sócio cultural da comunidade escolar de modo a construir o trabalho educacional a partir da reflexão teórico-prática de forma sistemática e permanente. Acompanha esta perspectiva a elaboração do projeto de Estatuto do Magistério que objetiva a valorização profissional dos educadores neste momento em discussão com o conjunto dos sindicatos.

Não pretendo com estas observações realizar propriamente um balanço, mas resgatar as linhas mestras de um trabalho que está sendo realizado com todos vocês e cujos resultados têm demonstrado a importância da construção de um projeto e não de sua imposição aos demais.

Hoje me afasto da Secretaria como Secretário, não como educador, seguro de que esta orientação político-pedagógica prosseguirá, não só porque minha equipe continua, mas porque a perspectiva, as diretrizes e as ações foram construídos em conjunto nos colegiados de gestão desta Secretaria e são, portanto, uma aquisição que expressa a vontade coletiva.

Como educador vou continuar cumprindo o papel que escolhi, o de ler, escrever e produzir na área da educação comprometido com aqueles que estão fora da escola ou que, dentro dela, continuam a ser discriminados por ações pedagógicas que prescindem da experiência social e culturas das crianças, dos jovens e dos adultos.

Reafirmo meu compromisso político com meu partido, com este governo, com Luiza Erundina e minha disposição de continuar a trabalhar, agora de outra maneira, para que a Administração Democrático-Popular de São Paulo signifique cada vez mais uma experiência para a mudança do comportamento ético-político deste país e o posto mais avançado de luta por uma sociedade justa e democrática. Um grande abraço a todos.

Paulo Freire.

Assim, com uma linda festa no Teatro Municipal de São Paulo, na noite de 27 de maio de 1991, Paulo recebeu muitas homenagens e despediu-se de seu cargo de secretário. Sua saída foi oficializada pela prefeita, que o “exonerou a pedido” através da Portaria n.180, desse mesmo dia de 27.5.1991 publicada no DOM de 28 de maio de 1991. Sucedeu-lhe o professor Mário Sérgio Cortella que, com sua marca pessoal, continuou o trabalho político-pedagógico de Paulo: a democratização da gestão, a política de educação de jovens e adultos, a democratização de acesso e uma nova qualidade do ensino.

A experiência de Paulo na SMED/SP o fez escrever livros voltados para a educação escolar, porque ele escrevia sempre sobre o que o ocupava e preocupava no momento da escrita. São estes os livros que sua gestão como secretário o inspirou e sentiu que precisava dar uma contribuição mais específica à política escolar, à educação escolar: A educação na cidade , em 1991, substituído por Direitos Humanos e Educação Libertadora , em 2020; Política e educação , em 1993; Professora, sim tia, não , em 1993; e, o Pedagogia da autonomia , em 1996.

4 – Após o relato reflexivo destas experiencias resta-nos ainda mais duas ‘curiosidades’: Como sua condição de pesquisadora da obra de Paulo Freire, biógrafa e tendo sido sua esposa, aquela que acompanhou seus processos de produção no momento, talvez, de maior maturidade teórica e prática quando revisita a Pedagogia do oprimido, produzindo a Pedagogia da esperança e, posteriormente a Pedagogia da autonomia, poderia caracterizar a perspectiva freireana de gestão da educação? Podemos falar de reafirmação de convicções e conceitos já presentes na obra de Paulo Freire ou de formulações novas e conceitos novos na experiência de sua gestão na SMED/SP?

Sim, Paulo reafirmou convicções e conceitos formulados por ele em sua teoria do conhecimento na sua gestão na SMED/SP. Entretanto, a criatividade de Paulo e sua práxis sempre enfrentando novos desafios por ele mesmo determinados, teve uma relação harmônica, equilibrada entre a permanência e a mudança.

Nunca, é claro abandonou por completo as suas convicções, às vezes negou parte dela ou acrescentou outras, assim, não podemos esquecer que ele deixou de lado, por alguns anos, o conceito de conscientização , formulado por ele, mas criado pelo ISEB, diante das críticas feitas a ele como idealista e sua própria autoavaliação neste mesmo sentido. Ele não dizia os “meus erros”, mas os “meus resvalamentos”. Voltou a usar conscientização , depois de anos de reflexões, como instrumento da pedagogia, em suas últimas obras. Em nossa última viajem a New York, em março de 1997, ele comprou considerável número de obras de autores diversos para refletir sobre mudanças a introduzir ou reintroduzir velhos conceitos que estavam em quarentena, como por exemplo a conscientização, a modernidade, o liberalismo e o neoliberalismo .

A inquietação para a busca do novo que mobilizava Paulo para a procura, para o inédito é a causadora de criações contidas no seu Método de Alfabetização; no Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife com uma estação radiofônica a seu dispor; do programa de alfabetização à serviço da politização com a intenção de mudanças radicais no equilíbrio das forças no poder etc.

Mencionemos também a criação de Paulo no âmbito da semântica brasileira ao dar novo significado às palavras de uso corrente da nossa linguagem cotidiana: boniteza , como sinônimo de ética, de estética e de política, acrescentadas ao de beleza; denúncia-anúncio , que dialeticamente se relacionam significando coisas e fatos que nos maculam, que conhecidas geram a possibilidade de superação daqueles; molhados quando um pensamento está influenciado, impregnado de outras ideias consistentemente, e encharcado quando é muito grande a interferência de novas ideias, quase no limite de mudar de alterar a ideia original. O menino popular termo que os sociólogos diziam; “isso não existe” e Paulo retrucava: “pode não existir nos livros de sociologia, mas existe aqui na rua, existe nas escolas das periféricas ”

Considero, que, a fase dos escritos de Paulo a partir de meu casamento com ele, em 1988, corresponde a certa mudança de leitura de mundo, devido aos seus sofrimentos no período de seu regresso, à morte de Elza; sua adaptação ao seu novo contexto de origem, São Paulo e não mais o Recife, que embora cidades do mesmo país, o Brasil, guardava diferenças reais na interpretação da realidade. À minha idade e comportamento menos formal trazendo novos costumes e leituras de mundo.

Portanto, a feitura da Pedagogia da esperança , mas, sobretudo a Pedagogia da autonomia , traz um frescor de novos tempos, de uma imensa vontade de viver dele, da mudança em seu corpo das emoções e sentimentos que caracterizaram uma nova perspectiva dele de gestão da educação.

Nita, 14 de agosto de 2021.

1Ana Maria Araujo Freire, a Nita, possui graduação em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Moema (1975), mestrado em Educação: História, Política, Sociedade pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1980) e doutorado em Educação (Currículo) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994). Atualmente se dedica a organizar, publicar e divulgar a obra de Paulo Freire, como sucessora legal do educador. Foi casada com Paulo Freire de 1988 até sua morte, em 1997.

2Pesquisa no ano de 2016.

3Pesquisa também do ano de 2016.

4Vejam detalhes no livro de minha autoria, Paulo Freire uma história de vida , 2a. edição . Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2017, pp.431-434. Prêmio Jabuti, 2o. lugar, Biografia em 2007.

5Paulo Freire: uma história de vida, Prêmio Jabuti 2007, Biografia, 2ª. edição. Paz e Terra, 2016.

6A pesquisadora brasileira Rossana Maria Souto Maior Serrano, em seu ensaio “Conceitos de extensão universitária: um diálogo com Paulo Freire.” , ao estudar a evolução histórica dos serviços de extensão universitária nos informa que tais serviços, que vêm desde a Grécia Antiga, nunca tinham tido a conotação que Paulo lhe deu: “Por outro lado podemos buscar em Paulo Freire vários conceitos e ideia-força que podem demonstrar os avanços desses movimentos em extensão, quais sejam: a dialética, a utopia, o respeito à cultura local, mudanças. Pelos princípios que norteiam este movimento de ação voluntaria sócio comunitária

7Ver Pedagogia da tolerância , p. 284.

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