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Revista Brasileira de Política e Administração da Educação

Print version ISSN 1678-166XOn-line version ISSN 2447-4193

Revista Brasileira de Política e Administração da Educação vol.37 no.2 Goiânia May/Aug 2021  Epub Mar 31, 2022

https://doi.org/10.21573/vol37n22021.113221 

DOSSIÊ “PAULO FREIRE E A GESTÃO EDUCACIONAL”

Militarização de escolas públicas: reflexões à luz da concepção freireana de gestão democrática da educação

Militization of public schools: reflections in light of the conception of democratic management of education in Paulo Freire

Militarización de las escuelas públicas: reflexiones a la luz de la concepción freireana de gestión democrática de la educación

MIRIAM FÁBIA ALVES1 
http://orcid.org/0000-0002-7742-0009

LÍVIA CRISTINA RIBEIRO DOS REIS2 
http://orcid.org/0000-0002-3341-8951

1Universidade Federal de Goiás Faculdade de Educação Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais e Juventude Goiânia, GO, Brasil

2Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás Programa de Pós-Graduação em Educação Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais e Juventude Goiânia, GO, Brasil


Resumo

O artigo enuncia reflexões sobre o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM) à luz da concepção freireana de gestão democrática da educação. Em cotejo com o corpus documental, a análise evidencia que o programa representa um retrocesso no campo das políticas educacionais por ameaçar o princípio de gestão escolar democrática, ferir a autonomia pedagógica, expropriar espaços de atuação docente e processos de ensino e aprendizagem, bem como descaracterizar a escola pública como espaço de ser mais , ou seja, como lócus de formação humana crítica, libertadora, inclusiva e emancipatória.

Palavras-Chave: Paulo Freire; gestão democrática; militarização de escolas públicas

Abstract

The article enunciates reflections on the National Program of the Civic-Military Schools (PECIM) in the light of Paulo Freire’s conception of democratic management of education. In comparison with the scientific literature, the analysis showed that the program represents a setback in the field of educational policies because it constitutes a threat to the principle of democratic management of schools, injures pedagogical autonomy, expropriates spaces for teaching performance and processes of teaching and learning, as well as mischaracterize the public school as a space to be more, that is, as a locus of critical, liberating, inclusive and emancipatory human formation.

Key words: Paulo Freire; Democratic management; Militarization of public schools

Resumen

El artículo enuncia reflexiones sobre el Programa Nacional de Escuelas Cívico- Militares (PECIM) a la luz de la concepción de Paulo Freire sobre la gestión democrática de la educación. En comparación con el corpus documental, el análisis mostró que el programa representa un retroceso en el campo de las políticas educativas porque constituye una amenaza al principio de gestión escolar democrática, lesiona la autonomía pedagógica, expropia espacios de actuación docente y procesos de enseñanza y aprendizaje. Además, caracteriza erróneamente a la escuela pública como un espacio para ser más, es decir, como un locus de formación humana crítica, libertadora, inclusiva y emancipadora.

Palabras-clave: Paulo Freire; Gestión democrática; militarización de las escuelas públicas

PRIMEIRAS PALAVRAS

A militarização de escolas públicas é um tema atual e relevante, pois há um processo expressivo de expansão de escolas públicas militarizadas no Brasil. Um debate acadêmico que problematize o significado da atuação de militares na gestão de escolas públicas, o discurso sobre a violência na escola – como se essa não fosse uma questão que acomete a sociedade como um todo – e a narrativa descontextualizada sobre o alto desempenho de estudantes de colégios militares, entre outras questões inerentes ao tema, possuem grande importância social e acadêmica.

A reflexão freireana de que a história é possibilidade e não determinação nos convida à tarefa histórica de assumir os desafios do nosso tempo, entre os quais a complexa situação que fomenta a militarização de escolas públicas. Em 1989, ao ser questionado sobre como a Pedagogia do Oprimido seria possível numa realidade diferente da década de 1960, Freire respondeu que a compreensão da educação em favor da emancipação permanente dos seres humanos se põe como um que fazer histórico.

É precisamente porque é histórica, dando-se na história e sendo vivida por seres históricos que, ao fazê-la, de certa forma se refazem, que as formas de pôr em prática a pedagogia do oprimido como a do opressor variam no tempo e no espaço. Há um aspecto que considero fundamental que diz respeito à posta em prática de uma pedagogia do oprimido. Refiro-me à necessidade que têm as lideranças político-pedagógicas progressistas de detectar os níveis em que se vem dando a luta de classes nesta ou naquela sociedade. São estes níveis que explicam o “atual estado” em que se encontra a educação aqui ou ali (FREIRE, 2000a, p. 72).

Partindo dessa premissa, o presente trabalho busca apresentar uma análise crítica sobre a militarização de escolas públicas no Brasil, situando algumas de suas características e pontuando retrocessos e ameaças que tal política representa para a educação brasileira. Assumindo a relevância do entrelaçamento freireano denúncia/anúncio – entendendo que “a mudança do mundo implica a dialetização entre a denúncia da situação desumanizante e o anúncio de sua superação, no fundo, o nosso sonho” (FREIRE, 2000b, p. 37) –, simultaneamente a essa análise um tanto pessimista do presente pontuamos aspectos fundamentais para o projeto de construção de uma “ escola bonita , voltada para a formação social crítica e para a sociedade democrática, [...] cujos traços principais são os da alegria , da seriedade na apropriação e recriação dos conhecimentos, da solidariedade de classe e da amorosidade, da curiosidade e da pergunta” (FREIRE, 2019a, p. 60, grifo do autor).

Indubitavelmente, a produção científica e a militância combativa de Paulo Freire se constituem como uma contribuição inestimável para pensar a educação pública brasileira. Freire teve sua vida marcada pela coerência de propósitos, e sua obra apresenta subsídios importantes para orientar a práxis daqueles que lutam em defesa da escola pública, gratuita e de qualidade socialmente referenciada, assentada nos princípios democráticos da Constituição Federal de 1988 e, sobretudo, comprometida com a formação dos oprimidos.

O pensamento freireano fornece uma chave para a compreensão de questões sociais, políticas e educacionais também nos dias de hoje. Em diversos aspectos, Freire apresenta contribuições fundamentais para uma interpretação crítica do processo de militarização de escolas públicas no Brasil: concepções de sujeito, de educação e sociedade; função social da escola; natureza e especificidades da prática docente; atributos das relações entre educadores, educandos, famílias e comunidade; gestão democrática da educação; entre outros temas desenvolvidos pelo autor por meio de categorias como afetividade, alegria, amorosidade e boniteza; autonomia; autoridade e autoritarismo; cidadania e escola cidadã; coisificação; cultura do silêncio; democracia; diálogo/dialogicidade; emancipação; gestão democrática; humanização/desumanização; inserção/adaptação; leitura do mundo; “ser mais”, oprimido/opressor; rigorosidade; e “situações limites”, entre outras. Considerando a amplitude conceitual de sua obra, o presente trabalho adota um recorte temático: a discussão sobre a gestão democrática da educação numa perspectiva freireana como possiblidade de análise da militarização da educação.

A relação entre educação e democracia é uma das bases estruturantes do pensamento de Paulo Freire e permeia sua obra desde os primeiros escritos, com maior destaque em Educação e atualidade brasileira – sua Tese de Concurso para a Cadeira de História e Filosofia da Educação na Escola de Belas Artes de Pernambuco, escrita em 1959 e posteriormente publicada como livro com o mesmo título (FREIRE, 2012) –, Educação como prática da liberdade (FREIRE, 2019b) e A educação na cidade (FREIRE, 2000a). Este último livro foi reestruturado por Ana Maria Araújo Freire e Erasto Fortes Mendonça e posteriormente publicado com o título Direitos humanos e educação libertadora (FREIRE, 2019a). Além disso, Política e educação ( FREIRE, 2020 ) e À sombra desta mangueira (FREIRE, 2019c) também trazem o entendimento de “gestão democrática” segundo Freire. As seis obras citadas constituem a fundamentação teórica central do presente texto.

Inicialmente, parece importante registrar que o fato de o termo “gestão democrática”, tal como conhecemos hoje, não ser recorrente nos escritos de Freire não significa que o tema não tenha sido explorado em sua obra. Apesar de existirem poucos trechos em que a ideia de gestão democrática aparece de forma explícita, pontual e direta, o conjunto de seus escritos permite identificar a existência de uma concepção freireana de gestão democrática.

As propostas de Freire, sustentadas numa abordagem crítica e antiautoritária de educação, exprimem-se através de múltiplas categorias, que podem ser entendidas como dimensões complementares, gravitando ao redor das suas concepções de gestão democrática, de organização como prática da liberdade, de mobilização organizacional dos sujeitos pedagógicos: gestão colegiada, administração dialógica, gestão participada, autogoverno da escola, administração democrática, democratização e autonomia da escola são, entre outros, exemplos de tais dimensões, umas vezes mobilizadas pelo autor, outras vezes resultando de recepções e recontextualizações das suas propostas ou, nos seus termos, de alongamentos do seu pensamento ( LIMA, 2019 , p. 236).

Nesse sentido, não há como compreender a gestão democrática de maneira isolada ou deslocada da totalidade do pensamento de Freire. Por essa razão, embora o presente trabalho esteja centrado na questão da gestão democrática, também dialoga com outras ideias do autor que fornecem elementos teóricos relevantes para subsidiar a análise aqui proposta.

As reflexões apresentadas foram fundamentadas por pesquisa bibliográfica e documental e sistematizadas em duas seções além desta introdução e das considerações finais: a primeira apresenta o contexto da tessitura social e política brasileira e situa elementos importantes para uma interpretação crítica da proposição de militarização de escolas públicas do governo Bolsonaro; a segunda apresenta uma análise do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM), fundamentada pelo pensamento freireano.

INEXPERIÊNCIA DEMOCRÁTICA: PASSADO QUE NÃO PASSOU?

Na obra Educação como prática da liberdade , Freire (2019b) demonstra que o desenvolvimento histórico do nosso país ocorreu dentro de condições negativas para as experiências democráticas e propôs um exercício de apreensão das raízes da formação brasileira, discorrendo sobre “uma de suas mais fortes marcas, sempre presente e sempre disposta a florescer, nas idas e vindas do processo: a nossa inexperiência democrática” (p. 90).

Freire caracteriza o processo de colonização brasileira como marcadamente exploratório e predatório, sustentado numa base escravista com predominância de relações pautadas em moldes exageradamente tutelares, destacando-se o mandonismo e o poder exacerbado dos colonizadores, que implicavam relações de submissão dos colonizados, os quais eram proibidos de falar. “Sua intenção preponderante era realmente a de explorá-la. A de ficar ‘sobre’ ela. Não a de ficar nela e com ela” (p. 92). Avançando na análise, Freire demarca que “importamos a estrutura do Estado nacional democrático, sem nenhuma prévia consideração a nosso contexto” (p. 106) e pondera que tal inautenticidade justifica o fracasso da tentativa.

Em alguma medida, a inexperiência democrática mencionada por Freire ainda se constitui como característica da sociedade brasileira contemporânea. Recentemente acompanhamos manifestações nas quais alguns grupos reivindicaram intervenção militar e fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, entre outras ameaças às instituições democráticas. Diante disso, parece importante reiterar que a formação histórica do nosso país foi permeada por processos complexos que ocasionaram sequelas profundas na formação da nossa mentalidade democrática.

É precisamente a criticidade a nota fundamental da mentalidade democrática. Quanto mais crítico um grupo humano, tanto mais democrático, e permeável, em regra. Tanto mais democrático quanto mais ligado às condições de sua circunstância. Tanto menos experiências democráticas que exigem dele o conhecimento crítico de sua realidade, pela participação nela, pela sua intimidade com ela, quanto mais superposto a essa realidade e inclinado a formas ingênuas de encará-la. A formas ingênuas de percebê-la. A formas verbosas de representá- la. Quanto menos criticidade em nós, tanto mais ingenuamente tratamos os problemas e discutimos superficialmente os assuntos (FREIRE, 2019b, p. 126).

Isso posto, parece fundamental pontuar que toda estratégia governamental possui um contexto que sustenta suas decisões, escolhas e caminhos. Para que se entendam as Políticas Públicas – especialmente as de cunho social –, faz-se importante compreender a relação destas com o Estado, o qual, em síntese, caracteriza o conjunto de instituições permanentes que viabilizam a ação de um Governo por meio de programas e projetos, demandados por grupos sociais, que são apresentados como de interesse da sociedade como um todo. Destarte, é importante refletir sobre a relação entre Estado, Governo e Políticas Públicas, pois o “processo de definição de políticas públicas para uma sociedade reflete os conflitos de interesses, os arranjos feitos nas esferas de poder que perpassam as instituições do Estado e da sociedade como um todo” ( HOFLING, 2001 , p. 38). As proposições de Freire sempre partem de uma leitura crítica da realidade, fundamentada por uma abordagem conjuntural e histórica. Nesse sentido, para analisar o PECIM parece importante proceder a uma contextualização desse objeto de estudo dentro da conjuntura na qual se encontra inserido, bem como situá-lo como parte de uma totalidade. Portanto, apresentaremos a seguir alguns aspectos que precisam ser considerados para uma interpretação crítica do processo de proposição do PECIM enquanto um programa governamental para educação pública em âmbito nacional.

Durante os governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Vana Rousseff (2003-2016) acompanhamos a formulação e a implementação de políticas públicas de inclusão social. No contexto de avanços sociais – sobretudo no tocante às políticas educacionais –, movimentos sociais, educadores e outros segmentos progressistas ganharam ânimo para defender o reconhecimento de que o direito à cidadania se alicerça na democratização do acesso à educação. No entanto, a ruptura da institucionalidade democrática causada pela consumação do golpe jurídico, midiático e parlamentar de 2016 reiterou a impossibilidade de uma política de conciliação de classes.

O impedimento de Dilma Rousseff abriu precedentes para todo tipo de arbítrio e, por consequência, para ameaças constantes aos direitos sociais garantidos pela Constituição Federal de 1988. No contexto dessa tessitura política, inúmeros retrocessos foram consumados na direção do desmantelamento das políticas públicas existentes em nosso país. Ademais, há que se considerar a “retomada das políticas de governo, em detrimento de movimentos e processos que se organizavam em torno de políticas de Estado” ( DOURADO, 2018 , p. 495).

A gestão de Michel Temer se caracterizou por uma agenda de retrocessos no campo social. Assumindo a plataforma política denominada “Uma ponte para o futuro”, o governo Temer comprovou sua ilegitimidade ao colocar em prática um programa absolutamente distinto daquele que foi eleito pelas urnas no ano de 2014. A cartilha temerária se baseou na ideia de Estado mínimo, enxuto e supostamente eficiente e em dois anos de austeridade trouxe significativos prejuízos ao desenvolvimento social conquistado ao longo de mais de uma década. Ou seja: uma verdadeira ponte para o passado. A medida mais nefasta consumada no governo Temer foi a aprovação da Emenda Constitucional nº 95/2016, que estabeleceu um regime fiscal que limita investimentos na área social por vinte anos. No campo educacional, isso significou a morte do Plano Nacional de Educação (2014-2024), visto que a impossibilidade de ampliação de investimentos inviabiliza o cumprimento de suas metas e estratégias ( AMARAL, 2016 ).

Em 2018, Jair Messias Bolsonaro, político de extrema-direita, despontou como candidato do influente grupo conhecido como bancada BBB (“boi, bala e Bíblia”), composta por representantes ligados ao agronegócio, aos militares e aos religiosos. O candidato ganhou simpatizantes e foi apelidado de “mito” por suas inúmeras declarações carregadas de preconceitos contra mulheres, negros, indígenas e população LGBTQIA+. Jair Bolsonaro conquistou adeptos através de seu discurso anticorrupção e da defesa de pautas conservadoras como escola sem partido, criminalização de movimentos sociais e armamento da população. Foi eleito como presidente para o mandato 2019-2022.

Segundo Frigotto (2017 , p. 29), “há uma relação orgânica e profunda entre as razões que colimaram no golpe de 2016, e a afirmação de teses ultraconservadoras no plano social e político e na junção da política com moralismo fundamentalista religioso”. Diante disso, é importante demarcar que os movimentos neoconservadores se inscrevem no contexto neoliberal, numa articulação a serviço da restruturação do capital.

A condução das políticas educacionais posteriores ao golpe de Estado de 2016 não apenas faz convergir as pautas neoliberais e as pautas neoconservadoras, a despeito de suas aparentes contradições, mas subordina as últimas às primeiras. Implica, por exemplo, compreender que estão amalgamadas ações, como o corte orçamentário das universidades públicas, a medida provisória que impõe restrições à eleição de reitores e os reiterados ataques verbais de autoridades à universidade – de que ela seria um antro de decadência e depravação conduzido pela esquerda. Essas e tantas outras medidas estão concatenadas à produção das condições de privatização do público, direta ou indiretamente, e ao controle ideológico e doutrinário, objetivos que importam aos interesses de acumulação e de reprodução das classes dominantes brasileiras que, é preciso ressaltar, reproduzem-se e se perpetuam sem jamais terem deixado de sustentar – com o necessário aporte de violência – seu preconceito de classe, seu racismo, sua intolerância para com qualquer forma de pensamento político que não resulte na confirmação imediata de seus interesses ( MIRANDA, 2020 , p. 695).

Em consonância com a reflexão apresentada, Freitas (2018a, p. 909) identifica uma “nova direita” brasileira e pontua que o governo Bolsonaro é constituído pela combinação de ao menos três núcleos: o conservador, o liberal e o autoritário. O autor pondera que “as políticas públicas da atual fase serão marcadas, portanto, por estes núcleos de poder e suas múltiplas relações”. A conjugação dessas forças possibilitou a ascensão de Bolsonaro, que compôs o seu governo com representantes desses segmentos, fortalecendo o discurso contra grupos minoritários.

Bolsonaro foi eleito com o slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. O lema comprova que o país elegeu um projeto político que fere o princípio de laicidade do Estado registrado no artigo 19 da Constituição Federal de 1988. Almeida (2019) assinala que a vitória de Bolsonaro nas urnas deve ser interpretada no contexto de uma conjuntura nacional e internacional de recrudescimento do que tem sido nomeado de “onda conservadora”, a qual articula quatro linhas de força sociais: economicamente liberal, moralmente reguladora, securitariamente punitiva e socialmente intolerante. À luz do pensamento freireano, Paludo, Santos e Taddei (2019, p. 402) pontuam que

o atual presidente venceu as eleições com um apoio considerável da população mais empobrecida, que acabou por aderir ao discurso vencedor, com foco no combate à corrupção, acolhendo, dessa forma, um discurso moralista e messiânico. Os oprimidos elegeram um projeto político, econômico e social no qual não estão incluídos seus interesses fundamentais. Estavam imersos em uma consciência intransitiva ou, no máximo, ingênua, a ponto de chegarem a uma contradição ontológico-ideológica, manifestada pelo voto. Ontológica porque negaram a sua condição de oprimido, caindo em inautenticidade, e ideológica porque aderiram à ideologia do opressor, a ideologia que não representa, de nenhuma maneira, os espaços de possibilidades para chegarem à condição de ser mais. Fizeram isso, também, pelo medo da liberdade.

O primeiro ano do governo Bolsonaro foi marcado pelo desmonte e/ou extinção de ministérios e secretarias, os quais já haviam passado por um enxugamento radical na gestão Temer. Nos dois casos, tal reorganização foi justificada pelo discurso de redução de gastos. Uma análise das modificações realizadas por Bolsonaro demonstra que algumas pastas tidas anteriormente como prioritárias no provimento de políticas públicas foram relegadas ao segundo plano ou extintas, tais como o Ministério da Cultura, o Ministério do Desenvolvimento Social e o Ministério do Trabalho, entre outros.

No âmbito do reordenamento do Ministério da Educação (MEC), o primeiro retrocesso foi a extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI). A iniciativa foi interpretada como uma estratégia para suprimir debates fundamentais para o campo educacional, pelos quais o atual presidente demonstra pouca (ou nenhuma) afeição, tais como direitos humanos, relações étnico-raciais e questões de gênero. Como prática habitual, Bolsonaro prefere se posicionar nas redes sociais em detrimento dos meios de comunicação oficiais. No dia 02/01/2019, o presidente compartilhou em sua conta na plataforma Twitter:1 “Ministro da Educação desmonta secretaria de diversidade e cria pasta de alfabetização. Formar cidadãos preparados para o mercado de trabalho. O foco oposto de governos anteriores, que propositalmente investiam na formação de mentes escravas das ideias de dominação socialista”. Assim, evidencia-se o interesse pelo reordenamento das políticas educacionais na perspectiva de priorizar a preparação de mão de obra dócil e de baixo custo, em detrimento de uma formação crítica, libertadora e emancipatória, como defende Freire.

Convém ressaltar que o plano de governo de Bolsonaro,2 no tocante ao tema educação, já afirmava que “conteúdo e método de ensino precisam ser mudados. Mais matemática, ciências e português, sem doutrinação e sexualização precoce” (p. 41). Destacava também que “um dos maiores males atuais é a forte doutrinação” (p. 46). Nessa perspectiva, o escarnecimento de professores e professoras e a desqualificação do trabalho docente já estavam explícitos em seu plano de governo e se tornaram cada vez mais evidentes em sua gestão. Freire (1997) nos ajuda a compreender esse movimento quando afirma que

uma das manhas de certos autoritários cujo discurso bem que podia defender que professora é tia e, quanto mais bem comportada, melhor para a formação de seus sobrinhos , é a que fala claramente de que a escola é um espaço exclusivo do puro ensinar e do puro aprender. De um ensinar e de um aprender tão tecnicamente tratados, tão bem cuidados e seriamente defendidos da natureza política do ensinar e do aprender que torna a escola os sonhos de quem pretende a preservação do status quo ( FREIRE, 1997 , p. 13, grifos do autor).

Se a compreensão do atual presidente no tocante à educação revela seu desprezo pelas instituições escolares no país, a pandemia de covid-19 desvelou seu desprezo pela ciência. Jair Bolsonaro tornou-se mundialmente conhecido por discursos e práticas marcadas por anti-intelectualismo e negacionismo da ciência, bem como pela difusão de declarações distorcidas ou falsas3 . Profissionais de saúde, cientistas e parte da população brasileira têm recebido com perplexidade as notícias relacionadas à negligência do governo federal no enfrentamento à covid-19. A situação brasileira causa espanto em outros países: o descaso com o número de mortes; as inúmeras declarações proferidas com intuito de atacar ou desacreditar os profissionais de saúde, o Sistema Único de Saúde (SUS) e a ciência; a frequente disseminação de informações falsas relacionadas à pandemia; e a opção pela não implementação de uma política nacional de enfrentamento ao vírus, entre outras medidas nefastas, divulgadas diariamente pelos meios de comunicação nacionais e internacionais.

Por mais que a situação sinalize um país desgovernado, a imagem talvez não seja a mais apropriada, visto que os núcleos que conferem sustentação ao atual governo (neoliberal, conservador e autoritário) estão seguindo seu fluxo de forma ativa, conforme demonstra a gravação da reunião ministerial4 realizada no Planalto no dia 22/04/2020. O discurso neoliberal é representado de maneira explícita pelos comentários do Ministro da Economia, Paulo Guedes, e do então Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.

Além da centralidade da agenda neoliberal, as narrativas apresentadas na referida reunião ministerial possibilitam a identificação de outras nuances importantes, as quais fornecem subsídios para problematizar a multiplicidade dos grupos que estão influenciando e/ou atuando na condução da política brasileira na atualidade. Freitas (2018b, p. 14) aponta o “lado obscuro do neoliberalismo – sua ligação política com os conservadores, seu significado ideológico e os métodos pelos quais se propaga e resiste”.5 Se não houve empenho do governo federal em combater/controlar a pandemia, o mesmo não se pode afirmar em relação à agenda neoliberal, que avançou significativamente.

Durante a pandemia de covid-19, a educação brasileira tem sido severamente afetada com a omissão do governo federal em cumprir o princípio de cooperação e assumir, como define a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9.394/1996), o planejamento de políticas educacionais em articulação com estados e municípios. A ausência de proposições efetivas por parte do MEC resultou em um cenário complexo, no qual os entes federativos tiveram que elaborar e gerir suas políticas educacionais sem apoio efetivo do governo federal. A omissão do governo federal, nesse cenário, concorre para a intensificação das disparidades regionais e, consequentemente, agrava o panorama das desigualdades educacionais. Não obstante, registra-se uma contradição importante, materializada em uma forma particular de atuação do MEC, que pode ser definida como omissão seletiva: projetos neoliberais, hegemônicos, conservadores e autoritários estão seguindo seu curso de maneira acelerada em plena pandemia, tais como a militarização de escolas públicas, a reforma do Ensino Médio, a implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e o ensino domiciliar, bem como programas retrógrados no âmbito da Educação Infantil e no campo de alfabetização e letramento (ALVES, REIS, SILVA; 2020).

O PROGRAMA NACIONAL DAS ESCOLAS CÍVICO-MILITARES: UMA ANÁLISE A PARTIR DA CONCEPÇÃO FREIREANA DE GESTÃO DEMOCRÁTICA DA EDUCAÇÃO

A articulação entre ideias neoliberais, neoconservadoras e autoritárias no cenário brasileiro da última década ameaça a consecução de um projeto de educação democrática e humanizadora. A ponderação de Freire sobre uma leitura crítica relativa ao cenário de meados de 1967 nos apresenta uma chave analítica para situar tais projetos formativos contemporâneos.

Esta nos parecia uma das grandes características de nossa educação. A de vir enfatizando cada vez mais em nós posições ingênuas, que nos deixam sempre na periferia de tudo o que tratamos. Pouco, ou quase nada, que nos leve a posições mais indagadoras, mais inquietas, mais criadoras. Tudo, ou quase tudo, nos levando, desgraçadamente, pelo contrário, à passividade, ao “conhecimento” memorizado apenas, que, não exigindo de nós elaboração ou reelaboração, nos deixa em posição de inautêntica sabedoria (FREIRE, 2019b, p. 126).

Foi na esteira da tessitura social e política, relatada no tópico anterior, que ocorreu a publicação do Decreto Federal 10.004/2019, que instituiu o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM), sob responsabilidade do MEC, com apoio do Ministério da Defesa. O PECIM visa à operacionalização de parcerias entre o Governo Federal e os sistemas de ensino para a implementação do modelo de escolas cívico-militares (ECM), mas não prevê a criação de novos colégios militares – ao contrário, o programa induz o processo de militarização de escolas estaduais e municipais. Entende-se por escola militarizada a instituição escolar pública preexistente que tem seu funcionamento radicalmente modificado em decorrência de acordos com instituições militares.

O Decreto Federal 10.004/2019 menciona a “adoção de modelo de gestão escolar baseado nos colégios militares” ( BRASIL, 2019 ), o que representa uma ruptura com o princípio da gestão democrática da educação pública, regulamentado pelo artigo 206 da Constituição Federal de 1988, reafirmado no artigo 3º da LDB/1996 e preconizado no artigo 2º do Plano Nacional de Educação 2014-2024 (Lei 13.005/2014).

O MEC publicou no início do ano de 2020 o Manual das escolas cívico-militares , visando subsidiar a implementação do PECIM. As 324 páginas do documento contemplam normas detalhadas a serem cumpridas por estudantes, docentes e demais profissionais da educação. O documento desconsidera a extensão territorial do Brasil, suas diversidades culturais e desigualdades regionais, e consequentemente as especificidades, os desafios e as necessidades da realidade local de cada unidade escolar. Além disso, nota-se que a linguagem utilizada compara o contexto escolar ao dos quartéis e explicita a valorização da obediência em detrimento da autonomia dos sujeitos, o que nos leva a indagar sobre o papel da escola no sentido de exercitar a domesticação. Na perspectiva freireana,

domesticação pode ser definida como um processo através do qual se cria uma consciência passiva de submissão tanto a pessoas como a um sistema, seja social, seja econômico ou educacional. Embora constitua uma atitude pessoal de aceitação sem questionamento da própria vida e da realidade, implica uma sujeição a uma determinada ordem social estabelecida tomando-a como definitiva e permanente e, portanto, imutável ( ROSSATO, 2019 , p. 154).

Para Freire (2019a, p. 63), “a escola precisa ser um espaço vivo democrático, onde todas as perguntas sejam levadas a sério, espaço privilegiado da ação educativa e de um sadio pluralismo de ideias”. A educação freireana é concebida como um ato de amor e coragem, a qual deve ser fomentada pelo debate e pela análise da realidade e estar a serviço da humanização dos sujeitos.

Freire (2019b, p. 127) nos ensina que “a democracia e a educação democrática se fundam ambas, precisamente, na crença no homem”. Nessa perspectiva, o autor critica a proposição de “pacotes”, manuais ou guias endereçados a professores e assinala que uma das conotações do autoritarismo é a total descrença nas possibilidades dos outros.

Percebe-se como tal prática transpira autoritarismo. De um lado, no nenhum respeito à capacidade crítica dos professores, a seu conhecimento, à sua prática; de outro, na arrogância com que meia dúzia de especialistas que se julgam iluminados elabora ou produz o “pacote” a ser docilmente seguido pelos professores que, para fazê-lo, devem recorrer aos guias ( FREIRE, 2020 , p. 84).

No caso em análise, a capa do manual apresenta o brasão do PECIM, o qual nos leva a questionar a ausência da representação de profissionais da educação em contraposição à presença do militar uniformizado. Nesse sentido, evidenciam-se a centralidade atribuída aos militares nas escolas cívico-militares e o apagamento dos professores do processo educativo.

Fonte: BRASIL, 2020 , p. 1.

Figura 1 Brasão do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares 

O apagamento da figura docente no brasão do PECIM deve ser interpretado de maneira conjunta com os diversos pontos do manual que indicam a usurpação do trabalho docente por parte dos militares (denominados “monitores” no documento). Como exemplo podemos citar o § 2º do artigo 91 do regulamento das ECM, o qual estabelece que, para fins de validação do dia letivo, “considera-se como efetivo trabalho escolar o conjunto das atividades pedagógicas, realizadas dentro ou fora da unidade escolar, com a presença dos professores ou monitores” ( BRASIL, 2020 , p. 43). Esse e outros trechos do manual comprovam a expropriação tanto do trabalho docente como dos processos de ensino e aprendizagem propriamente ditos.

À luz da regulamentação do PECIM, os militares são responsáveis pela gestão educacional, a qual deve “atuar na difusão de valores humanos e cívicos para estimular o desenvolvimento de bons comportamentos e atitudes do aluno e a sua formação integral como cidadão em ambiente escolar externo à sala de aula” ( BRASIL, 2020 , p. 128). Diante disso, questiona-se qual seria a fundamentação para a convicção de que militares estão mais habilitados do que profissionais da educação para desenvolver qualquer atividade em contexto escolar.

Que mensagem implícita o poder público envia aos profissionais da educação por meio da decisão de militarizar escolas? Como surgiu e se consolidou no imaginário social a ideia de que militares estão mais habilitados do que professores para administrar instituições educacionais? Por que muitas famílias aprovam e admiram esse modelo de educação? O que Paulo Freire pensaria sobre essa admiração por uma escola que ensina a obedecer? Mais uma vez parece essencial retomar a ideia de que,

em verdade, o que caracterizou, desde o início, a nossa formação, foi, sem dúvida, o poder exacerbado. Foi a robustez do poder em torno de que foi se criando um quase gosto masoquista de ficar sob ele a que correspondia outro, o de se ser o todo-poderoso. Poder exacerbado a que foi se associando sempre submissão. Submissão de que decorria, em consequência, ajustamento, acomodação e não integração (FREIRE, 2019b, p. 99).

O PECIM sugere que a presença de militares na educação é um “clamor atual de toda a sociedade brasileira”, os quais podem exercer “papel de tutoria que muitos alunos não tiveram em seus ambientes familiares”, bem como desempenhar função estratégica “diante da nova BNCC”, “ajudar a reorganizar a escola” e a “servir de referência para muitos alunos que infelizmente não possuem bons exemplos a seguir” (BRASIL, 2020, p. 130-131). Tal concepção do profissional militar como figura exemplar e admirada pela sociedade requer uma análise cuidadosa, pois se trata de uma narrativa que busca justificar o processo de militarização de escolas públicas em âmbito nacional. No entanto, é primordial situar historicamente a

constituição de um imaginário social instituinte, no tocante ao papel das Forças Armadas, em particular do Exército, para o desenvolvimento do país. Ao longo do tempo, foi se plasmando um pensamento militar, ancorado no tema ordem e progresso, sobre a sociedade brasileira e acerca do Estado, necessário para desenvolver o país, e a educação requerida para dar sustentáculo ao projeto de nação almejado pelos “homens de farda”. Observa-se que as intervenções militares na política efetuadas a partir do Estado Novo (1937-1945) tiveram caráter conservador e salvacionista, ganhando relevo no âmbito militar, de 1937 a 1964, a idéia do Exército como educador do povo, para além dos quartéis ( GERMANO, 2008 , p. 313).

O documento analisado relaciona o objetivo das ECM à “gestão de excelência nas áreas educacional, didático-pedagógica e administrativa” ( BRASIL, 2020 , p. 2). Tal discurso de fragmentação, já manifesto em outras experiências no país, explicita desconhecimento sobre a natureza do trabalho pedagógico ( PARO, 1993 ; SAVIANI, 1984 ), uma vez que a escola não se assemelha à linha de produção de uma fábrica, na qual o processo se divide em etapas dissociadas, onde os militares possam realizar a gestão educacional sem nenhuma interferência no processo pedagógico e, consequentemente, sobre o trabalho docente.

Ademais, parece importante destacar que o manual relaciona a ideia de gestão de excelência a um suposto padrão de qualidade elevada. Em contraposição a essa noção de qualidade, registramos a proposição freireana de uma escola pública popular,

uma escola com uma nova qualidade baseada no compromisso, numa postura solidária, formando a consciência social e democrática. [...] Essa nova qualidade não será medida apenas pelos palmos de conhecimento socializado, mas pela solidariedade humana que tiver construído e pela consciência social e democrática que tiver formado, pelo repúdio que tiver manifestado aos preconceitos de toda ordem e às práticas discriminatórias correspondentes (FREIRE, 2019a, p. 67, grifo do autor).

Ao analisar o organograma de funcionamento das escolas do PECIM, apresentado no manual, constatamos que professores e demais profissionais da educação estão hierarquicamente subordinados aos militares.

Fonte: BRASIL, 2020 , p. 66.

Figura 2 Organograma das Escolas Cívico-Militares 

A hierarquia e a subordinação, marcas características da corporação militar, estão representadas neste organograma, o que vai de encontro à proposta educacional progressista, emancipadora, libertadora e democrática de Paulo Freire, que supõe relações horizontais entre sujeitos, sem espaço para subordinação. Nessa perspectiva, o autor tece duras críticas ao centralismo e às relações verticalmente constituídas.

Estruturas administrativas a serviço do poder centralizado não favorecem procedimentos democráticos. Um dos papéis das lideranças democráticas é precisamente superar os esquemas autoritários para tomadas de decisão por outros de natureza dialógica. O centralismo brasileiro, contra que tanto lutou Anísio Teixeira, expressa, de um lado, nossas tradições autoritárias, de outro, as alimenta (FREIRE, 2019c, p. 80, grifo do autor).

O manual também fere o disposto no inciso I do artigo 14 da LDB/1996 ao negar a participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola, pois apresenta um projeto padronizado que comporta apenas o preenchimento de alguns campos. Nesse sentido, o processo de democratização da escola, que também se materializa na discussão de seu projeto pedagógico, de sua realidade e seus desafios desaparece no modelo do PECIM. Diante disso, parece oportuno registrar que

não há nada que mais contradiga e comprometa a emersão popular do que uma educação que não jogue o educando às experiências do debate e da análise dos problemas e que não lhe propicie condições de verdadeira participação. Vale dizer, uma educação que longe de se identificar com o novo clima para ajudar o esforço de democratização, intensifique a nossa inexperiência democrática, alimentando-a (FREIRE, 2019b, p. 123).

Importa registrar que os documentos que regulamentam o PECIM definem concepções – de homem, de educação, de docência, de sociedade, entre outras – absolutamente distintas dos documentos que nortearam a experiência de gestão de Paulo Freire enquanto Secretário Municipal de Educação de São Paulo (1989-1991). A análise de documentos como “Aos que fazem a educação conosco”, “Construindo a Educação Pública Popular” e o “Regimento Comum das Escolas Municipais”6 demonstra o explícito compromisso de Freire e sua equipe com a construção coletiva de uma concepção de gestão democrática da educação na qual sejam garantidos:

  • Liberdade de expressão e de organização;

  • Participação dos sujeitos nas decisões, contemplando a presença ativa e deliberativa dos que fazem a educação;

  • Respeito aos princípios constitucionais;

  • Substituição da estrutura hierárquica de tomada de decisões de cima para baixo pela atuação dos Conselhos Populares de Educação e dos Conselhos de Escola;

  • Garantia de autonomia para a gestão das escolas bem como para suas propostas curriculares;

  • Valorização do trabalho docente (Estatuto do Magistério, formação continuada, realização de concursos de admissão);

  • Reconhecimento das especificidades das diferentes etapas e modalidades da educação, como a Educação de Jovens e Adultos e a Educação Infantil;

  • Adesão a uma noção de “nova qualidade”, a qual não restringe o parâmetro de qualidade à quantidade de conteúdos transmitidos e conhecimentos socializados, considerando também o nível de solidariedade humana e a consciência social e democrática como referenciais importantes;

  • Compreensão de escola como um centro de pesquisa, reflexão pedagógica e experimentação de novas alternativas de um ponto de vista popular, concebendo-a como espaço de organização política das classes populares, bem como centro de (re)criação e irradiação da cultura popular;

  • Associação da educação formal à não formal, entendendo que a escola não é o único espaço da prática pedagógica;

  • Democratização do acesso às tecnologias educacionais;

  • Superação de práticas imediatistas e pulverizadas que caracterizam a descontinuidade administrativa que impossibilita a consolidação de um sistema de educação pública;

  • Educação integral como direito do educando e promoção da articulação entre a política educacional e outras políticas públicas.

Por fim, destaca-se que o referencial freireano evidencia a importância do agir educativo no sentido da autêntica democracia, ou seja, aprender democracia através de seu exercício. “Na verdade, se há saber que só se incorpora ao homem experimentalmente, existencialmente, este é o saber democrático” (FREIRE, 2019b, p. 122). Nessa perspectiva, a pedagogia democrática se materializa através da ação do “professor libertador que convida os alunos para a transformação, que ensina de modo dialógico e não de modo autoritário, que dá exemplo como estudioso crítico da sociedade” ( FREIRE, 1986 , p. 162). O PECIM, ao contrário dessa proposição, limita a autonomia dos sujeitos e por consequência a possibilidade de uma pedagogia democrática que alcance a sociedade para além dos muros da escola, fomentando outras práticas pedagógicas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

[...] a verdadeira paciência não se identifica, jamais, com a espera na pura espera. A verdadeira paciência, associada sempre à autêntica esperança, caracteriza a atitude dos que sabem que, para fazer o impossível, é preciso torná-lo possível. E a melhor maneira de tornar o impossível possível é realizar o possível de hoje ( FREIRE, 2011 , p. 98).

No ano em que comemoramos o centenário de Paulo Freire, o Brasil está em luto pelas mais de 530 mil vidas ceifadas pela pandemia de covid-19. Para Freire (1997, p. 45) “a assunção do medo é o começo de sua transformação em coragem”. Nessa perspectiva, diante do atual contexto pandêmico, esperançar tem sido uma estratégia de ousadia, de resistência ao medo, de evitar o desespero e o ceticismo ( FREIRE, 1986 ).

Apesar do imperativo pessimista da análise, é fundamental perseverar na luta contra as ameaças e retrocessos que assombram a política educacional brasileira. Nessa perspectiva, parece vital lutarmos “pacientemente impacientes por uma educação como prática da liberdade” (FREIRE, 2019a, p. 60), a qual só pode se materializar por meio de um projeto pedagógico emancipador. E, nesse sentido, urge uma luta articulada, de todos os que defendem a educação como prática de liberdade, em favor da educação pública e democrática, contra os processos de militarização da escola pública.

Por ora, conclui-se que o PECIM representa um retrocesso no campo das políticas educacionais por se constituir como uma grave ameaça ao princípio de gestão escolar democrática, ferir a autonomia pedagógica ao subordinar profissionais da educação a militares e expropriar espaços de atuação docente e processos de ensino e aprendizagem, bem como descaracterizar a escola pública como espaço de ser mais , ou seja, como lócus de formação humana crítica, libertadora, inclusiva e emancipatória como defende Paulo Freire.

Em nome de uma escola pública, democrática e alegre! Paulo Freire, Presente!

REFERÊNCIAS

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1Disponível em: < https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1080567217031393283> . Acesso em 15 fev. 2021.

2Disponível em: < https://divulgacandcontas.tse.jus.br/candidaturas/oficial/2018/BR/ BR/2022802018/280000614517/proposta_1534284632231.pdf>. Acesso em: 1º fev. 2021.

3O processo eleitoral de 2018 ficou registrado como “eleições das fake news”, prática que ganhou grande proporção desde então, a ponto de culminar em inquérito que atualmente tramita no Supremo Tribunal Federal e investiga o compartilhamento de notícias falsas por parte de aliados da família Bolsonaro. Uma plataforma brasileira (< https://www.aosfatos.org/ >) comprova que em 917 dias de governo Bolsonaro fez 3296 declarações falsas ou distorcidas, o que configura uma média de mais de três inverdades pronunciadas por dia. Acesso em 07 jul. 2021.

4Transcrição disponível em: < https://static.poder360.com.br/2020/05/transcricao-video- reuniao22abr.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2021.

5Importa ressaltar a defesa controversa de valores supostamente conservadores nos comentários de Damares Alves, Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, e a invocação por Bolsonaro de termos como “família”, “Deus”, “Brasil” e “armamento”, alinhados ao tom autoritário que conduziu a reunião do início ao fim.

6Disponível em: < http://acervo.paulofreire.org:8080/xmlui/handle/7891/1027> . Acesso em: 15 fev. 2021.

Recebido: 20 de Abril de 2021; Aceito: 26 de Julho de 2021

Miriam Fábia Alves Licenciada em História pela Universidade Estadual de Goiás (1992), mestre em Educação pela Universidade Federal de Goiás (2000) e doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (2007). Realizou Estágio Pós- Doutoral na Universidade de Sevilha - Espanha (2018). Coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais e Juventude (GEPEJ) e atua como Vice-Presidenta Centro-Oeste da Anped. Professora associada da Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Educação, Goiânia, Goiás, Brasil. E-mail: miriamfabia@gmail.com

Lívia Cristina Ribeiro dos Reis Graduação em Pedagogia (2009) e Especialização em Educação Infantil (2012) pela Universidade Federal de Goiás, Mestrado em Educação pela Universidade de Brasília (2015). Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da UFG. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais e Juventude (GEPEJ). Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás, Câmpus Goiânia Oeste, Goiânia, Goiás, Brasil. E-mail: livia.reis@ifg.edu.br

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