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Revista Brasileira de Política e Administração da Educação

versão impressa ISSN 1678-166Xversão On-line ISSN 2447-4193

Revista Brasileira de Política e Administração da Educação vol.37 no.2 Goiânia maio/ago 2021  Epub 31-Mar-2022

https://doi.org/10.21573/vol37n22021.113211 

DOSSIÊ “PAULO FREIRE E A GESTÃO EDUCACIONAL”

Paulo Freire e gestão democrática: aproximações epistemológicas e formativas

Paulo Freire and democratic management: epistemological and formative approaches

Paulo Freire y la gestión democrática: enfoques epistemológicos y formativos

RODRIGO SOARES GUIMARÃES RODRIGUES1 
http://orcid.org/0000-0002-6671-2460

LUANA ROSA DE ARAÚJO SILVA2 
http://orcid.org/0000-0002-4969-8484

1Instituto Federal de Brasília Programa de Pós-graduação em Educação Departamento de Educação Profissional e Tecnológica Samambaia, DF, Brasil

2Universidade de Brasília Programa de Pós-graduação em Educação Departamento de Educação Distrito Federal, DF, Brasil


Resumo

Este artigo faz uso de dados de uma pesquisa de doutorado com foco no percurso histórico da gestão democrática no Brasil, buscando aproximações epistemológicas com a obra do educador brasileiro Paulo Freire (1921-1997). Teve-se como métodos de pesquisa a análise documental dos instrumentos legais que normatizam esta concepção de gestão no país e a revisão bibliográfica da literatura sobre o tema, bem como da obra do autor. Buscou-se identificar nos referenciais compatibilização de conceitos, constatando-se convergências entre princípios desta gestão, com pressupostos da obra de Freire.

Palavras-Chave: Gestão Democrática; Paulo Freire; Emancipação e Conscientização

Abstract

This article uses data from a doctoral research focusing on the historical path of democratic management in Brazil, seeking epistemological approaches to the work of the Brazilian educator Paulo Freire (1921-1997). The research methods used were the documentary analysis of the legal instruments that standardize this concept of management in the country and the bibliographic review of the literature on the subject, as well as the author’s work. The aim was to identify concepts in the framework of compatibility, evidencing convergences between the principles of this management, with assumptions of Freire’s work.

Key words: Democratic Management; Paulo Freire; Emancipation and Awareness

Resumen

Este artículo utiliza datos de una investigación de doctorado centrada en la trayectoria histórica de la gestión democrática en Brasil, buscando aproximaciones epistemológicas al trabajo del educador brasileño Paulo Freire (1921-1997). Los métodos de investigación utilizados fueron el análisis documental de los instrumentos legales que estandarizan este concepto de gestión en el país y la revisión bibliográfica de la literatura sobre el tema, así como el trabajo del autor. Intentamos identificar conceptos en las referencias, permitiendo verificar convergencias entre los principios de esta gestión, con los supuestos del trabajo de Freire.

Palabras-clave: Gestión Democrática; Paulo Freire; Emancipación y Conciencia

INTRODUÇÃO

Princípio constitucional da educação brasileira, a gestão democrática é vista como mecanismo capaz de trazer possibilidades emancipatórias ao processo formativo e à vivência escolar, à medida em que aponta para a necessidade de participação ativa dos indivíduos nos processos organizacionais e decisórios das instituições educacionais. É com base no que se diz, que o presente artigo objetiva identificar elementos presentes na obra de Paulo Freire (1921-1997), bem como na literatura pertinente acerca da Gestão Democrática, que contribuam para legitimar inerentes aproximações epistemológicas entre ambos, com vistas ao desenvolvimento emancipatório dos sujeitos que constituem o espaço escolar. Justifica-se a importância do debate proposto por se reconhecer as potencialidades que podem surgir da construção de uma gestão democrática ancorada e fundamentada nos pressupostos da teoria freiriana. Entende-se que, obviamente, tal qual proposto pelo autor, a educação é um ato político e como tal, atua para a concretização do alcance dos níveis mais elevados da consciência humana, em suas diversas e múltiplas dimensões. Esse alcance atuaria, por consequência, em favor de uma leitura e compreensão da realidade, princípios essenciais aos movimentos de transformação da realidade e dos próprios seres humanos.

Dessa forma, o presente artigo usa como métodos de pesquisa a análise documental dos instrumentos legais que normatizam e institucionalizam esta concepção de gestão no país e ainda, a revisão bibliográfica da literatura sobre o tema, bem como da obra do autor em questão. Objetiva-se, com isso, identificar, nos referenciais supracitados, compatibilização de conceitos e fundamentos, na busca por convergências entre princípios da gestão democrática, com pressupostos da obra de Freire. Assim, é relevante dizer ainda, que a construção deste texto está ancorada e parte inicialmente de levantamentos bibliográficos e documentais oriundos de uma pesquisa em nível de doutorado, a qual foi realizada tendo como foco o desenvolvimento histórico da Gestão Democrática no Brasil.

Dessa forma, o texto se estrutura em três partes que o configuram no intuito de fundamentar e embasar as análises nos conhecimentos oriundos das fontes citadas, trazendo elementos teóricos acerca dos princípios norteadores e fundamentais da Gestão Democrática (primeira parte), para em seguida dissertar sobre premissas essenciais à obra de Paulo Freire (segunda parte). Com isso, tem- se na terceira e última parte, um movimento que visa dialogar com as perspectivas epistemológicas, trazidas anteriormente, com vistas a explicitar como as ideias freirianas se compatibilizam com os princípios teóricos da gestão democrática. Para além destes e com o intuito de ampliar as discussões e análises, acrescenta-se como referências os trabalhos e pesquisas de autores, como Mendonça (2000) , Veiga (2002) e Rodrigues (2016) , acrescentando-se a própria obra de Freire (1967 , 1980 , 1996 e 2001).

GESTÃO DEMOCRÁTICA: PRINCÍPIOS LEGAIS E FUNDAMENTOS TEÓRICOS

A Gestão Democrática é tida como norteadora das práticas organizacionais escolares do cenário educacional brasileiro desde o texto da Constituição da República de 1988, na forma da lei e para o ensino público. Reconhece-se o texto constitucional como um documento inicial e primordial para o debate acerca do tema em âmbito nacional, uma vez que este, para além de institucionalizar, possibilita uma visão macro da educação brasileira. E, por consequência, evidencia seus movimentos e dinamismo dentro e fora da sala de aula e, como tal, será utilizado aqui como referência para os princípios e fundamentos da perspectiva de gestão que se discute. De acordo com o que se diz, Rodrigues (2016) , coloca que dentre os artigos que dissertam sobre educação,

[...] aborda-se temas como: relação professor e aluno (artigo 206), o que deverá ser ensinado e como será ensinado (artigos 206 e 210), projetos e modelos de sociedade e nação (artigo 205 e 214), bem como as influências financeiras, econômicas, políticas (artigos 209, 211, 212 e 213) e culturais (artigo 206), que atuam na realidade escolar ( BRASIL, 1988 ). ( RODRIGUES, 2016 , p. 73)

Há assim, uma construção legal que visa mostrar-se capaz de atender às diversas e complexas demandas que o cenário educacional brasileiro apresenta. Especialmente no que tange à gestão democrática, é importante ressaltar que se tem relevantes avanços, uma vez, que, por mais que o escrito seja bem específico ao estipular esta, como princípio unicamente do ensino público, traz-se à luz do debate pedagógico nacional esta temática, inclusive no âmbito da lei.

Reconhece-se que a presença da gestão democrática como princípio é fruto da pressão direta da sociedade civil e dos mecanismos de ação educacional exigindo um firme e concreto posicionamento governamental quanto à operacionalização e reafirmação do feito democrático, no ato de gerir a educação pública, mas sem apontar um conceito ou concepção bem definida e articulada de como essa deveria ser, dando margem para as mais diversas traduções e interpretações, ficando a cargo dos sistemas de ensino construir mecanismos legais que fossem capazes de explicitar e institucionalizar o formato ideal de gestão democrática.

Em 1988, movida por inúmeros acontecimentos que proliferam a participação popular, a Constituição Federal estabeleceu como um dos princípios do ensino público brasileiro, em todos os níveis, a gestão democrática. Ao fazê- lo, a Constituição institucionalizou, no âmbito federal, práticas ocorrentes em vários sistemas de ensino estaduais e municipais. Algumas dessas práticas são amparadas por instrumentos legais produzidos pelas respectivas casas legislativas ou pelos executivos locais (MENDONÇA, 2001, p. 3).

É sabido que optou-se por ter a Constituição Federal de 1988 como marco cronológico da Gestão Democrática no Brasil, em virtude do processo de redemocratização em trânsito no país, pós-ditadura militar1 . Esse processo teve este documento como um alicerce para a construção de uma sociedade democrática, permitindo assim a ampliação do conceito e vivência da cidadania no país. Dessa maneira, entende-se que ter-se no texto constitucional a institucionalização da escola como espaço democrático e de vivência democrática era algo essencial para a ampliação destes valores para a sociedade brasileira que se almeja formar. Ainda sobre a temática, acrescentam-se as palavras de Veiga, as quais expressam que a Gestão Democrática

[...] é um princípio consagrado pela Constituição vigente e abrange as dimensões pedagógica, administrativa e financeira. Ela exige uma ruptura histórica na prática administrativa da escola, com o enfrentamento das questões de exclusão e reprovação e da não-permanência do aluno na sala de aula, o que vem provocando a marginalização das classes populares. Esse compromisso implica a construção coletiva de um projeto político-pedagógico ligado à educação das classes populares.

A gestão democrática exige a compreensão em profundidade dos problemas postos pela prática pedagógica. Ela visa romper com a separação entre concepção e execução, entre o pensar e o fazer, entre teoria e prática. Busca resgatar o controle do processo e do produto do trabalho pelos educadores. ( VEIGA, 2002 , p. 03)

Deste modo, tem-se no texto da autora supracitada, a consolidação de que, neste paradigma de gestão, os espaços institucionais são entendidos como coletivos, em um movimento no qual as relações se pautam na horizontalidade em relação aos sujeitos e, por consequência direta, as decisões se tornam descentralizadas, desconstruindo o modelo centralizador oriundo de concepções empresariais historicamente em voga. Entende-se, com isso, que as decisões devem ser tomadas por todos, ideia que não descarta a participação individual de cada sujeito para a construção do que se objetiva alcançar, sendo necessário que cada um assuma suas responsabilidades individuais para que a instituição verdadeiramente possa atingir seus propósitos.

Frente ao objetivo de se melhorar a atuação da escola, envolvendo a participação de todos, o diálogo, a discussão em grupo e a autonomia são valorizados, embora reconhecida e afirmada a ideia de que não se descarte a realização de acompanhamentos e avaliações sistemáticas. Tem-se com estas, o almejo de se perceber em que medida as decisões e ações coletivas possibilitam o alcance dos objetivos institucionais e educacionais propostos, percebendo-se assim, erros e acertos na execução e realização dos trabalhos escolares.

Ainda no âmbito dos documentos norteadores que atuam para a normatização/institucionalização da gestão democrática como princípio da educação brasileira, deve-se ressaltar a Lei 9394/96, amplamente conhecida como Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Esta, reforça o texto original da Constituição da República, ressaltando a gestão democrática como um dos 12 princípios do ensino nacional, mas continua fazendo referência apenas ao ensino público.

Assim dizendo, a gestão democrática, de acordo com a lei, é um princípio explicitamente defendido somente para a educação pública, eximindo as instituições privadas de respeitarem este princípio. Nota-se aí o reflexo da influência dos mecanismos internacionais e das políticas de mercantilização da educação que eram comuns à época (e ainda são), sendo reforçadas pela legislação

construída no período, trazendo, ao mesmo tempo, exigências e cobranças aos docentes e à escola pública, em que reforça, por outro lado, privilégios e diferenciações para o setor privado, o que já pode ser visto desde a Constituição Federal de 1988. Sendo assim, o tratamento diferenciado entre educação pública e privada foi reforçado também neste texto legal, o qual abarca novamente a gestão democrática, em seu artigo 14, no qual a legislação define e caracteriza o que se entende por este princípio, que seria, no texto da própria lei:

  • Art. 14. Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do ensino público na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios:

  • I - participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola;

  • II - participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes ( BRASIL, 1996 ).

O artigo 14 é um artigo de destaque para se entender a gestão democrática no âmbito da LDB, justamente por caracterizar e definir como a educação nacional compreenderia este conceito, sendo que importantes pistas podem ser percebidas ao se realizar uma leitura crítica e sistematizada deste escrito. Ainda importa visualizar como o exercício gestor é explicitado na lei apenas por assegurar a participação dos sujeitos na construção dos documentos. Para se alcançar o que se propõe, faz-se necessária uma análise que permita compreender os dois princípios presentes neste artigo e, consequentemente, o que estes trazem em termos de efetivação da gestão democrática na educação brasileira.

Percebe-se que a concretização desta perspectiva de gestão passa por elementos fundantes como: a composição de colegiados ou conselhos escolares com membros da comunidade, participação da comunidade escolar na construção, elaboração e execução do projeto político-pedagógico, escolha de dirigentes escolares, autonomia e descentralização dos processos de gestão e de tomada de decisões. Importa ressaltar que dizer que a escola é autônoma é diferente de dizer que esta é soberana, uma vez que a autonomia se manifesta em suas dimensões administrativa, pedagógica, jurídica, de gestão financeira e patrimonial.

Assim, salienta-se que se trata de um elemento relevante para o desenvolvimento dos trabalhos de uma instituição educacional, uma vez que esse processo pode influenciar diretamente o alcance dos objetivos educacionais. Um modelo de organização escolar que pauta a condução dos trabalhos desenvolvidos na coletividade é capaz de promover mudanças significativas nessa realidade, especialmente se possibilitada a ampla participação da comunidade na organização e direcionamento das ações desenvolvidas dentro da instituição.

É nessa perspectiva que a gestão democrática surge como um elemento capaz de redefinir o exercício da democracia dentro da escola, com vistas à sua ampliação dentro da sociedade como um todo. Isso porque, dentro desse paradigma, tem-se esta como um mecanismo organizador da vontade coletiva, capaz de dar voz e força às decisões do todo que constitui a instituição educacional. Com isso, nota-se uma possibilidade de redirecionar papéis e interesses, redesenhando o formato liberal predominante e implementando um caráter de inovação na forma como se pensa e se organiza a escola pública brasileira.

O ideal democrático supõe cidadãos atentos à evolução da coisa pública, informados dos acontecimentos políticos, dos principais problemas, capazes de escolher entre as diversas alternativas apresentadas pelas forças políticas e fortemente interessados em formas diretas ou indiretas de participação.

Talvez se possa dizer que o conteúdo relevante desta relação está na descoberta de que o cerne da participação é a educação, se a compreendermos como arte maiêutica de motivar a construção própria do sujeito social. Desta forma, chegamos também a entender o vínculo da educação com a emancipação. Em processos emancipatórios, a peça-chave é sempre o sujeito social que assim se entende e como tal realiza sua própria emancipação. Contribuem neste processo todos os agentes externos que são indispensáveis, mas apenas instrumentais, como o educador frente ao educando. Na relação autoritária, fabrica-se o obediente,o submisso, o discípulo para copiar e imitar; na relação crítica emancipadora, motiva-se a formação do novo mestre capaz de dotar-se de projeto próprio de desenvolvimento.

Não há como substituir a iniciativa própria de quem pretende emancipar- se. Ninguém emancipa ninguém, a não ser que este alguém se emancipe (FERREIRA, 2000, p. 171).

Isto posto, a partir dos princípios e fundamentos da gestão concebida e descrita até aqui, institucionalizada pelos instrumentos legais que organizam a educação nacional, fundamentada e embasada pela literatura acerca do tema, tem-se como próximo movimento, a análise da obra freiriana com vistas ao sentido que interessa a essa concepção de gestão. Desse modo, os tópicos seguintes intencionam potencializar esse debate, estabelecendo uma análise crítica e reflexiva da literatura do autor, buscando fazer um paralelo desta, com os referenciais teóricos e legais até aqui discutidos, no anseio por identificar como a gestão democrática se articula com ideias e perspectivas propostas em sua obra.

CONTRIBUIÇÕES DA LITERATURA FREIRIANA AO DEBATE E DESENVOLVIMENTO DA GESTÃO DEMOCRÁTICA

Falar de Paulo Freire é ponto relevante no debate pedagógico brasileiro, tornando-se dessa forma imprescindível retornar a pontos essenciais aos estudos por ele trazidos e os quais simbolizam significativas contribuições à educação nacional. Dentre os pontos discutidos e defendidos pelo autor, é importante destacar a contínua busca para fazer com que suas ações e reflexões possuam cunho emancipatório, visando à superação da relação de opressão entre a “classe opressora” e a “classe oprimida” estabelecidas nas sociedades regidas pelo capitalismo.

A violência dos opressores que os faz também desumanizados, não instaura uma outra vocação – a do ser menos. Como distorção do ser mais, o ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscar recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sentem idealistamente opressores, nem se tornam, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si e aos opressores. ( FREIRE, 1987 , p.20)

Dessa forma, em meio às desigualdades sociais e às diversas formas de opressão impostas pela sociedade capitalista é que o autor pensa uma educação que busque um processo de libertação e emancipação que possibilite aos indivíduos romper com a educação determinada pelo capital. Constitui-se, assim, a busca de uma educação libertadora voltada para a emancipação dos sujeitos, na qual os oprimidos sejam capazes de se tornarem responsáveis pela própria história. Todavia, segundo o autor, é a partir da educação que se emergem as possibilidades do homem encontrar a sua real emancipação, fundamentada em sua própria autonomia.

Ainda no início da década de 1960, Freire junto com estudantes universitários da Universidade de Recife e alguns movimentos organizados da sociedade civil desenvolveu atividades voltadas à alfabetização de jovens e adultos. Para além da leitura e escrita, o autor buscava também a conscientização política dos sujeitos, pois segundo o autor, “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção” ( FREIRE, 1996 ), ou seja, uma relação dialética que alfabetiza e conscientiza, ao mesmo tempo, opondo-se à prática onde os alunos são vistos como depósitos de informações e conhecimentos, sendo passivos e oprimidos e tendo o professor um papel ativo e opressor.

E é com essa forma de educação, denominada por Freire de educação bancária, que o autor busca romper, pois nessa perspectiva, os detentores do saber, educadores bancários desenvolvem em seu trabalho fundamentos na manutenção do status quo , negando a expectativa de uma formação pautada em princípios que levem a uma ação libertadora, autônoma e emancipatória, ou seja uma “... educação como prática da dominação [...]”, mantendo a ingenuidade dos educandos, o que pretende, em seu marco ideológico, (nem sempre percebido por muitos dos que a realizam) é indoutriná-los no sentido de sua acomodação ao mundo da opressão ( FREIRE, 1987 ).

Dessa forma, Freire constrói uma concepção pedagógica na qual o papel da escola é discutir a relação existente entre homens e mulheres, com seus pares, bem como com a natureza que os circunda, em um movimento que valoriza a experiência pessoal dos indivíduos como base para o processo formativo. Esta nomenclatura deriva da Teologia da Libertação, modelo religioso, oriundo da Igreja católica que emergiu na segunda metade do século XX no país. Tal paradigma influenciava em ação direta, juntamente com o pensamento progressista, aliado à necessidade de se conceber uma proposta educacional capaz de levar os sujeitos a serem mediatizados pela realidade a qual vivenciam, para que assim, por consequência, pudessem aprendê-la, extraindo destes conteúdos, vistos pelo autor como temas geradores, que emergem de problemáticas, oriundas da vida prática dos estudantes.

[...] a educação libertadora, problematizadora, já não pode ser o ato de depositar, ou de narrar, ou de transferir, ou de transmitir “conhecimentos” e valores aos educandos, meros pacientes, à maneira da educação “bancária”, mas um ato cognoscente. Como situação gnosiológica, em que o objeto cognoscível, em lugar de ser o término do ato cognoscente de um sujeito, é o mediatizador de sujeitos cognoscentes, educador, de um lado, educandos, de outro, a educação problematizadora coloca, desde logo, a exigência da superação da contradição educador-educandos. ( FREIRE, 1987 , p. 44)

Tem-se como essa proposta, ainda na perspectiva defendida pelo autor, um movimento que levaria os educandos a atingir um nível de consciência política, resultante do processo de formação, ancorado no diálogo e nos grupos de debate e discussão, que de forma horizontal, sejam capazes de romper com os modelos históricos e hierárquicos, que há tanto povoam o panorama pedagógico brasileiro dessa mesma realidade, a fim de contribuir ao alcance de um desenvolvimento humano em um sentido de transformação social. Há ainda, construções educativas que se fundamentam em princípios auto gestionários, que traduzem um protagonismo discente, mas sem caracterizar uma possível configuração não- diretiva no que tange à condução da relação ensino-aprendizagem.

Vê-se assim, que para o autor a pedagogia é libertadora e humanizadora, e que pode proporcionar a mudança dos sujeitos e da realidade em que estão inseridos, para isso a classe oprimida necessita libertar-se, buscando a conscientização, a qual se desenvolve a partir da tomada de consciência, tomando posse da realidade. Evidenciam-se dessa forma possibilidades de o sujeito emancipar-se, superando a opressão, porém não de forma ingênua, mas sim criticamente, a qual se dá através da práxis, saindo dessa forma do senso comum, ou seja, configurando-se em uma relação de ação-reflexão-ação, segundo o autor.

Com isso, percebe-se como o exercício de aprender atua em um movimento capaz de gerar a ruptura das amarras que permeiam os indivíduos em uma sociedade de classes. Ou seja: educar é um ato político, não no sentido partidário, mas no sentido emancipatório e que traz consigo significativas potencialidades no que tange ao enfrentamento das situações de opressão presentes no meio social. É no concreto que reside a razão de ser dos fenômenos e fatos que possuem relação direta com os sujeitos, de forma que apenas a capacidade de leitura e entendimento deste tornaria possível dar conta dos movimentos que o constituem.

É perceptível assim um movimento de ruptura com modelos ou concepções pedagógicas meramente conteudistas, distanciados da realidade dos sujeitos, ou ainda, com aqueles que se ancoram na vida prática, porém sem estabelecer movimentos que objetivam a transformação de suas realidades. Ressalta-se, aqui, a finalidade de articular o trabalho pedagógico às experiências de vida de educandas e educandos, com vistas ao alcance de um movimento que gere o engajamento na busca por mudanças e rompimentos com a condição de opressão na qual se encontram. Tem-se consequentemente, a busca pela ressignificação da realidade vivida, com base em uma formação crítica que tenha como alicerce esta própria realidade, atuando como referência primordial para o processo ensino-aprendizagem.

O ato formativo, nesta perspectiva, decorre de construções coletivas, oriundas do diálogo, das trocas, das culturas múltiplas e diversificadas, as quais possuem base nas especificidades/idiossincrasias dos sujeitos, bem como de suas realidades, que servem à educação como égide dos conhecimentos que são construídos. É latente, por consequência, a defesa de que os indivíduos possuem saberes diversos e distintos entre si, os quais possuem relevância e interessam à educação, o que explicita concretamente a necessidade de dar voz e lugar aos sujeitos na busca por alcance de suas emancipações. A sala de aula é lugar de fala, de análise e de críticas ao todo vivido, sendo um espaço de abertura para que aqueles, historicamente oprimidos, tenham oportunidade de expor suas ideias e pensamentos, realizando construções mútuas, alicerçadas em suas experiências. Sobre isso, Freire (1967) , traz que

Pressionados sempre. Quase sempre proibidos de crescer. Proibidos de falar. A única voz, no silêncio a que éramos submetidos, que se poderia ouvir, era a do púlpito. As restrições às nossas relações, até as internas, de Capitania para Capitania, eram as mais drásticas. Relações que, não há dúvida, nos teriam aberto possibilidades outras no sentido das indispensáveis trocas de experiências com que os grupos humanos se aperfeiçoam e crescem. ( FREIRE, 1967 , p. 75)

Com a contribuição acima, torna-se possível visualizar de que forma, na obra freiriana, o ato de formar contribui para o alcance da capacidade de compreensão da realidade, em um movimento de desenvolvimento da consciência crítica do ser. Há nos trabalhos do autor, o entendimento de que a formação humana compreende a voz e a participação dos indivíduos, em um movimento de reconhecimento de suas culturas e saberes como elemento pertinente à relação ensino-aprendizagem e, consequentemente, ao objetivo da emancipação. De forma clara, a sala de aula é vista como lócus para a realização de conversas e trocas sobre experiências de vidas, com vistas a alavancar o desenvolvimento crítico dos grupos, bem como o aperfeiçoamento e crescimento pessoal daqueles que o constituem.

Como dito pelo próprio Freire (1980) , possibilitar a liberdade é uma construção de ação cultural que se caracteriza pelo diálogo, tendo como finalidade/objetivo primordial, a conscientização das massas. Chega-se com isso a um movimento essencial ao debate que se propõe neste texto, que é a articulação dos pressupostos e teorias de Paulo Freire, com os princípios - presentes nos documentos oficiais e na literatura - da gestão democrática, com vistas a identificar convergências que tragam possibilidades ao processo formativo.

GESTÃO DEMOCRÁTICA E PENSAMENTO FREIRIANO: APROXIMAÇÕES EPISTEMOLÓGICAS COM VISTAS À TRANSFORMAÇÃO

A partir deste ponto presente, o texto irá realizar um movimento no sentido de aproximar as ideias de Freire àquelas que se mostram como princípios da Gestão Democrática. Tomando-se como ponto de análise a etimologia da expressão gestão democrática, entende-se que o termo “gestão” vem do latim gestio , que seria um ato administrativo, ato de conduzir ou organizar, tendo por base ainda outra palavra, gerere, que seria levar, realizar. Destaca-se ainda a relevância que outro conceito, o de participação ( parts+in+actio , ou seja, partes em ação), tem para a definição do que seja gestão, visto que, para garantir um movimento legitimamente democrático na escola, todos os envolvidos no processo educacional da instituição deverão estar presentes, tanto na construção de propostas quanto no processo de decisão, implementação, acompanhamento e avaliação daquilo que é desenvolvido, fazendo-se legitimamente sujeitos transformadores de sua própria realidade.

Acrescenta-se ainda a este entendimento o pensamento de que o conceito de gestão democrática por si só já pressupõe a existência de uma participação coletiva, isto é, de um trabalho coletivo de sujeitos que, juntos, constroem análise e reflexões acerca de uma dada realidade, bem como de situações e fenômenos que emergem dela, decidindo sobre seus rumos com uma atuação em conjunto. Assim, é importante dizer que se defende a gestão democrática como um elemento importante para o contexto educacional no sentido de constituir-se uma práxis emancipadora.

Isto posto, acredita-se ser importante conceituar o termo práxis a partir do entendimento que se trata da unidade entre teoria e prática como base para a apreensão e leitura da realidade. Ou seja: trata-se de legitimar a união entre duas fundamentais dimensões da existência humana que atuam em união, constituídas e configuradas pelo conhecer (teoria) em ação inequívoca e indissociável com o transformar (prática). Para embasar o que se diz sobre o conceito de práxis, traz- se a Curado Silva (2017) , ao citar Vázquez (1968), dizendo que o autor

[…]descreve que a práxis é o fundamento do mundo em que hoje vivemos e nos desenvolvemos, pois é precisamente por ser fundamento do mundo real que ela hoje existe e proporciona à ciência, ao conhecimento, não só a sua finalidade como seu objeto. ( CURADO SILVA, 2017 , p. 126)

Percebe-se que a práxis da democracia compreenderia, assim, um movimento necessário para a construção da cidadania dos indivíduos porque possui uma relação intrínseca com o desenvolvimento emancipatório desses sujeitos, em um movimento que engloba esses três elementos distintos: democracia, cidadania e emancipação, porém intercambiáveis e indissociáveis nesse percurso. Diante do que se diz, há aqui a defesa de que a gestão democrática (sua vivência, exercício e prática) possibilita a construção de um senso de democracia e possibilidade de se atingir os níveis mais elevados da consciência humana dos envolvidos nesse processo.

Assim, veem-se convergências entre os princípios e elementos norteadores da gestão democrática com a obra freiriana, uma vez que em ambas há a busca para que indivíduos se tornem protagonistas dentro de sua própria realidade, podendo assim interpretá-la, discutir e questioná-la, com base no real e no concreto, sendo, por consequência, capazes de decidir sobre o que está posto e assim transformá-la. Vale aqui, antes de tudo, uma ressalva pertinente ao debate: o desenvolvimento histórico da Gestão Democrática no Brasil vincula- se aos movimentos de redemocratização nacional, oriundos do enfraquecimento e posterior fim do regime militar. Havia o interesse de legitimação de uma educação formal brasileira, bem como da instituição escolar como lócus de constituição de processos formativos de base democrática. Traduziria-se desta forma a possibilidade da instituição deste valor - democracia - na sociedade que se pretendia constituir, após um longo período de restrição de direitos, bem como da participação coletiva na tomada de decisão dos rumos da nação.

É importante destacar que Paulo Freire havia passado por um longo período de exílio, após ser preso, acusado de subversão em 1964, também fruto da ditadura militar instaurada no país. As especificidades que este momento histórico trouxeram, acarretaram em um hiato distante do país até o ano de 1980. Com isso, deve-se reconhecer que a produção acadêmica do autor, a partir de seu regresso ao Brasil, não estava diretamente ligada à Gestão Democrática ou a temas correlatos, estando focado em discutir a educação em outras esferas.

Da mesma forma que também não há uma participação sua, de forma direta nos movimentos de discussão e estudo acerca do tema. Compreendendo- se tal fato, o movimento de análise o qual se propõe o texto, é o de articulação entre as ideias do autor e os princípios da gestão democrática presentes nos documentos oficiais aqui abarcados, em especial a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - Lei 9394/96 - no sentido da busca por desenvolvimento de uma educação crítica e emancipadora, calcada no questionamento concreto da realidade, bem como das relações do homem com a natureza e deste com os outros homens, visando assim, a uma transformação de suas condições de vida.

O que teríamos de fazer, uma sociedade em transição como a nossa, inserida no processo de democratização fundamental, com o povo em grande parte emergindo, era tentar uma educação que fosse capaz de colaborar com ele na indispensável organização reflexiva de seu pensamento. Educação que lhe pusesse à disposição meios com os quais fosse capaz de superar a captação mágica ou ingênua de sua realidade, por uma dominantemente crítica. Isto significava então colaborar com ele, o povo, para que assumisse posições cada vez mais identificadas com o clima dinâmico da fase de transição. Posições integradas com as exigências da Democratização fundamental, por isso mesmo, combatendo a inexperiência democrática. ( FREIRE, 1967 , p. 106)

Trata-se do entendimento de que a participação ativa dos sujeitos da formação nos movimentos de organização e tomada de decisões da escola (tal qual proposto pela Gestão Democrática), converge, com os objetivos propostos na obra freiriana, para uma educação crítica. O autor entende que educador, educandas e educandos se emancipam mediatizados pelas experiências de vida e pela realidade, a qual apreendem, usando-a como base de extração do conteúdo da aprendizagem, elevando assim, consequentemente, seus níveis de consciência acerca desta, com vista a, nela, atuarem no sentido da transformação social.

Articula-se tal concepção com os princípios da Gestão Democrática já citados aqui e propostos pelo artigo 14 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (lei 9394/96), no qual a necessidade da participação dos sujeitos nos processos gestores da escola se manifesta na “participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola”, bem como ainda, na “participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes.”. Portanto, na medida em que a lei traz possibilidades de que os indivíduos analisem, de forma crítica e embasada, a realidade na qual estão inseridos, podendo, de forma legítima, decidir sobre seus rumos e, através do exercício de leitura/análise, compreensão e entendimento desta, agir/atuar para a transformação (tanto do real, quanto individual). Dessa forma, percebe-se que o exercício da gestão democrática remete diretamente ao alcance dos movimentos de transformar e ressignificar, por parte dos sujeitos, bem como o desenvolvimento da sua formação cidadã, com base em uma ação fundamentada na compreensão crítica do real:

Acontece, porém, que a toda compreensão de algo corresponde, cedo ou tarde, uma ação. Captado um desafio, compreendido, admitidas as hipóteses de resposta, o homem age. A natureza da ação corresponde à natureza da compreensão. Se a compreensão é crítica ou preponderantemente crítica, a ação também o será. Se é mágica a compreensão, mágica será a ação. ( FREIRE, 1967 , p. 106)

Desse modo, o que se diz é que a participação nos processos de tomada de decisões, a atuação nos trâmites organizacionais dentro e fora da escola, bem como nos espaços referentes à construção de ações e exercícios gestores, repercutem na efetivação de uma vivência democrática que contribuiria, por consequência, para uma existência emancipada. Deve-se ter como referência a ideia de que o trabalho de participação e intervenção no meio, exige leitura do real, bem como da influência de seus condicionantes, o que elevaria os indivíduos ao alcance da consciência crítica e por conseguinte a superação da opressão estabelecida. Chega-se com isso novamente ao pensamento de Freire (1980):

[...] que ultrapassaremos a esfera espontânea de apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera crítica na qual a realidade se dá como objeto cognoscível e no qual o homem assume uma posição epistemológica. A conscientização é neste sentido, um teste de realidade. Quanto mais conscientização, mais se desvela a realidade, mais se penetra na essência fenomênica do objeto, frente ao qual nos encontramos para analisá-la. ( FREIRE, 1980 , p. 26)

Com isso, percebe-se que a tomada de consciência perpassa diretamente a relação que envolve realidade, conhecimento e indivíduo humano. Ou seja, é explícito nas supracitadas palavras que o alcance da criticidade se dá pelo movimento de apreender o real com base em conhecimentos organizados e sistematizados, capazes de torná-lo plausível de compreensão e entendimento.

É perceptível ainda que a consciência é condição sine qua non para que o indivíduo humano possa reconhecer e entender os fenômenos que emergem ao seu redor. Freire (1980) , contribui para que se torne possível estabelecer relação entre os elementos e movimentos que levam à transformação:

“Por esta mesma razão, a conscientização não consiste em estar frente à realidade assumindo uma posição falsamente intelectual. A conscientização não pode existir fora da práxis, ou melhor, sem o ato ação-reflexão. Esta unidade dialética constitui, de maneira permanente, o modo de ser ou de transformar o mundo que caracteriza os homens. Por isso mesmo, a conscientização é um compromisso histórico. É também consciência histórica: é inserção crítica na história, implica que os homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo” ( FREIRE, 1980 , p.26).

É importante destacar que o autor traz pontos pertinentes ao debate aqui construído, no que tange a temas como práxis, consciência histórica e participação humana nos movimentos de transformação do mundo e da História. O que se pode dizer com isso é que Freire (1980) defende a atuação humana como sujeitos históricos e práxicos, capazes de construir e reconstruir não somente sua própria história, mas para além dela, o mundo no qual se encontram inseridos. Percebe- se assim a possibilidade de ressignificação da realidade por parte dos sujeitos do processo educativo, na medida em que constroem conhecimentos que permitam atingir entendimento crítico sobre esta, levando aos níveis mais elevados da consciência.

Desta forma, é perceptível que a Gestão Democrática se articula diretamente com o pensamento Freiriano, na medida em que ambos possibilitam alcances bem semelhantes. A fim de corroborar com o que se afirma, tem- se a contribuição do pensamento de Rodrigues (2016) , o qual traz a relação Gestão Democrática-Emancipação, explicitando elementos pertinentes à efetiva concretização desta relação:

“Entende-se a escola como espaço de formação e de construção das aprendizagens coletivas por meio do processo de tomadas de decisão. Destaca-se, portanto, o sentido emancipatório que o exercício gestor possui na formação dos indivíduos, possibilitando a estes a construção de um olhar de criatividade para sua própria realidade e para si próprio, entendendo que a relação se constitui entre ambos, bem como seu papel na definição dos rumos desta mesma realidade.

Ressalta-se, assim, que, conforme defendido, a escola possui papel de legitimar e possibilitar o desenvolvimento desse senso de pertencimento que se faz necessário ao processo formativo dos indivíduos e que gera essa construção democrática, não somente no sentido representativo, mas no participativo, uma vez que este interessa significativamente a esse movimento de formação para a emancipação que se busca. ” ( RODRIGUES, 2016 , p. 109)

Com as palavras supracitadas reiteram-se importantes apontamentos para a construção de um diálogo concreto entre as ideias de Freire e os princípios da concepção gestora aqui defendida. Em outras palavras, pensar o papel da gestão democrática dentro da escola diz respeito ao desenvolvimento e ao alcance do real sentido de atuação social e de formação social e cidadã dos sujeitos, compreendendo-se o caráter político do trabalho educacional, não em uma dimensão partidária ou de politicagem, mas sim em uma perspectiva social de ação para a transformação.

Trata-se de uma oportunidade que é dada aos sujeitos de, literalmente, assumirem a centralidade do processo gestor, não somente na função de conduzir os rumos da instituição escolar, mas de também desenvolver tais potencialidades para suas vidas. Uma atitude que se constitui transformadora por levar aos indivíduos a oportunidade de construir aprendizado por meio da práxis gestora. É assim, portanto, um paradigma que atua em prol da democratização não somente por dar lugar ao coletivo da escola em sua organização e tomada de decisões, mas por levar a estes uma oportunidade formativa de se conhecer de forma ativa, trazendo para essa realidade a oportunidade de experimentação da democracia, não só em uma perspectiva representativa, mas também, participativa.

Há com isso possibilidades ímpares para a conscientização e transformação do indivíduo humano, oriundos da democratização dos processos de organização e tomada de decisões dentro da escola. Percebe-se quão necessária é a implementação de modelos que atuem e contribuam para a vivência da democracia participativa, reconhecidas suas possibilidades para o processo de alcance consciência crítica acerca da realidade, a partir da atuação ativa dos sujeitos, como propõe Freire (1980):

“Devem adaptar sua ação às condições históricas, tirando proveito das possibilidades reais e únicas que existem. Deverão procurar meios mais eficazes e mais adaptados para ajudar as pessoas a passarem dos níveis da consciência semi-intransitiva, ou transitivo-ingênua, ao nível da consciência crítica. Esta preocupação que é autenticamente libertadora está contida no próprio projeto revolucionário.

Como tem sua fonte na práxis dos líderes e dos homens da base, todo projeto revolucionário é fundamentalmente “ação cultural” e se converte em “revolução cultural”.

A conscientização é mais que uma simples tomada de consciência. Supõe, por sua vez, superar a falsa consciência, quer dizer, o estado de consciência semi- intransitivo ou transitivo-ingênuo, e uma melhor inserção crítica da pessoa conscientizada numa realidade desmitificada.” ( FREIRE, 1980 , p. 46)

Sobre esse aspecto, a relevância da gestão democrática, como movimento histórico e princípio constitucional legal da educação brasileira, se explicita justamente pela possibilidade de fazer com que os indivíduos alcancem sua consciência crítica, sua cidadania e fortaleçam sua atuação social oportunizada pela escola pública com a vivência da democracia. É preciso romper com a realidade de passividade vista por vezes neste país, no qual os indivíduos se encontram, muitas vezes, desprovidos de participação social, não sendo atuantes na construção ou transformação da sociedade da qual fazem parte.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A gestão democrática postulada legalmente com um princípio da educação brasileira é um avanço significativo ao percurso histórico da educação nacional e isso, por si só, já é um fato relevante. Ao se estabelecer uma pertinente relação entre os princípios e fundamentos de tal concepção de gestão, com os pressupostos da obra do educador brasileiro e filósofo da educação, Paulo Freire, tem-se o alcance da compreensão das possibilidades e potencialidades que se tem com a participação ativa e coletiva dos indivíduos nos processos decisórios e organizacionais da instituição escolar. Para isso, é preciso reconhecer que, mais do que legalmente, a gestão democrática precisa se tornar verdadeiramente práxis na escola pública e que assuma o seu papel formativo, emancipatório e transformador para aqueles constituem esta instituição.

Importa dizer que esse movimento é histórico, social e cultural, no sistema público de ensino e precisa ser engrandecido, bem como fortalecido constantemente, trazendo para dentro da escola a efetivação do exercício do direito da coletividade de atuar para a construção de uma educação verdadeiramente democrática. O que se diz se fundamenta na complexidade que existe no ato de legitimação da democracia dentro da realidade brasileira, nas mais diversas instituições sociais do país e, como tal, também na escola.

Reconhece-se que esse percurso é cultural e formativo sim, passando diretamente pelo fazer educacional na busca por uma mudança paradigmática necessária no que diz respeito às dimensões democráticas compreendidas por significativa parcela da população brasileira, que ainda entende seu papel na democracia apenas na escolha de representantes, acreditando que sua atuação se extingue nesta ação. Defende-se que é preciso ressignificar esses olhares que acarretam um consenso faccioso de democracia e trazer aos indivíduos o entendimento de que sua participação é fundamental, explicitando seu protagonismo como construtores da realidade na qual estão inseridos, o que, por consequência, leva à transformação tanto do real, quanto do individual, tal qual difundido pela obra de Freire.

REFERÊNCIAS

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1Durante o período iniciado na madrugada de 31/03/1964 até a primeira metade do ano de 1985, o Brasil passou por um golpe de estado que deu origem a uma Ditadura Militar. Tal feito restringiu direitos, implementou ações e políticas com vistas ao controle impositivo da população, limitando de diversas formas a institucionalização e atuação de um estado verdadeiramente tido como democrático.

Recebido: 20 de Abril de 2021; Aceito: 26 de Julho de 2021

Rodrigo Soares Guimarães Rodrigues Pedagogo - Universidade de Brasília (UnB), Doutor em Educação pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Professor e Coordenador da Licenciatura em Educação Profissional e Tecnológica do Instituto Federal de Brasília - IFB/ Campus Samambaia. E-mail: rodrigo.guimaraes@ifb.edu.br

Luana Rosa de Araújo Silva Pedagoga, Mestranda em Educação pela Universidade de Brasília. Professora da Educação Básica da Secretaria de Educação do Distrito Federal (SEEDF). E-mail: luarosasm@gmail.com

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