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Revista Brasileira de Política e Administração da Educação

versión impresa ISSN 1678-166Xversión On-line ISSN 2447-4193

Revista Brasileira de Política e Administração da Educação vol.37 no.2 Goiânia mayo/ago 2021  Epub 31-Mar-2022

https://doi.org/10.21573/vol37n22021.112837 

DOSSIÊ “PAULO FREIRE E A GESTÃO EDUCACIONAL”

Política e gestão educacional na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (1989-1992)

Educational policy and management at the São Paulo Municipal Secretariat of Education (1989-1992)

Política y gestión educativa en la Secretaría Municipal de Educación de São Paulo (1989-1992)

VAGNO EMYGDIO MACHADO DIAS1 
http://orcid.org/0000-0001-9102-4283

TÂNIA BARBOSA MARTINS2 
http://orcid.org/0000-0003-4095-4995

1Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Programa de Pós-Graduação em Mestrado Profissional Departamento de Educação Poços de Caldas, MG, Brasil

2Universidade Metodista de Piracicaba Programa de Pós-Graduação em Educação Departamento de Educação São Paulo, SP, Brasil


Resumo

O objetivo do artigo é analisar a perspectiva de política e gestão educacional na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (1989-1992) durante a implementação da escola pública popular. O método de análise é um estudo teórico da legislação pertinente ao tema no Conselho Estadual de Educação (CEE) e um estudo teórico documental nos cadernos de formação, regimentos e demais fontes que compõem os materiais de formação docente, reorganização curricular e implementação dos ciclos de formação no ensino fundamental municipal. Conclui-se que se trata de uma experiência radical em política e gestão educacional.

Palavras-Chave: Política Educacional; Gestão Educacional; Escola Pública Popular

Abstract

The objective of the article is to analyze the perspective of educational policy and management in the Municipal Education Secretariat of São Paulo (1989-1992) during the implementation of the popular public school. The method of analysis is a theoretical study of the pertinent legislation in the State Council of Education (CEE) and a theoretical documentary study in the training books, regiments, and other sources that make up the teacher training materials, curricular reorganization, and implementation of the education cycles in municipal elementary education. We conclude that it is a radical experience in educational policy and management.

Key words: Educational Policy; Education Management; Popular Public School

Resumen

El objetivo del artículo es analizar la perspectiva de política y gestión educativa en la Secretaría de Educación Municipal de São Paulo (1989-1992) durante la implementación de la escuela pública popular. El método de análisis es un estudio teórico de la legislación pertinente en el Consejo Estatal de Educación (CEE) y un estudio teórico y documental en los libros de formación, normativas y otras fuentes que componen los materiales de formación docente, reorganización curricular e implementación de los ciclos de formación en la educación primaria municipal. Concluimos que se trata de una experiencia radical en política y gestión educativa.

Palabras-clave: Política Educativa; Gestión Educativa; Escuela Pública Popular

INTRODUÇÃO

O objetivo do artigo é analisar a perspectiva de política educacional na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (1989-1992) durante a implementação da escola pública popular, sob o comando do secretário e educador Paulo Freire. O método de análise é referenciado por um estudo teórico da legislação pertinente ao tema no Conselho Estadual de Educação (CEE) de São Paulo e um estudo teórico documental nos cadernos de formação, regimentos e demais fontes que compõem os materiais de a) formação docente b) reorganização curricular e c) implementação dos ciclos de formação no ensino fundamental municipal.

O artigo está dividido em três partes, a primeira trata da concepção de educação pública popular e discorre sobre os princípios e áreas prioritárias de atuação na secretaria municipal de educação. A segunda trata da gestão educacional na escola pública popular, do conceito de qualidade da educação, autonomia escolar e conselhos de escola. A terceira e última parte trata da função social da escola pública popular por meio dos conceitos de educador e educando, conhecimento, conteúdo, currículo e finaliza com a função social da escola.

O objetivo é desenvolver por meio dos vários temas e abordagens educacionais a compreensão de política e gestão educacional oriunda da perspectiva freireana que foi implementada na secretaria municipal de educação de São Paulo entre os anos de 1989 e 1992.

A CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO PÚBLICA POPULAR

Com a vitória eleitoral em novembro de 1988, toma posse em 1o de janeiro de 1989 a prefeita Luiza Erundina de Souza (Partido dos Trabalhadores - PT), convidando o educador Paulo Freire a assumir a Secretaria Municipal de Educação (SME), cargo que permaneceu até 27 de maio de 1991 quando Mário Sérgio Cortella, assume como secretário. O secretário de educação Paulo Freire foi coerente com sua trajetória de pensador no campo da educação, com sua filosofia da práxis e com seu engajamento na transformação social.

Se não tivesse aceito o convite honroso que fez Erundina, teria, por uma questão de coerência, de retirar todos os meus livros de impressão, deixar de escrever e silenciar até a morte. E este era um preço muito alto. Aceitar o convite é ser coerente com tudo o que disse e fiz, era o único caminho que eu tinha ( FREIRE, 2001 ).

A SME assumiu desde o início três princípios básicos em seu esforço educativo: “ participação, descentralização e autonomia ”. Pela participação entendia a discussão dos problemas e a deliberação das soluções, pela descentralização a execução de tarefas decididas em conjunto nas unidades escolares, e, por autonomia, a junção das duas anteriores no sentido de garantir o direto da comunidade escolar à gestão participativa. Para executar seus princípios básicos, a SME definiu quatro áreas de ação prioritária. A primeira, a “democratização do acesso” por meio de construção, reformas e expansão das estruturas escolares existentes. A segunda, a “democratização da gestão”, com a efetiva participação deliberativa, de todo o contingente circundante à escola. A terceira, a “melhoria de qualidade” com o movimento de reorientação curricular, a formação permanente de professores e a justa remuneração dos profissionais da educação. A quarta, o movimento de alfabetização de adultos (MOVA) com o apoio da sociedade civil organizada (TORRES, 2002).

Os princípios e as áreas de atuações prioritárias definiram o programa de organização escolar, conforme proposto por Paulo Freire para a SME, tomando uma deliberada posição política como opção doutrinária. Em documento de 1º de janeiro de 1989, intitulado Construindo a Educação Pública Popular , Paulo Freire esclarece junto aos profissionais da educação a posição política da SME.

Uma escola pública popular não é apenas aquela à qual todos têm acesso, mas aquela de cuja construção todos podem participar, aquela que atende realmente aos interesses populares que são os interesses da maioria; é, portanto, uma escola com uma nova qualidade baseada no compromisso, numa postura solidária, formando a consciência social e democrática. Nela todos os agentes, e não só os professores, possuem papel ativo, dinâmico, experimentando novas formas de aprender, de participar, de ensinar, de trabalhar, de brincar e de festejar.

Reafirmamos que essa nova qualidade não será medida apenas pelos palmos de conhecimento socializado, mas pela solidariedade humana que tiver construído e pela consciência social e democrática que tiver formado, pelo repúdio que tiver manifestado aos preconceitos de toda ordem e às práticas discriminatórias correspondentes.

A escola pública só será popular quando for assumida como projeto educativo pelo próprio povo através de sua efetiva participação. A transformação radical da escola que temos supõe essa participação organizada na definição de prioridades. O primeiro passo é conquistar a velha escola e convertê-la num centro de pesquisa, reflexão pedagógica e experimentação de novas alternativas de um ponto de vista popular ( SÃO PAULO, MUNICÍPIO, 1989a ).

A denominação de “Escola Pública Popular” foi criticada no Conselho Estadual de Educação de São Paulo (CEE) pelo Parecer CEE no 1.911, de 18 de dezembro de 1991, na apreciação do Regimento Comum das Escolas Municipais de São Paulo, onde sugere a retirada do termo “popular” por considerar que o público já pressupõe o termo popular e que essa ênfase é “desnecessária e soa discriminatória”. A intenção, porém, de acrescentar o termo “público” é justamente enfatizar que a organização escolar pública sempre discriminou as classes populares, sobretudo, no programa curricular autoritário que promoveu os históricos índices de repetência e evasão escolar e expulsou as classes populares do direito à educação obrigatória. Assim, a escola pública popular significa uma escola integrada diretamente aos interesses populares, o que pressupõe a construção conjunta de uma política educacional para somente assim adquirir uma nova qualidade , baseada no compromisso com a consciência democrática da população.

A escola, sob os princípios da educação pública popular, procurou, por exemplo, interromper os princípios seletivos e excludentes da escola seriada provendo uma gestão participativa com a reestruturação curricular e a introdução dos ciclos de formação numa perspectiva articulada com a política educacional. Conforme o Regimento Comum das Escolas Municipais de 1992:

A adoção do regime de ciclos implica em nova forma de trabalho como os alunos, segundo o ritmo de seu desenvolvimento cognitivo, social e afetivo. [...] A organização em ciclos para o ensino fundamental tem por objetivo assegurar ao educando a continuidade no processo ensino-aprendizagem, respeitando o seu ritmo e suas experiências de vida, adequando os conteúdo e métodos aos seus estágios de desenvolvimento. Essa nova política supõe uma renovação progressista das práticas vivenciadas nas escolas. Implica na elaboração e na construção de novas formas de trabalho do professor, propiciando maior integração do trabalho docente, através do planejamento coletivo dos professores do mesmo ciclo ( SÃO PAULO, MUNICÍPIO, 1992d ).

A sistemática de ciclos modifica profundamente a organização da escola e do trabalho escolar, implica precisão e clareza sobre o papel do ensino e da escola na sociedade contemporânea e promove uma concepção de gestão, especialmente, curricular, como forma de contribuir para o desenvolvimento ampliado da própria noção de gestão escolar no sentido de tornar a escola verdadeiramente democrática e com uma nova qualidade ( SÃO PAULO, MUNICÍPIO, 1992e ).

A escola deve ser também um centro irradiador da cultura popular, não para consumi-la, mas para recriá-la. A escola é também um espaço de organização política das classes populares e, como espaço de ensino-aprendizagem, será então um centro de debate de ideias e soluções, reflexões, onde a organização popular vai sistematizando sua própria experiência. O filho do trabalhador deve encontrar nessa escola os meios de autoemancipação intelectual, apropriando-se criticamente do conhecimento que a classe dominante detém. A concretização desta escola desejada exige que se repense o instrumento básico de organização da escola – o currículo (SÃO PAULO, MUNICÍPIO, 1989b).

O Regimento Comum das Escolas Municipais começou a ser discutido em 1991 e no final do ano foi enviado uma proposta de regimento ao CEE/SP que elaborou o Parecer CEE 1.911, de 18 de dezembro de 1991. O Parecer destaca as quatro áreas básicas de mudanças propostas na SME: a) gestão da escola como gestão democrática por meio dos Conselhos de Escola b) nova estruturação curricular substituindo a seriação pelo sistema de ciclos c) avaliação permanente dos avanços e dificuldades dos alunos d) matriz curricular adotando o princípio da flexibilidade a partir dos currículos mínimos estabelecidos.

O conselheiro relator do CEE, José Mário Pires Azanha, discute no parecer algumas temáticas, dentre as quais a autonomia , e tece críticas à pretensão da SME em instituir um regimento comum, afirmando que embora não se afaste da norma “legal”, considera o regimento comum uma prática contra os princípios de autonomia e de democracia da própria SME estabelecidas para as escolas, denominando o regimento comum de centralizador.

O discurso da autonomia da escola colide frontalmente com a instituição do regimento comum. Não porque a autonomia escolar tenha, no regimento próprio, a sua única expressão legítima, mas porque o regimento comum exonera a escola de refletir sobre a sua própria organização. E, assim, exonerada dessa obrigação fundamental, a própria escola, pela força da inércia, se autoliberta de buscar, nos vazios do regimento comum, as oportunidades de iniciativas e de inovações que lhe restaram. [...] Na verdade, o regimento proposto acaba sendo, em alguns aspectos, fortemente centralizador e, na prática, talvez, ele não venha a ser o instrumento legal consolidador dos “avanços na direção da democracia interna e autonomia das escolas” (SÃO PAULO, ESTADO, 1991 ).

O relator foi posteriormente em 1998 um dos colaboradores para a aprovação da progressão continuada no estado de São Paulo, que também propôs a organização do ensino em ciclos. No Parecer CEE 1.911/91 critica-se a gestão da escola baseada na democracia direta por meio dos Conselhos de Escola, propondo uma “implantação gradativa, com o próprio Conselho reivindicando novas responsabilidades para as quais se sinta preparado”. A sugestão da “implantação gradativa”, entretanto, não serviu de idêntico exemplo para a implementação dos ciclos na progressão continuada. Para o relator, a democracia é uma participação adquirida pela experiência, mas se esquece que os próprios espaços de participação, advindos de certas formalidades ou princípios democráticos, têm se constituído em algumas barreiras dessa mesma experiência democrática.

Enfim, a democratização da gestão da escola deve ser resultado da consolidação de práticas de discussão coletiva permanente do processo educativo e não uma imposição regimental que, eventualmente, poderá produzir efeitos opostos aos visados. O assunto é muito complexo e envolve não apenas o próprio problema da participação comunitária, da qual temos escassas experiências, mas também a necessidade de uma mudança da mentalidade do magistério, no sentido de aceitar e estimular a colaboração de pais na tarefa educativa. Essa mudança de mentalidade deve ser uma preocupação prioritária da Administração Municipal, para que, eventualmente, não se forme no magistério uma resistência que conduziria ao malogro da iniciativa. Por isso, insistimos na assunção gradativa de responsabilidades pelo Conselho de Classe, simultaneamente com um esforço de preparação do magistério (SÃO PAULO, ESTADO, 1991 ).

Os ciclos na SME são apresentados no Parecer CEE 1.911/91 como a proposta mais importante no regimento por realizar uma ruptura com a seriação. Elogia a iniciativa da SME que tem o objetivo de criar unidade ao processo educativo ao desafazer a estrutura tradicional das duas etapas do ensino fundamental (1ª a 4ª e 5ª a 8ª). O relator termina justificando que a SME possui uma adequada compreensão dos objetivos da avaliação escolar, mas que a tradução em normas regimentais causou grande distância com a realidade porque a melhoria do processo educativo depende mais da modificação da mentalidade dos professores do que a edição de normas regimentais, sugerindo à SME um esforço na atuação junto ao magistério para mudar esta mentalidade.

A declaração de voto do conselheiro João Cardoso Palma Filho, contrária ao regimento comum das escolas municipais, destaca a necessidade de cautela para não considerar a organização em ciclos como panaceia dos problemas da escola.

A mudança proposta é profunda e exige cautela e sobretudo que não se encare a organização em ciclos como a panaceia capaz de resolver todos os males do ensino fundamental brasileiro.

A organização do ensino de 1º grau em ciclos, deve ser vista como de fato é, uma estruturação do ensino mais flexível, sem a rigidez e artificialismo de seriação, o que faz, coincidir ano civil com tempo de aprendizagem (SÃO PAULO, ESTADO, 1991 ).

Apesar da veracidade em sugerir cautela à panaceia dos ciclos, a organização em ciclos produz um efeito real para modificar tanto os aspectos curriculares e avaliativos quanto à própria estrutura administrativa hierárquica da escola, se bem considerada a articulação entre gestão e currículo, em uma perspectiva de política educacional democrática. Diferente dos ciclos na progressão continuada que foi aprovada seis anos depois, de forma abrupta e sem nenhum tipo de participação escolar, os ciclos na SME exigiram uma série de cautelas, como a aprovação em caráter provisório do regimento até 30 de junho de 1992, com a observação de que o CEE deveria ter mais tempo para refletir sobre a proposta e a SME mais tempo para colher informações sobre a implementação, o aprofundamento das discussões com o magistério (mudanças de mentalidade) e o encaminhamento ao final do semestre de um relatório ao CEE. A partir dessas exigências foram produzidos os cadernos Regimentos em Ação em 6 números. Em junho de 1992, a SME encaminhou o relatório final ao CEE que formulou o Parecer CEE 934, de 5 de agosto de 1992, em que, definitivamente, aprovou o regimento, já no final do mandato municipal. O parecer informa que foram absorvidas algumas das orientações e sugestões do CEE, permanecendo inalterados alguns aspectos mais controvertidos como a concepção de gestão e questões relativas à implantação dos ciclos. A aprovação do parecer ficou submetida ao cumprimento de algumas exigências como: não adotar o construtivismo como orientação pedagógica única, respeitando o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; acompanhar a implantação do regimento mesmo que a SME tenha informado que o assunto fora amplamente discutido com a comunidade escolar; a organização em ciclos, por seu caráter inovador, deveria ser “cuidadosamente acompanhada” e, por fim, o envio de relatórios periódicos semestrais.

A preocupação na indicação de providências é a de garantir que algumas iniciativas mais ousadas sejam cercadas de cautelas e objeto de acompanhamento contínuo para que se assegure que motivações, inteiramente defensáveis de um ponto de vista mais geral, não se transformem, na prática, num eventual tumulto na vida das escolas do Município de São Paulo (SÃO PAULO, ESTADO, 1992 ).

O Regimento Comum das Escolas Municipais como iniciativa política, didática, pedagógica, educacional, e que tem como horizonte a gestão democrática e a escola pública popular, foi cercada de bastante cautela pelo CEE, sugerindo como consequência a possibilidade de se criar tumultos nas escolas municipais; na realidade é mais do que simples cautela, ao contrário, é uma barreira às políticas educacionais que têm como base a gestão democrática popular cujo programa se fundamenta nos princípios de “participação, descentralização e autonomia”.

A GESTÃO NA ESCOLA PÚBLICA POPULAR

Com as diretrizes de democracia na perspectiva freireana, a SME procurou estabelecer uma transformação nas estruturas burocráticas da máquina educacional. Paulo Freire afirmava que não se democratiza a escola autoritariamente ou a partir do gabinete do secretário, mas com a participação de todos na discussão dos problemas e na deliberação coletiva. Assim, democratizar a gestão da escola pública significa compartilhar informações e promover decisões junto à comunidade escolar, fornecendo recursos financeiros e materiais, como ações essenciais para a plena realização da autonomia da escola , além de estimular e implementar a descentralização administrativa da SME (SÃO PAULO, MUNICÍPIO, 1991 ). A noção de qualidade na perspectiva freireana está diretamente relacionada com a gestão democrática da escola pública popular. A gestão é um dos principais fatores que propicia a qualidade do ensino e onde se consolida a participação democrática popular, ou seja, na qual se discute e se delibera desde os problemas da limpeza até os assuntos pedagógicos, estes últimos comumente considerados de responsabilidade dos experts, coordenadores pedagógicos ou autoridades educacionais.

Os critérios para se avaliar a qualidade da educação em uma perspectiva mais ampla deve considerar: a politização da educação como apropriação pelos professores das reais condições do cotidiano das instituições escolares públicas e da comunidade local; o conhecimento como correspondência entre a cultura da escola e as experiências e conhecimentos dos alunos e da comunidade; a formação de professores e as condições de equipamentos e recursos disponíveis nas escolas; finalmente, a aprendizagem e o significado do que é apreendido pelos estudantes. Assim, somente com a gestão democrática é possível criar os parâmetros da qualidade da educação. Dessa forma, se pondera o sentido genérico e abstrato de qualidade que tradicionalmente oculta a politicidade da administração ( SAUL; SILVA; MICHELMAN; FREITAS, 2002 ).

Para fortalecer a participação, a SME criou os Conselhos de Escola , constituídos por professores, representantes dos pais, funcionários e alunos. Este conselho democratiza a escola e descentraliza o poder, com função de elaborar, deliberar, acompanhar e avaliar o planejamento e o funcionamento da unidade escolar, com base nos princípios de autonomia administrativa, pedagógica e orçamentária. A SME aboliu as diretorias regionais de educação municipal e as substituiu por 10 Núcleos de Ação Educativa (NAEs) cujos integrantes foram recrutados junto aos professores, aumentando a autonomia das escolas e o poder dos conselhos de escolas, o que permitiu uma estrutura mais horizontal e participativa na orientação e supervisão das escolas municipais, descentralizando o poder e a tomada de decisão. O conselho de escola na forma estabelecida não contraria as funções e responsabilidades próprias das escolas, dos professores e dos diretores, ou seja, o conselho “não abole ou nega as responsabilidades legais inerentes aos cargos existentes na escola, definidas pela legislação municipal” ( SÃO PAULO, MUNICÍPIO, 1992a ), apenas amplia as possibilidades desta participação desde a base.

A democratização exige também a democratização do acesso escolar. A SME fez uma investigação minuciosa para obter as informações e números concretos sobre a real condição em que se encontravam as escolas municipais. O resultado da pesquisa foi que havia 650 escolas, muitas delas necessitando de intervenção física mais ampla, reformas e interdição em 14 instituições de ensino pela precária condição em que se encontravam. Como relata o secretário Mário Sérgio Cortella ( CORTELLA, 1992 ) várias intervenções foram feitas, entre elas 70 construções de prédios escolares e 3 quadras poliesportivas, 20 prédios e 1 quadra em construção, 3 prédios em licitação e 32 consignadas no orçamento de 1993. Foram realizadas 189 reformas, 40 em andamento, 10 em licitação e 25 no orçamento de 2003. Na educação infantil foram diminuídos os números de alunos por classe. Em 1992, houve um aumento do número de vagas no ensino fundamental de 150 mil a mais em comparação com 1988 que possuía 443.344 alunos. Os salários tiveram:

Crescimento real nos 4 primeiros meses da administração (até abril/89). Isto representou 300% de aumento em relação ao piso salarial de dezembro/88. Não foi possível, nos meses de maio a junho, manter o mesmo ritmo dos aumentos, dado que a receita foi insuficiente, considerando o volume das obras necessárias para o reparo das escolas. Neste mês, no entanto, o piso salarial que será proposto aos professores será elevado de NCz$ 337,00 para NCz$ 701,26. Isto significa que neste momento São Paulo tem o maior piso nacional de salário para o magistério. De setembro em diante, o reajuste será feito mensalmente, de acordo com o índice do Dieese ( FREIRE, 2001 ).

Esses dados demonstram que a qualidade da educação depende também dos aspectos quantitativos, por exemplo, investimentos em salários e infraestruturas escolares. A democratização do acesso se faz com inclusão escolar desde que se considere as condições pedagógicas e materiais de permanência escolar, o que inclui escolas organizadas, limpas, equipadas, professores e funcionários bem pagos, de acordo com Paulo Freire em entrevista concedida em 15 de agosto de 1989:

O ético está muito ligado ao estético. Não podemos falar aos alunos da boniteza do processo de conhecimento se sua sala de aula está invadida de água, se o vento frio entra decidido e malvado sala adentro e corta seus corpos pouco abrigados. Nesse sentido, é que reparar rapidamente as escolas é já mudar um pouco a sua cara, não só do ponto de vista material, mas, sobretudo, de sua ‘alma’ ( FREIRE, 2001 ).

Um outro aspecto relativo à política educacional foi a criação do Estatuto do Magistério Público Municipal pela Lei Municipal 11.229, de 26 de junho de 1992, que logo no primeiro artigo define os princípios norteadores 1) Gestão democrática da educação 2) O aprimoramento da qualidade do ensino público municipal 3) A valorização dos profissionais do ensino 3) Escola pública gratuita, de qualidade e laica, para todos. O estatuto protegeu os salários dos professores e promoveu sua valorização profissional com a garantia de formação permanente, de condições dignas de trabalho, com piso salarial para a categoria e a garantia de proteção da remuneração contra efeitos inflacionários ( SÃO PAULO, MUNICÍPIO, 1992c ).

Foi nessa concepção de gestão democrática que se instaurou o movimento de reorientação curricular (MRC) como fundamental na proposta pedagógica da SME, pois o currículo é o principal instrumento de organização escolar e colabora de forma decisiva na superação dos altos índices de retenção e evasão escolar, na medida em que propicia a superação do ensino fragmentado da escola seriada e a avaliação igualmente fragmentada e classificatória, ou seja, excludente. Assim, o MRC articulado com os ciclos de formação coopera na adequação do currículo ao desenvolvimento particular de cada aluno, seus ritmos, modos de aprendizagens e suas experiências individuais e sociais. É por isso que o MRC está diretamente vinculado à noção de ciclos.

A introdução dos ciclos pelo Regimento Comum deve ser entendida como aquisição de um novo enfoque curricular, sustentado nos postulados de continuidade e articulação do conhecimento, oriundo do cotidiano real e concreto do educando, com vistas à sua apreensão, interpretação e transformação. Esta visão de currículo não simplifica a ideia de ciclos, reduzindo-a a uma mera forma de promoção. A aprendizagem como processo contínuo não pode e não deve ser truncada ano a ano. Nesta direção, o ciclo, como unidade e não como soma de algumas séries, cria condições e favorece a possibilidade de maior tempo para que o educando manifeste seus avanços e dificuldades. Por isso, o trabalho em ciclos envolve e mudança de foco dos conteúdos pré-estabelecidos para o processo contínuo do desenvolvimento do educando, que já se inicia mesmo antes de seu ingresso na vida escolar. ( SÃO PAULO, MUNICÍPIO, 1992a ).

A adequação do currículo aos ciclos não significa ignorar o conteúdo intelectual, mas afirmá-lo e, simultaneamente, superar o conteúdo pré-estabelecido. Como não há ensino sem conteúdo, na escola sempre há uma determinada forma de selecionar os conteúdos e, geralmente, à revelia dos professores e alunos, ou seja, selecionados de acordos com os critérios ideológicos da classe dominante e doados em doses homeopáticas e de forma filantrópica aos filhos dos trabalhadores. Coerente com a perspectiva freireana o conhecimento em si é um saber político que reconhece os sujeitos como protagonistas da história.

Na realidade, a política educacional na perspectiva freireana foi a causa principal de tantas cautelas, exigências e preocupações do CEE ao aprovar a organização escolar em ciclos, pois definitivamente os ciclos de formação promovem uma radical transformação da organização escolar e, portanto, uma radical gestão escolar. A introdução dos ciclos de formação na concepção freireana, se não é realmente uma panaceia, se torna efetivamente um instrumento de transformação escolar.

Os ciclos promovem uma decidida tomada de posição quanto à finalidade da educação: formar para a inclusão social, a cidadania e a democracia. Em outros termos, assume-se diretamente uma “nova qualidade da educação”, “não a qualidade do passado”, mas a que articula o saber popular e o saber acumulado em uma explícita menção à finalidade política da educação. Assim, se reafirma a relação intrínseca entre a organização curricular e a gestão popular democrática.

[A] elaboração de um projeto pedagógico articulado precisa ser norteado por uma concepção de educação vinculada aos interesses das camadas populares, permitindo o resgate, a recriação da cultura popular, a apropriação do conhecimento sistematizado ( SÃO PAULO, MUNICÍPIO, 1990b ).

O MRC é considerado o principal instrumento para cumprir com aquele terceiro princípio básico que é exatamente uma “nova qualidade de ensino” nas escolas municipais, apoiando-se em outros dois programas correlatos: formação permanente de educadores e projeto interdisciplinar como meios de se estabelecer a autonomia das escolas.

Qualquer ação de reorientação curricular deve apoiar-se numa frente de formação permanente dos educadores. Como o pensamento e a linguagem, um a determinar o outro, o Movimento de Reorientação Curricular e a Formação Permanente são faces da mesma moeda, em busca de uma nova qualidade de ensino, apoiada na autonomia da escola ( SÃO PAULO, MUNICÍPIO, 1990b ).

Assim, foram organizados grupos de formação permanente em várias frentes: seminários, encontros, palestras, cursos e assessorias educacionais da Universidade de São Paulo (USP), da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e da Universidade de Campinas (UNICAMP). O MRC pressupõe um processo de construção coletiva do currículo entre os diferentes grupos envolvidos com a escola: professores, comunidades, alunos e especialistas em diferentes áreas do conhecimento. O projeto de reconstrução curricular era construído com a CONAE (Coordenadoria dos Núcleos de Ação Educativa) que coordenava os dez NAEs. A CONAE era constituída por dois grupos, um composto por dois representantes de cada NAE e o outro formado por dois especialistas de cada área disciplinar. A CONAE fornecia orientação aos NAEs, mas mantinha uma relação dialética, construída sobre o diálogo com objetivo de refletir, analisar, criticar e fazer experiência, mantendo a autonomia dos NAEs. Os integrantes dos NAEs eram recrutados nas fileiras de professores, assumindo a função de parceiros das unidades escolares ( SÃO PAULO, MUNICÍPIO, 1990d ).

O trabalho coletivo no MRC contribui com a construção da autonomia da escola, estimulando o desenvolvimento de seus respectivos projetos políticos pedagógicos. Para concretizar o MRC entra em cena o Projeto Interdisciplinar cuja função é por meio do Tema Gerador , manter uma relação entre o currículo da escola e a realidade da comunidade nas “situações problemáticas significativas”. A proposta considera e realça a participação e a descentralização como fundamentais à autonomia, que são os três temas básicos da política educacional ( SÃO PAULO, MUNICÍPIO, 1990d ).

A construção do currículo interdisciplinar pressupõe três etapas. A primeira, o estudo da realidade, mergulho crítico no cotidiano da escola e da comunidade, desvendando seus problemas, dúvidas, anseios, necessidades etc. A segunda, escolha dos temas geradores, aquelas situações problemáticas mais significativas que permitem compreender melhor a realidade e planejar a intervenção. Por fim, a construção do programa curricular de cada área do conhecimento. Um aspecto desse programa é o movimento que “pode ter uma característica de ‘ir sendo construído’, de natureza dinâmica, como dinâmica é a realidade e a aprendizagem de ser feito e refeito, composto e recomposto” ( SÃO PAULO, MUNICÍPIO, 1990d ).

A FUNÇÃO SOCIAL DA ESCOLA PÚBLICA POPULAR

A dinâmica própria da realidade demonstra que há uma relação direta entre a escola e a sociedade delineando uma função social da escola. Na construção do programa curricular, não se pode confundir, em nenhum momento, o conhecimento significativo como apreensão “focalista” e “estagnada” da realidade. No estudo de determinado objeto, o estudante ou professor, deve procurar manter uma relação constante com outros conhecimentos a fim de compreender a realidade estudada em suas múltiplas dimensões, ou seja, na sua totalidade explicativa, uma vez que o particular se reflete no geral.

Assim, o entendimento do conteúdo do conhecimento como interdisciplinar, corresponde a uma aproximação mais consistente com a própria complexidade da realidade, não estagnada nem compartimentada. Pelo mesmo motivo não se pode confundir as situações significativas com aquelas encontradas na superfície estática do fenômeno social. As situações significativas não se encontram superficialmente no âmbito e nas perspectivas pessoais dos indivíduos e muito menos do estudo da realidade isolada, mas na relação de ambos, incluso, a visão de mundo, as representações da época, a perspectiva histórica, que não se encontram na superfície fragmentada da realidade, mas na totalidade dinâmica do social. As situações significativas são tão históricas quanto o homem e, assim, as situações significativas têm de ser desveladas com critério e rigor científico.

Os Cadernos de Formação da SME compõem um rol de propostas temáticas e conceitos que promovem mudanças substantivas na postura curricular das escolas municipais e tem como finalidade apresentar aos profissionais da educação uma “nova qualidade de ensino”. Com relação ao tema educador e educando, o caderno de formação destaca:

  • - superar o individualismo nas relações com os alunos;

  • - possibilitar e encorajar o educador a ser solidário com o outro;

  • - entender-se que ambos são sujeitos da ação educativa e da construção do conhecimento;

  • - estimular uma relação de igualdade, respeito e consideração mútua, enquanto seres que se relacionam com e pelo reconhecimento, ainda que de modos diferentes quanto à intensidade e profundidade;

  • - superar o estigma da educação bancária, em que os educadores sabem e depositam o conteúdo em educando que não sabem ( SÃO PAULO, MUNICÍPIO, 1990a ).

O que se prioriza na relação educador e educando é exatamente o clima democrático, a solidariedade e o respeito aos professores e aos alunos como sujeitos de conhecimento, como produtores da realidade social. Por outro lado, se reconhece que não existe igualdade entre ambos já que são diferentes em intensidade e profundidade, faixa etária, experiência de vida, formação profissional, condições psicofísicas, emocionais e assim por diante. Daí a necessidade da direção, do mais velho ao mais novo, do professor ao aluno, da sociedade ao cidadão. Entretanto, deve-se considerar os indivíduos/alunos como seres ativos, sujeitos da história, e não apenas como objetos, passivos e dóceis, adaptados aos ditames da sociedade capitalista. Com relação ao tema do conhecimento:

  • - compreender que o conhecimento não é estático e nunca está acabado: é dinâmico e pode ser recriado, reinventado;

  • - perceber que o conhecimento é resultado das relações que o homem estabelece com o mundo e consigo mesmo com vistas à instrumentalização para intervenção na transformação da realidade;

  • - lidar com a relatividade do conhecimento, que se constrói em comunhão com outros homens, marcados pelo contexto histórico e social;

  • - lidar com a pluralidade do conhecimento, superando as noções de “verdades absolutas” e do “certo e errado”;

  • - descobrir uma forma de considerar que o conhecimento não se constrói apenas pela razão, mas também pela emoção e afetividade ( SÃO PAULO, MUNICÍPIO, 1990a ).

A ênfase no conhecimento significativo como ponto de partida da educação escolar, se relaciona na perspectiva da transformação social, ou seja, os indivíduos se apresentam como sujeitos de história, não apenas por estarem inseridos no contexto histórico-cultural, mas por fazer e construir sua própria memória e sua história, a partir de seu próprio contexto histórico. Um outro ponto é que o conhecimento que se realiza individualmente no aluno não é produzido do nada, mas historicamente; o indivíduo apreende o conhecimento e o recria individualmente, reelaborado a partir do conhecimento que é construção coletiva e histórica, portanto, não é dote isolado e natural do professor ou do aluno. O último ponto diz respeito à objetividade e subjetividade e a questão é que não se pode confundir com o objetivismo e subjetivismo, que são ênfases degenerativas na medida em que o objetivismo recusa a subjetividade do indivíduo na ação consciente e inconsciente (emoção, afeto, solidariedade) como sujeitos históricos na realidade objetiva e o subjetivismo nega a própria realidade objetiva e se fecha no eu individual, psicológico e idealista, ambas possibilidades caindo na alienação e no desconhecimento da realidade em sua totalidade. Com relação ao conteúdo:

  • - rever a relação entre os conteúdos e a realidade, de forma que esta seja o objeto de estudo e significado daqueles;

  • - buscar conteúdos significativos com vistas a explicar melhor a realidade concreta;

  • - redimensionar a relação entre o conhecimento popular, de senso comum, e o conhecimento acumulado pela humanidade;

  • - compreender que os conteúdos escolares não têm fim em si mesmos, mas têm importância como explicitadores e desveladores de uma realidade em que se pode intervir;

  • - entender a natureza interdisciplinar ( SÃO PAULO, MUNICÍPIO, 1990a ).

O conteúdo (objeto de conhecimento) tem em si natureza interdisciplinar, não há um conhecimento que não seja dinâmico por natureza e complexo em suas múltiplas dimensões, de tal modo que o estudo compartimentado impede que se mantenha uma relação direta entre a escola e a comunidade/sociedade. A consequência da segmentação do conhecimento da escola seriada, estruturada em disciplinas isoladas, é se tornar alheias à complexidade do objeto do conhecimento, tornando-se o conteúdo escolar abstrato e idealista. Essa forma de estruturação da organização escolar, ao mesmo tempo em que segmenta o ensino em disciplinas isoladas, aliena os alunos que não compreendem a realidade social e natural, cujo resultado imediato é tornar a escola apartada dos problemas sociais concretos e os alunos não contemporâneos do seu tempo. Desse modo, é possível compreender o sentido do currículo em Paulo Freire:

  • - entender o currículo como o instrumento básico de que a escola dispõe para organizar sua ação transformadora;

  • - entender o currículo de forma mais ampla, extrapolando a grade curricular, englobando todas as ações e relações, de fora para dentro e de dentro para fora, pospostas e existentes, na e para a escola;

  • - perceber o currículo na perspectiva da gestão democrática da escola como uma construção em processo, portanto, diretamente relacionado ao coletivo das escolas através do planejamento participativo;

  • - compreender esta forma de organização curricular como dinâmica e que pode ter sua ação reorientada com frequência ( SÃO PAULO, MUNICÍPIO, 1990a ).

O currículo é o principal instrumento de organização da escola, consequentemente, o currículo organizado conservadoramente, fechado em si mesmo, abstrato, intelectualista e livresco, ou seja, tendo como finalidade apenas o “cultivo do espírito”, jamais poderá atribuir à escola a função concreta e orgânica junto à sociedade e à comunidade da qual pertencem. A escola está, contraditoriamente, determinada pela época histórica; no Brasil, por exemplo, desde a colônia, a função primordial da escola nunca foi, de fato, preparar as crianças e os adolescentes das camadas populares para desempenhar a função da qual se preparou. Sua relação com a sociedade é inorgânica. Em uma sociedade marcada por traços ou ranços autoritários, clientelistas e aristocráticos, não pode haver justiça se as partes envolvidas têm direitos diferenciados. A formação bacharelesca sempre teve o intuito de formar “formalmente” com meia dúzia de leis decoradas e algumas palavras em francês que faziam dos bacharéis doutores sem conteúdo, e mantinham o status social e o prestígio de “pessoa culta”. Contudo, não sabiam e não podiam exercer satisfatoriamente suas funções sociais e históricas porque o ensino que recebiam não era orgânico à sociedade, senão para conservar as bases da sociedade aristocrática.

Se imprime como finalidade da educação a formação cidadã e democrática a partir de uma noção ampliada de currículo tanto nas relações internas quanto externas à escola, fazendo com que a escola mantenha uma articulação com a comunidade e dela faça parte integrante, de modo a se tornar orgânica aos interesses e necessidades dos alunos, professores e comunidade. O currículo é organizado para contribuir com a transformação da sociedade na medida em que professores, alunos, pais e comunidade participam da elaboração do currículo, em uma democracia escolar participativa.

Finalmente, evidencia-se a função social da escola pública popular:

  • - perceber a escola como um local privilegiado de receber e considerar a cultura da comunidade e de irradiar outras formas e manifestações culturais;

  • - perceber a escola como local de reflexão, estudo e construção conjunta do conhecimento;

  • - entender e valorizar a escola como espaço de participação e organização dos diferentes segmentos e movimentos sociais;

  • - valorizar a escola como espaço de construção individual e coletiva da ação pedagógica, numa perspectiva de resgatar o educador no educador;

  • - compreender a função política da escola, numa perspectiva de saber como instrumento de luta na transformação da história ( SÃO PAULO, MUNICÍPIO, 1990a ).

Ao considerar o currículo de forma ampliada, compreende-se que a função da escola pública popular ultrapassa os muros da escola, adentrando na comunidade e nas suas manifestações culturais, nos seus diferentes segmentos e movimentos sociais. Assim pode a escola participar da própria sociedade e, a partir dela, elaborar coletivamente o conhecimento escolar. Nessa perspectiva, a escola é valorizada justamente por não se distanciar da realidade social e contribuir com a transformação social. A escola é um espaço comunitário com autonomia na construção da ação pedagógica. Não há outro caminho mais eficaz de a escola assumir a sua posição política a não ser declarada em favor de uma “educação pública popular”.

Essa escola, pública e popular, para possuir qualidade da educação , necessita de suntuoso investimento, condições de trabalho escolar, formação docente e dedicação dos profissionais da educação; mas, acima de tudo, necessita de uma nítida posição política da escola com a sua função social e, por conta disso, sua entrega à práxis transformadora. Todavia, a escola sem um currículo sólido em conteúdos históricos, científicos, culturais e sem um conteúdo significativo pode se degenerar com facilidade em uma educação ativista, negando a sua especificidade que é justamente se constituir em um espaço privilegiado de produção e reprodução científica do conhecimento e não um espaço de realização do senso comum.

CONCLUSÃO

A concepção de educação no pensamento de Paulo Freire foi abordada considerando a experiência da política educacional na secretaria municipal de educação de São Paulo entre os anos de 1989 e 1992. Ficou evidente que conceituar política e gestão educacional exige, antes de tudo, um adequado espectro teórico- metodológico para dar conta de compreender a sociedade em sua totalidade e historicidade, o que requer uma perspectiva educacional radical sobre a ampliação da participação popular no campo da educação.

A política da educação no pensamento freireano é essencial como princípio na concepção de política e gestão educacional. A negação da política no âmbito educacional tem sido, desde sempre, a principal arma das classes dominantes para recusar a educação de qualidade às classes subalternas, especialmente a “nova qualidade”, aquela que se mede justamente na possibilidade de se criar solidariedade humana no sentido de reconhecer e propiciar ao homem a condição de protagonista na história.

As diversas áreas e temáticas apresentadas como reorganização curricular, inclusão dos ciclos de formação, criação dos conselhos escolares, ampliação dos espaços de participação da comunidade escolar, formação continuada dos professores em serviço, promoção das condições salariais dos professores, fortalecimento das condições materiais e de infraestrutura das escolas, correspondem em conjunto a uma concepção política educacional alinhada e comprometida com a transformação social.

Assim, a escola pública somente se consolidará como tal na medida em que for convertida em escola pública popular com a finalidade de transformação radical da escola.

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Recebido: 07 de Abril de 2021; Aceito: 23 de Junho de 2021

Vagno Emygdio Machado Dias Graduado em Ciências Sociais (UNESP), Mestre e Doutor em Educação (UFSCar). Professor de Filosofia e Sociologia no IFSULDEMINAS, Campus Poços de Caldas. Professor do Programa de Pós-Graduação em Mestrado Profissional em Educação Profissional e Tecnológica em rede nacional (ProfEPT). E-mail: dias.vagno@gmail.com

Tânia Barbosa Martins Graduada em História (UFOP). Mestre e Doutora em Educação (UFSCar). Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da UNIMEP. E-mail: taniabmartins@yahoo.com.br

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