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Revista Brasileira de Política e Administração da Educação

versión impresa ISSN 1678-166Xversión On-line ISSN 2447-4193

Revista Brasileira de Política e Administração da Educação vol.38 no.1 Goiânia  2022  Epub 02-Oct-2023

https://doi.org/10.21573/vol38n002022.121446 

ARTIGOS

Vulnerabilidades sociais e educacionais associadas ao efeito território em escolas do Ceará

Social and educational vulnerabilities associated with the territory effect in Ceará schools

Vulnerabilidades sociales y educativas asociadas al efecto territorio en escuelas de Ceará

WILLANA NOGUEIRA MEDEIROS GALVÃO1 
http://orcid.org/0000-0002-1136-0648

MARIA ELIANE MAIA SOUSA2 
http://orcid.org/0000-0002-0708-5188

ANA LÉA BASTOS LIMA3 
http://orcid.org/0000-0003-0847-8845

SOFIA LERCHE VIEIRA4 
http://orcid.org/0000-0002-0271-6876

ELOISA MAIA VIDAL5 
http://orcid.org/0000-0003-0535-7394

1Universidade Estadual do Ceará Programa de Pós-Graduação em Educação Fortaleza, CE, Brasil

2Universidade Estadual do Ceará Programa de Pós-Graduação em Educação Fortaleza, CE, Brasil

3Universidade Estadual do Ceará Programa de Pós-Graduação em Educação Fortaleza, CE, Brasil

4Universidade Estadual do Ceará Programa de Pós-Graduação em Educação Fortaleza, CE, Brasil

5Universidade Estadual do Ceará Programa de Pós-Graduação em Educação Fortaleza, CE, Brasil


Resumo

O artigo investiga o impacto do efeito território nas ofertas educacionais de quatro escolas situadas no centro e na periferia dos municípios de Caucaia e Maracanaú. A metodologia adotada é de natureza quanti-qualitativa, com o uso de entrevistas semiestruturadas, observação de campo, dados do Inep e IBGE e revisão de literatura ancorada nos estudos de Marcuse (2004); Ribeiro e Koslinsky (2009); Ben Ayed (2012); Érnica e Batista (2012); Ribeiro e Vóvio (2017). As análises apontam que aspectos inerentes ao território, como localização (centro x periferia), vulnerabilidades sociais e guetificação podem interferir na oferta e nos resultados educacionais.

Palavras-Chave: Efeito território; Vulnerabilidades sociais; Serviços educacionais

Abstract

The article investigates the impact of the territory effect on the educational offers of four schools located in the center and periphery of the municipalities of Caucaia and Maracanaú. The methodology adopted is quanti-qualitative in nature, using semi-structured interviews, field observation, literature review and data study from Inep and IBGE and literature review based on studies by Marcuse (2004); Ribeiro and Koslinsky (2009); Ben Ayed (2012); Érnica and Batista (2012); Ribeiro and Vóvio (2017). The analyses point out that aspects inherent to the territory, such as location (center x periphery), social vulnerabilities, and ghettoization can interfere in the offer and results of educational policies.

Key words: Territorial effect; Social vulnerabilities; Educational services

Resumen

El artículo investiga el impacto del efecto territorio en la oferta educativa de cuatro escuelas ubicadas en el centro y periferia de los municipios de Caucaia y Maracanaú. La metodología adoptada es de naturaleza cuanti-cualitativa, utilizando entrevistas semiestructuradas, observación de campo, revisión de literatura y estudio de datos del Inep e IBGE, así como revisión de literatura basada en estudios de Marcuse (2004); Ribeiro y Koslinsky (2009); Ben Ayed (2012); Érnica y Batista (2012); Ribeiro y Vovio (2017). Los análisis señalan que aspectos inherentes al territorio, como la ubicación (centro x periferia), las vulnerabilidades sociales y la guetización pueden interferir en la oferta y los resultados educativos.

Palabras-clave: Efecto territorio; Vulnerabilidades sociales; Servicios educativos

INTRODUÇÃO

O texto apresenta um recorte da pesquisa intitulada “Política educacional, cidadania global e diversidade territorial: expedição escolas do Brasil”1, que tem como objetivo aprofundar as interfaces entre política educacional, cidadania global e diversidade territorial em uma amostra de escolas públicas localizadas em diferentes unidades da federação. O presente estudo analisa quatro escolas que participaram da pré-testagem dos roteiros de entrevistas para a pesquisa maior, sendo duas de ensino médio, pertencentes à rede estadual e duas de ensino fundamental, uma de cada rede municipal, localizadas no centro e na periferia de duas cidades da região metropolitana de Fortaleza, capital do Ceará – Caucaia e Maracanaú. A escolha pelos dois municípios, bem como as escolas, se deu em função dos critérios estabelecidos no projeto: características do território, optando por municípios representativos da região metropolitana; tamanho da rede escolar e etapa da educação básica oferecida.

O artigo analisa a percepção de diretores, professores, familiares e alunos das escolas em relação ao efeito do território no qual estão localizadas e as possibilidades educacionais disponíveis para os estudantes. O conceito de território é entendido como o espaço social, econômico e geográfico onde estão localizadas as escolas e, nesse sentido, articula-se com a temática dos estudos sobre educação e territórios de vulnerabilidade social, mas pretende ir além debruçando-se sobre as especificidades em contextos de centro e de periferias dos municípios da amostra.

De acordo com Ribeiro e Vóvio (2017) e Kaztman (2001), a maneira como se deu a ocupação do solo urbano nas grandes cidades originou um fenômeno de sobreposições de desigualdades. Tal fato acabou por impulsionar certo distanciamento de populações dos códigos e normas que predominam no restante da cidade. Uma das consequências de tal situação é o isolamento social e, consequentemente, a redução da disseminação de informações e contatos, além de menor nível de eficiência normativa e limitada exposição a modelos diversos de papéis sociais. Em cenários como esses, as populações apresentam vínculos precários com o trabalho e com os serviços públicos e privados, se distanciando da perspectiva de mobilidade social, tanto no que se refere ao deslocamento físico das pessoas, quanto no que tange às expectativas de melhoria do seu bem-estar social. A literatura da área tem procurado compreender esse cenário e a sua repercussão no ambiente escolar.

Ben Ayed e Broccolichi (2008) buscam discutir a relação entre concentração de populações de características sociais desfavoráveis comuns e educação. Para eles, essas desigualdades estão associadas à segregação das populações, de modo que os espaços residenciais passam a expressar também propriedades sociais, econômicas e culturais. Na mesma linha, Koslinski e Alves (2012, p. 810) afirmam que “os estudos que partem do conceito de efeito vizinhança2 focalizam o impacto da concentração da pobreza sobre desfechos escolares individuais”. Destacam, ainda, que esses conceitos são originários de estudos urbanos da escola de Chicago (EUA) que afirmavam que as “cidades estão divididas em áreas que apresentam características físicas e culturais diferentes, ou seja, em contextos sociais caracterizados por normas e significados que são diferentes e persistem ao longo do tempo” (p. 810).

Segundo Costa (2016), tal situação gera um processo de exacerbação dos fenômenos de guetificação. Para o autor, o gueto, espaço habitacional que decorre do fechamento de uma área urbana, é caracterizado pelo afastamento de determinada região em relação aos centros urbanos da cidade, limitando principalmente a acessibilidade “dos” ou “até os” guetificados. Com o intuito de entender esse processo, pesquisas têm buscado conjugar abordagens da Sociologia Urbana e da Sociologia da Educação para tratar fatores relacionados à organização social do território e seus efeitos sobre as oportunidades educacionais.

Ganham relevância nos estudos sobre as possibilidades de eficácia e de equidade da escola, os possíveis efeitos dos contextos sociais formados pelas unidades de vizinhança constituídas pelos processos de agregação e segregação residenciais. Nesse contexto, o presente estudo se propõe a aprofundar a discussão sobre o efeito território na oferta educacional e, além desta introdução, está dividido em duas sessões: a primeira apresenta as características do território pesquisado e alguns indicadores educacionais e a segunda trata da relação entre efeito território e educação, discutindo os achados de campo e as vulnerabilidades sociais e escolares envolvidas. Finalmente, as considerações finais destacam os principais achados da pesquisa.

INDICAÇÕES METODOLÓGICAS E BREVE CARACTERIZAÇÃO DO TERRITÓRIO

Para compreender a influência do efeito território no cotidiano escolar, o artigo se apoiou em pesquisa dividida em três fases: a) bibliografia da área, com o intuito de dialogar com autores, nacionais e internacionais, que debatem o assunto; b) coleta de dados e c) processamento e análise de dados. Como pesquisa aplicada e exploratória, utilizou estudo de casos múltiplos e uma abordagem quanti-qualitativa, ancorada em André (2002), Minayo e Sanches (1993).

Os dados quantitativos dizem respeito à população e às características das escolas e seus alunos. As informações sobre os municípios foram buscadas no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e no Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece). Para os indicadores educacionais, recorreu- se às informações publicadas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), como Censo Escolar da Educação Básica, Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) e dados complementares foram obtidos na Secretaria de Educação do Ceará.

Os dados qualitativos foram obtidos por meio de pesquisa de campo em quatro escolas, duas em cada município. Cada escola é marcada geograficamente por diferentes condições sociais e econômicas nos territórios onde se encontram, ainda que dentro de um mesmo município. As políticas educacionais propostas pelos governos federal, estadual e municipais não são recebidas e implementadas integralmente pelos municípios e escolas, envolvendo nesses percursos processos de encenação e reinvenção de políticas, conforme destaca Ball; Maguire; Braun (2012).

Os municípios selecionados apresentam fronteiras difusas na divisão territorial com a capital do estado e são os mais populosos, depois de Fortaleza.

Caucaia possui uma população estimada em 2018 de 363.982 pessoas, distribuídas numa área de 1.227,9 km2, organizada entre o centro e sete distritos, e uma geografia com, pelo menos, três características distintas: sertão, serra e litoral; Maracanaú possui 226.128 habitantes numa área de 106,7 km2 e, além do centro, possui um único distrito, sem área rural (IBGE, 2018). Com uma população superior à de Maracanaú e distribuída por um território muito maior, em parte rural, a gestão municipal de Caucaia enfrenta grandes desafios para garantir o atendimento dos serviços públicos a toda a população. Em 2016, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita de Caucaia era de R$ 15.177,12 ocupando a 14ª colocação no ranking estadual e o de Maracanaú era de R$ 36.223,68, mais que o dobro se comparado com Caucaia, ocupando a 3ª colocação.

Quanto às características educacionais, o Quadro 1 apresenta informações sobre matrículas, quantidade de escolas, Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) e Sistema Permanente de Avaliação da Educação Básica (Spaece), a avaliação em larga escala do estado do Ceará, realizada anualmente junto a alunos dos 2º, 5º e 9º anos do ensino fundamental e 3ª série do ensino médio.

Quadro 1 Cenário educacional - Caucaia e Maracanaú 

Municípios Nº de
escolas
2018
Matrícula 2018 Ideb 2017 Spaece 2017
EF EM EF EM Anos
Iniciais
Anos
Finais
Médio 2ºano 5º Ano 9º ano 3º ano EM3
LP LP MAT LP MAT LP MAT
Caucaia 169 27 49.698 12.998 5,1 4,3 3,6 152,1 200,4 196,1 243,7 234,3 265,6 257,9
Maracanaú 116 20 37.463 11.146 5,8 4,9 3,6 171,7 2 16,2 212,8 251,9 242,9 269,6 259,0

Fonte: autoras, 2021

Caucaia apresenta número de escolas e matrículas superiores a Maracanaú, compreensível a partir do tamanho do seu território e de sua população, implicando maior complexidade da rede escolar. Embora os dois municípios venham, ao longo da série histórica do Ideb (2005 – 2017), atingindo as metas estipuladas para os anos iniciais do ensino fundamental, a evolução de Caucaia tem sido maior (54,5% x 48,7%). Nos anos finais, a situação se inverte, com a evolução dos resultados de Maracanaú atingindo o dobro de Caucaia (63,3% x 30,3%), sendo que o primeiro alcança a meta estabelecida para 2017 e o segundo, não. No ensino médio, as escolas são estaduais e a situação dos dois municípios é semelhante em termos de média de Ideb alcançado. Ao se verificar os dados de proficiência do Spaece 2017, constata-se que as maiores diferenças a favor de Maracanaú encontram-se no 2º ano (12,9%) e no 5º ano (Língua Portuguesa, 7,9% e Matemática, 8,5%). No 9º ano, as diferenças nos resultados de proficiência ficam em torno de 3,5% e, no ensino médio, menor do que 2%.

Esses resultados têm associação com as vulnerabilidades socioeconômicas dos dois municípios, sendo que Caucaia enfrenta maiores desafios na política educacional, em decorrência de sua maior extensão territorial e da capilaridade da população, aspectos que demandam do gestor público a implementação de iniciativas para assegurar o direito à educação, como transporte escolar, construção de escolas rurais, mobilidade de docentes etc. Em Maracanaú, a área territorial leva a uma maior concentração urbana, mas os bairros periféricos são fortemente afetados pela omissão do Estado na prestação de serviços públicos.

Para a escolha das escolas, levou-se em conta as etapas de educação básica oferecidas e a localização (centro x periferia). Visando a compreender o efeito território sobre os equipamentos escolares, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com quatro diretores, 15 professores, 15 alunos e 10 familiares e preenchido um roteiro de observação da escola, a fim de coletar dados junto à secretaria escolar, a respeito de infraestrutura, dos recursos pedagógicos e outros.

No município de Caucaia, foram visitadas duas escolas: uma de ensino fundamental, situada no bairro Jandaiguaba, na periferia do município, e uma de ensino médio, localizada no centro. No município de Maracanaú, as visitas foram a uma escola de ensino fundamental, localizada na periferia, em uma área limítrofe com Fortaleza e uma de ensino médio situada no centro da cidade.

Quadro 2 Identificação das escolas - matrículas, docentes e funcionários, 2018 

Município Escola Nº de alunos Professores Funcionários
Efetivos Temporários
Caucaia Fundamental 658 22 8 16
Médio 1.796 46 36 18
Maracanaú Fundamental 369 28 2 16
Médio 364 8 10 13

Fonte: autoras, 2021

No que diz respeito às condições de infraestrutura, o maior diferencial foi observado entre as escolas de ensino médio: em Maracanaú, a escola oferece ensino médio integrado à educação profissional num prédio com espaços físicos e equipamentos suficientes para o atendimento dos alunos e o trabalho docente e uma matrícula que corresponde a 20,2% da escola de ensino médio de Caucaia. O corpo docente das duas escolas também apresenta características distintas: 18 professores em Maracanaú, com 44,4% efetivos e 82 professores em Caucaia, sendo 56,1% efetivos. Enquanto a escola de Maracanaú funciona nos turnos diurnos, a de Caucaia atende em três turnos, com o uso de sua capacidade plena. Quando se observa o número de funcionários, chama a atenção o fato de uma escola com 1.796 alunos dispor de 18 pessoas para assegurar o funcionamento em três turnos (média de 99,7 alunos por funcionário), enquanto a outra, com 364 alunos, conta com 13 funcionários para o atendimento em dois turnos, uma clara situação de desigualdade nas condições de apoio ao funcionamento da escola (média de 28 alunos por funcionário).

Embora ambas estejam situadas no centro da cidade, a escola de Maracanaú foi reformada para a oferta do ensino médio integrado à educação profissional, enquanto a de Caucaia possui uma arquitetura antiga e não dispõe de espaço para a convivência e a realização de projetos fora da sala de aula. Até mesmo no horário do intervalo (recreio), na escola de Caucaia, resta aos alunos os corredores entre as salas de aula e um pequeno espaço recuado na entrada do prédio. No que se refere aos resultados das avaliações externas, o Quadro 3 apresenta o Ideb e Spaece das escolas da amostra.

Quadro 3 Desempenho das escolas - Ideb e Spaece, 2017 

Município Escola Ideb Anos Iniciais Ideb Anos Finais Ideb Ensino Médio Spaece Anos
Iniciais
Spaece Anos
Finais
Spaece Ens.
Médio
2017 Meta 2017 Meta 2017 Meta 2º ano LP 5º ano MAT 5º ano LP 9ºano MAT 9ºano LP 3º ano MAT 3º ano
Caucaia Fund. 4,6 4,4 4,1 4,7 - - 152,1 205,9 197,3 221,9 227,5 - -
Médio - - - - 3,7 3,7 - - - - - 259,4 251
Maracanaú Fund. 5,6 5 4,8 4,1 - - 171,7 214,6 208,8 248,8 243,2 - -
Médio - - - - 5,8 5,8 - - - - - 319,4 320,5

Fonte: Elaboração própria com base em dados do Inep.

No caso do Ideb dos anos iniciais e finais do ensino fundamental, os resultados da escola de Maracanaú são 27,1% e 17,1% superiores aos de Caucaia, e ambas apresentam valores inferiores às médias dos respectivos municípios. No ensino médio, a escola de Maracanaú apresenta resultado 56,8% superior a de Caucaia, que pode ser explicado pela quantidade de matrículas, as condições de infraestrutura e a modalidade de oferta. No Spaece, a situação se mantém favorável às escolas de Maracanaú, tanto para o ensino fundamental, quanto para o ensino médio.

Os dados apresentados revelam situações distintas para as escolas de ensino fundamental e médio no que se refere aos resultados de desempenho escolar dos alunos. Isso pode estar associado a contextos específicos dos municípios, no caso das escolas de ensino fundamental, que pertencem a duas redes escolares distintas. As diferenças encontradas nas escolas de ensino médio, ambas localizadas no centro das duas cidades, podem estar relacionadas ao tipo de oferta – numa o ensino médio regular com cinco horas de aula por dia e outra com ensino médio integrado à educação profissional com nove horas de aula por dia. Além da carga horária diferenciada, associam-se aspectos relacionados à infraestrutura, à quantidade de matrículas, a recursos didáticos etc. que são muito distintos nas duas escolas, assim como as condições de atendimento do pessoal de apoio.

Os dados apresentados explicitam aspectos importantes no que se refere às condições de atendimento nas escolas dos dois municípios. Na próxima sessão, serão confrontados os elementos postos em relevo pela literatura da área com a situação encontrada a partir do trabalho de campo.

EDUCAÇÃO E TERRITÓRIO: EFEITOS E DESDOBRAMENTOS

O processo de segregação do espaço urbano em centro e periferia é, para Wacquant (2008), mais do que um meio concreto e de materialização da dominação étnico-racial pela segmentação espacial da cidade; representa a formação de uma identidade coletiva. O autor observa que a segregação pode ser real ou voluntária e não se impõe, necessariamente, a construção de muros de contenção. Pessoas isolam-se ou são isoladas em espaços da cidade na busca da concretização de um bem-estar social entre iguais, que se separam dos diferentes.

Negri (2010) chama atenção para o fato de que a cidade é um lugar de atuação dos agentes de produção do espaço que refletirão, na sua arquitetura e na sua organização, o padrão de desenvolvimento da complexidade das relações sociais, que se apresenta através da segregação socioespacial, sobretudo por meio da diferenciação econômica.

Historicamente, existe um padrão geral de segregação das classes sociais, que Marcuse (2004) divide em cultural, funcional e por diferença no status hierárquico. A primeira se dá por meio da língua, da religião, da etnia, por nacionalidade ou por estilo arquitetônico. A segunda está relacionada à questão econômica que acaba por dar origem à divisão entre bairros residenciais e comerciais, áreas rurais e industriais, pressupondo a divisão do espaço pela função exercida para cada atividade. A terceira reflete e reproduz as relações de poder na cidade e se expressa, por exemplo, através de condomínios ou pela distribuição dos serviços públicos pelo Estado.

O espaço, principalmente no que se refere ao uso e à ocupação do solo urbano, é marcado por contrastes sociais. As cidades crescem de modo desordenado, prevalecendo o interesse econômico. Nas periferias, não existe planejamento, infraestrutura, saneamento básico, combate e prevenção a doenças, destinação de lixos e de detritos. A população mais pobre sofre com o processo de “higienização social”, em que famílias são expulsas de determinadas regiões que passam a ser ocupadas pela população menos vulnerável e por pontos turísticos das cidades, sendo necessário, para a população excluída nesse processo, sua reorganização em outros espaços, à margem do Estado.

Esse novo desenho urbano impacta também na forma como a comunidade se identifica enquanto pertencente a um município ou bairro. A população que habita uma área limítrofe entre dois municípios enfrenta o desafio de identificar o responsável pela oferta de serviços públicos. Consequentemente, as instituições, a exemplo das escolas, nessas mesmas condições, vivenciam um problema de identidade e pertencimento. Assim, estudar o espaço urbano é buscar compreender porque as cidades crescem de maneira tão diferenciada e, no caso da educação, as repercussões desse processo na oferta de serviços.

Resgatando as reflexões de Wacquant (2008) e avançando no que foi discutido por Marcuse (2004), Costa (2016) afirma que a parcela da população que habita à margem, vivencia um processo de segregação real, que expressa com mais veemência a ausência da organização política urbana. É formada por uma estrutura habitacional deficiente, desprovida de serviços essenciais, na qual a condição socioeconômica da comunidade impacta de forma significativa no vínculo e na condição de adesão de pertencimento ao território. Por um lado, a segregação real acontece independentemente da vontade da população excluída e sem que esta seja consultada. Por outro lado, existe uma segregação voluntária, que possui a mesma característica segregacionista da primeira, no entanto, partindo de uma escolha do indivíduo. Ela se expressa por meio da crescente expansão imobiliária e da ocupação dos condomínios que se apresentam como uma delimitação espacial, com a presença de complexos habitacionais que têm o intuito de formar uma comunidade artificial, na qual a segurança individual e coletiva poderá ser conquistada por meio do convívio com os considerados iguais e com os equipamentos de segurança. Sobre essa questão, Santos (2000, p. 5) afirma que

O direito à cidade se ausenta nas duas hipóteses e tem como elo a (in)segurança pública. Assim, o componente territorial supõe, de um lado, uma instrumentação do território capaz de atribuir a todos os habitantes aqueles bens e serviços indispensáveis, não importa onde esteja a pessoa; e de outro lado, uma adequada gestão do território, pela qual a distância geral dos bens e serviços públicos seja assegurada.

A qualidade de vida passou a ser estabelecida de acordo com o potencial de consumo individual ou familiar. O comércio imobiliário, segundo Costa (2016), logo se adaptou à nova necessidade de consumo: meio ambiente equilibrado, lazer, conforto e segurança. Tudo isso sob o rótulo da qualidade de vida e presente nos condomínios que têm buscado, em seus interiores, assemelhar-se a centros urbanos no que diz respeito à oferta de equipamentos capazes de proporcionar tal bem- estar. Existe, entretanto, uma limitação de acesso a tais estruturas e os valores desta qualidade de vida restringem-se a uma minoria da população, pois

[...] cada homem vale pelo lugar onde está [...] por isso, a possibilidade de ser mais ou menos cidadão depende, em larga proporção, do ponto do território onde se está. Enquanto um lugar vem a ser condição de sua pobreza, um outro poderia, no mesmo histórico, facilitar o acesso àqueles bens e serviços que lhes são teoricamente devidos, mas que, de fato, lhe faltam (SANTOS, 2000, p. 81).

Morar em um bairro periférico representa, portanto, muito mais do que apenas ser segregado, significa ter oportunidades desiguais em nível social, econômico, educacional, de renda e cultural. Isto quer dizer que os habitantes de um território marcado por vulnerabilidades apresentam condições limitadas de ter acesso a avanços sociais e econômicos.

Segundo Negri (2010), a maioria dos investimentos públicos é voltado para os bairros centrais e que acolhem habitantes de mais alta renda. A população carente, residente, em sua maioria, nos bairros periféricos, recebe os investimentos públicos de forma precária e limitada. E isto tende a se refletir nos índices de educação, saúde e segurança. Para Bourdieu (1997), as metrópoles, ao mesmo tempo em que são ricas nos aspectos políticos, econômicos e culturais, são, também, desiguais na organização de seu espaço, fornecendo a uns e negando a outros, benefícios de localização. Kowarick (2009) amplia a discussão explicando que há diferenças entre a possibilidade de se aproximar ou de se afastar dos bens, como escola, transporte, saneamento, hospitais e demais equipamentos públicos. A possibilidade de residir próximo ao trabalho, o prestígio ou o estigma ao mencionar o bairro de moradia e a possibilidade de aumentar o capital social, também são questões que se destacam quando se fala de desigualdade de oportunidades impostas pelo território.

Essas questões fazem parte e tecem o cenário em que as escolas estão inseridas, podendo se apresentar como limitadoras ou ampliadoras das oportunidades oferecidas aos que habitam tal território. Os estudos na área da Sociologia Urbana e Sociologia da Educação, a partir da literatura internacional, a exemplo de Van Zanten (2001) e Ben Ayed (2012) e nacional, como Ribeiro e Koslinsk (2009), Batista; Gomes e Carvalho-Silva (2013) apontam uma preocupação crescente com as desigualdades socioeducacionais e os seus possíveis efeitos nos contextos sociais de crianças e jovens em territórios vulneráveis. Ben Ayed (2012) avança nas reflexões sobre as desigualdades socioespaciais de acesso aos saberes na França e afirma que, no estudo das variações do aprendizado escolar em função dos contextos de escolarização, não se pode dissociar, nas análises, o impacto dos fatores sociais e espaciais.

A questão das desigualdades socioespaciais também repercute no cenário educacional. Apesar de estar determinado na Constituição Federal (1988) o direito subjetivo à educação de qualidade sob o “princípio da igualdade de condições para o acesso e permanência na escola” (Art. 206, inciso I), persiste uma estratificação do sistema educacional que propicia o desenvolvimento de estratégias variadas de escolarização. É nesse contexto que trabalhos como o de Ribeiro e Koslinsky (2009) sobre o efeito metrópole e o acesso a oportunidades educacionais chamam atenção para a necessidade da consideração do território urbano como dimensão transversal das políticas de educação.

Érnica e Batista (2012), em pesquisa realizada entre 2009 e 2011 em territórios considerados vulneráveis socioeconomicamente, no município de São Paulo, investigaram o efeito dessa variável em relação às oportunidades educacionais em escolas neles localizadas. Constataram que quanto maiores os níveis de fragilidade social, econômica e cultural no entorno do estabelecimento de ensino, mais limitada tende a ser a qualidade das oportunidades educacionais por ele oferecidas. A principal evidência de efeito do território sobre as oportunidades educacionais destacadas pela pesquisa em questão é que os alunos com baixos recursos culturais e familiares que estudam em escolas de entorno mais vulnerável tendem a obter desempenho pior. E alunos na mesma situação, quando estudam em contextos menos vulneráveis, obtêm melhor desempenho. O fato se apresenta como equivalente para alunos com maiores recursos culturais: seus resultados de aprendizagem apresentam relação direta com as vulnerabilidades dos cenários sociais, econômicos e territoriais.

Ribeiro e Vóvio (2017, p. 7) apontam na literatura da área os mecanismos potencializadores desse efeito território:

a) o fato de a escola ser praticamente o único equipamento público nessas localidades, dificultando o acesso da população aos serviços públicos e a outros recursos culturais socialmente valorizados, sobrecarregando assim o estabelecimento escolar; b) a menor oferta da matrícula em Educação Infantil nos territórios mais vulneráveis, sendo insuficiente para atender a demanda; c) a tendência à homogeneidade do corpo discente em escolas localizadas nos territórios vulneráveis, com baixo acesso a recursos culturais e menor nível socioeconômico; d) as relações entre escolas, que tendem a competir por recursos humanos, alunos e docentes, e a evitarem ou a receberem alunos considerados problemas.

Corroborando com essa perspectiva, os estudos de Pereira-Silva (2016) apontam para a necessidade de ir além das tentativas de compreender as desigualdades escolares por meio de indicadores que se reportam a uma única dimensão, qual seja, a de acesso à renda ou relativa às situações de origem. Assim, é importante que se leve em consideração um conjunto de aspectos que, associados, podem contribuir para a produção de desigualdades escolares nos territórios mais desfavorecidos das grandes cidades. Ou seja, a compreensão, de maneira mais sólida, do efeito território nas escolas brasileiras exige um estudo que leve em conta diversas variáveis, de forma simultânea.

ESCOLAS DE CENTRO E PERIFERIA: A PERCEPÇÃO DA COMUNIDADE ESCOLAR

Por meio da observação do contexto socioespacial em que estão situadas as escolas de centro e periferia da amostra, foi possível perceber as fragilidades e os limites impostos pelas dinâmicas territoriais locais. Durante o trabalho de campo, os entrevistados foram indagados sobre o perfil da comunidade e do território. Percebeu-se que as escolas da periferia parecem estar inseridas em cenários de maiores vulnerabilidades socioespaciais, como apontam os depoimentos:

[...] A maioria são filhos de pais que têm empregos informais e isso traz uma falta de estabilidade, eles mudam muito de residência, dos bairros. Aqui a gente tem também muita criança, filho de presidiário, ex-presidiário, então assim, acontece muito isso, tem a questão da violência no bairro que não atinge de forma tão direta a escola não. (GEEFM). [grifos das autoras]

O potencial dos alunos é bem menor [se referindo aos alunos da periferia] porque o aluno com tantas mazelas sociais, ele tende a ser uma pessoa introspectiva. Então isso prejudica na aprendizagem. Os alunos daqui dessa região vêm buscar, realmente um apoio. (PEEFC) [grifos das autoras]

Temos muitos públicos variados, de diversas localidades [se referindo ao público assistido pela escola]. Não recebemos apenas alunos do entorno não, vem de vários locais e com perfis diferentes. Isso amplia a cultura da escola, enriquece nossas aulas e força de nós outros comportamentos, maior empenho… é desafiante. (PEEMC)

Os relatos mostram que o perfil dos alunos das escolas de periferia é mais homogêneo do que o dos estudantes das escolas do centro. Estudos realizados pelo Centro de Estudos e Pesquisa em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec) em 2011 revelam que isso ocorre porque as escolas de regiões mais carentes tendem a receber os alunos do entorno que, por sua vez, possuem baixos recursos culturais familiares e por sua moradia estar localizada num território vulnerável. Por essa razão, a escola tende a reproduzir, em seu interior, a segregação territorial e sociocultural da comunidade, além dos problemas decorrentes dela. Os depoimentos de uma gestora do município de Maracanaú e de um professor de Caucaia das escolas de periferia revelam o estigma social presente em relação às famílias e alunos, a evasão devido à instabilidade dos pais nos empregos, a violência e até mesmo a baixa expectativa de aprendizagem dos alunos. A escola do centro, segundo o professor do município de Caucaia, apresenta maior heterogeneidade no grupo de alunos, o que produz uma ampliação da cultura no ambiente escolar, contribuindo, inclusive, para a melhoria das aulas.

Percebe-se, ainda, na fala dos professores, que há diferenças de expectativas com relação aos alunos. Os profissionais das escolas de periferia apresentam uma visão negativa dos alunos atendidos e associam a introspecção de alguns ao desinteresse. Nas escolas centrais que compõem a amostra, por sua vez, os docentes demonstram expectativas positivas no que se refere aos estudantes. A OCDE (2016), em relatório sobre os dados do Pisa de 2012, identifica que escolas em que professores esperam menos de seus alunos os resultados se apresentam piores. O mesmo relatório aponta que, no Brasil, 60% dos docentes lotados em instituições localizadas em territórios com maior vulnerabilidade socioeconômica não acreditam que seus alunos concluirão o ensino médio, enquanto 100% dos professores de escolas com entornos mais estáveis, acreditam que a maioria dos seus estudantes concluirão o ensino médio e avançarão para o ensino superior.

Os profissionais das escolas localizadas na periferia também explicam as dificuldades relacionadas à falta de assistência nos serviços públicos, como água e saneamento:

[...] Aqui, durante todo o percurso do ano tem momentos críticos de falta de água na escola. Não permeia todo o ano não. Mas tem momentos que tem que liberar os alunos mais cedo porque não tem água; porque não dá para fazer a merenda; o diretor tem que se virar nos trinta. Comprar bomba. Quando não dá tem que diminuir o período, os alunos ficam sem intervalo e o tempo de aula é corrido (PEEFC). [grifos das autoras]

As quatro escolas da amostra contam com serviços públicos de esgoto, de energia elétrica e de coleta de lixo. No entanto, a escola da periferia de Caucaia apresenta dificuldades com o abastecimento de água, situação que, em determinados períodos, compromete seu funcionamento. Os alunos ficam sem intervalo e são privados da merenda escolar, pelo fato de a escola se encontrar sem água. Nesses casos, os alunos são liberados mais cedo e o tempo pedagógico se reduz, comprometendo o desenvolvimento do currículo escolar. Os entornos das escolas de periferia apresentam iluminação precária e não contam com acesso a transporte público próximo. Essa falta de assistência em relação aos serviços públicos está, no caso da escola da periferia de Maracanaú, também associada à sua localização em uma área limítrofe. Os entrevistados revelam que esse fato leva a uma crise de identidade, fazendo a escola se sentir abandonada pelas duas redes, Fortaleza e Maracanaú e assim também é com seu entorno, definido como “área de esquecimento, um limbo entre os municípios” (PEEFM).

Se, de um lado, uma primeira geração de estudos, apoiados principalmente no Relatório Coleman4 elaborado em 1965, discutia a incapacidade de a escola reverter as desigualdades geradas pelas origens socioeconômicas dos alunos; por outro lado, a segunda geração afirmava que a escola pode fazer a diferença sobre resultados escolares. Elementos como expectativas e ações dos professores, registro de acompanhamento e progresso dos alunos, planejamento, participação dos estudantes e acolhimento às famílias apresentam maior relação com o desempenho dos alunos do que os fatores externos à instituição.

As escolas de periferia, como principal equipamento público localizado naquele território, prestam um serviço de acolhimento à comunidade que, na escola de centro, pela própria dinâmica local, não acontece. No entanto, cabe ressaltar que, por ser o principal equipamento público presente ou, em alguns casos, o único, a escola pode encontrar-se sobrecarregada no esforço de atender demandas que não lhe são próprias. Embora as quatro escolas sejam instituições públicas, as localizadas no centro apresentam um perfil de aluno e de entorno diferente do encontrado nas escolas de periferia.

As escolas situadas em territórios de baixa vulnerabilidade conseguem atrair alunos com maiores recursos culturais e familiares e com melhores condições econômicas. Por isso, elas conseguem mais facilmente impor exigências quanto ao comportamento e ao desempenho acadêmico, o que pressiona aqueles que não se adaptam a buscarem outras instituições e opções. Como consequência dessa questão, escolas em posição de vantagem têm maior facilidade para desenvolver uma boa gestão interna de tempos e de espaços para a aprendizagem. No caso da escola de Maracanaú, os alunos já são nivelados na chegada, submetidos a processo seletivo, uma clara situação de segregação. Essa situação é peculiar às escolas de ensino médio integrado à educação profissional da rede pública cearense, o que termina por criar ofertas de educação pública bastante diferenciadas no interior da própria rede estadual.

A literatura da área reforça o que foi encontrado nos depoimentos dos entrevistados, ao afirmar que as escolas situadas em regiões centrais tendem a receber um perfil mais heterogêneo de alunos, com distintas condições socioculturais e familiares, que se deslocam, inclusive, de outros territórios, para estudar em escolas públicas tidas como referência, seja pelos indicadores educacionais, seja pela localização (CENPEC, 2011).

Em relação à procura de vagas, a escola de ensino médio de Caucaia enfrenta, todo ano, problemas de atendimento, uma vez que a demanda de vagas é muito superior ao que a escola pode comportar como informa o gestor,

O Estado fez um loteamento das vagas, assim: quem é daquela escola vem para cá, quem é daquela vai para tal lugar. [...] o pai, o menino estudando lá, ele queria vir estudar aqui e não pode vir. Porque o pai reconhece que essa escola é melhor do que aquela, todo mundo conhece (GEEMC).

No que se refere à relação das escolas de centro com o território onde estão localizadas, observou-se a presença de algumas iniciativas e intervenções que a instituição desenvolve no sentido de colaborar com a comunidade e vice-versa.

Os entrevistados foram questionados sobre os motivos que os levaram a escolher aquela escola para estudar ou matricular seus filhos. Na escola de periferia, os pais e os alunos apontaram a ausência de outras opções e a proximidade com a residência como os principais motivos para a escolha. Na escola do centro de Caucaia, as justificativas estão associadas à definição da SME, o status da escola e aos pais acreditarem que se os filhos estudassem em escola mais próxima de suas casas, em alguns casos, localizadas em bairros periféricos, poderiam ser vítimas de violência ou envolvimento com drogas. Esse processo apresenta duas hipóteses explicativas: a negação do território em que moram e o desejo de mobilidade social por meio da educação.

No caso da escola central de Maracanaú, como já exposto em depoimentos anteriores, a justificativa está associada a diversos fatores: o status da instituição, por ser de educação profissional e por possibilitar que os alunos concorram ao vestibular por meio do sistema de cotas. Neste caso, a oferta de ensino médio integrado à educação profissional diferencia a escola das demais e o estado, ao criar, por meio de uma ação política, uma intervenção no território, requalifica-o, passando a ser objeto de interesse de outras comunidades ou até mesmo provocando, em alguma medida, um processo de gentrificação5.

No que se refere à lotação de professores, os docentes das escolas de periferia revelam que se fosse possível gostariam de dar aula em outra escola e utilizam as condições do entorno escolar para justificar, uma vez que a violência e os assaltos nas proximidades da escola são constantes. Essa questão pode impulsionar um processo de rotatividade elevada no que se refere à lotação dos professores. A fama do bairro onde está localizada a escola leva os docentes que possuem outras opções a não quererem ir para as unidades de periferia ou, uma vez lá, saírem tão logo surja uma oportunidade. Escolas situadas em periferias, geralmente, atendem alunos de nível socioeconômico e cultural mais baixos, assim como tendem a apresentar professores com menor formação, uma vez que a localização também interfere no processo de lotação dos docentes e muitos profissionais se recusam a trabalhar em determinadas localidades.

O índice de regularidade docente e o percentual de professores com ensino superior em 2018, das quatro escolas, apontam que a escola da periferia de Maracanaú apresenta a maior rotatividade docente e é a única com 100% do quadro docente com ensino superior (INEP, 2019). Assim, embora o perfil de formação seja adequado, não há segurança de que os mesmos profissionais permanecerão no ano seguinte. Diante de tal situação, a tendência é que os docentes disponham de pouco tempo para estabelecer vínculos com a escola e os alunos.

A instituição de ensino médio de Caucaia é a que apresenta a menor rotatividade docente; a escola da periferia do referido município, no entanto, é a instituição com maior percentual de professores sem formação superior. Outra informação importante diz respeito ao fato de que na escola estadual de Maracanaú não há 100% dos profissionais com ensino superior em decorrência da base técnica do currículo, que absorve profissionais com formação técnica, algumas vezes, de nível médio (INEP, 2019).

No caso das escolas localizadas no centro da cidade, o reconhecimento da comunidade em relação à qualidade da escola parece impulsionar a busca pelas instituições e todos os entrevistados, entre pais e alunos, se mostraram satisfeitos com a possibilidade de estudar e matricular seus filhos nessas instituições. Essa perspectiva é diferente da encontrada nas escolas da periferia, em que os alunos que as frequentam, em sua maioria, assim o fazem por ausência de outras opções.

Observou-se que as quatro escolas, em maior ou menor grau, apresentam pontos que podem comprometer o processo educacional. De um lado, as especificidades da movimentação do centro, o barulho e o movimento durante festejos que podem prejudicar o tempo pedagógico. De outro lado, nas escolas da periferia, é possível apreender fatores que não apenas expressam a latente desigualdade espacial que marca as cidades, como também compromete de forma mais direta as possibilidades educacionais, como o acesso, a violência e a vulnerabilidade econômica.

Sabe-se que o desempenho escolar está associado a fatores intra e extraescolares, como mostram estudos de pesquisadores brasileiros, a exemplo de Brooke e Soares (2008) e Alves e Soares (2007). Assim, não se quer aqui considerar o efeito território como único responsável pelo desempenho das escolas, uma vez que isto seria tratar a questão a partir de uma postura facilmente contrariada pela literatura sobre o assunto. No entanto, chama a atenção o fato de que as características do território impactam na vida das pessoas e no ambiente escolar. Desconsiderar tal questão significaria ignorar os desafios que o meio tem imposto aos alunos, aos professores e à escola.

No próximo tópico, as considerações finais destacam os achados e as reflexões a partir do que foi sistematizado no artigo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os dados revelam a existência do chamado “efeito território” sobre as oportunidades educacionais oferecidas aos alunos e que quanto maior o nível de vulnerabilidade social, mais limitada tende a ser a qualidade dessas oportunidades. Uma primeira evidência é apresentada por meio dos resultados do Ideb e do Spaece das escolas localizadas nas franjas territoriais dos municípios, que apresentam resultados abaixo das médias municipais. Em segundo lugar, nesses territórios, as escolas tendem a ser o principal e algumas vezes, o único, equipamento público oferecido à população. Por isso, elas acabam sendo mobilizadas para responder a problemas sociais desses territórios, sem ter condições de fazê-lo de forma integral, como é o caso das duas escolas da periferia, principalmente a de Maracanaú que abriga as famílias em épocas de enchentes.

Observou-se que as instituições localizadas em territórios mais vulneráveis tendem a receber alunos com baixos recursos culturais e familiares. Diante da sua localização em regiões periféricas e de vulnerabilidade social do entorno, elas representam o único canal de acesso à educação para as famílias que moram nas vizinhanças. Alguns pais que almejam maiores expectativas educacionais para os filhos procuram romper a bolha dos limites territoriais e matricular as crianças e os jovens em outras escolas, consideradas de referência e em áreas de menor vulnerabilidade. Mas, para que isso aconteça, eles precisam dispor de condições logísticas e financeiras, que funcionam como limitantes para a maioria das famílias. As escolas de periferia enfrentam, ainda, o desafio de atrair e manter profissionais, especialmente docentes, qualificados e engajados. Eles acabam por evitar escolas nessas condições ou transferir-se logo que surjam oportunidades, seja por questões associadas à violência, à distância, ao perfil dos alunos e às expectativas em relação à escola. Nas escolas pesquisadas, os professores revelam que estão vinculados à escola por ausência de outras possibilidades ou por estas situarem-se mais próximas de suas residências, ou seja, na maioria dos casos, não são escolhas voluntárias nem comprometidas com algum tipo de mudança relativa à qualidade educacional. Os alunos e os familiares das escolas de centro não demonstram interesse em realizar matrícula em outra instituição. Nas escolas de periferia, por sua vez, o discurso é de que se aparecessem condições adequadas para esse movimento, prefeririam estudar e matricular seus filhos em outra escola.

A partir dos dados analisados, é possível apontar que os aspectos inerentes ao território, como localização (centro x periferia), vulnerabilidades sociais e guetificação podem interferir na oferta e nos resultados das políticas educacionais. Os gestores, os professores e os pais de alunos têm consciência de que as condições inerentes ao território discriminam e contribuem negativamente para a oferta educacional, caracterizando algum tipo de segregação.

Assim, percebe-se que o modelo que orienta as instituições educativas não está preparado para se relacionar com a diversidade de territórios marcados por condições sociais, econômicas e culturais diversas, especialmente naqueles redutos em que prevalece a pobreza e a alta vulnerabilidade social. Nesse sentido, embora não seja o único determinante de tal situação, o território, enquanto localização, pode interferir na oferta de possibilidades educacionais.

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2 Estudos a partir da década de 1990 passam a considerar a vizinhança como esfera capaz de exercer impacto sobre a distribuição de oportunidades educacionais e analisam o impacto da concentração da pobreza sobre desfechos escolares individuais (abandono, repetência, aprendizagem).

3 Para a etapa de ensino médio, utilizamos a média entre as escolas estaduais da rede para chegar aos resultados da avaliação por município. Para as séries do ensino fundamental, as informações já estavam disponíveis nos relatórios.

4 Trata-se de um estudo sobre igualdade de oportunidades educacionais encomendado pelo congresso norte-americano e publicado em 4 de julho de 1966 nos EUA. O documento foi baseado em dados coletados com milhares de professores, escolas e quase 600 mil alunos e conduzido pelo sociólogo e pesquisador James Coleman.

5 O termo ‘gentrificação’ é utilizado para se referir a um processo de segregação socioespacial que ocorre como uma forma de expulsão de uma população com renda econômica mais baixa de seu bairro, a partir da valorização econômica da região e o aumento médio do seu custo de vida. (ALCÂNTARA, 2018)

1 Projeto de pesquisa financiado pelo CNPq, Edital Universal MCTI/CNPq 01/2016, processo no 404952/2016-0.

Recebido: 10 de Janeiro de 2022; Aceito: 09 de Agosto de 2022

Willana Nogueira Medeiros Galvão Doutoranda em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE). Líder do grupo de pesquisa Formação de Professores, Política Educacional e Desigualdade Social (FORPED). Integrante dos grupos de pesquisa Política Educacional, Gestão e Aprendizagem (GPPEGA) e Políticas Públicas de Educação e Enfrentamento à Desigualdade Social (UFPE). E-mail: willananogueira@gmail.com

Maria Eliane Maia Sousa Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Professora da rede estadual de ensino do Ceará (SEDUC-CE). Integrante do grupo de pesquisa Política Educacional, Gestão e Aprendizagem (GPPEGA/UECE) do CNPq. E-mail: irelianemaia@gmail.com

Ana Léa Bastos Lima Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Professora da rede estadual de ensino do Ceará (SEDUC-CE). Integrante do grupo de pesquisa Política Educacional, Gestão e Aprendizagem (GPPEGA/UECE) do CNPq. E-mail: analea.bastos@uece.br

Sofia Lerche Vieira Doutora em Filosofia e História da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), com Pós-doutorado pela Universidad Nacional de Educacion a Distancia (UNED), Espanha. Professora do Programa de Pós- Graduação em Educação da Universidade Estadual do Ceará (PPGE-UECE). Pesquisadora do Centro de Desenvolvimento da Gestão Pública e de Políticas Educacionais (DGPE) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Líder do grupo de pesquisa Política Educacional, Gestão e Aprendizagem (GPPEGA/ UECE) do CNPq. E-mail: sofialerche@gmail.com

Eloisa Maia Vidal Doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professora Associada do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Vice-líder do Grupo de Pesquisa Política Educacional, Gestão e Aprendizagem (GPPEGA/UECE) do CNPq. E-mail: eloisamvidal@yahoo.com.br

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