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Revista Brasileira de Política e Administração da Educação

versión impresa ISSN 1678-166Xversión On-line ISSN 2447-4193

Revista Brasileira de Política e Administração da Educação vol.38 no.1 Goiânia  2022  Epub 27-Mar-2022

https://doi.org/10.21573/vol38n002022.113609 

ARTIGOS

Educação integral na política de ampliação da jornada escolar: perspectivas críticas em Paulo Freire

Integral education in full-time school education policy: critical perspective in Paulo Freire

Educación integral en la política de la escuela en tiempo completo: perspectivas críticas en Paulo Freire

ELISABETE FERREIRA ESTEVES CAMPOS1 
http://orcid.org/0000-0002-2023-0714

1Universidade Metodista de São Paulo Programa de Pós-Graduação em Educação São Bernardo do Campo, SP, Brasil


Resumo

Trata-se de investigação que objetivou analisar dois Programas de jornada ampliada de uma rede municipal de ensino, com base na epistemologia do ciclo de políticas. No primeiro Programa, o atendimento em oficinas culturais no contraturno revelou a fragmentação curricular. O segundo Programa reorganizou o currículo em consonância com a BNCC, de caráter liberal e credencialista. Com os fundamentos de Freire, conclui-se que tais políticas, sob influências de grupos dominantes, implicam no debate sobre o conceito de educação integral, que requer a construção de fundamentos didático-pedagógicos para uma educação crítica e transformadora, que inclua todos os estudantes.

Palavras-Chave: Educação integral; Políticas de jornada ampliada; Paulo Freire

Abstract

This article addresses an investigation to analyze two extended Programs of municipal education, based on the epistemology of the policy cycle. In the first Program, the attendance in cultural workshops indicated curricular fragmentation. The second Program extinguished the workshops, reorganizing the curriculum for the extended day, in line with BNCC, with a liberal and credential nature. With Freire´s theory, it is concluded that such polices under the influence of dominant groups, imply in the debate on the concept of integral education, which requires the construction of didactic-pedagogical foundations for a critical and emancipatory education that includes all students.

Key words: Integral education; Full-time policies; Paulo Freire

Resumen

Este artículo trata de una investigación con el objetivo de analizar dos Programas de jornada extendida de una red de educación municipal, basados en la epistemología del ciclo de políticas. En el primer Programa, la asistencia a talleres culturales después de los turnos indicó la fragmentación curricular. El segundo Programa extinguió los talleres, reorganizando el plan de estudios para el tiempo completo en línea con la BNCC, de carácter liberal y credencialista. Con la teoría de Freire se concluye que tales políticas, bajo la influencia de los grupos dominantes, implican en el debate sobre el concepto de educación integral, que requiere la construcción de fundamentos didáctico-pedagógicos para una educación integral, crítica y emancipadora que incluya a todos los estudiantes.

Palabras-clave: Educación integral; Políticas de tiempo completo; Paulo Freire

INTRODUÇÃO

Estamos vivendo um momento difícil da história, enfrentando uma terrível pandemia, com um número assustador de pessoas contaminadas e que perderam suas vidas em decorrência da COVID-19. No Brasil, o aumento da desigualdade e os impactos na economia elevam os índices de desemprego e empurram milhões de brasileiros para a pobreza (BARRUCHO, 2020), tornando a situação mais dramática. Ainda assim, a resistência às medidas sanitárias e a negação da ciência ganham espaços nas redes sociais, com mensagens muitas vezes insufladas por discursos de intolerância. Grupos reacionários encontram um ambiente propício no bojo da crise política, sanitária, econômica e social que se abateu sobre o País.

É nesse cenário que temos investigado os entraves para a formação integral de estudantes e docentes com base em conhecimentos científicos, éticos, no âmbito de uma educação humanista. São históricas as dificuldades para implementar, em nosso País, uma educação libertadora, na perspectiva de Freire (2014), que promova a consciência da responsabilidade social e política da população, para o fortalecimento de uma sociedade democrática, com justiça social.

O viés liberal de nossa sociedade capitalista fundamenta as políticas educacionais de tendência técnico-instrumental, e se expressa “no plano cultural, com sua exacerbação do individualismo, do produtivismo, do consumismo, da indústria cultural, da mercadorização até mesmo dos bens simbólicos” (SEVERINO, 2000, p. 66).

Os entraves se tornam ainda maiores com a presença de grupos reacionários que consideram a educação integral, crítica, libertadora, como um perigo a ser combatido e, com isso, lançam-se “slogans” que induzem ao “temor pela liberdade” e pela educação libertadora (FREIRE, 2005, p. 99). A liberdade, para tais grupos, é admitida quando se restringe às escolhas individuais, sem a interferência de outros.

Divergindo desse conceito individualista, Freire (2001, p. 66) considera que “a educação para a libertação, responsável em face da radicalidade do ser humano, tem como imperativo ético a desocultação da verdade”. Educação ética, política, crítica e emancipadora são valores intrínsecos a uma educação integral humanista.

Considerando que esses termos, formulados no bojo de uma educação progressista, estão inseridos, de forma genérica, nas políticas públicas, a investigação aqui apresentada teve como objetivo analisar políticas de educação integral, identificando seus propósitos e intenções em dois Programas de jornada ampliada, em escolas de ensino fundamental de uma rede municipal da Grande São Paulo.

O primeiro Programa municipal teve início em 2010, com base nas diretrizes do Programa Mais Educação (BRASIL, 2007). O segundo Programa foi instituído em 2017, conforme projeto da nova administração municipal. Pautou-se nas diretrizes do Programa Novo Mais Educação (BRASIL, 2016), do governo federal, que assumiu o poder após um conturbado processo de Impeachment Presidencial.

Assumiu-se, como fundamento metodológico, a epistemologia do ciclo de políticas formulada por Stephen Ball e sua equipe (BALL, 2001; BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016), também publicada por Mainardes (2006, 2017, 2018). Nessa abordagem, a política é gestada e desenvolvida em diferentes contextos, sendo que esta investigação focalizou especialmente o contexto da influência na elaboração da política e produção dos textos que “dão forma à política proposta e são as bases iniciais para que as políticas sejam colocadas em prática” (MAINARDES, 2018, p. 2).

A abordagem do ciclo de políticas, de acordo com os autores, demanda a adoção de um referencial teórico que dê sustentação para as análises. Dessa forma, as formulações teóricas de Freire (2000, 2001, 2005, 2014) foram assumidas como referencial, especialmente seu conceito de educação humanista, libertadora e emancipatória, pressupostos da educação integral.

Na primeira seção, estão destacados alguns aspectos das políticas de ampliação de jornada escolar em âmbito federal. Em seguida, são apresentados os fundamentos metodológicos e análise dos dois Programas referidos. Com a contribuição teórica de Freire, problematizou-se a política de educação integral, nos dois Programas, em escolas com jornada ampliada.

POLÍTICAS DE AMPLIAÇÃO DA JORNADA ESCOLAR

Para análise do contexto de influência, na abordagem do ciclo de políticas, “há necessidade de considerar a historicidade da política investigada, pois geralmente políticas similares já foram propostas antes do surgimento de uma ‘nova política’” (MAINARDES, 2018, p. 13). De fato, a política de ampliação de jornada na perspectiva da educação integral não é recente e ganhou notoriedade com as propostas de Anísio Teixeira, nas primeiras décadas do século XX.

São inegáveis suas contribuições em defesa da universalização do ensino em escolas públicas, ao reconhecer que “todos têm o direito à educação pública, e somente os que quiserem é que poderão procurar a educação privada” (TEIXEIRA, 1957, p. 99). Afirmava, ainda, o autor:

Numa sociedade como a nossa, tradicionalmente marcada de profundo espírito de classe e de privilégio, somente a escola pública será verdadeiramente democrática e somente ela poderá ter um programa de formação comum, sem preconceitos contra certas formas de trabalho essenciais à democracia (TEIXEIRA, 1957, p. 99).

Uma sólida educação comum para todas as classes, segundo Teixeira (1957), teria que ocorrer em tempo integral. Dessa forma, em sua administração no Rio de Janeiro [1931-1935], associou “escolas nucleares” a “parques escolares”, ampliando a jornada escolar para a formação científica e cultural dos estudantes (TEIXEIRA, 1957).

Como Secretário de Educação e Saúde do Estado da Bahia [1947-1951], criou os Centros de Educação Popular que, localizados na periferia da cidade, funcionariam como um núcleo de articulação do bairro.

A formação integral, humanista, laica e gratuita em escolas públicas foram princípios defendidos por Teixeira, concebendo a vinculação da educação formal com atividades educativas “enraizadas no meio local” (TEIXEIRA, 1957, p. 64), articulando a escola com outros espaços da cidade. Essa concepção de educação implicava discutir o papel do Estado na organização de um sistema público de educação.

Outrossim, Teixeira enfrentou resistências de grupos religiosos e privatistas, os quais defendiam a escola como espaço de afirmação da divisão social instituída. Manifesto da cúpula da igreja Católica, opondo-se à política de Teixeira, argumentava que “educar é obra da família e que a escola do Estado deve existir onde não pode existir a escola particular” (FÁVERO, 2000, p. 179).

Esse pensamento encontra guarida no momento atual, com a tramitação de sete projetos de lei relacionados à educação domiciliar que estão sendo analisados pela Câmara Federal (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2020), com apoio do governo e da bancada evangélica e católica no Congresso. São os mesmos grupos que desqualificam a escola pública e defendem o projeto Escola sem Partido para combater uma suposta doutrinação dos docentes, atacando o pensamento de Paulo Freire.

A educação é sempre um espaço de luta política e ideológica e, no bojo de uma “educação bancária”, permeada pelo autoritarismo (FREIRE, 2005), a defesa pela educação crítica, conscientizadora, constituiu a práxis de Freire, que, em meados do século XX, criou os Círculos de Cultura para a educação de adultos. Foi um exemplo vivo da politicidade da educação para a conscientização dos educandos sobre a invasão cultural, em uma realidade opressora e desigual, que precisa ser transformada.

Projetos educacionais propostos por Anísio Teixeira e Paulo Freire foram enterrados pela ditatura militar. Mesmo no cenário de redemocratização do País, o combate aos propósitos de um sistema educacional público para a educação integral, crítica e libertadora, manteve-se em cena.

Entre retrocessos e avanços, a educação integral, com ampliação da jornada escolar, foi retomada na administração de Leonel Brizola, no Rio de Janeiro [1983- 1987], criando-se os Centros Integrados de Educação Pública – CIEP, idealizados por Darcy Ribeiro. Ao proporcionar educação, assistência médica, alimentação, esportes e atividades culturais, a ampliação da jornada escolar foi se afirmando como estratégia de atendimento às populações empobrecidas.

Nos anos 1990, surgem como políticas de âmbito federal os Centros Integrados de Atenção à Criança e ao Adolescente – CIAC e, no governo seguinte, os Centros de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente – CAIC, sempre com propósitos compensatórios e preventivos em relação à marginalidade. Foram poucas as escolas construídas, e, por falta de investimentos, tais políticas se inviabilizaram como projeto de nação.

O conceito de educação integral com ampliação de jornada, no entanto, continuou presente nas pautas políticas, sempre permeado pelo viés assistencialista de atendimento aos mais pobres. Em 2001, o Plano Nacional de Educação indicou a “prioridade de tempo integral para as crianças das camadas sociais mais necessitadas” (BRASIL, 2001, p. 8).

Freire esteve também comprometido com os mais pobres, com os “demitidos da vida”, mas jamais assumindo uma educação assistencialista. Em sua práxis transformadora, formulou uma “pedagogia do oprimido”, promovendo uma educação que os possibilitasse compreender a humanização e desumanização como possibilidades históricas, mas só a primeira é “vocação dos homens” (FREIRE, 2005, p. 32).

Sua práxis em favor de uma educação libertadora está sistematizada em toda sua obra, para a conscientização dos educandos acerca de uma ordem social injusta, opressora e imoral.

Há uma imoralidade radical na dominação, na negação do ser humano, na violência sobre ele, que contagia qualquer prática restritiva de sua plenitude e a torna imoral também. Imoral é a dominação econômica, imoral é a dominação sexual, imoral é o racismo, imoral é a violência dos mais fortes sobre os mais fracos. Imoral é o mando das classes dominantes de uma sociedade sobre a totalidade de outra, que se torna puro objeto, com usa maior ou menor dose de conveniência (FREIRE, 2001, p. 45).

O pensamento de Freire influenciou muitos educadores “progressistas” (FREIRE, 2001), ressignificando a relação entre educação e sociedade na perspectiva de uma educação integral.

Em 2009, foi publicada a série “Mais Educação” (BRASIL, 2009), composta por três cadernos que retomam o conceito progressista de educação integral, reafirmando a relevância da articulação com o território, os saberes em rede, além da gestão intersetorial para operacionalização do Programa.

Em outro documento, intitulado “Territórios Educativos para Educação Integral” (BRASIL, 2014a, p. 18), declara-se que o Programa Mais Educação pretende “promover a socialização através da valorização do patrimônio local, provocar a curiosidade e interesse pelo mundo social, cultural e natural que os cercam e despertar relações entre diferentes grupos sociais”. Nesse Programa, a educação integral está intrinsecamente relacionada com o território, apresentando o conceito de território educativo.

No centro de suas propostas está a abertura da escola para a comunidade, estabelecendo com ela novos pactos educativos de corresponsabilização pela educação e suas crianças e jovens, num processo de territorialização da educação. Com isso, o PME [Programa Mais Educação] estabelece como um dos objetivos: a corresponsabilização de Todos pela Educação, em que a escola reconhece e ganha outros parceiros no território local e como consequência desta meta (BRASIL, 2014a, p. 8).

Com a epistemologia do ciclo de políticas (BALL, 2001; BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016), é possível considerar que tal Programa está sob influência de educadores que valorizam diferentes saberes, culturas, crenças, em estreita relação com a vida no território. Mas a lógica empresarial não foi destituída das políticas educacionais, estando imbuída no ideário do “Todos pela Educação”; influenciando na elaboração do currículo, admitindo a participação da sociedade por meio do trabalho voluntário, de modo a afetar o caráter profissional da educação escolar. A falta de investimentos necessários para a adequação estrutural das escolas leva a improvisações.

No âmbito pedagógico, com a intenção de subsidiar as equipes escolares, foram publicados 11 Cadernos Pedagógicos com atividades sugeridas para ampliação da jornada escolar. Nesse período, houve uma profusão de publicações do MEC que não foram, necessariamente, conhecidas pelos docentes. As condições objetivas de trabalho e as fragilidades formativas tornam flagrante o distanciamento entre os formuladores das políticas, os autores dos documentos e os profissionais que atuam nas escolas.

A ampliação da jornada se manteve como política pública na meta 6 do atual Plano Nacional de Educação (BRASIL, 2014b), estabelecendo a oferta de educação em tempo integral em, no mínimo, 50% das escolas públicas, de forma a atender, pelo menos, 25% dos estudantes da educação básica até 2024, o que parece uma meta bastante modesta para uma política que pretende atender a população empobrecida.

Cabe destacar que no contexto da prática, as políticas não são simplesmente implementadas, elas são reinterpretadas e ressignificadas (BALL, 2001; BALL, MAGUIRE; BRAUN, 2016) em função de diversos fatores. Na ampliação da jornada, entra em cena a forma como os administradores e grupos de educadores se posicionam diante dessa política, os fundamentos teórico-metodológicos que assumem, como lidam com possíveis limites impostos pelas condições estruturais, recursos financeiros, gestão e organização escolar.

Considerando a diversidade de fatores implicados nessa política, as redes estaduais e municipais ampliam a jornada em diferentes formatos e desenhos curriculares. Pesquisas que analisaram essa política em escolas e redes de ensino concluíram que em alguns contextos há resultados exitosos; em outros, há muitas dificuldades e obstáculos (CASTANHO; MANCINI, 2016), além de denúncias acerca da falácia dessa política (SILVA, 2017; BARBOSA; SILVA, 2017).

Em 2015, os financiadores do Programa Mais Educação avaliaram que os resultados esperados, especialmente em relação à elevação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica-IDEB, não foram alcançados (BRASIL, 2015). Com isso, em 2016, após impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, instituiu- se o Programa Novo Mais Educação (BRASIL, 2016), baseado no modelo de educação por resultados. Em 2018, o MEC estabeleceu como critério para adesão ao Programa escolas com IDEB de 2015 inferior a 4,4 e/ou 50% das famílias inscritas no Programa Bolsa Família, novamente evidenciando o caráter assistencialista do Programa, de viés neoliberal.

É a partir de tais políticas do MEC que foram analisados, nesta investigação, dois Programas de ampliação de jornada em um município da Grande São Paulo. Após apresentação de algumas informações sobre o município em questão, serão discutidos os dois Programas.

CONTEXTO E FUNDAMENTOS METODOLÓGICOS

O município cujos Programas foram analisados atende, atualmente, cerca de 80 mil estudantes da educação infantil, anos iniciais de ensino fundamental e educação de jovens e adultos, distribuídos em pouco mais de 200 escolas, incluindo as instituições conveniadas.

O foco desta investigação é a política de ampliação da jornada para os anos iniciais do ensino fundamental, que atende, aproximadamente, 50 mil estudantes de 6 a 11 anos, mas apenas uma parcela dos estudantes frequenta escolas com jornada ampliada. São habitantes de uma cidade que faz parte de um grupo de 20 com as maiores economias do País e, ainda assim, há uma parcela significativa da população ocupando núcleos favelados, evidenciando-se que o modelo capitalista não garante a igualdade social.

Acompanhando a política do governo federal, a ampliação da jornada para as crianças em situação de vulnerabilidade foi instituída por um Programa em 2010, substituído por outro modelo em 2017. Ambos os Programas declararam a intenção de elevar o IDEB.

Para a análise desses Programas, a epistemologia do ciclo de políticas formulada por Ball e equipe (2001, 2016), também publicada por Mainardes (2006, 2017, 2018), se mostrou necessária. Nessa abordagem, “o enfoque epistemológico pode ser compreendido como fio condutor que articula todos os elementos da pesquisa, ampliando sua coerência, consistência e rigorosidade” (MAINARDES, 2017 p. 4, destaque do autor).

Embora a epistemologia do ciclo de políticas aborde a análise crítica de diversos contextos, esta investigação limitou-se ao contexto de influência, “em que normalmente as políticas públicas são iniciadas e os discursos políticos são construídos”, analisando também a produção de textos decorrentes das “disputas e acordos”. No contexto da influência, “grupos de interesse disputam para influenciar as finalidades sociais da educação”, resultando no texto político (MAINARDES, 2006, p. 51-52).

Foram analisados um conjunto de documentos, tais como, o Plano Municipal de Educação, o Relatório de Monitoramento do PME e documentos relativos aos dois Programas de ampliação da jornada que normatizam e estabelecem diretrizes e orientações para as equipes escolares.

Os textos analisados contemplam o discurso da ampliação da jornada escolar na perspectiva da educação integral, com metas previstas no Plano Municipal de Educação, nos termos das diretrizes do governo federal. Os Programas foram gestados e organizados por dois governos municipais, de diferentes legendas políticas, para serem implementados pelos profissionais das escolas, os quais, no entanto, não participaram da formulação de tais políticas.

A abordagem do ciclo de políticas como método para análise de políticas educacionais não prescinde de “referencial teórico específico para fundamentar a análise da política investigada” (MAINARDES, 2018, p. 11). Dessa forma, as análises dos textos produzidos referentes aos dois Programas mencionados foram elaboradas com base nas formulações teóricas de Paulo Freire acerca da educação humanista e emancipadora. Em virtude dos limites deste artigo, serão apresentados apenas alguns destaques.

DESTAQUES SOBRE O PROGRAMA DE AMPLIAÇÃO DE JORNADA ESCOLAR - 2010

Em 2010, o programa de ampliação de jornada escolar no ensino fundamental, na referida rede municipal de ensino, atendeu a uma parcela de crianças moradoras de bairros da periferia. De acordo com as diretrizes desse primeiro Programa, as escolas com menor IDEB deveriam atender 30% dos estudantes selecionados, a partir do critério de vulnerabilidade e aproveitamento escolar.

Declarou-se como objetivo ampliar o acesso dessas crianças a diferentes manifestações culturais, por meio da participação, no contraturno, em oficinas de esporte, dança, música, skate, dentre outras, conduzidas por educadores sociais de ONGs parceiras. Algumas oficinas seriam realizadas na própria escola e outras em diferentes partes da cidade, dependendo da articulação realizada pela gestão de cada escola. Embora a relação com a Cidade estivesse limitada à ocupação de espaços para realização das oficinas, circular pela Cidade e conhecê-la melhor promove relações com as pessoas do lugar.

Argumenta-se, nos documentos analisados, o valor das oficinas para crianças moradoras de bairros da periferia, em situação de risco social, que se beneficiam do acesso à diversidade cultural. A desigualdade em nosso País tem atribuído à escola a tarefa de compensar determinadas carências de crianças, jovens e adolescentes que não têm garantidos seus direitos fundamentais no campo da saúde, habitação, cultura, lazer, e que são classificados como grupos em vulnerabilidade social. Sobre esse conceito, é importante recorrer às ponderações de Arroyo (2012, p. 40):

[...] a vulnerabilidade social a que é submetida a infância-adolescência populares passa pela precariedade dos espaços em que é forçada a viver pela desumanização dos tempos. Quando seus tempos-espaços são tão precários, são forçados a viver nos limites humanos, no limite do exercício da liberdade e das opções éticas. Mais ainda, nessa precariedade espaço-temporal, o mais vulnerável é o corpo, a vida.

Com a negação dos direitos básicos a um “justo e digno viver” (ARROYO, 2012), as escolas passam a responsabilizar-se pela diminuição das desigualdades, com Programas específicos para essas crianças e adolescentes.

A epistemologia do ciclo de políticas (MAINARDES, 2006, p. 52) considera que, “ao passo que o contexto de influência está frequentemente relacionado com interesses mais estreitos e ideologias dogmáticas, os textos políticos normalmente estão articulados com a linguagem do interesse do público mais geral”. A “ideologia dogmática”, que pretende atuar na desigualdade social por meio da educação, se articula aos interesses de classes populares, contemplando os anseios das famílias trabalhadoras, ao ampliar o tempo de permanência das crianças na escola. Com isso, não se contesta a pauta política, que assume o discurso de diminuição das desigualdades, oferecendo aos “vulneráveis” acesso à cultura e mais tempo para aprender, sem, contudo, atuar em outras áreas que promovem as desigualdades.

No contexto das escolas, tal política não garante a sensibilidade e leitura crítica de educadores, para compreender “as vidas mal vividas” (ARROYO, 2012) das crianças e adolescentes vítimas da exclusão, podendo, inclusive, reafirmar olhares preconceituosos para os ditos vulneráveis, como aqueles e aquelas cujas famílias são desestruturadas e não se esforçam para ter uma vida melhor, uma vez que esse é o discurso da teoria neoliberal que tem como característica a responsabilização individual.

No documento analisado, justificam-se as atividades culturais no contraturno com o argumento de que a ampliação cultural não despreza a educação formal no turno regular, podendo levar à compreensão de que a educação integral que tem a cultura como um de seus pilares não é inerente à educação formal, mantendo a confusão entre educação integral e educação em tempo integral.

Com isso, há implicações para o “contexto da prática”, onde a política “produz efeitos e consequências” (MAINARDES, 2006, p. 53). Indica-se a educação formal para todos os estudantes no turno regular e outra, que não é formal, assumida pelos educadores sociais e destinada aos “vulneráveis”, selecionados segundo os critérios da gestão escolar.

Não há dúvidas de que os estudantes se beneficiam de ações pedagógicas que propiciem ampliação de seus conhecimentos, do repertório científico e cultural, mas, ressaltamos, essa política não resolverá as históricas desigualdades que vêm se ampliando em nosso País, mesmo porque não há compromisso político com mudanças. A ideologia de grupos dominantes que influenciam as políticas educacionais pretende adaptação e não mudança.

A partir da análise documental, conclui-se que no “contexto da prática” (BALL, 2001), os gestores da referida rede municipal encontram obstáculos na articulação entre os docentes do turno regular e dos educadores sociais, em função da impossibilidade do trabalho coletivo decorrente das limitações impostas pela carga horária de trabalho dos dois grupos. Com isso, cabe aos gestores encontrarem estratégias para constituir o trabalho coletivo, que pode se restringir apenas à reunião entre coordenadores de ambos os grupos, comprometendo, portanto, a ampla participação na elaboração do Projeto Político-Pedagógico.

Em decorrência, docentes do turno regular podem ser levados a desvalorizar as oficinas do contraturno por compreendê-las como forma de ocupar o tempo das crianças com atividades lúdicas, fortalecendo a fragmentação curricular.

Destacam-se, novamente, as considerações de Arroyo (2012), de que é preciso tratar a questão com profissionalismo, de modo que a ampliação da jornada não seja deixada “para turnos extras, para tempos extras, para educadores-monitores extras, mas será uma exigência ética e profissional de todo docente-educador em todo tempo-espaço profissional” (ARROYO, 2012, p. 41).

É pertinente a abordagem profissional mencionada, mas é preciso questionar sobre a possibilidade de os docentes construírem outros olhares para as crianças, os currículos, a organização escolar e a própria prática, uma vez que “o discurso ideológico nos ameaça de anestesiar a mente, de confundir a curiosidade, de distorcer a percepção dos fatos, das coisas, dos acontecimentos” (FREIRE, 2014, p. 129).

Como afirmam Ball, Maguire e Braun (2016, p. 201), “a escola não é nem uma entidade simples nem coerente”. Na escola convivem “grupos diferentes e sobrepostos de pessoas, de artefatos e de práticas”. Os profissionais têm diferentes “histórias discursivas, visões epistemológicas de mundo e compromissos profissionais”.

Esta pesquisa não adentrou às escolas para analisar o contexto da prática. Mas é inegável que as oficinas conduzidas pelos educadores sociais certamente promovem o acesso das crianças a experiências culturais que influenciam na construção de sua identidade, proporcionando outras relações com a escola e com o saber.

O fato de haver uma política que valoriza o acesso à cultura com a contribuição de educadores especialistas pode ter constituído um ambiente favorável para a inserção de equipes escolares, em um movimento de compromisso com a qualidade social da educação, mas essa análise não fez parte da investigação. O que destacamos, é que tal política, não obstante beneficie uma parcela das crianças, não garante a educação integral como projeto coletivo dessa rede de ensino. Sem promover uma leitura crítica da realidade, os estudantes não têm “uma visão aprofundada da produção das injustiças sociais” que os atinge (ARROYO, 2020, p. 785) e os colocam na condição de “vulneráveis”.

DESTAQUES SOBRE O PROGRAMA DE AMPLIAÇÃO DE JORNADA ESCOLAR - 2017

Com a mudança do governo municipal, em 2017 foi instituído um novo Programa, que ampliou a jornada em 9 horas diárias, com aulas assumidas pelos próprios docentes. A seleção das escolas não se limitou ao IDEB, considerando- se, também, a disponibilidade de espaço físico e demanda local. Das 180 escolas municipais que compunham a rede naquele momento – excluindo as conveniadas – havia 15 contempladas com o Programa, sendo 7 de ensino fundamental. Em 2020, eram 26 escolas contempladas, sendo 12 de ensino fundamental, indicando uma ampliação gradativa.

Nesse Programa, a educação integral é concebida como forma de organizar os conteúdos visando à integralidade do conhecimento, por meio de uma nova matriz curricular com uma carga horária de 45 horas semanais, composta por uma base comum de 25 horas, parte diversificada de 15 horas e 5 horas destinadas à alimentação. A descontinuidade do Programa anterior levou a uma total reformulação da matriz curricular, com horário ampliado para todas as crianças da mesma escola e não apenas àquelas indicadas pela gestão escolar, como ocorria anteriormente. Mas alcançou um número bastante restrito de escolas.

As aulas são assumidas pelos docentes polivalentes dos anos iniciais e docentes especialistas em Arte e Educação Física, do quadro de profissionais da rede, sendo que as atividades oferecidas pelo Programa anterior deixaram de ocorrer, o que pode ter significado perda para as crianças que tinham acesso a diferentes práticas culturais.

Mesmo atribuindo aos docentes a escolha de temas na parte diversificada, há, no documento orientador que foi analisado, a indicação de eixos para desenvolvimento de projetos e atividades permanentes. Dentre os eixos indicados, estão o empreendedorismo, com uma abordagem de aprendizagem criativa; a educação financeira para o consumo consciente e ambientalmente sustentável, e uma língua estrangeira para atender à necessidade do mercado, aumentando-se as chances de inserção profissional, o que pode indicar uma educação credencialista (ARROYO, 2000).

Considerando que a investigação se limitou à análise documental, não há dados para identificar os temas eleitos pelas escolas em seu Projeto Político- Pedagógico, mas é possível considerarmos que, sem a perspectiva crítica, os temas podem se limitar ao desenvolvimento de competências individuais.

Apesar do discurso no referido Programa em relação à educação integral, o que se identifica é uma adequação às competências, preconizadas pela Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017), o que pode justificar mais tempo de escola para os estudantes das classes populares tornarem-se economicamente produtivos, responsabilizando-se por seu sucesso ou fracasso na escola e na vida. Com isso, o protagonismo infantil pode significar responsabilização individual pelos resultados em uma tendência de educação liberal, na qual “os princípios da liberdade, igualdade, democracia e solidariedade humana são subsumidos pelos valores do individualismo, da competição, da busca do lucro e acumulação” (SAVIANI, 2014, p. 93).

Nesse paradigma, “quanto melhor a educação trabalhar os indivíduos, quanto melhor fizer seu coração um coração sadio, amoroso, tanto mais o indivíduo, cheio de boniteza, fará o mundo feio virar bonito” e, dessa forma, ficam “intocadas as estruturas sociais” (FREIRE, 2001, p. 19), concebendo a educação como espaço de adaptação a um ambiente que se distancia, cada vez mais, da educação integral crítica e libertadora.

É nesse sentido que se torna necessário repensar e debater sobre as políticas que introduzem um conceito de educação integral imbuída em Programas de ampliação de jornada para os vulneráveis. É uma “forma autoritária de apostar nos pacotes e não na formação científica, pedagógica, política do educador” (FREIRE, 2001, p. 37), de tal forma que sejam apenas receptores de tais Programas, que mudam na medida em que mudam seus formuladores.

As descontinuidades das políticas, sob influências de grupos dominantes, em diferentes administrações públicas, têm dificultado um amplo debate sobre o conceito e as políticas de educação integral, que não acontece apenas com a ampliação da jornada escolar, mas requer dialogar sobre suas finalidades, construindo-se fundamentos didático-pedagógicos para uma educação crítica e transformadora, que inclua todas as crianças, jovens e adolescentes.

Importante destacar, nesta análise, que a relação com a Cidade, condição para a educação integral de todos os estudantes, não foi enfatizada em nenhum dos dois Programas, abrindo-se uma lacuna no currículo que não pode prescindir da compreensão da Cidade enquanto parte integrante da educação integral.

Conteúdos curriculares apartados da Cidade e de um olhar ampliado para a realidade sucumbem a um modelo de educação acrítica, de adaptação, não problematizando o mundo, para originar “visões ou pontos de vista sobre ele”, com suas “manifestações vivas da nossa cultura” (FREIRE, 2001, p. 14), proporcionando o conhecimento sobre a vida cotidiana.

Nessa modelo de adaptação o ensino da língua estrangeira, presente no segundo Programa, é justificado pela necessidade do mercado. Entretanto, se abordado na perspectiva da educação integral emancipadora, pode adquirir outros significados. Superando os limites de preparar para a inserção profissional, o ensino de outras línguas pode contribuir para aproximar as crianças de outras culturas, outras formas de escrita, de expressão e comunicação e, certamente, a educação, nesses termos, prepararia melhor para a participação social, no âmbito da cultura, do trabalho, da economia e da política.

O DIÁLOGO COM O TERRITÓRIO: TECENDO POSSIBILIDADES

Concebendo a escola pública como lócus de educação democrática, a educação integral, que abarca a dimensão cognitiva, física, afetiva, ética, estética, política, social e cultural, poderá alcançar melhor qualidade com a ampliação da jornada escolar para todos os estudantes. No entanto, ainda que ocorra em período parcial, a relação com a Cidade, nesse processo educativo, é princípio fundamental. Como destaca Freire (2001, p. 13):

Enquanto educadora, a Cidade é também educanda. Muito de sua tarefa educativa implica a nossa posição política e, obviamente, a maneira como exerçamos o poder na Cidade e o sonho ou a utopia de que embebamos a política, a serviço de que e de quem a fazemos. A política dos gastos públicos, a política cultural e educacional, a política de saúde, a dos transportes, a do lazer. A própria política em torno de como sublinhar este ou aquele conjunto de memórias da Cidade através de cuja só existência a Cidade exerce seu papel educativo. Até aí, a decisão política nossa pode interferir.

A relação com a Cidade foi uma das categorias de análise nessa investigação, que levou a tecer algumas considerações sobre o currículo em diálogo com a realidade a partir do pensamento de Paulo Freire.

Conhecer a diversidade cultural, os dilemas e problemas enfrentados pelos moradores da Cidade desafia os estudantes para pesquisar, observar, analisar, dialogar sobre “a maneira como a Cidade é tratada por seus habitantes, por seus governantes” (FREIRE, 2001, p. 14). Ao ensinar os diversos conteúdos no campo da ciência, das artes, da economia, da tecnologia e demais áreas, de forma articulada com a realidade, a educação libertadora ensina a pensar criticamente e estimula a “curiosidade epistemológica” (FREIRE, 2005; 2014).

A problematização da realidade, recorrendo a conteúdos das diferentes áreas curriculares, permite dialogar sobre a precariedade estrutural dos núcleos favelados, as desigualdades, os preconceitos, o racismo, a violência e a falta de políticas públicas que melhorem as condições de vida sustentável para toda a população.

A educação integral requer a elaboração de currículos visando à compreensão da forma como tem sido produzida a vida no planeta; a destruição provocada pelos constantes ataques ao meio ambiente, com real ameaça para a evolução da humanidade, especialmente neste momento em que enfrentamos uma crise sanitária e ambiental. Ainda que o currículo esteja voltado aos anos iniciais, é possível abordar tais temas por meio de histórias, contos literários, filmes, músicas, desenhos, fantoches, textos informativos, notícias, propagandas, dentre outros gêneros que incentivem as crianças a dialogar e refletir desde cedo, relacionando tais conteúdos com a vida na Cidade. Nessa proposta, os conteúdos das diferentes áreas curriculares estarão integrados, requerendo um trabalho coletivo da equipe escolar, que considere a cultura, os saberes e as experiências cotidianas dos estudantes. Cabe novamente recorrer a Freire (2005, p. 77), quando afirma:

A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens como seres “vazios” a quem o mundo “encha” de conteúdos; não pode basear-se numa consciência intencionada ao mundo. Não pode ser a do depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens em suas relações com o mundo.

Dessa forma, a problematização “das relações com o mundo”, elegendo a “dialogicidade” como metodologia (FREIRE, 2005), torna-se imprescindível na educação integral crítica-transformadora, seja em escolas com jornada parcial ou ampliada.

O trabalho coletivo é pressuposto nesse processo educativo, para que a equipe escolar, em contínuo processo formativo teoricamente fundamentado, dialogue sobre as finalidades da educação, assumindo princípios humanistas, solidários, para uma educação comprometida com o cuidado e o respeito pela integridade da vida, com responsabilidade compartilhada para a construção e fortalecimento de uma educação democrática no contexto de uma sociedade global mais justa e sustentável.

CONCLUSÕES

Estados e municípios são convocados a implementar políticas elaboradas em âmbito federal sob a influência da ideologia de grupos dominantes, que concebem a educação na perspectiva da formação técnica e moralista, para adaptação à sociedade desigual e excludente. Há clara adesão aos Programas que propõem o assistencialismo aos mais pobres, mantendo intocadas as estruturas sociais em uma sociedade capitalista fundamentada no neoliberalismo. A jornada ampliada almeja atender aos “vulneráveis”, sem, necessariamente, considerar que são vítimas de uma organização histórico-social, cultural, política e econômica, que os mantém em situação de vida indigna, na condição de excluídos.

No primeiro Programa analisado, as crianças classificadas em situação de vulnerabilidade eram contempladas com oficinas culturais no contraturno escolar, assumidas por educadores sociais. Há aspectos positivos em relação ao acesso dessas crianças à cultura, mas o risco da fragmentação curricular tornou-se evidente, mesmo porque não foram atendidas todas as crianças das escolas selecionadas. A relação com a Cidade, embora tenha se limitado à ocupação de espaços para realização de oficinas é, de alguma forma, favorecedora da interação dos estudantes com outros contextos.

O segundo Programa instituiu a jornada ampliada para um grupo de escolas contemplando a totalidade das crianças de cada instituição selecionada, com aulas assumidas pelos próprios docentes. Nesse modelo, as oficinas culturais foram extintas e o currículo alinhou-se à Base Nacional Comum Curricular que declara o desenvolvimento de competências, conferindo à educação contornos liberais, visando ao credencialismo (ARROYO, 2000) e responsabilizando estudantes e equipes escolares pelos resultados.

A descontinuidade das políticas tem sido frequente no cenário educacional, interferindo no Projeto Político-Pedagógico das escolas, cujas comunidades escolares têm sido consideradas destinatárias das políticas elaboradas em instâncias superiores, dificultado um amplo debate sobre a educação integral, que não acontece apenas com a ampliação da jornada escolar, mas requer dialogar sobre suas finalidades, construindo-se fundamentos didático-pedagógicos para uma educação crítica e transformadora que inclua todas as crianças, jovens e adolescentes.

No entanto, o conceito progressista de educação integral, como formação global nos aspectos cognitivos, afetivos, sociais e culturais, que também envolvem a criatividade, a imaginação, a solidariedade, a ética, estética, ou seja, as dimensões da formação humana em toda a sua integralidade, vai sendo cooptado e alterado quando se assumem os princípios do liberalismo e da suposta neutralidade política no campo da educação. Com isso, a educação pública vai sendo desvalorizada, justificando privatizações e uma gestão no modelo empresarial para alcançar eficiência, ampliando a jornada para os estudantes da periferia para que obtenham melhores resultados, responsabilizando-se por seus fracassos.

Em ambos os Programas, a dissociação entre conteúdos escolares e análises críticas da realidade fragiliza a educação crítica e libertadora, na perspectiva freireana, fazendo avançar o discurso da neutralidade da educação.

Superar essa ideologia significa reconhecer que somos condicionados, mas não determinados, compreendendo que a “História é tempo de possibilidade e não de determinismo”, que o “futuro é problemático e não inexorável” (FREIRE, 2000, p. 113). É nesse sentido que se torna necessário repensar a educação integral a partir do contexto de cada escola, reinterpretando-se as políticas no sentido de torná- las objeto de análise crítica e de problematização, por parte dos profissionais da educação.

Como é possível promover uma educação integral com políticas de Estado que mantêm suas “práticas históricas de administrar o Outro” (ARROYO, 2020, p. 770), convocando a escola para implementar diretrizes gestadas em instâncias superiores?

É uma questão central a ser analisada pelas equipes escolares comprometidas com a educação integral, crítica e libertadora.

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Recebido: 30 de Abril de 2021; Aceito: 01 de Novembro de 2021

Elisabete Ferreira Esteves Campos

Doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP). Docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação, stricto sensu, da Universidade Metodista de São Paulo. Líder do Grupo de Pesquisa Políticas de Gestão Educacional e de Formação dos Profissionais da Educação. Líder do Grupo de Estudos Paulo Freire. E-mail: betecampos@terra.com.br; elisabete.campos@metodista.br

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