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Revista Brasileira de Política e Administração da Educação

versión impresa ISSN 1678-166Xversión On-line ISSN 2447-4193

Revista Brasileira de Política e Administração da Educação vol.38 no.1 Goiânia  2022  Epub 27-Mar-2022

https://doi.org/10.21573/vol38n12022.114107 

ARTIGOS

A regressividade democrática da BNCC

The democratic regressiveness of BNCC

La regresión democrática de la BNCC

ITAMAR MENDES DA SILVAS1 
http://orcid.org/0000-0003-2097-8754

VALTER MARTINS GIOVEDI2 
http://orcid.org/0000-0002-3277-2924

1Universidade Federal do Espírito Santo. Programa de Pós Graduação em Políticas, Educação, Formação e Sociedade Grupo de pesquisa Gestão, Trabalho e Avaliação Educacional. Espírito Santo, ES, Brasil

2Universidade Federal do Espírito Santo. Programas de extensão de formação continuada para professores/as de redes públicas. Grupo de Estudos e Pesquisas Paulo Freire. Espírito Santo, ES, Brasil


Resumo

Este artigo consiste em análise documental que evidencia o desrespeito à Constituição Federal e à LDBEN/96 efetivado na BNCC (Base Nacional Comum Curricular). Afirma-se que a BNCC, como documento de caráter normativo, impõe uma única concepção pedagógica e curricular: a Pedagogia e o Currículo por Competências. Ao fazê-lo, desrespeita os princípios constitucionais da pluralidade de concepções pedagógicas, da liberdade de ensinar e aprender e o da autonomia das escolas na construção de suas propostas pedagógicas.

Palavras-Chave: BNCC; liberdade de ensino; Currículo; Competências; democracia

Abstract

This article consists of documentary analysis that highlights the disrespect to the Federal Constitution and to LDBEN/96 (Brazilian Educational Laws and Guidelines) carried out in the BNCC (National Common Core Curriculum). It is stated that the BNCC, as a normative document, imposes a single pedagogical and curriculum concept: pedagogy of competencies. In doing so, it disrespects the constitutional principles of the plurality of pedagogical concepts, the freedom to teach and learn, and the autonomy of schools in the construction of their pedagogical proposals.

Key words: BNCC; Teaching freedom; Curriculum; Competencies; Democracy

Resumen

El trabajo consiste en un análisis documental que muestra la falta de respeto a la Constitución Federal y a la LDBEN/96 efectuada en la BNCC (Base Nacional Común Curricular). Se afirma que la BNCC, como documento de carácter normativo, impone una concepción pedagógica y curricular única: la Pedagogía y el Currículo por Competencias. Al realizarlo, la falta el respeto a los principios constitucionales de la pluralidad de concepciones pedagógicas, de la libertad de enseñar y aprender y de la autonomía de las escuelas en la construcción de sus propuestas pedagógicas.

Palabras-clave: BNCC; libertad de enseñanza; Currículo; Competencias; democracia

INTRODUÇÃO

É preciso e até urgente que a escola vá se tornando em um espaço escolar acolhedor e multiplicador de certos gostos democráticos como o de ouvir os outros, não por puro favor, mas por dever, o de respeitá-los, o da tolerância, o do acatamento às decisões tomadas pela maioria a que não falte, contudo, o direito de quem diverge de exprimir sua contrariedade. (FREIRE, 1995, p. 91).

Este artigo tem como objeto de estudo a BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e, como objetivo, analisar o documento com vistas a perscrutar a observância dos princípios da pluralidade de concepções pedagógicas, da liberdade de ensinar e aprender e da autonomia das escolas na construção de suas propostas pedagógicas, consagrados na Constituição Federal de 1988 e na LDBEN/96. Trabalhamos com a hipótese de que a pretensão de legalidade da BNCC não se confirma. Visando desenvolver essa ideia, organizamos nossa argumentação em seis momentos.

No primeiro, momento buscamos resgatar conceitos básicos implicados na ideia de educação democrática, em especial no que concerne ao currículo. No segundo, buscamos demonstrar como os âmbitos da Pedagogia e do Currículo se inter-relacionam e formam uma unidade indissociável, de tal modo que toda prescrição curricular é inevitavelmente uma prescrição pedagógica. No terceiro, resgatamos o texto constitucional quando trata de princípios da educação brasileira e se manifesta sobre o currículo. No quarto momento, confrontamos a interpretação que na BNCC se faz do arcabouço constitucional e legal com o declarado tanto na Constituição de 1988, quanto na LDBEN de 1996. Buscamos evidenciar, assim, que o documento da BNCC expressa uma “interpretação criativa”, por meio de uma frágil e enviesada apropriação da legislação educacional. No quinto momento, demonstramos o núcleo mesmo da nossa tese e as consequências danosas que a introdução de um documento curricular inconstitucional promove sobre o caráter democrático da educação. Por fim, no último momento, retomamos a ideia de educação democrática que anunciamos no início do texto e concluímos com a constatação de que efetivamente a BNCC é fomentadora de um processo de regressividade democrática na educação brasileira.

Para iniciar o diálogo é importante demarcar que a educação se constitui em processo de humanização que ocorre no coletivo e em sociedade. Nele são observados princípios e práticas de sociabilidade oriundas da experiência sócio- histórica acumulada que forma a cultura, ou seja, os modos de viver, sentir, crer, acessar riquezas e benefícios gerados coletivamente. Em sociedades democráticas, constatam-se espaços para o debate e a diversidade de pensamento e de práticas sociais, mesmo que coloquem em xeque o estabelecido e advoguem a mudança.

Noutras palavras, a sociedade é mais democrática quanto mais aberta e inclusiva for e a educação será mais democrática quando praticada em contextos mais democráticos. É a coerência entre teoria e prática a implicar tanto a educação quanto a sociedade que se pretende democrática, conforme afirma Freire (1995).

Entretanto, o Brasil se constituiu e continua a fazê-lo em meio a um histórico de exclusão da maioria do acesso às riquezas produzidas com a colaboração de todos/as. A sociedade brasileira ainda não pode ser considerada como efetivamente democrática, pois democracia não se coaduna com exclusão. Nesse sentido, também a história da educação brasileira é a da exclusão dos pobres dos bancos escolares. Apesar disso, existiu expressivo movimento social de luta pelo direito a educação e, paulatinamente, novos estratos sociais vão acessando os bancos escolares, mas somente neste século XXI é possível falar em educação disponível para todos/as.

As lutas pelo direito à educação têm histórico de conquistas em que o povo foi exigindo espaços e a classe dominante encastelada no poder do Estado sendo obrigada a providenciar as condições desse acesso. Mas como a chegada dos pobres à escola não se fez sem luta, também não se fez sem reação da classe dominante, dada, entre outros aspectos, pelo descuido com a qualidade da educação ofertada aos pobres. A cada momento de expansão de oferta culminando na chegada de novos estratos sociais à escola correspondeu movimento de questionamento acerca dos fins e meios da educação bem como o papel social da escola. Assim, a cada novo ciclo se tem um movimento de estruturação e/ou reestruturação curricular, vez que este se caracteriza como o centro das decisões e ações sobre o ensino, ou seja, nele se inscrevem respostas, no mínimo, às seguintes indagações: o que e quanto ensinar? a quem, quando, como, para quê?

Esse debate em torno de princípios e objetivos da educação passa por decisões que implicam não apenas mestres e aprendizes, mas o futuro de toda a sociedade. E, as decisões tomadas se fazem no contexto sócio-histórico e nem sempre representam o consenso, mas os entendimentos da maioria. Ou seja, a organização do currículo não se constitui sem disputas entre concepções e projetos tanto para a educação das novas gerações como para a organização da própria sociedade. Essa luta pelo poder de decidir os rumos da distribuição do conhecimento é, também, a luta por decidir quem pode e até quando pode estudar.

O currículo, então, se forja nesse contexto e está presente desde o surgimento da escola como lugar da educação formalizada. Dito doutra forma, a trajetória de organização e construção de currículo se faz imbricada com a própria história da escolarização. No caso brasileiro se pode afirmar que dos currículos replicados dos colégios portugueses, especialmente o de Coimbra, dos primeiros anos da escolarização, se passa a currículos inspirados no modelo francês e, posteriormente, estadunidense denotando certa dependência cultural de países tidos como mais desenvolvidos.

Hoje, mesmo considerando as influências externas na Base Nacional Comum Curricular – BNCC, não se trata mais de “se inspirar” no modelo de um só país, mas de acolher as visões e ditames do modo de produção capitalista e sua lógica neoliberal (LAVAL, 2004) realizando reformas que instituem avaliações, rankings, vouchers, segundo “recomendações” de agências multilaterais (RAVITCH, 2011). São as propostas da Unesco, do Banco Mundial, da OCDE etc. que se procura seguir, mesmo que não ajudem a alterar as atuais condições de “partilha” do conhecimento que, em grande medida, determinam nossa posição “bem-comportada” de país dependente produtor de commodities. Quanto a isso Freire nos impele a nos contrapor “à malvadez neoliberal, ao cinismo de sua ideologia fatalista” (FREIRE, 1996, p. 10).

Escola em país desenvolvido, socialmente justo e soberano precisa, necessariamente, ser pública, instrumento da democracia e da construção de democratas para uma sociedade cada vez mais democrática (TEIXEIRA, 1936). A democracia se faz ao praticá-la. A luta pela democracia passa pela democratização da sociedade, da educação em geral e, especialmente, do currículo que se constitui efetivamente na escola.

O acúmulo das lutas sociais fez inscrever na Constituição de 1988 um conjunto de princípios universais caros à humanização do ser humano, conforme defende Paulo Freire (1969), patrono da educação nacional1. Dentre eles está o pluralismo de ideias e concepções pedagógicas que nega a adoção de uma única pedagogia. Ou seja, a democracia na escola, determinada pela Constituição, repercute no currículo, impedindo que seja único e/ou que se adote uma única perspectiva pedagógica.

Democratizar o currículo não pode se confundir com torná-lo igual para todos em tudo: início, meio e fim. Pontos de partida e percursos diferentes podem e devem levar a um fim comum: a humanização necessária à convivência em sociedade. Ou, conforme o Artigo 205 da CF/1988: “[...] pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. (BRASIL, 1988).

Entretanto, tais objetivos da educação estabelecidos pela Constituição se materializam em contextos sócio-históricos diferentes, o que produz currículos diferentes, embora capazes de produzir os mesmos efeitos: preparar as novas gerações para a vida em sociedade. Pois, o que se ensina e aprende tem a ver diretamente com as experiências sócio-históricas das sociedades, dos coletivos comunitários, dos grupos familiares e dos indivíduos, com o processo pelo qual nos tornamos mais e mais humanos.

Assim, como ideia inicial, queremos afirmar que prescrever currículo tornando-o único, significa desconsiderar o estabelecido na Constituição Federal: a liberdade de ensino, de ideias e de concepções pedagógicas. A BNCC atenta contra a democracia e a Constituição ao adotar uma pedagogia específica, a chamada pedagogia das competências.

PEDAGOGIA E CURRÍCULO

O currículo se constitui quando é concebido e organizado como documento, mas se completa quando as decisões tomadas acerca do que, do quando, do como, do a quem ensinar etc. são efetivadas na prática, ou seja, o currículo ideado precisa ser transformado em currículo praticado. E, quando isso acontece são explicitados não somente conteúdos, mas também princípios, objetivos, métodos e técnicas, ou seja, a prática curricular expressa uma pedagogia. Pois, na apreensão mais aceita o termo Pedagogia é caraterizado como conjunto de “doutrinas, princípios e métodos” (FERREIRA, 2004, p. 1517) destinados a ensinar e a instruir. O termo envolve ainda outros elementos organizadores e constituintes do ensino que são objetivos, estratégias e técnicas. Tais afirmações aportam elementos e argumentos que podem colocar em xeque a legalidade da BNCC ao adotar uma concepção pedagógica: a pedagogia das competências.

Para fundamentar as afirmações feitas recorreremos à literatura especializada em que se encontram várias concepções e definições de currículo que se complementam e/ou concordam em aspectos importantes. O currículo é apresentado como organizador do percurso educacional ao prever situações de aprendizagem propiciadas ao aprendiz (FORQUIN,1993). Este requer a definição do conteúdo e das formas de desenvolvê-lo didaticamente (SAVIANI, 2010), ou, dito de outra forma, é necessário explicitar como colocar as decisões em prática, o que expressa uma pedagogia. Assim, currículo, didática e pedagogia são faces indissociáveis do processo de ensino que se inicia na definição de princípios, objetivos e finalidades e vai até a efetivação nas relações de sala de aula (LIBÂNEO; ALVES, 2012, p. 24-25).

Outras perspectivas, sem se afastarem das primeiras, caracterizam o currículo como seleção cultural e projeto seletivo de cultura (SACRISTAN, 2000) que envolve também os “horários, a disciplina e as tarefas diárias” (FREIRE; MACEDO, 1994, p. 70). Ou, como diz Pacheco (2001, p. 20):

[...] o currículo é uma prática pedagógica que resulta da interação e confluência de várias estruturas (políticas, administrativas, econômicas, culturais, sociais, escolares…) na base das quais existem interesses concretos e responsabilidades compartilhadas.

O currículo se consolida no interior da escola e quando o ideado é materializado pela ação dos sujeitos do processo: estudantes, educadores/as, comunidade escolar e local, órgãos do sistema educacional etc. O currículo não pode se fazer apartado da prática dos sujeitos e, especificamente, a de natureza pedagógica que é responsabilidade docente.

Dessa forma, é papel do professor organizar o programa formativo materializando-o no dia a dia da escola e, especificamente, da sala de aula. Ou seja, o papel do/a professor/a é aqui de intelectual (GIROUX, 1997) e não de quem apenas executa, mas une com seu fazer pedagógico teoria e prática, projeto e execução, conteúdo sistematizado, como legado humano, e a realidade concreta no contexto e condições disponíveis no momento do ensinar e do aprender.

Nas decisões que compõem o currículo se podem encontrar as opções políticas, tanto prevalentes no sistema que constrói normas curriculares por meio de leis, diretrizes e outros documentos, quanto as do/a professor/a que dá, por assim dizer, a formatação final ao projeto curricular expresso no plano de curso, de ensino etc. e na execução curricular que se faz na relação com os sujeitos já referidos. Explicitar seu ponto de vista é decisão ética imperativa ao trabalho docente no processo de compor e recompor o currículo, conforme defende Paulo Freire em “Pedagogia da Autonomia”: “[...] meu ponto de vista é o dos ‘condenados da terra’, o dos excluídos.”. (FREIRE, 1996, p. 16). Essa opção ética em favor dos oprimidos se constitui não em um “desamor” aos que possuem melhores condições de vida, aos que não experienciam os infortúnios da pobreza, mas uma aposta de que a desigualdade é um desvio ético a ser superado e a escola, ao organizar seu currículo democrática e coletivamente, contribui nesse processo. É o aspecto ético- político a prevalecer sobre o técnico, sem negá-lo, na educação libertadora proposta por Freire (1980) que se efetiva na vivência radical da democracia na escola (LIMA, 2000) quando afirma o direito dos oprimidos ao conhecimento:

Não se permite a dúvida em torno do direito, de um lado, que os meninos e as meninas do povo têm de saber a mesma matemática, a mesma física, a mesma biologia que os meninos e as meninas das “zonas felizes” da cidade aprendem, mas, de outro, jamais aceita que o ensino de não importa qual conteúdo possa dar-se alheado da análise crítica de como funciona a sociedade. (FREIRE, 2000, p. 44).

Assim, deve-se buscar as significações éticas e políticas dos conteúdos bem como explicitar fundamentos e condições de produção e apropriação do conhecimento. Nesse sentido, afirma uma pedagogia que admite e promove a capacidade e o poder dos oprimidos que se constituindo sujeitos têm “o direito de saber melhor o que já sabem, ao lado de outro direito, o de participar, de algum modo, da produção do saber ainda não existente” (FREIRE, 2006, p. 111). Ao questionar a normatividade universalizadora do currículo indica também uma perspectiva pedagógica criticando a subordinação do saber popular, de senso comum, ao saber especializado, pois a prescrição não pode se configurar como antidemocrática afrontando a liberdade de ideias e concepções pedagógicas e curriculares significando “[...] imposição da opção de uma consciência a outra.” (FREIRE, 1980, p. 34). É neste sentido que o autor reforça sua opção ética e política de profundo respeito ao povo, aos seus saberes e à sua capacidade ao propor que este deve ser chamado à escola:

[...] para participar coletivamente da construção de um saber, que vai além do saber de pura experiência feito, que leve em conta as necessidades e o torne instrumento de luta, possibilitando-lhe transformar-se em sujeito de sua história. (PMSP-SME, 1989, p. 8).

A construção curricular realizada segundo esses princípios freireanos e procedimentos indicados nada tem a ver com o estabelecimento de uma Base Nacional Comum que seja Curricular, uma BNCC. Pois, o currículo se faz e refaz nas relações entre o global e o local por sujeitos de variados lugares tanto na estrutura do poder do Estado quanto da escola e da comunidade, em processo de “governação democrática” da escola (LIMA, 2000). Esse processo, advogamos, não expressa apenas o currículo, mas também uma determinada pedagogia e, assim, definir currículo a partir do Conselho Nacional de Educação – CNE – e do Ministério da Educação – MEC – atenta não apenas contra a Constituição, mas contra a própria democracia.

PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS QUE INCIDEM SOBRE A PEDAGOGIA E O CURRÍCULO

A Constituição Federal de 1988 traz importantes demarcações em relação aos temas da pedagogia (Art. 206) e do currículo (Art. 210) que evidenciam opção pela democracia e compromisso com uma educação democrática, conforme vimos defendendo.

No que respeita à Pedagogia encontram-se no artigo 206 dentre os princípios fundamentais ao ensino estabelecidos, dois que a ela se referem. Esses evidenciam a liberdade no ensino e o “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas”:

  1. liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;

  2. pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino.

Tal enunciação repercute diretamente sobre o trabalho pedagógico a ser realizado nas escolas de todo o país. E esse trabalho deve ser regido pela liberdade das escolas e, consequentemente, dos sujeitos que a compõem, decidirem sobre o ensino propriamente dito. Ou seja, de decidirem sobre como, o que, quando e por que ensinar isto ou aquilo, desta ou daquela maneira. Trata-se de um princípio fundamental em sociedades democráticas, pois garante o respeito pelas múltiplas formas de conceber o processo educativo, respeitados, é claro, os princípios e garantias fundamentais e os direitos individuais e coletivos também consagrados na Constituição nos seus artigos 5º e 6º.

Na seção anterior buscamos evidenciar que as concepções pedagógicas são perspectivas que interpretam e propõem caminhos teóricos e práticos para o processo educativo. Concepções pedagógicas distintas trazem diferentes proposições sobre: o que ensinar; para que ensinar; como organizar os espaços e tempos de ensino; como avaliar o processo; quais conhecimentos priorizar; quais critérios utilizar para selecionar os conhecimentos; como garantir a participação da comunidade na escola; como tratar as relações humanas dentro da escola; como organizar os agrupamentos de estudantes; etc.

Dessa forma, reafirmamos que concepções pedagógicas carregam concepções curriculares e concepções curriculares contém concepções pedagógicas. E, no contexto escolar toda ação/decisão pedagógica é curricular e toda ação/ decisão curricular é, também, pedagógica. No contexto concreto da escola, no seu fazer cotidiano, não se verificam fronteiras, mas é o processo do aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento que tem lugar como expressão de liberdade criativa dos sujeitos agentes envolvidos na composição que se faz coletivamente do currículo e da pedagogia. Enfim, torna-se evidente que o pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, prescrito pela Constituição, é também pluralismo de ideias e concepções curriculares.

Assim, a definição de “conteúdos mínimos” para orientar o trabalho de instituições de ensino e, especialmente, de docentes, prescrita no artigo 210 deve ser efetivada comutada com o estabelecido no artigo 206. Pois, o dispositivo constitucional sobre os “conteúdos mínimos” no contexto do artigo carrega uma lógica que articula meios e fins. E, no caso, os fins são “assegurar formação básica comum”, prevalecendo sobre o estabelecimento de “conteúdos mínimos” que são considerados meios para atingir àquele objetivo que se materializa como fundante para o exercício da cidadania no contexto e na convivência na sociedade democrática. O inteiro teor do artigo 210 pode confirmar nossas análises:

Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. (grifo nosso)

O texto constitucional não explicita o significado dado à expressão “conteúdos mínimos”, abrindo possibilidades de disputa em torno do significado deste conceito. Advogamos aqui a correção do ato constituinte originário acerca da questão, pois se pode identificar a coerência de tal proceder com os princípios de “liberdade de ensinar e aprender” e de “pluralidade de ideias e concepções pedagógicas”. Em suma, qualquer definição de “conteúdos mínimos” que desconheça ou colida com o princípio geral da pluralidade de concepções pedagógicas é descartada no texto constitucional pelo constituinte originário.

A disputa nos meios educacionais em torno da ideia e dos limites de “conteúdos mínimos” foi fazendo surgir ao longo do tempo a proposta de se construir uma Base Nacional Comum – BNC – que se fez explicitar na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN, a Lei nº 9.394/1996 aprovada depois de 8 anos de promulgação da Constituição Cidadã de 1988. Esse acordo consagrado na LDBEN expressou a posição majoritária à época, mas não representou o consenso. De um lado havia posições em favor da ideia de que o papel de definir currículo seria da comunidade escolar em seu projeto político pedagógico – PPP – construído com a participação dos sujeitos envolvidos. De outro lado posições em favor da ideia de se estabelecer uma Base Nacional Comum que, na prática, se constituiria num guia curricular nacional.

Em favor da padronização do currículo estiveram desde sempre os setores ligados às editoras de livros didáticos interessadas em vender para o Programa Nacional do Livro Didático, o PNLD. Pois, a existência de um currículo nacional favorece que os livros possam ser utilizados em toda e qualquer escola brasileira. Esta abrangência nacional dos livros didáticos oferece maiores chances de aumentar as tiragens em cada edição e, assim, aumentar os lucros. Produzir um mesmo livro didático para o país todo ou para uma grande região requer menos investimento em composição/criação, edição e distribuição que repetir o processo para a produção de variados livros que terão tiragens menores.

Nas décadas seguintes à promulgação da LDBEN os sucessivos governos (Fernando Henrique Cardoso – FHC, Lula e primeiro Governo de Dilma Roussef) adotaram posição favorável ao entendimento da escola como locus da composição de currículo. O entendimento que prevaleceu foi que a Base Nacional Comum, prevista no artigo 26 da LDBEN, deveria ser efetivada em relação direta com a responsabilidade da escola “elaborar e executar” sua “proposta pedagógica”, conforme prevê o artigo 12 da mesma lei. Na prática isso significa que cabe à escola, em última instância, organizar o currículo.

Importante reforçar que tal interpretação se ancora no contexto da LDBEN que fala da democracia na escola. Assim, para além do artigo 12, que confere à escola a incumbência (dever e direito) de elaborar sua proposta pedagógica, a lei irá tratar das responsabilidades docentes quanto à proposta pedagógica e à organização de seu trabalho na escola (Art. 13) e sobre a gestão democrática da escola pública (Art. 14).

Nos governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) foi levada a termo política curricular que previu o estabelecimento de Diretriz Curricular Nacional – DCN – com força normativa e contendo a explicitação de pontos da LDBEN. Essa política do estabelecimento de DCNs foi mantida nos governos Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2015) e continuam a viger atualmente coexistindo com a BNCC.

Ainda, nos governos FHC se construíram os chamados Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs – como forma complementar ao estabelecimento das DCNs para orientar e oferecer aproximações com o conceito de Base Nacional Comum. Apesar da adoção dos PCNs não se constituir obrigatória, a posição foi bastante criticada por representar movimento em direção ao currículo padronizado. No decorrer dos governos Lula e primeiro governo Dilma os PCNs perderam importância e as DCNs foram ainda mais valorizadas ao lado de propostas formativas, orientações técnicas e de verificação da aprendizagem dos estudantes. Apesar de conter várias ações explicitadas no plano de governo denominado Plano de Desenvolvimento da Educação – PDE – o que adquiriu mais destaque foram as avaliações em larga escala e a criação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica – Ideb. Essas ações avaliativas ou com origem em avaliação adquiriram o poder de influenciar o currículo pelo estabelecimento de cobrança sobre o desempenho de estudantes. Nesse contexto, a avaliação se constituiu em forma de controle do que se ensina, pois as matrizes de referência para as provas de larga escala, existentes desde a década de 1990, continuaram a definir os domínios de conhecimento desejados (proficiência) nas várias áreas de conhecimento.

Ao final do primeiro governo Dilma Roussef o entendimento prevalente de que a BNC se cumpria pela edição de DCNs, de material orientativo tipo PCNs, Resoluções do CNE, de Portarias do Ministério da Educação foi perdendo força, inclusive no interior do próprio MEC. Exemplo disso é a criação do movimento denominado “Todos pela Base” que pretendeu instituir a BNC numa outra perspectiva e expressa num único documento. Na liderança do processo estiveram movimentos e instituições privadas e privatistas como a “Fundação Lemann” e o “Todos pela Educação”.

Porém, a disputa somente pode ser vencida pelos setores mercadológicos no governo de Michel Temer que assumiu em maio de 2016 após um golpe empresarial, parlamentar e midiático que fez uso do expediente lawfare para se efetivar. O governo Temer nomeou para o MEC um deputado de convicções liberais que fortaleceu os privatistas nomeando seus representantes para ocupar postos decisores na estrutura do MEC e no CNE, onde mudou membros e garantiu maioria e aos representantes desse grupo. Assim, a BNCC do Ensino Fundamental e da Educação Infantil foram facilmente aprovadas no CNE em 2017 e em 2018 a do Ensino Médio. Enfim, essas medidas favorecem a privatização do currículo com o atendimento dos interesses empresariais e o estabelecimento do “guia curricular” denominado de BNCC.

Em síntese, sustentamos que a instituição da BNCC atenta à democracia ao se contrapor a letra da Constituição Federal e, também, da LDBEN ao construir “interpretação criativa” de conceitos e desconsiderar princípios imprescindíveis à democracia e à educação democrática, seu principal veículo de construção, como defendeu Anísio Teixeira (1936).

APREENSÃO E “INTERPRETAÇÃO CRIATIVA” DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS NA BNCC

Colocar em xeque as escolhas de fundamentos legais feitas no documento BNCC requer aprofundamentos possíveis a partir de análise não apenas de seus conteúdos, mas também de sua definição, estrutura e organização.

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é apresentada em seu próprio texto como:

[...] documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, de modo a que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade com o que preceitua o Plano Nacional de Educação (PNE) (BRASIL, 2017, p. 5).

No sumário fica evidenciado que o documento se estrutura em dois momentos: um primeiro que apresenta seus fundamentos e lógica interna; e um segundo que apresenta proposições específicas para cada etapa da Educação Básica (Educação Infantil; Ensino Fundamental e Ensino Médio). Em outras palavras, podemos dizer que: o primeiro momento é de teorização geral e explicitação dos pressupostos e implicações da Base Nacional Comum Curricular; o segundo é de apresentação de prescrições específicas para cada etapa e para cada área e/ou componente curricular da Educação Básica.

A sequência temática do documento ajuda a entender o encadeamento lógico das ideias utilizado na BNCC. Destacamos resumidamente tópicos e temas tratados:

  1. Afirma que a legislação brasileira (CF/88, LDBEN/1996 e PNE/2014) legitima a existência de uma BNCC;

  2. Apresenta a BNCC como maneira adequada de buscar garantir a todos/ as os/as brasileiros/as direitos de aprendizagem e aprendizagens essenciais necessárias que se materializam em competências gerais da Educação Básica e em competências específicas de cada área do conhecimento e/ou componente curricular no interior de cada etapa da Educação Básica;

  3. Estabelece o papel do componente curricular na referida etapa e, a partir daí, a BNCC passa a prescrever objetos de conhecimento que devem ser ensinados em cada ano ou a cada dois anos da escolaridade. Cada objeto de conhecimento implica em uma ou mais habilidades a ele articuladas e que servem de referências para as avaliações de larga escala, determinando-se, assim, para cada docente, o conteúdo e o objetivo a ser alcançado em cada ano.

A título de exemplo, apresentamos quadro que pode ajudar a compreender o nível de detalhamento do currículo no que respeita a especificação dos objetos de conhecimento e das habilidades que lhe são correspondentes. Para as séries finais do Ensino Fundamental do componente curricular de História se determina 99 objetos de conhecimento e 99 habilidades a serem trabalhadas entre o 6º e o 9º anos. Vejamos o quadro abaixo:

Quadro 1 Quantidade de objetos de conhecimento e de habilidades do componente curricular de História nas séries finais do Ensino Fundamental, segundo a BNCC. 

  6º Ano 7º Ano 8º Ano 9º Ano
Objetos de Conhecimento 18 16 25 40
Habilidades 19 17 27 36

Fonte: Elaborado pelos autores.

A partir disso se conclui que o patamar comum de aprendizagem em História nas Séries Finais do Ensino Fundamental é a apropriação, por parte de todos/as os/as estudantes do Brasil, entre 10 e 14 anos, de 99 objetos de conhecimento e 99 habilidades articuladas a esses objetos. Como as habilidades são as formas concretas e mais específicas das competências, as últimas são automaticamente desenvolvidas quando os/as professores/as elaboram planos de trabalho, planos de ensino e planos de aula a partir das primeiras. Com relação a isso, professores/as e escolas não têm opções: devem seguir. E a Constituição? Ora, a Constituição! Também se ignora o estabelecido nos artigos 12 a 14 da LDBEN.

Apesar disso, logo de início do referido documento se constata uma citação do artigo 205 da Constituição, no qual se apresentam os objetivos últimos da educação: “[...] pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. E prossegue argumentando que, para chegar a esses objetivos é necessário acolher também o contido no artigo 210 da Constituição. Na argumentação apresentada não recorrem ao artigo 206, que estabelece o pluralismo de concepções pedagógicas como princípio da educação.

Os redatores da BNCC apresentam uma maneira “criativa” de ler a Constituição, nossa Carta Magna. Entendem ser fosse possível fazê-lo de modo fracionado, sem articular organicamente os diversos dispositivos que nos levam a entendê-la como documento com opções e sentido lógico em favor do pluralismo, das diversidades que envolvem a ideia e a prática da democracia. O direcionamento de análise feito induz a equívoco de interpretação que desqualifica o processo de argumentação posterior, pois se constrói contra a Constituição. Exemplo dessa argumentação pode ser encontrado na interpretação feita do artigo 9º da LDBEN, que trata das responsabilidades da União com a educação, para justificar a BNCC:

[...]

IV – estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum;

A interpretação feita na BNCC é contrária ao texto do artigo e inciso referidos, pois o texto da lei diz explicitamente que cabe à União estabelecer não os currículos mínimos, mas “competências e diretrizes” “que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum.”. A ordem é exatamente a inversa ao que se pretende na BNCC. O texto apresentado deve ser lido comutado com os artigos 12 e 26 da própria LDBEN e, em subordinação, com os artigos 205 e 206 da Carta Magna. Pois se considerarmos que o legislador ordinário explicitou o conceito de “conteúdos mínimos” como “competências e diretrizes” conforme se advoga na BNCC estar-se-ia contrapondo ao contido no Artigo 210 da Constituição. Assim, o CNE e MEC estão autorizados pela lei a explicitar as “competências e diretrizes” para a organização do currículo. Porém, não é atribuição, responsabilidade ou competência destes órgãos elaborar currículo, mesmo que com abrangência limitada a 60% da carga horária, conforme anunciado, e, menos ainda, indicar, assumir ou estabelecer uma concepção pedagógica.

Na BNCC se destaca, ainda, a determinação da lei nº 13.005/2014, que aprova o Plano Nacional de Educação – PNE – de que seja construída uma “base nacional comum dos currículos, com direitos e objetivos de aprendizagem [...] para cada ano do Ensino Fundamental e Médio”. Na sequência se destaca a edição da Lei 13.415/2017, a chamada “Reforma do Ensino Médio”, afirmando que a partir dela a legislação brasileira, leia-se LDBEN, estabelece duas formas de se referir às “finalidades da educação”: “direitos e objetivos de aprendizagem” e “competências e habilidades”, enquanto termos que se correspondem mutuamente (BRASIL, 2017, p. 12).

Tal defesa, por sua inadequação, explicita o que denominamos de “interpretação criativa” da lei, pois é nos artigos 2º e 3º da LDBEN que se tratam dos princípios e das finalidades da educação e do ensino. Os artigos indicados na BNCC, o 35-A e 36. §1º, tratam apenas do Ensino Médio, não da educação e do ensino como se afirma. Tomar a parte pelo todo e interpretar o específico por geral é, no mínimo, passível de questionamento, inclusive quanto à boa fé dos redatores da BNCC. O fato indica, ainda, que os defensores da padronização curricular, sinônimo de currículo único, que se organizaram no movimento “Todos pela Base” encontravam-se ativos já no processo de aprovação do PNE.

Isto posto, concluímos que a apropriação das bases legais efetivada na BNCC para prescrever um currículo e uma concepção pedagógica para todas as escolas do país são excessivamente frágeis e induzem a erro. Se isso é proposital não nos é possível afirmar, entretanto é importante reiterar que em nenhum momento se resgatam os princípios constitucionais e dispositivos legais infraconstitucionais que sustentam a pluralidade de concepções pedagógicas e a liberdade de ensinar e aprender.

A INCONSTITUCIONALIDADE DA BNCC

Reafirmamos que os princípios e dispositivos constitucionais devem ser lidos de modo conjugado, orgânico, como partes de uma totalidade que lhes dão sentido adequado. Portanto, a leitura correta dos artigos 206 e 210 da Constituição não autoriza as inferências, raciocínios e proposições trazidas pela BNCC. Os princípios do art. 206 delimitam até onde os conceitos de formação básica comum e de conteúdos mínimos (propostos pelo art. 210) podem ir. No documento se constata que a ideia de conteúdos mínimos é reduzida e aplicada com o significado de competências, aprendizagens essenciais, objetos de conhecimento, habilidades etc. Essa apreensão do conceito significa admitir apenas uma concepção pedagógica e curricular como legítima no país.

Conforme discutido anteriormente, o que define uma concepção pedagógica e a distingue de outras existentes é o fato de se constituir num “programa” capaz de promover o ensino e o aprendizado e, assim, nela se encontram definições complexas de variados aspectos: objetivos e fins da educação, metodologias, avaliação e currículo, que inclui selecionar conteúdo (objeto de conhecimento). É o que se pode observar na citação abaixo:

Ao adotar esse enfoque, a BNCC indica que as decisões pedagógicas devem estar orientadas para o desenvolvimento de competências. Por meio da indicação clara do que os alunos devem “saber” (considerando a constituição de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores) e, sobretudo, do que devem “saber fazer” (considerando a mobilização desses conhecimentos, habilidades, atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho), a explicitação das competências oferece referências para o fortalecimento de ações que assegurem as aprendizagens essenciais definidas na BNCC (BNCC, 2017, p. 11, grifo nosso).

A adesão à Pedagogia das Competências explicita e promove a homogeneização tanto da pedagogia quanto do currículo desde a concepção até a prática no interior de cada escola e sala de aula, atentando contra o disposto no artigo 12 da LDBEN. Ainda, é fundamental tocar na questão da obrigatoriedade de aplicação da BNCC que se garante pelo controle dos resultados nas avaliações em larga escala, cujas matrizes de referência serão revistas e produzidas a partir daquele documento. Tais opções violam os princípios da pluralidade de concepções pedagógicas e da liberdade de ensinar e aprender, o que torna a BNCC, reiteremos, inconstitucional.

Quando a Constituição fala em pluralidade de ideias pedagógicas como um dos princípios fundamentais da educação brasileira, pretende garantir às escolas possibilidade e autonomia para, democraticamente, adotar diferentes perspectivas pedagógicas ao elaborar sua proposta pedagógica. Assim, à escola está facultado e garantido o direito e a responsabilidade (dever) de adotar uma das perspectivas pedagógicas existentes ou criar novas possibilidades.

A título de esclarecimento vale lembrar algumas concepções pedagógicas que apresentam perspectivas diferentes e até antagônicas à Pedagogia das Competências assumida como pedagogia oficial para a educação básica brasileira: Pedagogia de Projetos, Pedagogia Valdorf, Pedagogia Deweyana, Pedagogia Montessoriana, Pedagogia da Alternância, Pedagogia Socialista, Pedagogia Freinet, Pedagogia Freireana etc. Todas essas pedagogias possuem concepções próprias de currículo. No documento se passa ao largo desta questão: a multiplicidade de concepções pedagógicas existentes.

Outro aspecto importante a se destacar é o fato de que no texto da BNCC se reduz o trabalho tanto dos entes federados (estados, distrito federal e municípios) como das unidades escolares às escolhas operacionais e técnicas, o que nos parece sobrepujar também o equilíbrio do sistema federativo brasileiro definido constitucionalmente. Tal redução fica clara na afirmação que cabe aos sistemas, redes e escolas tão somente definir estratégicas para apresentar os conteúdos, estratégias interdisciplinares; estratégicas didático-pedagógicas; situações motivacionais; procedimentos de avaliação; uso de recursos didáticos e tecnológicos; materiais de formação permanente dos docentes; trabalho de formação sobre gestão pedagógica e curricular (BNCC, 2017, p. 14-15).

Note-se que para a BNCC os/as professores/as não compõem, senão indiretamente, o conjunto definidor de currículo. Professores/as são expropriados/ as da natureza intelectual de seu trabalho (GIROUX, 1997) e concebidos/as como executores/as: os/as que colocam em prática as decisões de outrem. Isso fica demonstrado quando explicitamos o exemplo dos 99 objetos de conhecimento, 99 habilidades para o ensino de história já definidos na BNCC.

Apesar disso tudo, a retórica utilizada no texto da introdução da BNCC afirma que as decisões curriculares e pedagógicas permanecem a cargo de cada comunidade escolar e de seus docentes e, assim, que não está prescrevendo um currículo, tampouco uma pedagogia.

Frente a isso é possível afirmar que os/as formuladores/as da BNCC trabalham com uma concepção dicotômica que separa teoria e prática, conteúdo e estratégia, numa clara hierarquização de saberes cabendo aos “de cima” – alguns poucos localizados nos órgãos centrais do sistema – MEC e CNE – o poder de conceber/criar e definir/decidir e a muitos a tarefa de escolher num rol de técnicas preexistentes aquelas que melhor atendem as necessidades de disseminação de conhecimento, papel que cabe aos “de baixo”, aos que exercem suas atividades e seu trabalho na escola.

Essa visão dicotômica expressa uma concepção pedagógica específica. Quando você a transforma em norma e passa a obrigar todos/as os/as professores/ as do Brasil a aderirem ela, ocorre a violação do princípio constitucional maior da pluralidade de concepções pedagógicas com a imposição de concepção pedagógica única, de currículo único. Assim, se vilipendia a democracia, a liberdade ao retirar das escolas a autonomia na definição de suas propostas pedagógicas, como encontra-se consagrado no artigo 12 da LDBEN e, também, dos currículos. Ora, como pode uma norma amparar-se numa lei infraconstitucional para contraditar a Carta Magna? Ainda, é necessário reafirmar o contexto de exceção em que se promoveram alterações importantes em leis para justificar a decisão de se levar a cabo o intento de editar uma BNCC.

É um absurdo, para dizer o mínimo, a lei educacional ser alterada a partir de proposta apresentada por governo instituído por golpe de estado. A natureza parlamentar-jurídico-empresarial-midiática que lhe confere a característica e a designação de “golpe brando”, busca esconder os desmandos do governo Temer tanto na reinterpretação “livre e criativa” das leis e da Constituição para depor uma presidenta legítima e democraticamente eleita pela maioria quanto para “legalizar” a BNCC promovendo alterações na LDBEN por meio da lei 13.415/2017, a reforma do Ensino Médio.

Nesse contexto a BNCC significa a violação pura e simples, para dizer o mínimo, dos princípios constitucionais levada a efeito no Congresso Nacional e patrocinada por entidades privadas que possuem interesses econômicos na homogeneização do currículo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estruturas administrativas a serviço do poder centralizado não favorecem procedimentos democráticos. Um dos papéis das lideranças democráticas é precisamente superar os esquemas autoritários para tomadas de decisão por outros de natureza dialógica. O centralismo brasileiro, contra que tanto lutou Anísio Teixeira, expressa, de um lado, nossas tradições autoritárias, de outro, as alimenta (FREIRE, 2019, p. 80, grifo do autor).

A aprendizagem da democracia por meio da educação e da escola pública conforme nos ensinou Anísio Teixeira (1936) bem como sua vivência na escola que vai se tornando espaço “acolhedor e multiplicador de certos gostos democráticos” que foi projeto de vida de Paulo Freire (1995, p. 91) adquire nos dias atuais cada vez mais relevância não apenas em virtude de constitui-se valor humanizador, mas de arroubos autoritários que a golpeia no Brasil sob o governo Bolsonaro e, também, em outras partes do mundo sob governos igualmente autoritários.

Reforçar as aprendizagens democráticas que buscam nas tomadas de decisões e construções coletivas fazer dos sujeitos agentes no/do processo de constituição de seres humanos cada vez melhores é imperativo ético que indica o caminho a seguir para professores/as, estudantes, profissionais da educação, gestores/as e comunidade. Fazer da escola espaço e tempo de socialização segundo os princípios democráticos estabelecidos na Constituição Cidadã de 1988 passa por decidir o que ensinar, a quem ensinar, como ensinar, como avaliar etc. E, isso, é tarefa de organização da escola que se materializa no currículo e nas opções/decisões pedagógicas tomadas coletivamente por aqueles/as envolvidos/as diretamente no dia a dia da socialização e/ou produção de conhecimento.

Isto posto é imprescindível lembrar que tais propósitos não podem ser atingidos senão pela observância dos princípios constitucionais. Não é possível tergiversar sobre princípios e as leis não podem ser interpretadas ao “gosto do freguês”, mas em seu conjunto orgânico e interdependente. Ou seja, não há espaço para interpretações “criativas” ou de ocasião que deixem de lado princípios fundamentais, mas não desejáveis aos propósitos do momento e/ou do governante de plantão.

A democracia na educação e na escola também não se coaduna com tornar professores/as objetos e executores de ordens curriculares e pedagógicas emanadas do CNE e do MEC. Somente quem vivencia a democracia é capaz de formar na e para a convivência com autoridade conferida pela prática. Neste sentido, a expropriação do/a professor/a de sua responsabilidade profissional de contribuir e, coletivamente, organizar o currículo e a proposta pedagógica da escola promove o desvirtuamento do estabelecido na Constituição. Desconsiderar a liberdade de ensino e de concepções pedagógicas, que são também curriculares, representa, em última análise, pisotear a constituição e torná-la letra morta em mais de um sentido.

A BNCC expropria o trabalho pedagógico de sua natureza intelectual e seu aspecto criativo ao retirar do professor seu lugar de organizador e construtor de currículo em parceria com educandos na relação com a realidade e os objetos culturais significativos. E, ao contrário do que afirma, nega aos cidadãos e cidadãs brasileiros/as o direito de acesso ao conhecimento ao ignorar a própria natureza do processo de ensinar e aprender.

Enfim, reafirmamos aqui com todas as letras que a BNCC é inconciliável com o princípio constitucional da liberdade de ensinar e aprender e da pluralidade de concepções pedagógicas. Sua existência representa uma regressão democrática para a educação brasileira.

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Recebido: 18 de Maio de 2021; Aceito: 15 de Junho de 2021

Itamar Mendes da Silva

Doutor em Educação (Currículo) pela PUC/SP e pós-doutor em Políticas, Educação, Formação e Sociedade pela Universidade Federal Fluminense. Professor Associado na Universidade Federal do Espírito Santo atuando na graduação e na pós graduação; Vice-presidente da Anpae, gestão 2021-2023. Líder do Grupo de pesquisa Gestão, Trabalho e Avaliação Educacional - Getae (CNPq); integra o Grupo de Estudos e Pesquisas Paulo Freire - GEPPF (CNPq) - e o Laboratório de Gestão da Educação Básica do Espírito Santo - Lagebes. Email: itamarmendes62@ gmail.com.

Valter Martins Giovedi

Doutor em Educação (Currículo) pela PUC/SP. Professor Adjunto da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, atuando no curso de Licenciatura em Educação do Campo. Coordenador de programas de extensão de formação continuada para professores/as de redes públicas. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas Paulo Freire – GEPPF (CNPq). E-mail: giovedival@gmail.com

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