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Revista Brasileira de Política e Administração da Educação

versión impresa ISSN 1678-166Xversión On-line ISSN 2447-4193

Revista Brasileira de Política e Administração da Educação vol.38 no.1 Goiânia  2022  Epub 27-Mar-2022

https://doi.org/10.21573/vol38n002022.113967 

RESENHAS

A Consciência de um Progressista

THAIS RODRIGUES MARIN1 
http://orcid.org/0000-0001-9536-5763

1Universidade Estadual de Campinas Programa de Pós-graduação em Educação. Campinas, SP, Brasil

KLEES, Steven J.. The Conscience of a Progressive. Alresford: Zero Books, 2020. 216p.


The Conscience of a Progressive ” é o mais recente livro publicado por Steven J. Klees, professor de Política Educacional Internacional da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, e o primeiro para uma audiência não especializada. O título é uma resposta provocativa a duas obras importantes para a política norte-americana contemporânea: “A Consciência de um Conservador”, de 1960, escrito pelo então senador Barry Goldwater, uma das vozes da onda conservadora que ressurgiu no país nessa década; e o best-seller “A Consciência de um Liberal”, de 2007, de autoria do economista e ganhador do Prêmio Nobel Paul Krugman, um dos representantes atuais da escola keynesiana.

Autointitulando-se progressista, Klees propõe apresentar os valores dessa visão societária e suas respostas aos principais problemas sociais, contrapondo-os às perspectivas conservadora e liberal no contexto norte-americano. Em 11 capítulos, com menções a diversos autores e obras, discorre sobre educação, economia, capitalismo, desenvolvimento internacional, pobreza e desigualdade – temas com os quais trabalha há décadas, e compartilha algumas considerações sobre saúde, meio ambiente, violência, gênero, raça e etnia, movimento LGBT e deficiências. Similar a um tratado geral, ele confere ao texto aspectos de memorial ao agregar a esses tópicos passagens pessoais interessantes de seus cerca de 45 anos de trajetória profissional.

Logo de início, o autor alerta que emprega os termos conservador e neoliberal como sinônimos. Se sua opção não gera, de antemão, estranhamento ao leitor brasileiro, ele pode não se dar com o termo liberal, cujo significado guarda variações mais conflitantes nos dois cenários nacionais e merece ser brevemente esclarecido. No Brasil, associa-se o termo liberal a uma perspectiva à direita do espectro político ou, de modo objetivo, ao próprio neoliberalismo. Nos Estados Unidos, inversamente, convencionou-se filiar o liberalismo à sua variante social, às políticas de bem-estar, sobretudo a partir dos anos 1930, como plataforma do Partido Democrata. Como reflexo do apoio ou oposição ao New Deal, desde então, consolidou-se no país o binômio liberal/conservador ou democrata/republicano como expressão da polarização esquerda/direita. Os progressistas, segundo o autor, não se sentem representados por esta clássica divisão.

CAPITALISMO E OUTRAS OPRESSÕES

Em termos ideológicos, para Klees, a discordância basilar entre conservadores, liberais e progressistas reside no fato de os primeiros representarem a visão política e econômica dominante, que prega a incompetência do governo e entende problemas sociais como falhas inevitáveis do capital. Livre mercado e setor privado são as respostas para reparar quaisquer desses danos, entre eles a desigualdade. Liberais, por sua vez, defendem a intervenção estatal na economia, proteção social e promoção de igualdade de acesso e oportunidade, mas sugerem ações compensatórias, para mitigar prejuízos, que legitimam a prerrogativa do mercado. O pensamento progressista considera a condição estrutural e sistêmica dos problemas sociais. São resultado de escolhas políticas e econômicas que, subjugando países em desenvolvimento à agenda neoliberal, enfraquecendo seus governos nacionais e expandindo o poder corporativo e financeiro global, moldaram o desenho atual do mundo: níveis de desigualdade que superam os do início do século passado e alguns bilionários concentrando a mesma quantidade de riqueza que a maior parte da população.

Tais distinções fundamentais se replicam nas temáticas específicas abordadas, já que as marginalizações presentes nestas são fruto da interseção entre capitalismo e outras estruturas opressivas da sociedade, como patriarcado, racismo e homofobia. Conservadores, no geral, refutam políticas que desafiam as instituições tradicionais: são contra aborto, movimento feminista, ações afirmativas ou a causa LGBT; desacreditam a crise ambiental; defendem a guerra e a saúde como responsabilidade individual e não do Estado. Liberais costumam contrariar essas percepções e são a favor de liberdades individuais e proteção social estatal, mas com propostas de efeitos limitados. Para a crise ambiental, por exemplo, sugerem soluções tecnológicas e taxas fixas de emissão de poluentes. Progressistas se opõem a conservadores e tendem a se distanciar de liberais por reconhecerem suas políticas como cooptadas pelo mundo corporativo. As mudanças necessárias devem ser radicais. A crise ambiental, para eles, não é apenas um entre muitos assuntos em pauta, passível de resolução via controle de emissões, mas um chamado para a sobrevivência planetária e humana.

EDUCAÇÃO EM DISPUTA

A educação, um dos principais campos de atuação do autor, é a temática à qual mais se dedica no texto, reservando a ela três capítulos. A obra traz um amplo panorama da política educacional dos Estados Unidos nas últimas décadas, que serve de importante referencial para interessados no debate sobre a privatização da educação. A partir dos anos 1980, a guinada neoliberal significou uma cartilha de reformas educacionais voltadas a solucionar o suposto fracasso escolar da nação frente aos demais países. Defendida por conservadores e abraçada por muitos liberais, essa agenda foi integrada por políticas de escolha escolar e testagem de estudantes e professores.

No âmbito da escolha escolar, têm destaque os vouchers públicos oferecidos aos pais e as charter schools , escolas públicas geridas por instituições privadas. Ambos são criticados por progressistas por diversas razões, entre elas a retirada de recursos de escolas públicas, o aumento da segregação e da desigualdade educacional e as vulnerabilidades de famílias pobres para exercitarem sua escolha. A obsessão pela testagem massiva, por sua vez, foi acompanhada pela responsabilização de escolas e professores pelo desempenho de estudantes, com vinculação salarial, bonificações e penalizações. A crítica progressista aponta que esse esforço, além de reduzir a educação a um único critério mensurável, levou a distorções e enxugamentos curriculares para atender com mais ênfase às disciplinas testadas, ao controle excessivo da atuação e à perseguição de professores e à desprofissionalização da educação.

Rejeitada por progressistas, a maior participação de instituições privadas, com ou sem fins lucrativos, na oferta, planejamento ou gestão da educação pública é apoiada por conservadores e por grande parte dos liberais. Segundo Klees, essa estratégia substitui o desenvolvimento de boas políticas “pelos caprichos da caridade ou pelo pensamento estreito da obtenção de lucro”. Nos Estados Unidos, vale lembrar que fundações privadas como as das famílias Broad, Gates e Walton têm se destacado no direcionamento da política educacional. No contexto global, a difusão da privatização é creditada a muitos atores, primordialmente o Banco Mundial, sobretudo a partir dos anos 1960, quando a educação de países em desenvolvimento entrou na pauta de acordos internacionais. Klees é enfático: não basta definir metas globais para a educação se, entre outras condições, faltam recursos diversos a países pobres e o apoio financeiro de nações desenvolvidas assemelha-se à esmola.

TEORIA PROGRESSISTA DA MUDANÇA

Contestando o TINA ( There Is No Alternative ), slogan conservador associado à ex-primeira ministra britânica Margaret Thatcher, Klees lembra que o capitalismo é uma invenção recente – e cruel – da humanidade. Ser progressista é acreditar que essa criação não é o fim da história ou das ideologias e que pode ser reformada ou, mais radicalmente, como ele prefere, superada. A seus alunos, costuma citar a escritora Ursula Le Guin: “Vivemos no capitalismo. Seu poder parece inevitável. Assim o era com o direito divino dos reis.”

As mudanças que advertem como urgentes incluem três eixos: ambientes de trabalho mais respeitosos e verdadeiramente participativos; uma nova política, com participação popular em decisões tomadas de baixo para cima; e a renúncia ao autointeresse, à ganância e à crença no crescimento econômico como potencialmente infinito. Transformar a educação é estratégia fundamental para alcançar todos eles. A pedagogia crítica, originada no trabalho de Paulo Freire, e sua capacidade de expor e desafiar as relações de poder e desigualdade, é um dos caminhos apontados. Otimista, a teoria da mudança de Klees ainda reserva espaço a um ator central: os movimentos sociais. Fazendo referência a várias iniciativas de economia socialista e solidária, moedas sociais, cooperativismo, organização de trabalhadores, políticas participativas e de renda básica, implementadas em diversos países, ele defende a articulação entre essas experiências para a criação de alianças que superem fronteiras temáticas e espaciais.

Conservador, liberal ou progressista, essas e tantas outras terminologias que compõem o espectro político, invariavelmente, são criações artificiais para facilitar a compreensão do mundo. Suas limitações são amplamente conhecidas e debatidas e arrisca-se produzir um guia caricaturizado ao descrevê-las para o público geral. A obra de Klees escapa a esse risco. Além de sistematizar seus principais valores e políticas no contexto norte-americano, facilitando a apreensão de suas interposições e distanciamentos, sua força analítica particular está em, ao mobilizar tais concepções, evidenciar que sua substância constitutiva é das mais singelas: ideias. Ideias também são invenções humanas e é preciso entender seus pontos de partida e lógicas internas para poder colocá-las em diálogo e enfrentamento. Dizer-se progressista nos Estados Unidos – e não só lá – é também sacar o manto do consenso neoliberal que desautoriza e silencia a existência de outras realidades possíveis. Há outros caminhos societários a escolher ou, como Klees finaliza o livro, “não é preciso ser assim”.

REFERÊNCIAS

KLEES, Steven J. The Conscience of a Progressive . Alresford: Zero Books, 2020. 216 p. [ Links ]

Recebido: 13 de Maio de 2021; Aceito: 27 de Março de 2022

Thais Rodrigues Marin

Possui graduação em Comunicação Social pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) (2008), mestrado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) (2013) e especialização em Jornalismo Científico pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) (2016). Atualmente, é doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Unicamp, integrando o Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais (Greppe/Unicamp), e servidora pública do Instituto de Estudos Avançados da Unicamp. E-mail: thais.marin@gmail.com

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