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Revista Brasileira de Política e Administração da Educação

versión impresa ISSN 1678-166Xversión On-line ISSN 2447-4193

Revista Brasileira de Política e Administração da Educação vol.39 no.1 Goiânia  2023  Epub 25-Sep-2023

https://doi.org/10.21573/vol39n12023.125303 

Artigos

A educação superior na conjuntura de fragilização da democracia no Brasil: impactos sobre as condições da oferta e do financiamento

Higher education in the context of weakening democracy in Brazil: impacts on provision and funding conditions

La educación superior en el contexto del debilitamiento de la democracia en Brasil: impactos en las condiciones de oferta y financiación

CLAUDIA REGINA BAUKAT SILVEIRA MOREIRA1 
http://orcid.org/0000-0002-0521-672X

1 Universidade Federal do Paraná Departamento de Planejamento e Administração Escolar Programa de Pós-Graduação em Educação Núcleo de Políticas Educacionais Curitiba , PR , Brasil


Resumo

Analisa-se os impactos da conjuntura política sobre as condições da oferta e do financiamento da educação superior. Para tanto, recorreu-se a dados de execução do orçamento federal e dados da Receita Federal; recorreu-se, também, aos dados do Censo da Educação Superior. Há um processo de redução do montante direto investido em educação superior, efeito esperado das políticas de austeridade fiscal em vigência, e o privilegiamento do investimento indireto no setor privado, via renúncia fiscal. É fortalecida a oferta privada, com a progressiva ampliação da EaD e a concentração de capital em grupos consolidadores. Tal quadro compromete a compreensão da educação enquanto direito em favor de uma concepção mercadológica.

Palavras-Chave: Educação Superior; Oferta; Financiamento; Direito à Educação

Abstract

The impacts of the political situation on the conditions of provision and funding of higher education are analyzed. To do so, we used data from the federal budget execution and the Revenue Service; we also used data from the Census of Higher Education. There is a process of reduction of the direct amount invested in higher education, an expected effect of fiscal austerity policies in effect, and privileging of indirect investment in the private sector, via tax waiver. Private offer is strengthened, with progressive expansion of online learning and concentration of capital in private educational groups. This framework compromises the understanding of education as a right in favor of a market conception.

Key words: Higher Education; Offer; Funding; Right to Education

Resumen

Se analizan los impactos de la situación política en las condiciones de oferta y financiación de la educación superior. Para ello, se utilizaron datos de ejecución del presupuesto federal y datos de la Receita Federal; también se utilizaron datos del Censo de Educación Superior. Hay un proceso de reducción del monto directo invertido en educación superior, efecto esperado de las políticas de austeridad fiscal vigentes, y el privilegio de la inversión indirecta en el sector privado, vía exenciones tributarias. Se refuerza la oferta privada, con la progresiva expansión de la EaD y la concentración de capital en grupos consolidadores. Este marco compromete la comprensión de la educación como un derecho en favor de una concepción de mercado.

Palabras-clave: Educación Superior; Oferta; Financiación; Derecho a la educación

INTRODUÇÃO: O RECONHECIMENTO DO DIREITO À EDUCAÇÃO NO BRASIL

A Constituição promulgada em 1988 simbolizou a celebração de um pacto em torno da redemocratização do país, que havia passado por 21 anos de ditadura civil-militar (1964-1985). O texto originalmente aprovado incorporava elementos característicos de um Estado de Bem-Estar Social, em particular no que se refere ao reconhecimento da educação como um direito de cidadania. Desde então, o acesso à escola foi franqueado a parcelas cada vez mais amplas da população.

No que se refere à educação superior, o texto constitucional, em seu artigo 207, limita-se a reconhecer a autonomia (didático-científica, administrativa, de gestão financeira e patrimonial) das universidades e a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão e, no inciso V do artigo 208, afirma ser de responsabilidade do Estado “(...) garantir acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um”. Ou seja, a Constituição deixou de fora toda a diversidade institucional da educação superior que, no Brasil, engloba, além das universidades (sobretudo públicas federais), centros universitários e faculdades 1 .

A despeito de sua inscrição constitucional, a retomada da democracia deu- se sobre uma ossatura institucional marcada pelo autoritarismo, constituindo uma democracia autoritária (CODATO, 2005) em que a implementação de um modelo econômico liberal não se fez acompanhar de liberalismo político. As políticas educacionais empreendidas a partir de então expressam tanto essa contradição quanto a adoção de um viés neoliberal, em sincronia com o que ocorria no âmbito internacional. Os efeitos dessas contradições, no caso da educação superior, se manifestaram nas disputas pela sua normatização. Durante a década de 1990, em especial durante o governo FHC (1995-2002), houve uma normatização fragmentada da educação superior, realizada antes em paralelo e depois da tramitação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996, que pouco se dedica a esse nível de ensino em seu texto (CUNHA, 2003).

O neoliberalismo tende a converter em mercadoria o que outrora fora considerado direito de cidadania. Portanto, não se trata de uma concepção que prescinde do Estado, como muitas vezes o senso comum indica. A apologia de um livre mercado, autorregulado, trata-se, na visão de Robert Reich (2016), de um mito que envenena o debate político, pois é o próprio estado quem cria o mercado. O autor argumenta também que os processos classificados como “desregulação” deveriam ser mais bem qualificados, pois, na sua visão, se tratam de “re-regulação”.

No caso brasileiro, no que se refere à educação superior, essa acomodação entre um texto constitucional que reconhece a educação como um direito, a adoção de políticas que têm incentivado a ampliação da oferta sobretudo pela via privada e a promoção de processos regulatórios francamente favoráveis aos interesses privatistas tem sido a tônica desde a década de 1990, num hibridismo entre o público e o privado (AMARAL, 2003; CARVALHO, 2006; CARVALHO, 2011; OLIVEIRA, 2020). Todavia, a partir de 2016, tem início a imposição de uma agenda conservadora que, como se procurará demonstrar a seguir, tem impactado sobre as condições da oferta e do financiamento da educação superior.

Nesse sentido, este trabalho possui dois grandes propósitos: de um lado, analisar alguns documentos que orientam as políticas para a educação superior no Brasil a partir de 2016 e, de outro, monitorar os dados relativos à oferta e ao financiamento, a fim de verificar a intensidade e a extensão dos ataques sobre a educação superior. Para tanto, o recorte temporal de análise será recuado a 2014, momento em que, salvo engano, marca a clivagem que leva a toda a contestação e consequente fragilização da democracia brasileira, cujo momento emblemático foi a manifestação do então candidato derrotado à presidência Aécio Neves (PSDB), no sentido de colocar o resultado do pleito sob o crivo da dúvida e, portanto, colocando a sua legitimidade em suspeição. A partir daí, tornou-se possível o fomento de uma ambiência política que não apenas fragilizou o segundo mandato de Dilma Rousseff, como também sitiou as ações do executivo federal, abrindo caminho para o processo de impedimento e, também, para a eleição de Jair Bolsonaro em 2018 2 .

Todavia, para que tal análise possa ser realizada, é necessária uma breve apresentação das características da oferta de educação no país. Sendo assim, o texto encontra-se dividido em quatro partes, além desta introdução. Na primeira seção, buscou-se compreender os elementos que caracterizam a oferta e o financiamento da educação superior brasileira a partir da promulgação da Constituição de 1988. Para tanto, recorreu-se à revisão bibliográfica e ao levantamento de um conjunto de dados. A segunda seção apresenta e analisa dados referentes à execução do orçamento federal a partir de 2014 e, no caso da inexistência desse tipo de informação, recorreu-se às estimativas elaboradas pela Secretaria da Receita Federal. As condições da oferta são analisadas, na terceira seção, por meio da apresentação dos dados do Censo da Educação Superior. As considerações finais pretendem ser um convite à reflexão sobre a conjuntura a partir do conceito de Direito à Educação.

A EDUCAÇÃO SUPERIOR NO BRASIL: CARACTERÍSTICAS DA OFERTA E DO FINANCIAMENTO NO MARCO NORMATIVO DA CF/1988

A partir da década de 1990, os indicadores de acesso à educação no país passaram por um forte incremento, com destaque para o Ensino Fundamental. Essa maior terminalidade conduziu mais jovens ao Ensino Médio, provocando, em consequência, uma maior pressão pelo acesso à Educação Superior (BRASIL/ MEC/INEP, 2004).

A partir dos anos 1990, verifica-se um vertiginoso crescimento das matrículas em instituições privadas de educação superior (entre 1995 e 2001 foi da ordem de 97,5%, saltando de pouco mais de 1,059 milhões para 2,091 milhões), com um baixo crescimento das matrículas públicas (36,8% nas IES federais e 49,2% nas IES estaduais entre 1995 e 2001), a estagnação do financiamento da rede federal, bem como o aumento da diferenciação institucional (AMARAL, 2003). Durante os anos de governo do Partido dos Trabalhadores (2003-2016), a expansão se manteve com a diferença de que, além do crescimento do número de vagas, a democratização do acesso ganhou centralidade no debate e na condução das políticas educacionais (MOREIRA, 2018).

O legado da década de 1990, marcado por um viés privatista, fornece pistas acerca da direção e do sentido dado às políticas implementadas a partir, sobretudo, de 2004. Para as instituições privadas, foi aprovado, em 2004, o Programa Universidade para Todos (ProUni), que concede bolsas integrais e parciais mediante renúncia fiscal. Em 2010 passou a viger uma nova versão do Programa de Financiamento Estudantil (Fies), com concessão de financiamento a juros subsidiados pelo governo, ampliando o montante de recursos disponíveis, elastecendo as condições para acesso e, como consequência, o número de beneficiados. Nas instituições federais, foi implementado o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais - Reuni, iniciativa que antecedeu a implementação da Lei n.12.711, aprovada em 2012, que instituiu a política de cotas para estudantes de escolas públicas, com uma subcota para pretos, pardos e indígenas (CORBUCCI; KUBOTA; MEIRA, 2016; CAMPOS; CARVALHO, 2015; MOREIRA, 2018;MOREIRA; SOUZA, 2019; MOREIRA; SILVA, 2019).

O resultado é que o número de matrículas na educação superior saltou de 4.223.344 em 2004 – ano que antecede a implementação da primeira das iniciativas que visavam a democratização do acesso, o ProUni – para 8.680.354 em 2020, um crescimento de 105,53% no período. Conforme pode-se ver no Gráfico 1 , a participação do setor privado no conjunto das matrículas tem oscilado entre cerca de 73% e 75% durante todo o período analisado. Todavia, os dados de 2020 apontam para uma tendência de ampliação da concentração no setor, atingindo o percentual de 77,46% de todas as matrículas na Educação Superior (BRASIL/MEC/INEP, 2004-2020). Essa prevalência da oferta privada sobre a pública tem sido objeto de fortes críticas. A mais recorrente é a de que o privilegiamento do setor privado, por meio de subvenções estatais, não condiciona de maneira contundente a prestação do serviço à sua qualidade e subtrai recursos que poderiam ser direcionados ao fortalecimento da rede pública. Em geral, as instituições privadas, sobretudo aquelas com fins lucrativos, oferecem uma formação de baixíssima qualidade (MANCEBO, 2017; McCOWAN, 2007).

Fonte: A autora (2022), com base nos dados do Censo da Educação Superior (Inep/MEC, 2004-2020).

GRÁFICO 1 Evolução da concentração de matrículas na Educação Superior em IES privadas (Brasil, 2004-2020) 

Por outro lado, essa ampliação do acesso representa uma clivagem importante no país, pois a educação superior historicamente tem sido acessada por uma parcela muito pequena da população, constituindo um privilégio ao invés de um direito. Portanto, as políticas de expansão e de democratização do acesso, iniciadas na década de 1990, mas testemunhadas com maior vigor a partir de 2003, se assentam sobre um sistema de educação superior marcado pela heterogeneidade e desigualdade, sendo que as políticas acima descritas foram apresentadas como o caminho para a superação dessa condição, convergindo inclusive para o Plano Nacional de Educação que vigeu a partir de 2001 (MOREIRA, 2018; McCOWAN, 2007).

Todavia, a partir de 2016, com o término abrupto do ciclo de governos democrático-populares ocorrido mediante o processo de impedimento de Dilma Rousseff, tem sido imposta uma agenda conservadora com desdobramentos sobre a compreensão da natureza da educação (CORSETTI, 2019; LIMA, HYPOLITO, 2019). Além disso, a retórica da austeridade fiscal ganhou novo vigor, determinando os rumos da política econômica (FÓRUM 21 et al., 2016; SCAFF; OLIVEIRA; LIMA, 2018). Decorridos seis anos e um pleito presidencial desde então, já é possível analisar alguns efeitos dessa guinada à direita, como será apresentado a seguir.

CONTINGENCIAMENTOS, CORTES E REDUÇÃO DO ORÇAMENTO EXECUTADO

Mais que uma retórica, a austeridade fiscal assumiu o protagonismo na orientação da política econômica a partir de 2015, sitiando o então iniciado segundo mandato de Dilma Rousseff, que havia sido reeleita em 2014. Contudo, apesar da queda do total de pagamentos observada em 2015 e da queda do total de pagamentos para a função Educação, conforme se observa na Tabela 1 , o total pago com a subfunção Ensino Superior e os recursos para os Serviços Financeiros do Fies passaram por um leve incremento.

TABELA 1 Recursos efetivamente pagos do Orçamento da União (2014- 2022) - valores em Real, corrigidos pelo IPCA (IBGE), abril/2022 

  2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021
Total de pagamentos do exercício 3,485 trilhões 3,298 trilhões 3,485 trilhões 3,259 trilhões 3,383 trilhões 3,397 trilhões 4,188 trilhões 4,202 trilhões
Total pago para a função Educação 128,182 bilhões 127,070 bilhões 127,350 bilhões 132,744 bilhões 119,812 bilhões 114,678 bilhões 102,493 bilhões 100,958 bilhões
Total pago com a subfunção Ensino Superior 41,021 bilhões 42,512 bilhões 39,592 bilhões 40,001 bilhões 37,154 bilhões 36,904 bilhões 33,862 bilhões 30,271 bilhões
Recursos sob supervisão do Fundo de Financiamento ao estudante do Ensino Superior/FIES 19,092 bilhões 20,794 bilhões 23,978 bilhões 26,233 bilhões 14,391 bilhões* 10,860 bilhões* 7,057 bilhões* 5,609 bilhões

Fonte: A Autora (2022), a partir dos dados do Orçamento Cidadão Digital/ SIOP/ Ministério da Economia.

*Total referente apenas aos Serviços Financeiros. Nestes exercícios há outras despesas, além dos Serviços Financeiros que compõem a rubrica.

Em 2016, quando Michel Temer assumiu a presidência em razão do processo de impedimento, o total de pagamentos apresentou uma alta de 5,67% e o total destinado à Educação manteve-se estável, variando apenas 0,22%, conforme apresentado na Tabela 1 . Todavia, os pagamentos da subfunção Ensino Superior (que afetam diretamente os orçamentos das instituições integrantes da Rede Federal de Educação Superior) passaram por uma importante retração na comparação com o ano anterior (-6,86%). Por outro lado, os Serviços Financeiros do Fies passaram por um significativo incremento, da ordem de 15,31%. Nos dois anos seguintes, os gastos com a função Educação encolheram a um patamar menor do que aquele do início da série histórica, sendo a retração mais significativa a referente aos serviços financeiros do Fies, que haviam tido um gasto de R$ 20,117 bilhões em 2017 e tiveram um gasto de apenas R$ 14,391 bilhões em 2018.

Contudo, o que chama a atenção é a execução do orçamento a partir de 2019, quando Jair Bolsonaro assume a presidência da República. Apesar do total efetivamente pago aumentar durante o triênio 2019-2021, os totais gastos com Educação sofrem graves retrações, ainda conforme exposto na Tabela 1 . Assim, em 2021, apesar do total de pagamentos ser o maior da série, atingindo a cifra de R$ 4,202 trilhões – um aumento de 19,15% na comparação com 2019 –, apenas R$ 100,958 bilhões foram destinados à função Educação, ante os R$ 114, 678 bilhões em 2019. Esta cifra representa uma queda de 13,58% no triênio, dos quais R$ 30,271 bilhões foram destinados à subfunção Ensino Superior, que uma queda de R$ 3,6 bilhões na comparação com 2019, e menos R$ 12,241 bilhões em comparação com 2015, o ano com o maior valor pago na série. Já os gastos com Serviços Financeiros do Fies, que chegaram a R$ 26, 233 bilhões em 2017, foram reduzidos a apenas R$ 5,609 bilhões em 2021.

Se a observação dos dados sobre os gastos efetivamente executados mostra uma tendência de queda no investimento em educação superior, a estimativa de renúncia fiscal decorrente da adesão das instituições privadas ao ProUni aponta no sentido contrário. Conforme exposto na Tabela 2 , há uma consistente tendência ao aumento da renúncia, indicando que o faturamento dessas empresas educacionais não parou de crescer ou que, no limite, a expectativa da Receita Federal foi de aumento consistente.

TABELA 2 Estimativa de Renúncia Fiscal com ProUni (2014-2021) – valores em Real, corrigidos pelo IPCA (IBGE), abril/2022. 

2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021
984.221.999 1.469.462.304 1.771.257.665 1.756.637.777 1.775.093.759 2.672.385.170 3.179.602.312 3.028.143.181

Fonte: A autora (2022), a partir dos dados dos Demonstrativos de Gastos Tributários (2014-2022) / Secretaria da Receita Federal.

Estes dados desautorizam o argumento utilizado pelo Governo Federal, pelo menos desde 2017, de que a redução do montante investido em educação superior (o nível de responsabilidade prioritária do Governo Federal) seria inevitável em face da queda vertiginosa na arrecadação, o que justificou, por diversas vezes, o contingenciamento de recursos provisionados e alguns cortes efetivos no orçamento. O que existe é a priorização do investimento indireto, via renúncia fiscal, em detrimento do investimento direto e do fortalecimento das instituições federais de educação superior, que são, junto com as universidades estaduais, as principais responsáveis pela produção de ciência, tecnologia e inovação no Brasil.

CONDIÇÕES DA OFERTA

Observar o comportamento das matrículas, conforme mensuradas anualmente pelo Censo da Educação Superior promovido pelo Ministério da Educação, é uma das maneiras de avaliar como as decisões acerca do financiamento impactam sobre as condições da oferta. Sendo assim, a seguir, será apresentado um conjunto de dados que permite a observação de algumas tendências, favorecendo o debate à luz do princípio constitucional do reconhecimento do direito à educação.

A expansão do acesso à educação superior passa por arrefecimento a partir de 2014, voltando a crescer a partir de 2017. Todavia, é na observação da distribuição das matrículas de acordo com a dependência administrativa, conforme apresentado no Gráfico 2 , é que se pode vislumbrar melhor o sentido dessa retomada. Embora tenham uma participação pequena no conjunto das matrículas, chama a atenção o fato de que os municípios estão deixando de ofertar esse nível de ensino, o que pode estar relacionado a dois fatores: municípios são os entes federados com menor capacidade de arrecadação e, portanto, com maior dificuldade para manter instituições; há também o mandamento constitucional de que os municípios devem priorizar a Educação Infantil e o Ensino Fundamental. Dessa forma, o decréscimo de 52,42% no número das matrículas em instituições municipais, caindo de 165.085 matrículas em 2014 para apenas 78.543 em 2020, pode guardar relação com esses dois fatores, pois as administrações públicas municipais estariam sendo obrigadas a atender com prioridade a educação básica em detrimento da educação superior. É apenas entre as matrículas municipais que se verifica a queda constante de matriculados no período analisado.

Fonte: A autora (2022), com base nos dados do Censo da Educação Superior (Inep/MEC, 2004-2020).

GRÁFICO 2 Distribuição das matrículas em cursos de graduação, pordependência administrativa – Brasil, 2014-2020 

As matrículas concentradas em IES estaduais apresentaram um comportamento de crescimento discreto e constante entre 2014 e 2019. O crescimento acumulado foi de 6,61%, partindo de 615.849 matrículas em 2014 e chegando a 656.585 em 2019. Todavia, em 2020, houve uma queda de 5% em relação ao ano anterior, registrando 623.729 matrículas, número semelhante àquele registrado em 2016. Comportamento assemelhado se verifica entre as matrículas em IES federais: crescimento entre 2014 e 2019, com queda em 2020. Todavia, a intensidade do crescimento verificada na rede federal foi maior: eram 1.180.068 os matriculados em 2014 e 1.335.264 em 2019, um acumulado de 13,15%. Em 2020, foram recenseadas 1.254.080 de matrículas, uma queda de 6,07% na comparação com o ano anterior. A exemplo do que se verifica entre as matrículas estaduais, retrocede-se a números próximos àqueles registrados em 2016. Cumpre notar que tais dados ainda não capturam efeitos potenciais da pandemia de Covid-19, mas podem repercutir, em tese, a falta de condições de permanência de estudantes, em especial da rede federal, para além dos impactos da crise econômica, que pode ser um fator que leva à evasão ou, no limite, ao adiamento do projeto de cursar uma graduação.

O setor privado destoa: primeiro por tender a uma variação muito pequena no número de matrículas entre 2014 e 2016, possível resultado de cortes efetuados sobre o montante de recursos disponíveis ao Fies. Entretanto, a partir de 2017, o crescimento volta a ganhar fôlego: foram 6.724.002 matrículas contabilizadas em 2020, um crescimento de 10,98% em comparação com 2016 e, o que também é digno de destaque, com um crescimento de 3,07% em relação ao ano anterior.

Entretanto, os dados agregados ocultam desigualdades importantes, não apenas aquelas referentes à dependência administrativa da IES, já explicitadas, mas, também, referentes ao grau acadêmico. Conforme apresentado na Tabela 3 , quando se observa o número de matrículas em cursos de Bacharelado, verifica-se uma tendência generalizada de queda entre 2019 e 2020, inclusive nas IES privadas. A queda do número de matrículas em bacharelados ofertados por instituições privadas pode ter relação com o fato de se tratar de cursos majoritariamente presenciais, com pouca ou nenhuma oferta na modalidade Educação a Distância (EaD), cujos valores das mensalidades são mais altos – a mediana das mensalidades aferidas em 2018, com valores corrigidos em 2019, era equivalente a R$826,00 (HOPER EDUCAÇÃO, 2020). Além disso, a partir de 2016, há um expressivo e consistente aumento da taxa de desocupação, em especial da população economicamente ativa entre 14 e 29 anos de idade: 20,9% em 2016, 22% em 2017,21,6% em 2018, 21,2% em 2019 e 24,1% em 2020. Para se ter um parâmetro de comparação, as taxas de desocupação haviam sido de 12,6% em 2014 e 15,9% em 2015(BRASIL/IBGE, 2021). Some-se a isso a queda na oferta de financiamento público pelo Fies, conforme exposto na Tabela 1 , para vislumbrar um quadro em que é possível atribuir a desaceleração da ampliação do acesso à retração da atividade econômica do país, agravada pela pandemia.

TABELA 3 Matrículas em cursos de Bacharelado, por categoria administrativa – Brasil, 2014-2020 

  Federal Estadual Municipal Privada
Matrículas Variação em relação ao ano anterior (%) Matrículas Variação em relação ao ano anterior (%) Matrículas Variação em relação ao ano anterior (%) Matrículas Variação em relação ao ano anterior (%)
2014 764.979   297.798   129.419   4.117.218  
2015 800.417 4,6 301.873 1,4 92.730 -28,3 4.321.131 5,0
2016 823.295 2,9 305.990 1,4 92.684 -0,05 4.327.767 0,2
2017 853.778 3,7 313.406 2,4 77.291 -16,6 4.417.876 2,1
2018 866.021 1,4 322.194 2,8 73.764 -4,6 4.427.356 0,2
2019 878.818 1,5 319.603 -0,1 71.218 -3,4 4.393.300 -0,8
2020 837.032 -4,75 309.094 -3,2 64.052 -10,1 4.349.509 -1,0

Fonte: A autora (2022), com base nos dados do Censo da Educação Superior (Inep/MEC, 2004-2020).

No que se refere à movimentação das matrículas em licenciaturas, conforme exibido na Tabela 4 , há um avanço do setor privado sobre a oferta: 58.8% das matrículas em licenciaturas em 2014 (o equivalente a 862.012 de matrículas) eram ofertadas por instituições privadas. Esse percentual chegou a 62.4% em 2018, num total de 1.016.249 matrículas. Já em 2020, o percentual ampliou-se para 66,42% do total das matrículas, chegando a 1.105.166. O crescimento acumulado no período foi de 28,20%.

TABELA 4 Matrículas em cursos de Licenciatura, por categoria administrativa - Brasil, 2014-2020 

  Federal Estadual Municipal Privada
Matrículas Variação em relação ao ano anterior (%) Matrículas Variação em relação ao ano anterior (%) Matrículas Variação em relação ao ano anterior (%) Matrículas Variação em relação ao ano anterior (%)
2014 334.688   240.067   29.868   862.012  
2015 323.295 -3,4 233.222 -2,9 22.480 -24,7 892.933 3,6
2016 328.032 1,5 229.781 -1,5 21.301 -5,2 941.380 5,4
2017 350.441 6,8 234.153 1,9 17.245 -19,0 987.601 4,9
2018 355.794 1,5 241.222 3,0 15.411 -10,6 1.016.249 2,9
2019 353.397 -0,7 240.392 -0,3 14.464 -6,1 1.079.114 6,2
2020 325.238 -8,0 221.278 -8,0 11.999 -17,0 1.105.166 2,4

Fonte: A autora (2022), com base nos dados do Censo da Educação Superior (Inep/MEC, 2004-2020).

Trata-se de um crescimento que se deu sobretudo no EaD, apresentando um incremento de 18,4% no número total de matrículas em 2018 em relação ao ano anterior. O total de matrículas variou de 1.591.410 em 2017 para 1.883.584 matrículas em 2018. O curso com o maior número de matrículas em instituições privadas na modalidade EaD é Pedagogia, com 457.573 em 2018, o que representa 24.3% de todas as matrículas na modalidade em instituições privadas. É importante destacar também que, de maneira geral, os cursos em EaD são os que possuem mensalidades mais baratas, com a mediana aferida em 2018 de apenas R$281 (HOPER EDUCAÇÃO, 2020).

Quando se observa os dados referentes às matrículas de cursos de licenciaturas ofertados em instituições públicas, à exceção da consistente queda nas matrículas das instituições municipais, que perderam 59,82% das matrículas entre 2014 e 2020, o que se testemunha é um movimento pendular. Nas instituições federais, há um decrescimento da ordem de 3.4% em 2015, na comparação com 2014. A partir de 2016, o movimento é de aumento de matrículas: 1.5% em 2016, 6.8% em 2017 e 1.5% em 2018. A partir de 2019, quando inicia o governo Jair Bolsonaro, o contingente de matriculados volta a cair: -0,7% em 2019 e 8% apenas em 2020, acumulando uma queda de 2,82% na série histórica, retrocedendo a patamares semelhantes aos verificados em 2015.

No caso das instituições estaduais, o movimento pendular, com dois anos de queda no número de matrículas (2015 = - 2,9%; 2016 = - 1,5%) e dois anos com aumento (2017 = 1,9%; 2018 = 3%), teve como efeito a estabilidade no conjunto. Entretanto, os dois últimos anos da série acumulam retrações de 0,3% em 2019 e de 8% em 2020, tendo como resultado o menor número absoluto de matrículas registrado neste ano, com apenas 221.278. As IES estaduais perderam 18.789 estudantes em 2020 se a comparação é feita com o registro de 2014, uma retração de 7,82%.

No caso dos cursos superiores de tecnologia, conforme apresentado na Tabela 5 , a regra é haver uma significativa participação da iniciativa privada na oferta. Se entre 2014 e 2016 houve uma retração de 11,07%, condizente com os cortes efetuados sobre os recursos disponíveis para o FIES, a partir de 2017, há um consistente crescimento, acumulando uma alta de 60,57% entre 2016 e 2020.

TABELA 5 Matrículas em cursos Tecnológicos, por categoria administrativa - Brasil, 2014-2020 

  Federal Estadual Municipal Privada
Matrículas Variação em relação ao ano anterior (%) Matrículas Variação em relação ao ano anterior (%) Matrículas Variação em relação ao ano anterior (%) Matrículas Variação em relação ao ano anterior (%)
2014 63.118   73.397   5.774   887.478  
2015 68.862 9,1 76.699 4,5 3.648 -36,8 860.933 -3,0
2016 73.951 7,4 79.726 3,9 3.323 -8,9 789.229 -8,3
2017 76.502 3,4 84.558 6,1 2.604 -21,6 835.625 5,9
2018 77.308 1,1 88.750 5,0 2.468 -5,2 929.540 11,2
2019 78.934 2,1 91.462 3,0 2.625 6,3 1.050.830 13,0
2020 76.772 -2,7 87.371 -4,5 2.492 -5,1 1.268.562 20,7

Fonte: A autora (2022), com base nos dados do Censo da Educação Superior (Inep/MEC, 2004-2020).

Em 2014, o setor privado concentrava 86,18% das matrículas. Esse percentual cai, em 2016, para 83,40%, após dois anos consecutivos de queda. A partir de 2017, verifica-se uma consistente tendência de alta no número de matrículas que, somada à queda em IES públicas, elevou a participação em 2020 para 88,38% do total.

A participação dos cursos superiores de tecnologia no conjunto das matrículas das instituições federais e municipais é muito pequena. Todavia, é interessante notar que, apesar da ampliação do número absoluto de vagas na rede federal entre 2014 e 2019, um crescimento de 25% no período, a participação passou por leve retração: 6,67% das matrículas em 2014 e 6,44% em 2019. A queda observada em 2020, na comparação com o ano anterior, reduziu a participação para 5,34% do total.

A participação dos cursos superiores de tecnologia no conjunto das matrículas nas instituições estaduais, embora mais significativa do que a das federais, apresentou um movimento similar. As 73.397 matrículas aferidas em 2014 correspondiam a 7,62% do total. Nos anos seguintes, houve um incremento no total absoluto, chegando a 91.462 em 2019, o maior do período observado. Entretanto, a participação foi reduzida a 7,47%. A retração de 4,5% verificada em 2020 reduziu a participação das IES estaduais a 6,08% do total das matrículas em cursos de tecnologia.

Em síntese, ao se tomar os dados sobre as matrículas em cursos de graduação, conforme aferido pelo Censo da Educação Superior, como indicativo das condições da oferta, é possível verificar que, conforme demonstrado anteriormente, é possível verificar uma sincronicidade entre o movimento das matrículas e a ambiência política e econômica. A fragilidade institucional, que fomenta o sentimento de incerteza com relação ao futuro e cerceia a possibilidade de dignidade material no presente, acaba por limitar e impedir o acesso à educação superior. Em face disso, torna-se necessário pensar tais conclusões à luz do Direito à Educação.

À GUISA DE CONCLUSÃO: TENDÊNCIAS QUE COMPROMETEM O DIREITO À EDUCAÇÃO

A Constituição impõe, em seu artigo 214, a necessidade de se instituir por lei, a cada dez anos, um novo Plano Nacional de Educação. Assim define o texto constitucional:

Art. 214. A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federativas que conduzam a:

  1. erradicação do analfabetismo;

  2. universalização do atendimento escolar;

  3. melhoria da qualidade do ensino;

  4. formação para o trabalho;

  5. promoção humanística, científica e tecnológica do País.

  6. estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto (Brasil, 1988).

O atual Plano Nacional de Educação (PNE), consubstanciado na Lei n. 13.005/2014, foi aprovado em 2014 e tem vigência, portanto, até o ano de 2024. Ele é composto por vinte metas e cada uma dessas metas se faz acompanhar por um conjunto de estratégias. No que se refere à educação superior, cabe destacar a meta 12, que diz respeito à expansão do acesso. O objetivo é elevar a taxa bruta de matrículas para 50% e a taxa líquida para 33% da população entre 18 e 24 anos de idade, ampliando a oferta em instituições públicas a um patamar mínimo de 40% até o final da década. Uma meta ambiciosa, considerando que, em 2013, a taxa bruta de matrículas era de 30,3% e a taxa líquida era de apenas 20,2% da população entre 18 e 24 anos de idade (BRASIL/MEC/INEP, 2015) e que, conforme demonstrado anteriormente, as instituições públicas respondem por cerca de 25% da oferta, patamar que se encontrava estável desde os anos 2000, apresentando uma importante redução em 2020.

Além disso, em 2016, foi aprovada a Emenda Constitucional n. 95, que institui um novo regime fiscal que, na prática, congela os gastos sociais durante os vinte anos seguintes, com efeitos sobre a atividade econômica do país, potencialmente piorando o quadro fiscal e, portanto, reduzindo a capacidade do próprio governo de financiar as políticas públicas (FÓRUM 21 et al., 2016).

Com um olhar crítico sobre as ações do governo federal (ajustes fiscais e metas do PNE), observa-se algumas contradições – de um lado o controle dos gastos, a austeridade fiscal e, de outro lado, as metas e estratégias para o cumprimento do PNE. O problema é que, se há aumento no número de alunos, cursos e vagas, imediatamente haverá elevação nos recursos de manutenção e investimentos tanto nas escolas quanto nas universidades. Isso significa que os objetivos da EC 95/2016 vão de encontro às propostas do PNE, não havendo compatibilidade entre eles (DUTRA; BRISOLLA, 2020, p. 13-14).

Portanto, o que já seria difícil de ser executado em condições normais, diante de uma conjuntura de abandono do PNE pelo governo, de austeridade fiscal e de contestação e ataque ao legado da Constituição de 1988, torna-se inviável. No caso da Educação, os ataques ganham materialidade pela redução dos investimentos públicos, como já demonstrado na Tabela 1 , bem como por iniciativas que pretendem desresponsabilizar o Estado da manutenção de suas instituições.

Além de sucessivos contingenciamentos e cortes no orçamento, que têm dificultado o trabalho nas instituições federais, a proposição do “Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras – Future-se” em julho de 2019, por meio de um projeto de lei, escancarou a lógica que orienta o Governo Bolsonaro. A resposta para o problema da falta de recursos é a assunção do mercado como modelo de governança, numa lógica de concorrência que, se desagradou as universidades federais, foi acolhido como um elogio ao setor privado, que então se apresentou como um modelo a ser seguido. Em linhas gerais, o que o projeto previa é que, por meio de “contratos de desempenho” com Organizações Sociais, Fundações de Apoio, Fundos Patrimoniais e Fundos de Investimento, as instituições federais passem a ter autonomia financeira (SOUSA; COIMBRA, 2020; STUCHI et al., 2020). A questão é que, de acordo com a Constituição, em seu artigo 207, a autonomia de que as universidades gozam é de gestão financeira e patrimonial, além da autonomia didático-científica e administrativa, que não se confundem com autonomia financeira. Em suma, trata-se de um mecanismo que pretende retirar do governo federal a responsabilidade com a manutenção de sua rede de instituições.

Entre seus conteúdos não se vê (ou se vê vagamente) qualquer menção ao ensino, papel e responsabilidade social da universidade pública; inclusão social; proposta de expansão na oferta do número de vagas; articulação entre as diversas áreas do conhecimento e sua igual valorização; extensão universitária, dentre outras características óbvias para um entendimento democrático da universidade brasileira. Na contramão disso, o documento, em seu título, mostra o seu perfil privatista (QUIROGA, 2020, p. 4).

“Future-se”, um neologismo estranho que quer transformar um substantivo (futuro) em verbo conjugado no imperativo. Uma ordem, sem direito à contestação e ao contraditório, que sugere não haver escolha, a não ser a submissão ao mercado. Mercado esse que, no Brasil, está passando por um franco processo de concentração: em 2018, os doze maiores Grupos Consolidadores Educacionais Privados concentravam 45,4% de todas as matrículas do ensino superior privado (HOPER EDUCAÇÃO, 2020). Empresas essas constituídas e mobilizadas pela necessidade de garantir o lucro de seus acionistas, o mais rápido possível.

A questão é que a temporalidade da produção do conhecimento em geral e da ciência em particular, embora possa ter vasos comunicantes com o mercado, não é a mesma. Além disso, estima-se que 95% de toda a pesquisa científica realizada no país seja resultado do trabalho das universidades públicas (NETTO, 2020). Ou seja, comparar instituições públicas (que são, majoritariamente, universidades) com instituições privadas com foco no lucro é desonesto porque se trata de instituições com perfis e objetivos muito distintos.

Tais investidas constituem um cenário de fortalecimento daquilo que Henry A. Giroux (2014) chama de ataque contra as universidades e o pensamento crítico. Embora o autor trate da realidade dos Estados Unidos, há muitos pontos em comum com a conjuntura brasileira contemporânea. Trata-se de uma nova conjuntura em que um crescente número de grupos tem sido considerado descartáveis (a condução da crise sanitária decorrente da pandemia de Covid-19 reforça essa impressão), em que valores públicos têm sido colapsados e a democracia tem sido tomada de assalto por grupos ultra ricos e por megacorporações que, em nome do crescimento econômico, sacrificam as necessidades da sociedade. Tal movimento tem impactos sobre a frágil democracia brasileira, comprometendo estruturalmente o pacto firmado na Constituição de 1988 e, por decorrência, comprometendo os avanços inegáveis na garantia do acesso à educação superior.

Todavia, diferente do quadro construído por Giroux (2014) para os EUA, no caso brasileiro, trata-se da retomada do poder pelos grupos que sempre o tiveram nas mãos, numa subordinação ao mercado financeiro global. Para Fagnani, o período 1988-2015, marcado pelas lutas sobre a efetividade da Constituição de 1988, é que foi um ciclo improvável.

A regressão da cidadania social, em curso, é o desfecho do longo processo de reação contra as conquistas dos movimentos sociais dos anos de 1970 e 1980. A Constituição de 1988, desaguadouro daquele processo, inaugurou uma etapa inédita de construção da cidadania, desenhando-se um sistema de proteção social inspirado em alguns valores do Estado de Bem-Estar Social: universalidade (em contraposição à focalização); seguridade social (em contraposição ao seguro social); e direito (em contraposição ao assistencialismo) (FAGNANI, 2017, p. 2).

Os dados apresentados indicam a tendência à precarização do financiamento das instituições públicas, comprometendo a capacidade do país de produzir conhecimento e, portanto, soberania. Além disso, é possível que a capacidade de expansão das instituições públicas seja prejudicada e que a democratização testemunhada, sobretudo a partir de 2013 (MOREIRA; SILVA, 2019), passe por estrangulamento.

No que se refere ao setor privado, a tendência é imperar a lógica de maximização dos lucros. De um lado, uma oferta massificada e de baixa qualidade via EaD – aspecto que requer uma análise mais pormenorizada a partir dos dados disponíveis do Censo da Educação Superior, mas que transcendem o propósito deste texto. De outro, a oferta de um segmento premium, de mensalidades elevadas, sob medida para uma elite desejosa de diferenciação social. Em ambos os casos, o Estado participa por meio da renúncia fiscal em troca de algumas bolsas que premiam o mérito, fortalecendo as desigualdades que se anuncia combater, por meio do ProUni (MOREIRA, 2018).

O futuro que se deseja impor pelo governo Bolsonaro é marcado pela desigualdade, pela sujeição ao mercado, pela compreensão da educação como um bem privado e, no caso da educação superior, um bem exclusivo e para poucos. Por isso que as universidades públicas foram eleitas como um inimigo a ser abatido: elas constituem, dada a natureza de seu trabalho, um foco de resistência.

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1Cabe um esclarecimento: durante o processo constituinte (1987-1988), a diversidade institucional foi tema de acalorado debate, incluindo também a proposta de criação de Centros Universitários, da parte do constituinte Bonifácio Andrada (PDS-MG). Embora a inovação somente tenha sido introduzida efetivamente na década de 1990, em consequência da aprovação da LDBEN em 1996, já havia, durante a Assembleia Nacional Constituinte, a movimentação de representantes do setor privado e do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (CRUB) no sentido não apenas de ampliar a diversidade, mas, também, garantir tratamento equivalente ao conferido às IES públicas, sobretudo no que se refere à garantia da autonomia. Para compreender melhor esse debate, sugere-se a leitura de Pinheiro (1992) e Nogueira (2009).

2O debate propriamente dito acerca das características do segundo governo Dilma e a questão da fragilização da democracia demandariam um esforço específico de reflexão, que escapam ao escopo deste trabalho, que se encontra focado nas potenciais consequências sobre as condições de oferta e financiamento da Educação Superior. Scaff, Oliveira e Lima (2018) realizam um importante esforço analítico desse momento.

Recebido: 17 de Junho de 2022; Aceito: 14 de Dezembro de 2022

Claudia Regina Baukat Silveira Moreira Bacharela, Licenciada e Mestra em História pela UFPR. Doutora em Educação pela UFPR. Foi professora da Educação Básica, na Rede Municipal de Educação de Curitiba, durante 14 anos e da rede privada de Educação Superior durante 16 anos. Atualmente é professora do Departamento de Planejamento e Administração Escolar da Universidade Federal do Paraná, UFPR, integrando o Núcleo de Políticas Educacionais. É também professora do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE-UFPR). E-mail: claudiamoreira@ufpr.br

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