INTRODUÇÃO
Popularmente o termo “indigestão” é associado à dificuldade de digerir alimentos, a qual é motivada pelo excesso ou pela má qualidade dos alimentos. A analogia aqui feita com o princípio da gestão democrática do ensino público tem relação com o excesso de interpretações equivocadas, as quais se dão pela má qualidade e/ou pela falta de aprofundamento teórico sobre a questão.
A fragilidade da discussão acerca do significado e dos impactos da gestão democrática para a educação pública reduz ou anula a possibilidade de enfrentamento às propostas de formação dos profissionais da educação, especialmente quando se defende que a ação deve ser coletiva e com o compromisso de emancipação humana.
No mesmo sentido, a analogia feita com o termo “deformar” tem relação com o processo de descaracterizar, mudar para pior, corromper a ação dos gestores escolares por meio de processos formativos que têm objetivos que caminham na contramão de uma formação emancipatória.
Atualmente, a educação pública tem sido solo fértil para propostas de formação dos profissionais da educação que se fundamentam na lógica capitalista. Tais propostas têm encontrado guarida em diferentes municípios, os quais se curvam aos agentes privados que ofertam pacotes para a formação dos profissionais que atuam na educação pública. Nesse contexto, a formação dos gestores escolares mostra-se importante, visto que tais profissionais têm a capacidade e a capilaridade para reorganizar as escolas públicas, redirecionar a ação docente, influenciar a comunidade externa à escola, e, consequentemente, agir como prepostos dos interesses de grupos empresariais.
Desvendar o emaranhado que envolve tais relações não é tarefa fácil. Por isso, no presente texto, apresentamos reflexões sobre a relação entre o princípio da gestão democrática e a formação de gestores escolares em municípios paranaenses que têm se curvado às propostas formativas de agentes privados. Para atingir o objetivo proposto, organizamos o texto da seguinte forma: tecemos considerações sobre como o entendimento acerca da gestão, da gestão escolar e da gestão democrática pode interferir na qualidade da educação, de modo a privilegiar uma qualidade voltada aos interesses capitalistas em detrimento de uma qualidade socialmente referenciada; em seguida, apontamos exemplos sobre a presença dos agentes privados nas redes municipais e estadual do Paraná; por fim, na conclusões, resumimos como se dá a presença de agentes privados na formação de gestores escolares.
GESTÃO ESCOLAR, GESTÃO DEMOCRÁTICA E SUA RELAÇÃO COM A QUALIDADE DA ESCOLA
O termo “gestão”, de íntima relação com a administração, tem origem do latim e significa atividade relacionada ao ato de administrar recursos, pessoas, ações determinadas. Além disso, a gestão assume importância teórica e prática no contexto da administração capitalista, visto que expressa, nesse contexto, uma complexidade de tarefas a serem desenvolvidas, conforme recursos disponíveis e objetivos perseguidos, os quais visam ao controle e a direção da atividade laboral de grupos específicos de trabalhadores.
Ao refletir sobre o conceito de administração em geral, Paro (2005, p. 18) propõe que “[...] a administração é a utilização racional de recursos para a realização de fins determinados” e se caracteriza como uma atividade essencialmente humana, uma vez que possibilita a transformação planejada da natureza em prol de suas necessidades. Em que pese o caráter positivo da administração no processo de transformação da natureza e na produção de valores de uso, na sociedade capitalista, “[...] ao mediar a exploração do trabalho pelo capital, coloca-se a serviço da classe interessada na manutenção da ordem social vigente, exercendo, com isso, função nitidamente conservadora” (PARO, 2005, p. 81). Superar essa função conservadora, que tem por princípio a exploração de uma classe sobre a outra, e assumir um posicionamento transformador da realidade são os grandes desafios a serem enfrentados pela administração e/ou pela gestão, dado que “[...] a administração estará tanto mais comprometida com a transformação social quanto mais os objetivos por ela perseguidos estiverem articulados com essa transformação” (PARO, 2005, p. 81). É nesse contexto, e com vistas a encontrar caminhos para superar a organização social pautada na exploração, na exclusão e na desigualdade, que a escola assume papel primordial e a gestão escolar se mostra como importante e necessária 1 .
Entretanto, Hora (1994, 2007) alerta que, na realidade brasileira, há uma tendência em adotar pressupostos da administração de empresas para a educação. Isso foi identificado por estudo clássico da área:
O Estado e as empresas privadas encontraram nos estudos de administração os elementos para remover suas dificuldades decorrentes do “progresso” social e a escola não precisou mais do que inspirar-se neles para resolver as suas. Acresce ainda que, sendo evidente a semelhança dos fatores que criam a necessidade dos estudos de administração pública ou privada, a escola teve apenas de adaptá-los a sua realidade. Assim, a ADMINISTRAÇÃO ESCOLAR encontra seu último fundamento nos estudos gerais de administração. (RIBEIRO, 1952, p. 78, grifo do autor).
A adoção de princípios e de pressupostos da administração de empresas no campo da Educação esteve atrelada à preocupação em organizar e em administrar a organização escolar sob determinados padrões de eficiência, de racionalização e de produtividade, os quais, consequentemente, estão articulados às determinações socioeconômicas que visam manter e expandir o modo de produção capitalista, e, dessa forma, perpetuar diferenças sociais (HORA, 2007).
Para superar a lógica que impera sob o capital, a educação escolar precisa constituir-se em elemento de transformação social, que tenha o compromisso com a superação da sociedade de classes, quer dizer, tenha o compromisso com um novo modo de produção. Embora a escola não tenha possibilidades de realizar sozinha esse processo de transformação social, não é possível desconsiderarmos sua potencialidade em contribuir no processo. A escola, em uma perspectiva transformadora, é aquela que se desvincula dos interesses propriamente capitalistas; em outras palavras, é uma escola desinteressada. Sobre essa questão, e a partir dos escritos de Antonio Gramsci, Jesus (2005) esclarece que:
“Desinteressado” não quer dizer neutro ou indiferente. Deve ser também afastada a conotação pejorativa de pouco interesse, de descaso. Pelo contrário, uma escola “desinteressada” vai significar que ela tem a função de formar “onilateralmente” os homens. [...]. A escola “desinteressada” tem como grande perspectiva pedagógica “a formação de Homens superiores”. (JESUS, 2005, p. 58, grifos do autor).
Nesse sentido, é possível afirmarmos que a escola desvinculada dos interesses capitalistas é aquela que tem como horizonte o futuro dos homens e da sociedade, radicalmente fundado no presente; dito de outro modo, uma escola com processos organizacionais distantes daqueles que fundamentam a lógica capitalista, de forma a colaborar para a emancipação humana. Nessa perspectiva, a escola aglutina elementos importantes para a formação crítica, ética e revolucionária da comunidade escolar. Dentre os elementos que podem colaborar para a formação voltada à emancipação humana, destacam-se os processos organizacionais que viabilizam a participação e o trabalho coletivo em todos os setores da escola, sejam eles administrativo, pedagógico ou financeiro. É nesse contexto que a administração escolar supera a lógica capitalista e assume uma perspectiva social com pressupostos vinculados à gestão democrática.
No entanto, é preciso termos clareza que, vinculada a “[...] valores éticos e compromissos políticos que determinam os fins e objetivos da educação” (SANDER, 2007, p. 14), a gestão educacional não é neutra, visto que “[...] desempenha um papel político e cultural específico, situado no tempo e no espaço” (SANDER, 2007, p. 14), e, como tal, é expressão ideológica da hegemonia em determinado momento histórico. Por isso, pensar a gestão escolar como possibilidade transformadora da realidade pode constituir-se em um verdadeiro processo revolucionário, pois colabora para a superação das formas burocráticas, excludentes, autoritárias e conservadoras que se fazem presentes na lógica capitalista.
Na atual forma de sociabilidade, mesmo propostas adjetivadas como “democráticas” precisam ser analisadas com cautela, pois a democracia mostra- se limitada e pode esconder interesses e compromissos que se distanciam da coletividade e se vinculam aos grupos que detêm o poder econômico e o controle social. No limite, sob o jugo capitalista, a democracia é uma realidade que se distancia da possibilidade de um processo revolucionário dos trabalhadores, uma vez que se fundamenta nos pressupostos revolucionários burgueses de liberdade, igualdade e fraternidade, os quais se mostram limitados em uma perspectiva de ampliação da participação da classe trabalhadora nos processos gestionários.
A igualdade formal instituída pela defesa jurídica que se fundamenta na igualdade política é um misto de verdade e engano, pois, ao mesmo tempo que coloca todos os indivíduos como pertencentes à mesma sociedade, iguais em direitos e deveres, torna a relação econômica meritocrática e não oferece as condições mínimas para a compreensão de que a igualdade econômica é nula. O pressuposto da liberdade coloca as classes sociais como livres e “iguais”, de modo que o burguês é livre para comprar e o trabalhador é livre para vender a força de trabalho, obscurecendo a exploração do trabalho humano que alicerça tal relação. Por fim, o pressuposto de fraternidade coloca sob os ombros do trabalhador novo peso, a aceitação e a subserviência aos outros dois pressupostos, impedindo que vislumbre outra possibilidade de vida. (FLACH, 2020, p. 78-79).
A Constituição Republicana de 1988, elaborada sob o sopro democrático que findou o período autoritário de governos militares no Brasil, indica, em vários pontos, como a democracia está presente na sociedade tupiniquim 2 e, consequentemente, como se faz presente em instituições escolares. O princípio da isonomia previsto no Art. 5º da Carta Magna indica que “todos são iguais perante a lei” e assegura o direito à liberdade e à igualdade (BRASIL, 1988). Além disso, a “sociedade fraterna”, indicada no preâmbulo do documento constitucional, funda- se na harmonia e no compromisso social, os quais podem ser entendidos como responsabilização e participação da sociedade na definição dos rumos sociais e políticos do país. Tais previsões colocam todos os brasileiros em situação de igualdade e de liberdade formais, visto que a Constituição não considera a desigualdade como fundante da sociedade de classes e, ainda, abre possibilidades para que grupos com poder econômico, em prol do compromisso social, determinem modos de pensar e de agir.
No campo da Educação, os pressupostos burgueses também se fazem presentes. A gestão democrática dá, como princípio constitucional, corpo e vida à organização administrativa, pedagógica e financeira das escolas públicas e é prevista na legislação infraconstitucional. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) – Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, além de reafirmar, no Art. 2º, que a educação se inspira nos “[...] princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana” (BRASIL, 1996, n.p.), reafirma, no Art. 3º, inciso VIII, a gestão democrática como princípio da educação e do ensino e indica algumas formas para que o exercício democrático se faça presente na oferta educacional pública (BRASIL, 1996). Dentre essas formas, destacam-se a participação dos profissionais da educação na elaboração da proposta pedagógica da escola (Art. 13, inciso I, e Art. 14, inciso I, da LDBEN/1996) e a participação da comunidade escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes (Art. 14, inciso II, da LDBEN/1996). No que se refere à formação continuada e à capacitação dos profissionais da educação, a Lei N° 9.394/1996 estabelece, em seu Art. 62, § 1º, que elas devem ser promovidas em regime de colaboração entre União, Estados e Município (BRASIL, 1996).
Observamos nos estudos realizados no âmbito dos grupos de pesquisa, que os diversos entes da administração pública têm se valido dos princípios da democracia burguesa para abrir espaço para entes privados (entendidos como sociedade civil) estarem presentes na educação por meio da oferta de pacotes educacionais para educandos e de pacotes formativos para os profissionais da educação. Essa estratégia, mesmo que sob os auspícios democráticos que fundamentam os documentos legais e normativos brasileiros, coloca os rumos da educação e da formação de cidadãos na seara dos interesses capitalistas, os quais se distanciam de uma formação ampla e emancipadora e ainda buscam impor pressupostos de qualidade educacional orientados pela lógica capitalista.
A participação de grupos privados na educação pública brasileira, objeto de estudo de diferentes pesquisadores, tem se ampliado nos últimos anos e ocorre de diferentes formas: venda de pacotes educacionais e sistemas de avaliação de forma a reduzir a oferta educacional a um serviço comercial (SIQUEIRA, 2004); parcerias público-privadas para a indução de processos pedagógicos no interior das escolas, especialmente com a utilização de sistema de apostilamento e de assessorias didático-pedagógicas (ADRIÃO et al. , 2009; BEGO, 2017; BEGO, TERRAZZAN, 2015); além da formação continuada de professores e de gestores escolares (PARO, 2009; MAIA, OLIVEIRA, 2019). É importante destacarmos que essa participação, entendida nos limites da ampliação da participação da sociedade civil na educação pública, assume princípios da administração capitalista, baseados na redefinição do Estado e na Nova Gestão Pública e/ou no gerencialismo, pautados em novos modos de governança, os quais pregam a supremacia do mercado e transformam a “sociedade civil” em um “álibi para o capitalismo” (WOOD, 2003, p. 205). Nessa perspectiva, a educação pública fica à mercê dos interesses capitalistas, visto que a educação e a escola são entendidas como meros insumos do processo produtivo.
A atuação de agentes privados na educação pública mascara o caráter público da oferta educacional, ocorrendo um “[...] esvaziamento dos sentidos político- sociais do bem público, uma vez que a lógica que passa a ser adotada, de acordo com o tipo de ação desenvolvida, inclina-se à predileção pela lógica do mercado” (SCHERER; NASCIMENTO; CÓSSIO, 2020, p. 6), e, ainda, supostamente, se pauta em princípios democráticos, os quais, na realidade, desvalorizam a própria democracia e minam as possibilidades de aperfeiçoamento da gestão democrática na educação e na escola. Nesse viés, Wood (2003, p. 217) alerta que:
“Sociedade civil” constitui não somente uma relação inteiramente nova entre o “público” e o “privado”, mas um reino “privado” inteiramente novo, com clara presença e opressão pública própria, uma estrutura de poder e dominação única e uma cruel lógica sistêmica. Representa uma rede particular de relações sociais que não apenas se coloca em oposição às funções coercitivas, “policiais” e “administrativas” do Estado, mas também a transferência dessas funções, ou no mínimo, de uma parte significativa delas.
Nessa teia de relações que redefinem o entendimento de gestão democrática e da consequente necessidade de trabalho coletivo, há, também, uma redefinição do entendimento sobre qualidade educacional, a qual está vinculada aos ditames da lógica capitalista. Silva (2009, p. 219) alerta que, no campo econômico, “[...] o conceito de qualidade dispõe de parâmetros de utilidade, praticidade e comparabilidade, utilizando medidas e níveis mensuráveis, padrões, rankings , testes comparativos, hierarquização e estandardização próprias do âmbito mercantil”, e que, ao ser transposto para o campo da Educação, contribui para a “[...] descaracterização da educação pública como um direito social” (SILVA, 2009, p. 219). Isso ocorre em razão de que há priorização de princípios voltados à competitividade, à hierarquização de escolas, à padronização e ao controle do trabalho pedagógico por meio do esvaziamento curricular e do individualismo exacerbado.
Nesse contexto de alastramento dos princípios econômicos no campo educacional, o objetivo da educação sofre uma clivagem. A garantia do direito à educação para todos com perspectivas de transformação da realidade vivida é substituída pela preservação da ordem social por meio da composição da força de trabalho e de formação de consumidores (SILVA, 2009).
A lógica gerencialista que orienta o entendimento sobre qualidade da educação determina a busca pela quantidade, pois tem seu foco na eficiência e na produtividade; em outras palavras, a educação precisa ser ágil nos processos pedagógicos e administrativos, mesmo que durante o percurso muitos sejam excluídos. A agilidade da escola em atender às exigências do mercado ignora a igualdade, a justiça, a coletividade. Todavia, para atingir os objetivos gerencialistas, o trabalho é maximizado por meio da padronização e do controle do processo educativo, da redução de custos e da responsabilização individual pelos resultados alcançados. Aqui se cumpre o que Gramsci (2007, p. 261) observou na relação entre a produção americana e os pressupostos fordistas: “[...] a política da qualidade determina quase sempre o seu oposto: uma quantidade desqualificada”, pois, ao priorizar instrumentos de controle, de fiscalização e de pressão sobre o processo de trabalho, contribui para resultados aparentes.
Quanto aos limites da utilização de critérios econômicos para atribuir qualidade à educação, Silva (2009) alerta que o mercado é imperfeito e incapaz de corrigir questões sociais, as quais tendem a se agravar cada vez mais no contexto capitalista. Por isso, a gestão escolar pautada em tais pressupostos também é limitada e conservadora, contribuindo para o agravamento dos problemas educacionais e sociais, os quais só podem ser superados sob outra lógica.
No limite do texto aqui apresentado, defendemos uma educação de qualidade social, quer dizer, uma “[...] educação comprometida com a formação do estudante com vistas à emancipação humana e social” (BELLONI, 2003, p. 232), que tenha como meta “[...] a formação de cidadãos capazes de construir uma sociedade fundada nos princípios da justiça social, da igualdade e da democracia” (BELLONI, 2003, p. 232). Sob a lógica da qualidade social, a escola tem possibilidades de vivenciar a participação ampla por meio de uma verdadeira gestão democrática, a qual possibilita uma vasta discussão e a construção de estratégias coletivas para a superação dos problemas vividos. Assim, os envolvidos passam a ser sujeitos da sua própria história e da história coletiva.
Todavia, a abertura dada pelo poder público para a entrada dos agentes privados na formação de profissionais da educação e, em especial, dos gestores escolares reafirma os pressupostos gerencialistas e coloca a educação de qualidade social gradativamente mais longe, visto que a gestão escolar passa a ser exercida cada vez mais distante dos processos democráticos e cada vez mais próxima de práticas autoritárias, de controle e de fiscalização. É o que pretendemos discutir a seguir.
A PRESENÇA DE AGENTES PRIVADOS NA FORMAÇÃO DE GESTORES ESCOLARES
Como apontamos anteriormente, a entrada dos agentes privados no âmbito das redes municipais e estaduais vem ganhando presença de forma mais ampliada e articulada. A gestão escolar é um elemento de destaque, tanto nas orientações internacionais, como na atuação de dois principais movimentos na disputa pela educação pública: “Todos pela Educação” (TPE) e “Todos pela Base”, que atuam em todo o território brasileiro por meio de projetos e/ou de ações coordenadas por um conjunto de agentes: institutos, associações, fundações ligadas a grandes conglomerados empresariais.
No site do Todos pela Educação, identificamos uma grande frente de atuação do movimento “Educação Já!” ( Figura 1 ), lançado em 2018 como instrumento do Todos Pela Educação, em articulação com políticas centrais para a instituição do Sistema Nacional de Educação (SNE), nos âmbitos do financiamento, do pacto federativo, do regime de colaboração, das políticas de formação de professores, do currículo, da avaliação e da gestão pública. Conta com o “[...] apoio das organizações mantenedoras do TPE, 75 especialistas e profissionais, a parceria e o patrocínio adicional das seguintes organizações: Fundação Lemann, Instituto Natura, Instituto Unibanco, Itaú BBA, Itaú Social e Falconi Educação” (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2018, p. 7).
Essas temáticas prioritárias estão sendo efetivadas nas escolas públicas, por meio de projetos e de programas em parceria com diferentes institutos, associações e fundações, o que indica que a formação dos gestores, em grande medida, está sendo realizada a partir dessa agenda. Não queremos dizer que não há disputa e/ou contradições nesse processo. Com muito esforço, universidades públicas, associações importantes como a Associação Nacional de Política e Administração da Educação (Anpae) e a Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (Anfope) vêm realizando um contraponto importante e fundamental nesse contexto a partir de cursos/palestras/eventos/revistas, de posicionamentos públicos e de embates no âmbito das esferas governamentais.
A partir desse indicativo sobre a agenda do TPE, podemos destacar um grande protagonista nesse processo de disputa por um projeto educacional alinhado aos interesses da burguesia, a denominada Fundação Lemann 3 , com atuação em duas principais frentes: a educação pública e a formação de lideranças. Dentre os principais parceiros, destacamos: Instituto Reúna; Instituto Gesto; Bem Comum; Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID); Fundação Getulio Vargas (FGV); Conselho dos Secretários de Educação (Consed); Fundação Estudar; Fundação Roberto Marinho; Fundação Telefônica Vivo; Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper); Instituto Canoa; Humanize; Instituto Natura; Instituto Unibanco; Movimento pela Base Nacional Comum; TPE; União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime); Vetor Brasil, entre outros 4 .
Pela descrição dos parceiros, fica evidente a atuação de diferentes agentes privados e de articuladores chaves na implementação de políticas, como o Consed e a Undime, que, por meio das Secretarias Municipais e Estaduais, organizam e oferecem a formação continuada para os professores e os gestores das escolas públicas.
Identificar todas as ações e os projetos articulados especialmente pelo Movimento pela Base Nacional Comum não é algo simples. Citamos esse movimento por tratar-se de algo atual devido à aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) em 2017, por meio da Resolução Nº 2, de 22 de dezembro, que altera significativamente o currículo, a formação de professores e a avaliação nas escolas (BRASIL, 2017). Podemos identificar que a grande pauta dos cursos de formação permeia a implementação da BNCC, sendo um grande objetivo que une todos os parceiros anteriormente citados.
No site do Movimento pela Base Nacional Comum, fica evidente a grande preocupação com o monitoramento referente à implementação da BNCC. Há um espaço específico para o observatório de acompanhamento em todos os municípios brasileiros, na Educação Infantil, no Ensino Fundamental e no Ensino Médio. O que causa grande estranheza e indignação é como esse movimento está ampliado e consegue reunir tantos dados das escolas públicas brasileiras, com envolvimento direto de grandes empresas juntamente ao imprescindível apoio do Consed e da Undime. Os sites das Secretarias Municipais não possuem tanta informação como o site do Movimento pela Base Nacional Comum, indicando a atuação dos agentes privados tanto na elaboração da BNCC quanto no processo de sua implementação. Além disso, o site do Movimento pela Base Nacional Comum vem se firmando como significativa esfera de divulgação de ações relativas à sua atuação no âmbito das políticas nacionais. O mapa do site dá foco à BNCC, a partir da organização de indicadores, de pesquisas, de análises e de divulgação de “boas” práticas.
A busca pelo Estado do Paraná, no site , aponta, em texto publicado em 27 de outubro de 2021, que “[...] 395 municípios paranaenses já têm seus currículos alinhados à BNCC. O esforço da Undime, das secretarias municipais de educação e dos conselhos municipais de educação de todo o estado são essenciais para construir esse cenário” (MOVIMENTO PELA BASE, 2021, n.p.).
No que se refere à formação dos gestores para implementação da BNCC, identificamos um Guia 5 para os gestores das escolas com orientações para a formação continuada e revisão do Projeto Pedagógico à luz dos novos currículos, elaborado pela Undime, pelo Consed, pelo Ministério da Educação (MEC) e com apoio técnico do Movimento Todos pela Base. O documento apresenta a seguinte mensagem na abertura:
Querido gestor, a partir de 2020 os professores devem começar a ser formados para o trabalho com os novos referenciais curriculares alinhados à Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Você terá um papel fundamental: é o responsável por liderar a revisão do Projeto Pedagógico (PPP ou PP) e a formação continuada dos professores na escola, duas ações imprescindíveis para que os novos currículos cheguem às salas de aula e apoiem cada dia mais professores e alunos. (BRASIL, 2019, p. 2).
O Guia indica os elementos para revisão dos Projetos Pedagógicos, além de orientações de como conduzir o processo de revisão direcionado para os gestores. Além do Guia, o Movimento pela Base Nacional Comum também participou da produção de outros materiais para apoiar gestores escolares no processo de revisão dos projetos pedagógicos. Isso denota a interferência direta dos agentes privados via Movimento pela Base Nacional Comum, Undime e Consed na organização e na gestão das escolas, bem como na elaboração dos projetos pedagógicos das escolas, de forma a interferir diretamente na autonomia das escolas e criar um padrão nos processos gestionários sem considerar as especificidades de cada comunidade escolar.
O Paraná não está fora desse movimento do grande capital, no sentido de imprimir cada vez mais um caráter de oferta educacional como um serviço não exclusivo do Estado. Como ponto de partida de atuação da Fundação Lemann, destacamos o Programa Formar (anteriormente denominado de Gestão para Aprendizagem), implementado em Ponta Grossa e em Castro. Segundo Sakata e Lima (2019, p. 531):
Com duração de dois anos, ele atua de forma integrada na rede, ao apoiar desde lideranças pedagógicas da secretaria até professores que estão diariamente na sala de aula. Criando estratégias para Secretarias de Educação junto aos gestores das escolas, as ações são alinhadas com um objetivo comum: melhorar a aprendizagem dos alunos.
Os temas centrais do Programa são: liderança e gestão estratégica. Como apontam Sakata e Lima (2019, p. 531), “[...] em 2016, o curso já havia formado mais de 3.000 gestores e 5.000 professores, alcançando mais de 1.500 escolas atendidas em todo o Brasil”. No segundo semestre de 2016, de acordo com o relatório anual, o Programa estava em andamento em nove regiões que foram selecionadas na época: as redes municipais de Campina Grande, Paraíba (PB), de Recife, Pernambuco (PE), de Franca, São Paulo (SP), de Taubaté (SP), de Campos de Jordão (SP), de Castro, Paraná (PR), e de Ponta Grossa (PR) ; e as redes estaduais de Alagoas e de Sergipe. O termo de cooperação técnica entre a Fundação Lemann e Castro foi firmado em 24 de agosto de 2016, e o termo de cooperação técnica entre Ponta Grossa e Fundação Lemann foi firmado em 30 de agosto do mesmo ano.
Não buscamos aqui detalhar esse Programa, mas indicar a presença dos agentes privados desde 2016 no que se refere à formação dos gestores e dos professores. No site da Fundação Lemann, o Programa, hoje denominado Formar, em parceria com o Instituto Gesto, ainda permanece com atuação em Ponta Grossa e Castro, com a seguinte caracterização: “[...] programa Formar é destinado ao aperfeiçoamento da gestão de redes públicas de educação no Brasil por meio do acompanhamento de políticas educacionais e a troca de experiências entre as 27 redes estaduais e municipais participantes” (FUNDAÇÃO LEMANN, 2022, n.p.). Com relação a números, atinge 1.6 milhão de alunos, 72 mil docentes, 4.6 mil escolas em 27 cidades.
É importante apontarmos as diferentes formas de entradas dos agentes privados nas redes municipais e estaduais, com destaque para o Paraná, local que realizamos, via grupo de pesquisa 6 , estudos e pesquisas sobre o tema: termos de cooperação técnica como o caso do Programa Formar; compra de pacotes educacionais (material e didático e formação continuada); cursos via plataformas digitais diretamente ao professor divulgados pelas Secretarias e amplamente divulgados nas redes sociais, como o Projeto Trilhas, ofertado pelo Instituto Natura; gestão de pessoas no setor público – no caso do Paraná, dá-se pela seleção dos chefes do Núcleos Regionais de Educação (NRE)/Coordenadorias em parceria com a Fundação Lemann.
Cada forma de entrada e de inserção poderia ser estudada separadamente, pois são muitas frentes que os agentes privados atuam. Entretanto, é importante demarcarmos a totalidade do processo, o que implica compreendermos que isso faz parte de um grande projeto em que o Estado continua sendo o responsável pelo acesso, mas o conteúdo pedagógico e de gestão da escola é cada vez mais determinado por instituições que introduzem a lógica mercantil, as quais entendem o âmbito educacional como uma oportunidade e uma estratégia de negócios (ADRIÃO; SILVA, 2020; PERONI, 2018).
A partir de levantamento realizado no Grupo de Pesquisa Estado, Políticas e Gestão em Educação (Unicentro/Irati-PR), com os dados sobre os processos de privatização no âmbito das redes municipais de ensino da Mesorregião Sudeste do Paraná7, identificamos o total de 17 iniciativas de relação entre público e privado nos munícipios, bem como a atuação de agentes privados nas redes municipais de ensino em sete municípios da região estudada, ressaltando que, em um mesmo município, pode existir mais de uma iniciativa.
O Sistema Educacional Família e Escola Ltda (Sefe) é o agente privado com maior atuação nos munícipios da Mesorregião Sudeste do Paraná. O Sefe faz parte do Grupo Educacional Opet e trabalha com materiais didáticos, atendimento às escolas, formação continuada de professores, apoio à gestão escolar e aproximação entre família e escola. As ações desse agente privado focam no currículo via material didático, além de formação continuada para os professores e gestores como parte do pacote de serviços.
Esses exemplos indicam que a presença dos agentes privados parte de um discurso de melhoria da qualidade de ensino pautado na lógica gerencialista, para a qual a eficiência e a produtividade são eixos estruturantes para a defesa de uma educação de qualidade, em detrimento de uma educação socialmente referenciada, que possa colaborar na compreensão das contradições da realidade concreta e possibilitar um outro modo de vida, pautado na igualdade, na liberdade e na justiça social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como vimos, por um lado, a lógica gerencialista e empresarial está presente de forma crescente e ampliada nas redes públicas de ensino; no caso da gestão escolar, foco dessa reflexão, a presença e a influência se dá pelo controle dos currículos, dos processos de avaliação externa, bem como pelos elementos meritocráticos na disputa pelos melhores índices. Por outro lado, a gestão democrática é, tal como prevê a Constituição Federal e os dispositivos infraconstitucionais decorrentes, ameaçada por tantas interferências externas das políticas de avaliação, de financiamento e de currículo desenhadas e implementadas na atualidade. Nesse contexto, por que a gestão democrática se torna indigesta e deforma a concepção dos gestores escolares?
Na tentativa de elucidar essa questão, alguns elementos podem ser destacados:
A educação pública tem sido espaço de ampla atuação e, por isso, há diferentes formas de entradas dos agentes privados nas redes municipais e estaduais, com destaque para o Paraná: termos de cooperação técnica, como o caso do Programa Formar; compra de pacotes educacionais (material didático e formação continuada); cursos via plataformas digitais diretamente para o professor, divulgados pelas Secretarias de Educação e amplamente pelas redes sociais, como o “Projeto Trilhas”, ofertado pelo Instituto Natura; gestão de pessoas no setor público – no caso do Paraná, dá-se pela seleção dos chefes do NRE/Coordenadorias em parceria com a Fundação Lemann.
A gestão escolar é um elemento de destaque tanto nas orientações internacionais como na atuação de dois principais movimentos na disputa pela educação pública: o Todos pela Educação e o Todos pela Base, que atuam em todo o território brasileiro por meio de projetos e/ou de ações coordenadas por um conjunto de agentes: institutos, associações e fundações ligadas a grandes conglomerados empresariais.
Concluímos, desse modo, que a presença de agentes privados na formação de gestores escolares atende à logica gerencialista, a qual se orienta por uma concepção de qualidade da educação baseada na eficiência e na produtividade. Nessa perspectiva, a formação dos gestores se efetiva de maneira deformada, visto que não oferece possibilidades de romper com a lógica de exploração que orienta o modo de produção capitalista.
Nesse sentido, as provocações e as considerações apresentadas podem servir para o debate coletivo sobre as formas de luta e de articulação para impedir a ação ampliada dos agentes privados no âmbito da gestão das escolas públicas. Além disso, há uma emergência em retomar a discussão em torno da gestão escolar como possibilidade transformadora da realidade, de modo a superar as formas burocráticas, excludentes, autoritárias e conservadoras que são transpostas da lógica capitalista para as políticas educacionais e para a escola. Assim sendo, fazer frente à deformação da formação e da organização da escola pode colaborar para que a educação de qualidade social se torne uma realidade, colaborando para a construção de uma sociedade mais humana.