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Revista Brasileira de Política e Administração da Educação

versión impresa ISSN 1678-166Xversión On-line ISSN 2447-4193

Revista Brasileira de Política e Administração da Educação vol.39 no.1 Goiânia  2023  Epub 25-Sep-2023

https://doi.org/10.21573/vol39n12023.119028 

Artigos

Programa Qualifica RS”: a expansão do mercado na gestão da política educacional no Rio Grande do Sul

Program Qualifica RS”: the market expansion in the management of education policy in Rio Grande do Sul

Programa Qualifica RS”: la expansión del mercado en la gestión de la política educativa en Rio Grande do Sul

MAGDA DE ABREU VICENTE1 
http://orcid.org/0000-0003-2583-3263

MARISEL VALÉRIO PORTO2 
http://orcid.org/0000-0003-1111-724X

LEONARDO DORNELES GONÇALVES3 
http://orcid.org/0000-0001-8093-8493

1 Universidade Federal de Rio Grande Programa de Pós-Graduação em Educação Rio Grande , RS , Brasil

2 Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre Departamento de Registro e Controle Acadêmico Porto Alegre , RS , Brasil

3 Universidade Federal do Rio Grande Instituto de Educação Rio Grande , RS , Brasil


Resumo

Este artigo analisa o programa Qualifica RS com o intuito de verificar em que medida o programa cumpre sua proposta de inovação. Como suporte metodológico, foram consultados documentos, a base de dados do Tribunal Superior Eleitoral e o Diário Oficial do Estado do RS. Contou-se com o aporte teórico de autores como VERGER; ROBERTSON (2012); NEUMAN; CLARK (2012), EVANGELISTA; SHIROMA (2018), dentre outros. Concluiu-se que o programa viabiliza a expansão do setor privado dentro da esfera pública e que o resultado da seleção “técnica” não atende a pretensa isenção política prometida.

Palavras-Chave: Gestão Gerencialista; Qualifica-RS; Parcerias público privadas; Coordenadores Regionais de Educação

Abstract

This article analyzes the Qualifica RS program to verify the extent to which the program complies with its innovation proposal. As methodological support documents, the database of the Superior Electoral Court and the Official Gazette of the State of RS were consulted. We counted on the theoretical contribution of authors such as VERGER; ROBERTSON (2012); NEUMAN; CLARK (2012), EVANGELIST; SHIROMA (2018), among others. It was concluded that the program enables the expansion of the private sector within the public sphere and that the result of the “technical” selection does not meet the alleged political exemption promised.

Key words: Managerialism; Qualifica-RS; Public-private Partnership; Regional Education Coordinators

Resumen

Este artículo investiga el programa Qualifica RS con la intención de verificar en qué medida el programa cumple su propuesta de innovación. Como aporte metodológico fueron consultados documentos, la base de datos del Tribunal Superior Eleitoral y el Diário Oficial do Estado do RS. Como aporte teórico fueron utilizados autores como VERGER; ROBERTSON (2012); NEUMAN; CLARK (2012), EVANGELISTA; SHIROMA (2018), entre otros. Se concluyó que el programa posibilita la expansión del sector privado dentro de la esfera pública y que el resultado de la selección “técnica” no cumple con la supuesta exención política prometida.

Palabras-clave: Gestión gerencial; Qualifica-RS; Asociaciones Público-Privadas; Coordinadores Regionales de Educación

INTRODUÇÃO

Estudos apontam que, desde a década de 1990, as políticas públicas vêm assumindo características gerencialistas, que diminuem substancialmente as fronteiras entre as esferas públicas e privadas. Segundo Hypolito (2008) , esse processo faz parte de uma reestruturação global do capitalismo a partir da qual há uma intensificação de conceitos oriundos do setor privado e mercantil nas gestões públicas em geral e escolar, em particular.

Os princípios de gestão gerencialista ou Nova Gestão Pública ( NEUMAN; CLARKE, 2012 ) remetem a um tipo de gestão pautada pelas habilidades de liderança e de competências técnicas. Oriundo da crítica ao estado de bem-estar social, o gerencialismo introduziu “novas lógicas de tomada de decisão que privilegiaram a economia e a eficiência acima de outros valores públicos” ( NEUMAN; CLARKE, 2012 , p.358) e introduziram a ideia do “gestor como um herói” oposta ao fazer instituído por “burocratas, profissionais e políticos” ( NEUMAN; CLARKE, 2012 , p. 359), características consideradas próprias do setor público.

Apresentado como modelo a ser seguido, o gerencialismo se tornou sedutor a uma parcela da sociedade que questiona a qualidade dos serviços públicos oferecidos à população, uma vez que ele promete atuar a favor do bom desempenho e da melhoria do atendimento à população. Com base nesses argumentos, os reformadores empresariais da educação oferecem alternativas aos governos realizando promessas de desburocratizar as administrações públicas e melhorar a qualidade do ensino.

Em alinhamento com diversificadas ações que já foram implantadas no Brasil, objetivando aplicar projetos neoliberais para políticas públicas da educação, se encontra o programa Qualifica RS, criado no ano de 2019, no estado do Rio Grande do Sul (RS), objeto de estudos deste trabalho. Tais projetos buscam instaurar junto à educação pública princípios e ideias oriundas do mercado para reorganizar “as fronteiras entre o público e o privado” ( PERONI, 2015 , p. 15). Iniciativas dessa natureza direcionam as ações para os principais cargos de direção, ou de alta gestão,que, no caso do Qualifica RS, é aplicado para a administração das Coordenadorias Regionais de Educação (CREs) buscando, supostamente, desburocratizar o estado e aplicar medidas de austeridade e neutralidade política, com foco em seleções que priorizem a capacidade técnica de gestão.

Considerando o avanço crescente de projetos neoliberais e seus impactos na educação pública, este texto tem por objetivo compreender como o programa Qualifica RS vem sendo implementado pelo governo do estado do RS, apresentar as parcerias que atuam no programa e quais foram os resultados da primeira seleção dos coordenadores ou “etapa de seleção”, a fim de verificar em que medida o programa cumpre sua proposta de inovação na administração pública 1 .

Para tanto, o estudo conta com a análise dos documentos, materiais e informações disponibilizadas e considera que o conteúdo das fontes apresentadas, tal como menciona Evangelista e Shiroma (2018), expressa e esconde a sua essência, ao mesmo tempo. Para uma compreensão mais elaborada e sintética de seus sentidos mais objetivos, a relação do seu conteúdo com a dinâmica da economia política faz- se necessária. Ou, nos termos das autoras:

Partimos do pressuposto de que as fontes possuem objetividade, mas elas não se apresentam claramente. Documentos derivam de determinações históricas que devem ser apreendidas no movimento da pesquisa, posto que não estão imediatamente dadas na documentação. (EVANGELISTA; SHIROMA, 2018, p. 89):

No que se refere aos procedimentos metodológicos foram consultados acervos diversificados, tendo como suporte o “Acordo de cooperação” realizado entre o governo do RS e o grupo A Aliança 2 , a base de dados do Tribunal Superior Eleitoral, o Diário Oficial do Estado do RS e sites oficiais disponibilizados pelo grupo A Aliança que, no limite, conformam o conjunto de fontes de dados.

Ao considerar os objetivos e pressupostos teórico-metodológicos assumidos, o trabalho está organizado da seguinte forma. Na primeira seção abordamos alguns aspectos conceituais que tratam da ampliação das parcerias público-privadas em educação (PPPEs) enquanto fenômeno mundial, assumindo outra roupagem para as ações de privatização, apresentamos a base legal do programa Qualifica RS, que é o “acordo de cooperação” e as parcerias que consolidam o modelo Gerencialista para o desenvolvimento da política educacional no estado. O grupo A Aliança, parceiro do governo do RS, é constituído pela união de grupos do terceiro setor compostos pela Fundação Lemann, Fundação Brava, Instituto Humanize e Instituto República, tendo como parceiro técnico o Vetor Brasil.

Partindo dessa perspectiva, analisamos o programa em sua primeira fase, considerando as etapas da seleção e a escolha dos profissionais que ocupam cargos de administração das CREs, o perfil técnico e a política dos selecionados. Por fim, destacamos aspectos do programa – em sua fase inicial – que demonstram a tendência, por parte do governo do estado, em adotar princípios e lógicas de mercado/gerencialistas na seleção de cargos políticos do serviço público, cujo rito de escolha seria a pretensa isenção política, o que não se confirma na maioria dos casos.

AS PPPes COMO ESTRATÉGIA GLOBAL DE PRIVATIZAÇÃO

Entre os diversos estudos que abordam a influência das parcerias público- privadas (PPPEs) como introdução dos princípios de mercado na educação, estão os trabalhos de Hypolito e Ivo (2013) , Hypolito (2008 ; 2010), Drabach e Souza (2014) , Oliveira (2015) , Peroni e Caetano (2012) , Peroni et al (2009), Peroni (2013) , Harvey (2011) , entre outros. Em geral, os estudiosos têm apontado para as parcerias público-privadas (PPPs) em educação como um fenômeno atual que busca criar consensos em torno da agenda educacional, redefinindo responsabilidades entre atores privados e públicos para o cumprimento do direito à educação, colocando-a no campo dos serviços, flexibilizando a oferta pública-estatal e incorporando estruturas organizativas da lógica de mercado para a dinâmica da política educacional.

Nas palavras de Verger; Robertson (2012, p.1150):

A globalização das parcerias público-privadas na educação é um resultado (ainda que muito importante) de processos associados ao neoliberalismo e à globalização econômica: como o aumento da porosidade das fronteiras institucionais e nacionais, o colapso da divisão entre o Estado/público e outros atores não estatais/ privados, a explosão do número de agentes e projetos operacionais, constituídos em escalas global e regional.

Os autores, desde a perspectiva do capitalismo mais desenvolvido, analisam os mecanismos encontrados pelo consenso neoliberal entre mercado e estado para a oferta da educação e, ao mesmo tempo, seu controle. Conforme Verger; Robertson (2012), as PPPEs são expressão de:

(...) uma rede de desenvolvimento global, fundamental na globalização de um tipo particular de PPPE, indicando que a ideia de PPP encaixa-se em um projeto mais amplo de reconstituição da educação pública no âmbito do setor de serviços, a ser governada como parte da construção de uma sociedade de mercado. (VERGER; ROBERTSON, 2012, p. 1135)

A partir da caracterização, percebe-se que os autores analisam um reposicionamento da educação no cenário global. Nessa linha, a educação passa a se caracterizar como um serviço a ser prestado na articulação de intencionalidades diversas, atravessando interesses públicos e privados, ideologicamente consensuados.

A caracterização das parcerias como um serviço explicitando a incorporação da lógica de mercado na concretização do direito à educação é um fenômeno típico do neoliberalismo que, por sua vez, é incapaz de aceitar o fundamento do direito social para além da privatização. Em geral, a ideia fundante das PPPEs concentra- se na tentativa de estabelecer outras roupagens ao fenômeno da privatização da educação. No caso brasileiro, a partir dos estudos mencionados acima, o modelo stricto sensu privatista assume tonalidades locais, as quais nem sempre permitem a consolidação de consenso em torno da venda direta da educação ao setor privado. O consenso possível se dá sob o mantra das parcerias, o que não significa, por óbvio, equilíbrio entre as ações dos atores públicos e privados envolvidos.

Entretanto, o fundamento privatista que consolida as PPPEs se expressa para além da oferta do serviço em educação. A partir da lógica da mercadoria, expansiva, acumuladora e exploradora, a privatização almeja o implemento e a consolidação da dinâmica do mercado nas instituições públicas do estado. Segundo Freitas (2018) , esse tipo de acordo estatal privado levará, inevitavelmente, à privatização da educação, pois a proposta neoliberal que o origina não tem a intenção de apenas redefinir o papel do Estado, mas sim, em última instância, retirar- se dele. Seu propósito é destruir a “educação pública de gestão pública e não apenas redefini-la – pelo menos como objetivo final. Os neoliberais querem o Estado apenas como provedor de recursos públicos, não como gestor” ( FREITAS, 2018 , p. 40). É fato que esses tipos de privatização também são oriundos da conformação neoliberal instalada em cada país, pois esta não ocorre da mesma forma e depende dos acordos e das forças políticas nacionais ( HARVEY, 2011 ). Para Freitas (2018 , p. 50 e 51), “não existe meia privatização. Não existe quase mercado. Uma vez iniciado o processo, coloca-se a escola a caminho da privatização plena da educação, ou seja, sua inserção no livre mercado, como uma organização empresarial [...]”. Nesse sentido, buscamos analisar os acordos realizados pelo programa Qualifica-RS com o intuito de perceber a parceria pública privada que subsidia este programa no estado do RS, como veremos a seguir.

O ACORDO DE COOPERAÇÃO E A REDE DE PARCEIROS DO PROGRAMA QUALIFICA RS

O Governo do Estado do RS iniciou sua gestão em 2019 e já em fevereiro foi publicado no site institucional o fechamento de uma parceria com foco na gestão de pessoas. Em 25 de fevereiro do mesmo ano, o governo consolidou uma parceria com a Fundação Lemann, com o intuito de desenvolver o projeto A Aliança, sendo essa formada por quatro organizações do terceiro setor – Fundação Brava, Fundação Lemann, Instituto Humanize e Instituto República, conforme já salientado. Há ainda mais uma instituição, o Vetor Brasil, considerada a parceira técnica do grupo Aliança e a responsável pelo apoio especializado às etapas de seleção e ao aporte metodológico às equipes de gestão do governo.

Por meio de um Acordo de Cooperação, comum nessas parcerias, desde que o governo federal instituiu o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, que visa padronizar as normas em âmbito nacional para que esses acordos sejam realizados através de Termos de Fomento e Acordos de Cooperação 3 , o governo gaúcho formaliza uma parceria com o Grupo A Aliança com vistas a efetivar as seleções e as formações junto às coordenações das Coordenadorias.

As duas primeiras cláusulas do Acordo de Cooperação, divulgado no site oficial do programa Qualifica RS, apontam para o principal objetivo da união entre as partes, a Gestão Pública, e para o papel de cada uma delas na parceria firmada, cabendo ao Estado fornecer a equipe de trabalho, garantir as condições para a realização de encontros pessoais, a participação, o fornecimento de eventuais informações/documentos e a continuidade do programa; ao passo que ao Instituto cabe o papel de executor, estando, portanto, à frente da ação para “prover profissionais capacitados a desenvolver o programa, incluindo consultores, gestores de projeto e especialistas” ( RIO GRANDE DO SUL, 2019 ). De acordo com o documento, o processo é realizado sem ônus para o governo, pois o grupo oferece assistência “gratuita” ao Estado, restando-nos o empenho em melhor entender quais interesses de fato o solidificam.

Outro ponto que gostaríamos de mencionar é que. embora o referido acordo faça referência à existência de anexos que o acompanham, tais apensos não se encontram disponíveis no site. Relembramos que as fontes são marcadas por sentidos em sua linguagem, e, embora não objetivemos fazer uma análise do discurso neste texto, observamos claramente que “um discurso é histórica e concretamente produzido e seu conteúdo e forma de disseminação obedecem à determinada intencionalidade (EVANGELISTA; SHIROMA, 2018, p. 93)”. Percebe-se, portanto, a ausência de informações claras e de cuidado quanto à lisura do acordo estabelecido com o setor público, em princípio, já contradizendo o ideário de transparência que deveria reger o contrato e que, em outro âmbito, discursivamente buscaria desconstituir práticas de corrupção, teoricamente oriundas apenas do setor público.

Considerando a referência ao projeto “Aliança para liderança de impacto” no Acordo de Cooperação, e com o intuito de melhor compreender a proposta do grupo, recorremos ao site da Fundação Lemann de modo a obter mais informações. Foi quando constatamos que não há um projeto com o nome “Aliança para liderança de impacto” e que o termo “aliança”, na verdade, se refere à união de quatro fundações em torno de um tema em comum, qual seja, a atuação do grupo constituído pelas instituições acima referidas na gestão de pessoas para cargos de liderança nos governos e no terceiro setor. Em consulta ao site da instituição em questão, percebemos que o tema da gestão pública é abordado e desenvolvido por meio de propostas como a do “Pessoas no setor público”, segunda a qual “os avanços sociais e as mudanças que o Brasil precisa dependem das soluções do governo para a educação, saúde, meio ambiente e segurança, mas demandam também a participação de toda a sociedade” (PESSOAS..., 2020). De fato, esses grupos vêm atuando no setor público não só na área educacional, mas em todos os setores referidos. Ainda conforme as informações disponibilizadas no site, o grupo tem conhecimento aprofundado sobre o tema da gestão pública muito embora não apresente bibliografia que demonstre tal profundidade.

Com o intuito de entendermos melhor a formação dos institutos que compõem A Aliança disponibilizamos o quadro 1 :

Quadro 1 A Aliança de acordo com a sede, o tipo, o ano de criação, a área de atuação e os seus objetivos. 

FUNDAÇÃO SEDE TIPO ANO CRIAÇÃO ÁREAS DE ATUAÇÃO MISSÃO/ OBJETIVO
Brava São Paulo Sem fins lucrativos 2000 Gestão Pública; Políticas Públicas; Inovação e Gestão de Pessoas Articular, viabilizar e disseminar iniciativas que promovam um Brasil mais inovador e digital
Lemann São Paulo Sem fins lucrativos 2002 Educação pública; Formação de lideranças; Gestão pública Colaborar com pessoas e instituições em iniciativas de grande impacto que garantam a aprendizagem de todos os alunos e formar líderes que resolvam os problemas sociais do país, levando o Brasil a um salto de desenvolvimento com equidade.
República. org Rio de Janeiro Sem fins lucrativos 2016 Gestão de pessoas no serviço público Articular, colaborar e investir no desenvolvimento de projetos de formação, reconhecimento e construção de redes de profissionais públicos de excelência
Humanize Rio de Janeiro Sem fins lucrativos 2017 Uso Sustentável; Empreendedorismo e NISA; Gestão Pública; Desenvolvimento Institucional e Educação Contribuir para o desenvolvimento sustentável e a geração de renda, firmando alianças que incentivem o empreendedorismo inclusivo, o acesso ao mercado e o empoderamento de comunidades e cidadãos

Fonte: elaborado pelos autores com base nas informações dos sites de cada fundação.

Como podemos observar no quadro acima, a Fundação Brava foi criada no ano 2000 sendo, portanto, a instituição pioneira entre aquelas que viriam a compor o grupo estratégico do programa Qualifica RS. Ela desenvolve três iniciativas/ programas que são o Cidade em jogo, Gesta e Meu município . Os dois últimos são apresentados como plataformas de divulgação de estudos sobre diversos temas e sobre a consulta de dados financeiros de todos os municípios brasileiros; já o primeiro, é descrito como um jogo educativo.

Já a Fundação Lemann, criada em 2002, atua em duas frentes amplas: Educação pública de qualidade e Lideranças para impacto social, desenvolvendo projetos relacionados à aprendizagem, parcerias entre estados e municípios, lideranças e apoio a políticas públicas como a BNCC, sendo uma das fundações mais atuantes no Brasil. Segundo o relatório de 2019 da Fundação Lemann, são 7 programas e iniciativas desenvolvidas: Aprendizagem criativa (formação de professores), Conectando saberes (apoio à conexão de professores das redes públicas), Educação conectada (uso pedagógico de tecnologias), Educação pra valer (assessoria técnica aos municípios), formar (apoio a práticas de gestão e pedagógicas), Parceria pela alfabetização (foco na alfabetização) e Gestão de pessoas no setor público, cuja proposta é apoiar a implementação de um sistema de gestão para cargos de liderança de livre provimento (a nomeação e a exoneração da posição são definidas por meio da decisão do governante ou do tomador de decisão), compreendendo processos de atração e de pré-seleção de pessoas (RELATÓRIO, 2019).

Como se pode perceber, a Fundação Lemann vem alargando suas fronteiras de atuação ao longo dos anos. Tendo iniciado pelo campo da educação no trabalho com professores, gestores, secretarias e governos, realizando formação de lideranças (RAPS 4 - em 2018, 7 participantes deste programa foram eleitos para cargos públicos) e chegando, mais recentemente, às carreiras do setor público. Esfera essa que cada vez mais sente a presença direta, via parceria público privada, de instituições privadas nos processos de seleção do setor público para cargos de liderança. Além do amplo leque de alcance das iniciativas empreendidas ou apoiadas pela fundação, outra particularidade é a atualização de sua agenda frente às mudanças sociais decorrentes do contexto de pandemia, fornecendo pesquisas sobre ensino presencial e ensino híbrido para já se posicionar em favor de ambos 5 .

A Fundação República.org foi criada em 2016 tendo como missão “articular, colaborar e investir no desenvolvimento de projetos de formação, reconhecimento e construção de redes de profissionais públicos de excelência” (CÓDIGO, 2020, p.4). Diferente das demais fundações/institutos, a Republica.org concentra sua atuação numa área específica que é a gestão de pessoas no setor público. Para tanto, promove a concessão de prêmios, bolsas, cursos e campanhas com foco na gestão de pessoas havendo um investimento financeiro por parte da fundação, pois há patrocínio dessas ações. Os projetos apoiados pela Republica.org se dividem em seis eixos que são o de Formação, Cultura do Reconhecimento, Rede, Arte, Articulação e o de Conhecimento.

Embora o Instituto Humanize seja o mais novo do grupo, criado em 2017, a atuação de seus filantropos, José Roberto Marinho e família, por meio de seu portfólio de ISP (Investimento Social Privado) já se dava desde 2011. Sendo assim, o instituto surge como um expediente para formalizar esse investimento. O instituto conta com quatro frentes de atuação, conforme podemos perceber no Quadro 1 , que se desdobram em vários projetos, fazendo capacitações, concedendo bolsas, atividades esportivas, culturais, qualificações etc. O apoio a muitos dos programas se dá em parceria com instituições estrangeiras que promovem o financiamento de projetos. Conforme informado no site do Instituto Humanize, A Aliança é um conceito criado em 2018, na sequência da transição do portfólio do ISP e desenvolvimento da estratégia do IH (Instituto Humanize), e que tem relação estreita com o programa criado no ano seguinte, o de desenvolvimento institucional das Organizações da Sociedade civil, cujo objetivo é “apoiar lideranças e instituições com foco em quatro pilares: visão sistêmica, gestão, capacidade técnica e planejamento estratégico” 6 . Cabe destacar que, conforme divulgado no site do instituto em questão, só em 2019 houve uma alavancagem de 65% no investimento em projetos com parcerias, fechando o ano com 69 projetos ativos e 14 alianças em diferentes fases de implementação.

Considerando o levantamento de informações acerca do grupo Aliança, constatamos que o termo “aliança” é, na verdade, a forma reduzida do nome “Aliança Líderes de Impacto no Setor Público e no Terceiro Setor”, o qual vem a ser uma denominação que representa simbolicamente uma união, a partir de 2018, entre Brava, Lemann, República e Humanize, buscando “a partir da construção de um modelo inovador de cocriação e investimento compartilhado – transformar o Brasil, contribuindo para a superação de seus maiores desafios por meio do fortalecimento das lideranças do governo e da sociedade civil” ( GESTÃO PÚBLICA, 2021 ). Essa união propõe uma “inovação no conceito de parceria e cofinanciamento”. Portanto, Aliança é a forma como essas fundações autodenominam o pacto firmado entre elas para apoiar conjuntamente projetos do terceiro setor e do setor público que atuam na formação de “líderes de impacto”.

Considerando o quadro 01 e as ponderações elencadas acima, verificamos que, embora cada instituto conte com um rol próprio de iniciativas, projetos ou programas que desenvolvem ou apoiam, a particularidade em comum entre as quatro fundações é a atuação no setor público, mais especificamente, no campo da gestão. Além disso, a parceria estratégica parece configurar-se como uma união de forças pactuadas por meio de uma (A) aliança que reúne de um lado o financiamento para impulsionar programas e projetos alinhados com a agenda neoliberal protagonizada pelo gerencialismo, mas que também incorpora temas de teor progressista; e de outro, o fortalecimento da presença das Organizações da Sociedade civil dentro do setor público. Se considerarmos a linha de tempo da criação entre elas (2000-2017) e a criação da Aliança (2018), percebemos que há um alinhamento de interesses comuns que culmina na formação de um grupo que compreende a parceria entre elas como a configuração necessária para que sua agenda possa avançar a passos largos, tendo como foco a gestão pública e a ampliação da rede de parcerias em torno do tema, inclusive com instituições internacionais, como no caso do Instituto Humanize, acima referido.

Ainda sobre a Aliança, cabe pontuar que, embora essas instituições sejam parceiras no Qualifica RS, não localizamos nos seus respectivos sites, ou mesmo no próprio site do Qualifica RS, como essas fundações atuam especificamente no programa do estado do Rio Grande do Sul. Tal situação sugere certa falta de transparência quanto à participação efetiva de cada uma no programa, bem como sobre como ela de fato ocorre.

Além do grupo Aliança, é importante atentarmos também para o parceiro técnico que realizou a pré-seleção dos coordenadores das CRE’s do RS. O Vetor Brasil foi criado em 2015 com a finalidade de ser “uma organização da sociedade civil (OSC) suprapartidária e sem fins lucrativos” pela “necessidade de aperfeiçoar a gestão de pessoas no governo”. Ainda, afirmam trabalhar “em parceria com profissionais do setor público apoiando suas atividades e a composição de equipes de alto desempenho” (QUEM SOMOS, 2020). O grupo tem como diretora executiva e cofundadora Joice Toyota que já foi presidente da Federação de empresas juniores do estado de São Paulo e trabalhou em serviços financeiros para empresas de agronegócios e de aviação, além da educação pública. Também já atuou no grupo Teach For América , nos Estados Unidos (QUEM SOMOS, 2020) 7 . Segundo informações do Vetor Brasil, em carta endereçada aos partidos políticos de todo o país, a empresa atua em parceria com a maioria dos partidos políticos brasileiros e informa ainda que o programa “líderes de gestão pública” atende a 8 prefeituras e a 25 estados do Brasil (VETOR, 2018a).

A SELEÇÃO “TÉCNICA” DE COORDENADORES/AS REGIONAIS DE EDUCAÇÃO NO RS

No RS, os 30 cargos de Coordenadores Regionais das CRE’s até então eram preenchidos por indicações políticas, ou seja, o governador escolhia funcionários públicos ou não para preencher essas vagas. Com o programa, o governo afirma que utilizou “metodologias de recrutamento para cargos comissionados e gratificados, com publicidade, requisitos claros e possibilitada a participação no processo de todos os profissionais interessados, dentro e fora dos órgãos” (ÚLTIMOS, 2020), ou seja, teoricamente, agora, os cargos seriam ocupados por profissionais validados por um processo de seleção técnica e não mais pela tradicional prática de indicação política.

A etapa de pré-seleção para as Coordenadorias Regionais das CRE’s contou com 4 mil inscrições (ÚLTIMOS, 2020). O termo pré-seleção é utilizado porque o grupo seleciona do total de inscritos apenas 3 candidatos para cada vaga, sendo que a escolha final entre eles cabe à equipe do governo do estado. O processo de pré- seleção tem sete momentos, a maioria deles ocorre online e inclui teste de perfil, teste de aderência, teste de crenças, “entrevista de mapeamento de competências e referências profissionais”, “entrevista com especialistas” e, por último, etapa de “entrevista final com o governo” (ETAPAS, 2020).

Considerando que a proposta do Programa Qualifica RS é a de realizar uma seleção técnica, a afirmação de que os candidatos “não precisavam ter experiência na área da educação” ( GOVERNADOR, 2019 ) provoca certo estranhamento, uma vez que critérios técnicos pressupõem um conhecimento específico, especializado numa determinada área profissional de atuação, sobretudo quando o objetivo é selecionar pessoas altamente capacitadas. Embora o governador Eduardo Leite compreenda que as principais credenciais para a ocupação dos cargos de gestão “dependem de habilidades de liderança e de competências técnicas” (PARCERIA, 2019), a afirmação de que a experiência na área da educação é dispensável relega a segundo plano o conhecimento específico na área de atuação, o que, a nosso ver, compromete a proposta do programa.

Ao observarmos as etapas do processo de seleção, percebemos que o termo “técnico” é entendido como sinônimo de uma extensa análise de convicções pessoais em que o próprio Vetor Brasil orienta o candidato a falar sobre diversidade, eficiência e produtividade. Quando os candidatos finalmente parecem chegar às etapas em que são ouvidos, ainda que apenas de forma online, a equipe que os escuta nem sempre é da área da educação, haja vista que é realizada por “especialistas em gestão pública” e na etapa final inclui “especialistas nas áreas de cada processo de pré-seleção” (ETAPAS, 2020).

Assim, somente na sexta etapa é que talvez os candidatos entrem em contato com algum profissional da área da educação, dada a prioridade desses grupos em terem profissionais da área da administração ou de gestão. Basta atentarmos para o perfil dos diretores do Vetor Brasil , sendo um formado em Administração, dois em Engenharia e outro em Gestão (QUEM SOMOS, 2020), todos com algum tipo de especialização na área administrativa e que coordenam e administram seleções em áreas diversas da atuação pública indo do meio ambiente ao setor educacional.

Através do longo processo seletivo que todos (as) devem se submeter, princípios de empreendedorismo vão sendo exigidos dos candidatos, buscando direcionar convicções pessoais para o individualismo e o sucesso como fruto de um engajamento pessoal do profissional. Os objetivos da seleção direcionam para a quantificação de resultados e de metas que vem orientando práticas e currículos escolares. Os bons resultados na educação seriam o produto de duas práticas que se unem, a vontade pessoal dos profissionais que, com uma boa gestão, alcançariam resultados satisfatórios na aprendizagem dos discentes. Tal crença desconsidera a complexidade da realidade da educação no país. Assim, orientados pelo mercado, coordenadores regionais das CRE’s possivelmente instituem a falsa crença do sucesso de práticas privadas no setor público, denominada de “técnica”.

O quadro 2 , a seguir, retrata os finalistas que foram atuar nas CRE’s do RS em 2019. Destacamos que, para a construção desse painel, consideramos as informações sobre os coordenadores escolhidos no ano de 2019 para os cargos, pois há coordenações que hoje já não contam mais com o mesmo dirigente. Nos interessa, entretanto, considerar o dirigente ingressante que participou do processo seletivo, pois se enquadra diretamente na seleção aqui analisada.

Quadro 2 Experiências e filiações partidárias dos coordenadores das CRE’s do RS 

COORDENADORIA CARGO POLÍTICO QUE EXERCE OU JÁ EXERCEU FILIAÇÃO PARTIDÁRIA
1ª (POA) Coordenadora do Departamento de Programas e Projetos Especiais (DPPE/Seduc) na gestão Sartori (MDB) e ex- coordenadora adjunta da 1ª CRE Não encontrada
2ª (São Leopoldo) Não identificado Filiada ao PPL, ex-assessora parlamentar do ex-deputado estadual Bombeiro Bianchini (PPL) (RS, 2017).
3ª (Estrela) Já era coordenadora interina desde janeiro de 2019. Não encontrada
4ª (Caxias do Sul) Diretora Geral de Educação e da Secretaria Municipal de Educação de Itá (SC) Filiada ao MDB de SC. Candidata a vereadora em 2012 pelo MDB.
5ª (Pelotas) Secretária interina da SMED Pelotas na gestão do ex-prefeito Eduardo Leite (PSDB) Não encontrada
6ª (Santa Cruz do Sul) Coordenador Regional de Educação (2015) e ex-secretário de educação de Pântano Grande Filiado ao MDB de Pântano Grande/RS.
7ª (Passo Fundo) Coordenadora pedagógica da Educação Infantil da Prefeitura de Porto Alegre sob a gestão Marchezan (PSDB) Não encontrada
8ª (Santa Maria) Coordenador Regional de Educação desde julho de 2017. Vereador pelo PMDB por 4 mandatos em Mata/ RS. Sua filiação atual não foi encontrada no TSE.
9ª (Cruz Alta) Coordenadora da 9ª CRE em anos anteriores. Filiada ao PSDB de Salto de Jacuí/RS.
10ª (Uruguaiana) Coordenadora Regional de Educação na 10ª CRE desde 2015. Foi filiada ao PSDB, hoje está no PP e foi candidata a vereadora em Uruguaiana.
11ª (Osório) Não identificado. Não encontrada
12ª (Guaíba) Coordenadora da 12ª CRE desde 2015. Não encontrada
13ª (Bagé) Coordenador da 13ª CRE (2007-2010) (Gestão Ieda – PSDB) Não encontrada
14ª (Santo Ângelo) Secretária Municipal de Educação de Santo Ângelo Filiada ao PP de Santo Ângelo/RS.
15º (Erechim) Ex-secretária Municipal de Educação de Erechim. Não encontrada
16ª (Bento Gonçalves) Não identificado. Filiado ao MDB de Bento Gonçalves/RS.
17ª (Santa Rosa) Ex-coordenadora Regional de Educação da 17ª CRE Vereadora de Tuparendi/RS pelo PSDB.
18ª (Rio Grande) Não identificado. Não encontrada
19ª (Santana do Livramento) Ex-secretária municipal de educação de David Canabarro sob a administração de Marcos Oro (PP) Não encontrada
20ª (Palmeiras das Missões) Não identificado. Não encontrada
21ª (Três Passos) Coordenadora Regional de Educação na 21ª CRE desde março de 2019. Esposa do vice-prefeito de Bom Progresso/RS (PP).
23ª (Vacaria) Ex-coordenadora de Recursos Humanos da 4ª CRE. Não encontrada.
24ª (Cachoeira do Sul) Ex-secretária interina da 24ª CRE. Filiada ao PSDB de Cachoeira do Sul/RS.
25ª (Soledade) Ex-coordenador adjunto na 8ª CRE Já compôs o MDB de Santa Maria-RS.
27ª (Canoas) Foi diretora do Departamento Pedagógico na gestão Sartori (MDB) Não encontrada
28ª (Gravataí) Não identificado. Coordenadora do PRB Mulher de Gravataí/RS ( PRB de Gravataí, 2018 ).
32ª (São Luiz Gonzaga) Não identificado. Foi candidata a vereadora em 2016 pelo PSDB em Rinópolis-SP (SEADE, 2020).
35ª (São Borja) Coordenadora Interina na 35ª CRE desde março de 2019. Não encontrada
36ª (Ijuí) Coordenador da 36ª CRE desde 2015. Filiado ao MDB de Ijuí/RS.
39ª (Carazinho) Ex-coordenadora da 39ª CRE na gestão Ieda Crusius - PSDB (2007-2010). Esposa do ex-vereador de Carazinho/RS pelo PSDB.

Fonte: Elaborado pelos autores com base nas informações do Tribunal Superior Eleitoral, Diário Oficial do Estado do RS e jornais locais

Fonte: elaborado pelos autores com base nas informações do quadro 2 .

Quadro 3 Gráfico ilustrativo do resultado da seleção quanto à relação prévia dos candidatos/as com o governo. 

Como podemos perceber, dos 30 coordenadores escolhidos apenas em 3 casos não identificamos relação prévia com o cargo alcançado ou com algum partido da base aliada do governo atual. Embora alguns coordenadores apresentem experiência anterior já no próprio cargo, cabe atentar para o fato de que essa vivência decorre da atuação em cargos de confiança, atrelados apenas a partidos próximos ou pertencentes ao atual governo. No que diz respeito à filiação partidária, há 16 casos em que as vagas foram preenchidas por esposas de prefeitos, de vice-prefeitos e de vereadores e há casos em que os próprios vereadores ou coordenadores de partidos assumiram os cargos. Ou seja, o processo de seleção parece ser apenas revestido de inovação, pois à medida que observamos os resultados objetivos, percebemos que, na maioria das vezes, eles ainda se aparentam com a velha prática política de indicação aos cargos.

O Vetor Brasil disponibiliza dois documentos teoricamente balizadores de suas condutas, dentre os quais um diz respeito ao código de ética de seus integrantes. Esse código orienta uma série de ações no âmbito do comportamento do grupo, garantindo que “os processos seletivos não são influenciáveis por interesses pessoais da equipe interna do Vetor Brasil, governos ou parceiros, nem indicações e favorecimentos partidários, ou qualquer forma de favorecimento de terceiras (os)” (VETOR, 2018b, p. 16). No entanto, parece que essas orientações ficam parcialmente comprometidas quando resultados como os acima discutidos demonstram a presença de marcadores ainda muito identificados com a prática de indicação tradicionalmente dominante nos governos.

Ainda sobre a seleção em questão, cabe pontuar que, embora a seleção realizada pelo grupo A Aliança para os Coordenadores Regionais do RS seja denominada e propagandeada como técnica, os valores determinantes ainda estão afastados do que deveria ser uma seleção técnica. Critérios técnicos devem se referir tanto aos candidatos quanto à equipe que faz o processo seletivo, o que consideraria um amplo conhecimento na área da educação por ambos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É de longa data que o setor privado vem atuando no Brasil, mas a prática de atingir os cargos mais altos de gestão é mais recente e tem evidenciado um rizoma maior de efetividade das ideias do setor privado operando de forma verticalizada na hierarquia do setor educativo, pois acredita-se que atingindo os altos cargos públicos ocorrerá a propagação de suas práticas nos e pelos gestores escolares. Não é à toa que se espalha pelo RS afora políticas de formação docente ministradas por coaches 8 com o intuito motivacional e oferecidas via parcerias pelas OSCs. O que esperar quando o setor do mercado empresarial oferece seus serviços de forma gratuita para o setor público, como é o caso do Programa Qualifica RS?

O grupo “A Aliança”, representado no Quadro 1 , sintetiza o largo envolvimento do terceiro setor no Brasil, aqui traduzido em 5 grupos financiados por empresas privadas que demonstram o interesse nas políticas de gestão educacional e que atuam, no mínimo, em 25 estados do Brasil. Assim, ideias do setor privado se efetivam de forma direta e indireta no setor público, sendo talvez por isso que o resultado da seleção “técnica” não seja tão relevante no processo. A destruição da educação pública, ao fim, vai se efetivando associada à privatização ou, como queiramos denominar, à parceria pública privada que, através do caráter ideológico vai sendo cumprida para “controlar o processo educativo, colocando as escolas sobre formas de administração empresarial” ( FREITAS, 2018 , p.103).

Os contornos expressos acima expõem os principais elementos que nos permitem entender que a proposta de inovação cumprida pelo Programa Qualifica RS se limita a mais uma das recorrentes alternativas de cunho neoliberal/gerencialista oferecidas pelos reformadores empresariais aos governos. O programa configura- se como uma estratégia do Governo do Estado do RS para selecionar quadros políticos, a partir de critérios supostamente “não políticos”. Ao assimilar as formas de seleção sugeridas por institutos ligados ao setor empresarial, o estado procura o convencimento em torno de escolhas “neutras” e que, por isso, seriam apropriadas ao exercício dos cargos de alta gestão, centrando-se no argumento da utilização de seleção técnica que culminaria na oferta de um serviço mais qualificado para a sociedade, haja vista que fugiriam da burocracia e da suposta ineficiência estatal.

Sendo assim, consideramos que o Qualifica RS é um programa que viabiliza a expansão da atuação do setor privado dentro da esfera pública, pois materializa a nova investida de sua rede de parcerias: a seleção de pessoas para altos cargos públicos comissionados. Além disso, constatamos que, embora o programa Qualifica RS se apresente como uma proposta inovadora com vistas a transformar o processo de escolha dos sujeitos para cargos tradicionalmente ocupados via indicação política em seleção técnica criteriosa, na prática, isso parece ainda não se concretizar. Ou seja, propaga-se um discurso de inovação que não é verdadeiro, conforme os dados que apresentamos no quadro 2 .

Vale sublinhar que mais pesquisas relacionadas às parcerias público-privadas e/ou implicações do setor privado na administração pública se fazem necessárias na área das políticas educacionais, pois elas têm demonstrado quais são os interesses que permeiam esses projetos societários e, ao mesmo tempo, como interferem em nossas políticas locais. De outro modo, são as pesquisas científicas que vêm denunciando os efeitos de tais parcerias para o trabalho docente e a gestão escolar, ao demonstrar que, na maioria dos casos, apenas modificam currículos, intensificam a exploração da prática pedagógica sem, contudo, alterar a melhoria na qualidade do ensino ou, de fato, oferecer transparência nos processos e sistemas públicos.

Cabe lembrar, por último, que as políticas públicas educacionais nem sempre são efetivadas conforme planejadas e muitas vezes são reconfiguradas nas práticas docentes.

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1Este texto apresenta reflexões e estudos parciais de um projeto de pesquisa institucionalizado em uma universidade do sul do Brasil, contando com o apoio de docentes de outras universidades e bolsistas subsidiados pelo CNPq, cuja finalidade é analisar todas as fases do programa Qualifica RS.

2No ano de 2021 o grupo A Aliança transformou-se no grupo “Vamos”, então formado pelo Instituto Humanize, Fundação Lemann e República.org, portanto, atualmente, o grupo segue atuando sem a parceria com a Fundação Brava. Segundo dados fornecidos pelo Instituto Humanize, “em 2021 [...] a Aliança se transformou no VAMOS a fim de continuar trabalhando em questões como o problema de que poucas lideranças preparadas e engajadas na resolução dos desafios de interesse público atuam em organizações do Setor Público e do 3º Setor”. Fonte: https://www.ihumanize.org/gestao-publica/ Acesso em 9 de fev. 2022.

3O Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil foi juridicamente estabelecido pela Lei n. 13214/2015 que “estabelece o Regime Jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13204 . htm#art1 Acesso em 24 mar. 2021.

4Para maiores informações consultar < https://www.raps.org.br/tag/fundacao-lemann/ > Acesso em 24 mar. 2021.

7Segundo Moura, Najjar e Carneiro (2019) a Teach For América é uma organização estadunidense que atua para disseminar uma rede global de empreendedores e, no Brasil, se dá, principalmente, através de sua “organização-satélite” que é o programa “Ensina Brasil”, um dos parceiros apoiadores da Fundação Lemann.

8As parcerias públicas privadas realizadas a partir do ano de 2017 que requerem uso de recursos públicos estão disponíveis no site do LicitaCon-RS. Ali conseguimos perceber o aprofundamento dessas políticas de formação. Disponível em: https://portal.tce.rs.gov.br/aplicprod/f ?p=50500:1 Acesso em 18 jun. 2021.

Recebido: 04 de Outubro de 2021; Aceito: 10 de Fevereiro de 2022

Magda de Abreu Vicente Professora da FURG; É Doutora em Educação na área de História e Filosofia da Educação. É Mestre em História e Filosofia da Educação na Universidade Federal de Pelotas onde foi bolsista CNPQ; Está atuando principalmente nos temas de Políticas Públicas educacionais com ênfase em Gestão educacional, História e Filosofia da Educação com ênfase no estudo sobre Educação Rural, ensino primário rural e formação de professores rurais. É professora do Programa de Pós- Graduação em Educação da FURG na área da Políticas educacionais e currículo. E-mail: magdabreufurg@gmail.com

Marisel Valério Porto Possui graduação em Letras Habilitação em Português e Inglês pela Universidade Federal de Pelotas (2003), Especialização em Literatura Comparada (UFPEL, 2008) e Mestrado em Letras (UFPEL, 2013). Atua como Técnica em Assuntos Educacionais na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. É membro da Comissão Permanente de Avaliação de Auxílio Estudantil da UFCSPA e membro colaborador do projeto de pesquisa Qualifica RS: As implicações administrativas e pedagógicas na gestão de escolas do Rio Grande RS (IE/FURG). Estuda temáticas que envolvem educação, literatura e história.E-mail: mariselvalerio@hotmail.com

Leonardo Dorneles Gonçalves Pedagogo e Mestre pela Universidade Federal do Rio Grande - FURG. Doutor em Educação pela Universidade Federal de Pelotas - UFPel. Professor do Instituto de Educação - Políticas Públicas da Educação da Universidade Federal do Rio Grande - FURG. É pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais, Gestão e Financiamento da Educação - GEPEFI da Universidade Estadual de Maringá, Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais - NEPPE (UFPel) e Núcleo Educamemoria (FURG). Colabora com estudos junto ao Observatório dos Conflitos Urbanos e Socioambientais do Extremo Sul do Brasil (FURG). Atualmente desenvolve estudos sobre Estado, Políticas Educacionais, Ensino Médio e suas relações com as mudanças no mundo do trabalho. E-mail: dorneles05@gmail.com

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