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Revista Brasileira de Política e Administração da Educação

versão impressa ISSN 1678-166Xversão On-line ISSN 2447-4193

Revista Brasileira de Política e Administração da Educação vol.39 no.1 Goiânia  2023  Epub 25-Set-2023

https://doi.org/10.21573/vol39n12023.122185 

Artigos

Situação juvenil no contexto da educação em tempos de pandemia

The situation of youth in the context of education in pandemic times

Situación de la juventud en el contexto de la educación en tiempos de pandemia

TARCISIO AUGUSTO ALVES DA SILVA1 
http://orcid.org/0000-0003-2956-3512

LUCAS PÉRICLES DE FRANÇA PEREIRA2 
http://orcid.org/0000-0003-4796-5590

BÁRBARA SANTOS SARINHO3 
http://orcid.org/0000-0003-2553-6584

1 Universidade Federal Rural de Pernambuco Departamento de Ciências Sociais Recife , PE , Brasil

2 Universidade Federal Rural de Pernambuco Departamento de Ciências Sociais Recife , PE , Brasil

3 Universidade Federal Rural de Pernambuco Departamento de Ciências Sociais Recife , PE , Brasil


Resumo

O ato de estudar durante a pandemia mostrou maiores e menores contrastes, a depender da classe social, do gênero, da cor e da localidade onde o jovem reside. Neste trabalho, procuramos apresentar os resultados de uma investigação com estudantes de Ensino Médio. Do ponto de vista metodológico, aplicamos um questionário misto, on-line, a uma amostra não probabilística de 394 jovens, além da realização de 09 entrevistas semiestruturadas. Os resultados traduzem a realidade do ensino remoto e os desafios, e estratégias estabelecidas para estudar durante a pandemia.

Palavras-Chave: Juventude; Pandemia; Educação

Abstract

The act of studying during the pandemic exposed greater and lesser degrees of contrast in terms of social class, gender, race, and place of residence for the youth population. In this article, we present the results of an investigation of high school students in Brazil. The method used in the study consisted of an online mixed questionnaire, a non-probabilistic sample of 394 young individuals in addition to 9 semi-structured interviews. The results translate the reality of remote education as well as the challenges and strategies developed to study during the pandemic.

Key words: Youth; Pandemic; Education

Resumen

El hecho de estudiar durante la pandemia trajo grandes y pequeños contrastes, dependiendo de la clase social, del género, del color y del lugar donde reside cada joven. En este trabajo, buscamos presentar los resultados de una investigación con estudiantes de la secundaria. Desde el punto de vista metodológico, aplicamos una encuesta mixta, on-line, a un muestreo no probabilístico de 394 jóvenes, además de realizar 9 entrevistas semiestructuradas. Los resultados indican la realidad de la enseñanza remota, los desafíos y estrategias establecidas para estudiar durante la pandemia.

Palabras-clave: Juventud; Pandemia; Educación

INTRODUÇÃO

A sociologia das juventudes é um campo do conhecimento sociológico preocupado em entender a vivência dos jovens naquilo que lhe há de mais particular e, do ponto de vista social, naquilo de mais genérico. As implicações inerentes à continuidade ou rupturas de determinadas regras, expressas na vida em sociedade, reforçam um aspecto bastante explorado nesses estudos, enquanto noutra linha é possível abordar como os jovens respondem às demandas e representações oriundas de seu grupo social, quanto às pressões e uniformidades derivadas de sua participação em uma comunidade mais ampla.

Uma tarefa importante àqueles que buscam entender as juventudes como fenômeno sociológico inscreve-se na possibilidade de trazer outras perspectivas para além daquelas usualmente encontradas no senso comum, as que analisam os jovens como um bloco homogêneo, ou ainda aquelas em que as juventudes são encaradas apenas como uma experiência transitória para a vida adulta. O contexto da pandemia é, portanto, um momento significativo para potencializar uma forma de análise que considere a pluralidade e as distintas inserções da categoria juventude como fenômeno social.

Com a pandemia da covid-19, muitas análises se ocuparam em entender quais reflexos sobre a vida dos jovens se manifestaram em maior ou menor proporção. Um longo de um período tem se descortinado desde que o vírus chegou ao Brasil e dentro dele diversos impactos foram identificados, o que torna possível caracterizar o fenômeno pelos efeitos de uma lógica multifacetada seja econômica, formativa, psíquica e pelas barreiras impostas ao exercício da sociabilidade entre os indivíduos desse grupo social.

O que se sabe é que os impactos da pandemia foram sentidos em todos os campos da vida social, impulsionando mobilizações em torno de estratégias para conter a propagação do vírus de um lado, e de outro, para estabelecer condições de manutenção e funcionamento da economia. Esse momento colocou em evidência o protagonismo da área médica, sobretudo a infectologia e a imunologia, mas a extensão dos efeitos da doença pôde ser analisada, em sua complexidade e amplitude, pelo exercício reflexivo presente no trabalho das ciências sociais, ao desvelar o ambiente social recepcionado pelo vírus, demonstrando como o contexto político, a economia e a estrutura social encontradas no Brasil favoreceram a mais ampla disseminação e contágio da doença 1 .

O fato, porém, é que o novo coronavírus se favorece do ritmo e dinâmica dos contatos e interações sociais (SILVA, 2020a, p. 1), atingindo a dimensão mais presente na formação dos jovens que é a sociabilidade estabelecida pelos contatos sociais com grupos responsáveis pelas teias formadoras de suas identidades. A sociabilidade é entendida aqui nos termos apresentados por Simmel (2006, p. 64) como uma das formas de sociação acompanhada “por um sentimento e por uma satisfação de estar justamente socializado, pelo valor da formação da sociedade enquanto tal”.

Nesse contexto, a escola como espaço de formação é, antes de tudo, um local de intensas interações sociais, com destaques àquelas que se valem de proximidades físicas, afetivas e corporais. Nesse sentido, o fechamento dela fez com que processos educativos fossem repensados de modo a garantir o distanciamento físico e o estabelecimento de formas de interação social mediatizadas pelas redes de comunicação via internet, tv e rádio.

Esse cenário deu forma e conteúdo à problemática que mobilizou uma investigação voltada à análise das desigualdades persistentes no sistema educacional e de como as soluções propostas acenaram para os desafios de estudar em tempos de pandemia. Para os fins do presente texto, procuramos apresentar os resultados da pesquisa “Situação juvenil, educação pública e impactos da covid-19 no interior de Pernambuco (BR)”. Esse estudo contou com uma amostra inicial, não probabilística, por conveniência, de 500 estudantes do Ensino Médio, com idade entre 15 e 29 anos, da rede estadual de ensino, de um município da Zona da Mata Meridional de Pernambuco.

Na primeira fase da pesquisa, utilizamos como instrumento de coleta de dados um questionário misto, on-line , que, após a realização do pré-teste, foi disponibilizado via Google Forms, no período de 17 de junho a 9 de julho de 2020, aos estudantes de 5 escolas do município. O formulário estava dividido em 5 blocos de perguntas (perfil dos entrevistados, situação socioeconômica, acesso à internet, dados sobre a pandemia e educação não presencial).

Para chegarmos aos sujeitos da pesquisa, foi aplicada a técnica de bola de neve em que gestores, professores e estudantes indicavam contatos telefônicos dos estudantes e a equipe de pesquisa encaminhava o link aos alunos cadastrados nos grupos de aulas remotas de suas respectivas escolas. Ao final do processo de coleta de dados, a investigação conseguiu atingir 394 estudantes da amostra inicial pretendida, o que já revelava, para nós, as dificuldades que muitos jovens vivenciaram com a implementação da educação não presencial.

A segunda fase da investigação correspondeu à realização de entrevistas semiestruturadas e havia uma intenção de entrevistar 15 estudantes, das 5 escolas, residentes em comunidades rurais do município. O momento de coleta de dados na segunda fase, diferentemente da aplicação do questionário, compreendeu um cenário de redução de casos de internamento e óbitos em Pernambuco (BR) e o retorno semipresencial às escolas. No entanto, mesmo seguindo protocolos de biossegurança (uso de máscaras, álcool em gel e distanciamento social), a equipe de pesquisa reduziu o número de entrevistas para 9, preocupada em não se tornar um vetor de disseminação do vírus nas comunidades.

Como objetivo do presente texto, buscamos apresentar dados da investigação recortados pela análise da situação juvenil dos estudantes na pandemia de modo a refletir quem ficou para trás e as condições dadas para a realização do ensino remoto. Assim, o texto procurará apresentar, no primeiro momento, elementos dos dados coletados pelo questionário e, em seguida, aqueles oriundos das entrevistas.

O texto se encontra dividido, além da introdução, em seis tópicos. No primeiro, procuramos discorrer sobre o conceito de situação juvenil e a sua aplicação ao contexto da pandemia. O segundo apresenta os primeiros dados da pesquisa relativos ao acesso às aulas remotas, recortados pela dimensão econômica dos estudantes. Já o quarto tópico analisa como os jovens e suas famílias vivenciaram a pandemia. O tópico cinco discute a experiência dos jovens com a educação não presencial, revelando as várias dificuldades enfrentadas por eles. O sexto tópico procura cruzar os dados da primeira fase da investigação (questionários) com a segunda fase (trabalho de campo com a realização das entrevistas). Por fim, apresentamos as considerações finais, resgatando algumas reflexões a partir da experiência com a pesquisa.

SITUAÇÃO JUVENIL: A FACE EXPLICITADA DE UM CONCEITO NA PANDEMIA

A juventude pode ser apenas uma palavra se encarada sob uma perspectiva reducionista. Contudo, para afastar quaisquer tentativas de compreender essa experiência dentro de um quadro de simplificações, é necessário considerar as especificidades nas quais a juventude é vivida, e isso se impõe como uma tarefa a todos que desejam analisar, com clareza, como a experiência do ser jovem se constitui como um fenômeno social.

Para a Sociologia, a juventude é uma construção social que não pode ser reduzida à ideia de fase, dado biológico ou restrito a um recorte etário. Essa perspectiva assume a compreensão de que a vivência juvenil está conjugada a diferentes experiências e trajetórias, possibilitando chegar ao conceito de situação juvenil. Nele, convergem certas particularidades em que acesso à educação, ao trabalho, à cultura, ao lazer etc. determinam elementos de distinção e diferenciação em um mesmo grupo de indivíduos.

Para Weisheimer (2017, p. 7), a situação juvenil “refere-se aos variados processos empíricos, condições conjunturais e particularizadas das situações sociais nas quais se encontram os jovens.” Portanto, ela desmistifica o contexto específico da vivência de uma determinada juventude em um espaço-tempo definido. Desse modo, como instrumental sociológico, o conceito de situação juvenil mostra-se importante no sentido de compreender a posição social ocupada pelo jovem em face de sua origem, cor da pele, gênero, etnia, orientação sexual, por exemplo.

Com a pandemia da covid-19, ficou ainda mais evidente que encarar as particularidades da realidade social nos permite avançar sobre ela de modo a descortinar o véu do templo e dar visibilidade aos “imponderáveis da vida real” (MALINOWSKI, 1975, p. 55). Isso, porque os impactos produzidos pela doença não se revelaram da mesma forma para toda a população brasileira. Diante da crise sanitária e política que assolou o país desde 2019, certas parcelas da população ficaram ainda mais expostas às desigualdades e necessitaram da ação do Estado para que não fossem deixadas à própria sorte. No entanto, registra-se aqui que, caso brasileiro, a gestão do governo federal na pandemia revelou-se tão trágica quanto a própria ação do vírus.

Segundo Minayo (2011, p. 29), as desigualdades afetam principalmente a população jovem, manifestando-se na economia, na educação, na cultura e na cidadania. Para a autora, essas desigualdades são encaradas como uma “violência estrutural”.

A desigualdade educacional, no entanto, é um dos grandes problemas que atingiu a maioria dos jovens brasileiros durante a pandemia, pois enquanto alguns tiveram acesso ao ensino remoto em condições razoáveis que permitissem com que a aprendizagem ocorresse, outros estavam longe dessa realidade. Nesse trânsito, o que diferencia uma realidade da outra pode estar relacionado a marcadores sociais como: renda familiar, gênero, raça, local de residência (campo ou cidade), entre outros.

Para Groppo (2017, p. 83), entre as características gerais que contribuem para a noção de juventude está o “[…] reconhecimento da diversidade de vivências da juventude, de acordo com a classe social, o gênero, a etnia, a nacionalidade etc. do jovem em particular”. Portanto, esses marcadores sociais são cruciais para uma compreensão mais precisa da situação juvenil, porque permitem particularizar a vivência do ser jovem.

No perfil dos pesquisados, alguns desses marcadores aparecem com destaque no estudo. A participação negra e feminina, por exemplo, é bastante expressiva. Por isso, o gênero é um componente importante na análise das respostas, pois 66,8% do total de estudantes entrevistados são mulheres, contra 33,2% de homens.

O segundo marcador a ser considerado é a autodeclaração de raça. Estudantes negros estão representados como 70,5% dos pesquisados (pardos sendo 56,8%, pretos, 13,7%), seguidos por estudantes brancos com 23,6%, amarelos 3,3% e indígenas 0,8%. Dessa maneira, pode-se considerar as respostas de acordo com essa predominância, a partir das vivências de jovens negras.

O perfil dos jovens respondentes na primeira fase da investigação foi composto por estudantes majoritariamente urbanos, com apenas 27,2% residentes na Zona Rural; 5,1% declararam ter filhos(as), enquanto 17,5% são jovens que trabalham e estudam. O perfil dos jovens respondentes é composto ainda por estudantes casados (5,8%), solteiros (93,1%) e separados (1,1%), revelando uma pluralidade de vivências que apontam para trajetórias diferentes.

Na Escola de Referência em Ensino Médio Monsenhor João Rodrigues de Carvalho (27,4%) e na escola Vigário Pedrosa (27,9%), obtivemos a maior representatividade de jovens pesquisados. Gestores e professores das demais escolas justificaram a falta de engajamento dos estudantes nas aulas remotas ao fato de muitos residirem em áreas rurais do município e para explicar a baixa adesão à pesquisa.

Portanto, se a situação juvenil deve ser entendida como um contexto social específico no qual a vivência da juventude ocorre, não podemos esquecer que a posição ocupada pelos jovens, e por suas famílias, na estrutura social, tende a impactar diretamente no acesso à educação e nas possibilidades, e horizontes que ela pode apontar.

DIMENSÃO SOCIOECONÔMICA E O ACESSO ÀS AULAS REMOTAS

A suspensão das aulas presenciais adicionou uma nova e urgente demanda para a realidade de estudantes e educadores: a utilização das ferramentas digitais e da internet com a finalidade de dar continuidade ao ano letivo.

Ignorando a pluralidade de contextos nos quais os estudantes estavam inseridos, sobretudo do ponto de vista espacial (se residente na cidade ou no campo), da infraestrutura domiciliar e da desigualdade socioeconômica, a implementação das atividades educativas remotas foi apresentada por organismos internacionais, a exemplo da ONU (Organização das Nações Unidas), como a melhor forma de manutenção do vínculo escolar, muito embora nenhum equipamento digital tenha sido adquirido para os estudantes da rede pública que não o possuíam, pelo menos no início da pandemia.

Considerando que 27% dos participantes da pesquisa residiam na Zona Rural, dados do Comitê Gestor da Internet no Brasil (2019) mostram que no campo o acesso ao sinal de telefonia e internet tende a ser mais escasso, sinalizando a possibilidade de esses estudantes comporem um dos primeiros grupos a ficar para trás nesse processo. Portanto, supomos existirem distâncias significativas entre os jovens residentes no campo e na cidade, do ponto de vista digital, impactando sobre a educação, via ensino remoto. Assim, reforça-se a ideia de que a desigualdade social favorece a exclusão digital e que esta, por sua vez, acaba reforçando a própria desigualdade social (GROSSI; COSTA; SANTOS, 2013, p. 71).

A renda familiar é uma variável importante para entender as dificuldades agudizadas com a pandemia, pois os dados nos apresentam um perfil de renda da maioria dos participantes situados nas classes D e E, sendo a renda per capita familiar de 56% dos estudantes de apenas um salário mínimo. Destaca-se, no perfil econômico de parte (29,4%) das famílias, renda oriunda do trabalho formal com carteira assinada. Já outro grupo (22%) declarara não possuir renda mensal, fazendo- nos intuir que boa parte delas estava apta a receber o auxílio emergencial proposto pelo governo federal. Esse quadro acena para uma situação de vulnerabilidade socioeconômica que impacta diretamente a vida desses jovens, impondo limites ao acesso à educação, à saúde, à cultura e à cidadania, tendo se ampliado em todo o período estudado (2020-2021).

Por sua vez, a “vulnerabilidade é um conceito que remete a situações em que pessoas, famílias e coletividades se encontram diante de riscos iminentes e ausência de direitos” (LUZ et al. , 2020, p. 184). Isso significa que a pandemia e as medidas restritivas ampliaram a configuração socioeconômica, já precarizada, fazendo com que as políticas públicas se tornassem essenciais para evitar a evasão escolar dos estudantes, em decorrência da necessidade de auxiliar na composição da renda familiar.

Entre os estudantes que conseguiram conexão para participar da pesquisa, 16,2% afirmaram realizar deslocamento para utilizar a rede de internet, revelando como uma parte desses jovens não conseguiu manter o isolamento social, seguindo as recomendações dos órgãos de saúde. A demanda pelas tarefas escolares aliada à ausência de políticas públicas para conexão digital favoreceu os riscos de contaminação da população.

Entre os que possuíam acesso à internet, 37,6% afirmaram que seu pacote de internet não era adequado para as tarefas escolares. Em que pese os problemas ocasionados pela velocidade e quantidade de dados para uso nas atividades, chamou a atenção na investigação a quase unanimidade quanto à ferramenta que utilizavam para o acesso à internet. Ou seja, 96,7% dos estudantes acessam a rede mundial de computadores, principalmente, pelo celular. Frequentemente, dividindo com pais, irmãos e vizinhos, já que cerca de 28,9% deles relataram solicitar emprestado algum aparelho para o uso da internet. Segundo pesquisa do Comitê Gestor da Internet no Brasil (2019), seu uso para fins educativos é “mais frequente entre usuários de classe, renda familiar e escolaridade mais baixas” (p. 113).

A ausência de políticas públicas capazes de reduzir as distâncias de acesso à internet e às ferramentas digitais no município torna a educação não presencial bastante desigual, visto que uma parte dos estudantes não consegue se conectar como os demais colegas e a própria escola. A maioria também não possui o equipamento e a velocidade adequada para tal, embora esses não sejam apenas os únicos problemas enfrentados por eles em relação à educação não presencial. Nesse sentido, a exclusão digital se mostrou como um fator acirrador das desigualdades educacionais para esses estudantes, pois serviu para aprofundar as assimetrias existentes.

VIVÊNCIA DA PANDEMIA

Quando se afirma que a pandemia não afetou todos os jovens da mesma maneira, isso materializa o percentual de famílias que puderam ou não realizar o isolamento social. Do total de jovens pesquisados, 59,4% responderam que sua família conseguiu realizar o isolamento social proposto pelas autoridades de saúde, no entanto, 40,6% disseram que não foi possível.

A falta de isolamento social por parte das famílias não deve ser encarada como uma possível negligência, pois a pandemia exigiu delas e dos estudantes um grande esforço no que diz respeito a conseguir uma renda. À medida que o comércio e setores em geral da economia foram fechados, e o lockdown decretado, grande parte da população não pôde trabalhar, ampliando, ainda mais, o contexto de vulnerabilidade de muitas dessas famílias pela ausência de mecanismos mais sólidos de seguridade social.

O benefício concedido pelo governo federal não foi suficiente para manter as famílias isoladas em suas residências, pois para muitas delas o valor fornecido era insuficiente para a aquisição de alimentos e pagamento de contas diante do aumento de preços. Além disso, a burocracia foi um empecilho para que muitas delas recebessem seu dinheiro, pela necessidade mínima de experiência com internet e aparelhos digitais para poderem receber os valores. Vale ressaltar, mais uma vez, que um percentual de 16,2% de jovens não possuíam internet em casa.

Outro ponto importante a destacar é a situação epidemiológica entre os familiares dos jovens. Apesar de os dados não serem alarmantes em relação à doença, ainda assim, 19,3% dos jovens pesquisados afirmaram que um familiar da mesma residência apresentou sintomas da covid-19, o que nos leva a pensar que talvez esse percentual seja resultado de os estudantes/trabalhadores ou seus familiares necessitarem sair de casa durante a pandemia. No tocante ao número de óbitos ocasionados por covid-19 entre a família dos estudantes, 4,8% responderam que houve óbito. Dessa forma, os dados sobre a vivência da pandemia por esses jovens nos levam a pensar que, para além de outras dificuldades, questões como sintomas, adoecimento e óbitos também foram responsáveis por impactar em seus estudos e no rendimento escolar.

Enfrentar todos esses acontecimentos durante a pandemia não foi fácil. Lidar com as aulas remotas, as dificuldades de acesso a elas e, ao mesmo tempo, suportar as consequências das medidas restritivas gerou uma série de sentimentos negativos entre os estudantes. Diante disso, foram identificados sentimentos de ansiedade (49%), estresse (45,2%) e impaciência (41,4%) reforçando a ideia de que a pandemia produziu outras pandemias dentro de si.

Mesmo Madeira, Furtado e Dill (2021) observarem que o isolamento social trouxe um significativo aumento da violência doméstica no Brasil, nosso estudo de caso não identificou grandes percentuais, pois 99% disseram não ter sofrido nenhum tipo de violência na pandemia e 98,7% responderam que ninguém de sua residência sofreu algum tipo de violência.

Considerando as desigualdades persistentes e as consequências geradas pela covid-19, fica evidente que as condições dos jovens e suas famílias não favoreceram o enfrentamento do período mais recrudescente da pandemia, entre 2019-2020. O que era para ser um momento de isolamento social, conforme orientavam as autoridades sanitárias, mostrou-se como uma impossibilidade para muitos devido às suas necessidades e particularidades. Dessa forma, os obstáculos enfrentados durante a vivência da pandemia resultaram não apenas das dificuldades para lidar com o ensino não presencial, mas com a demanda por garantir o mínimo para sobreviver a ela.

ASPECTOS DA EXPERIÊNCIA COM A EDUCAÇÃO NÃO PRESENCIAL VIVENCIADA PELOS JOVENS

A implementação da educação não presencial pelas redes de ensino representou uma das primeiras medidas, tomadas em todo o mundo, como estratégia para conter os cenários de transmissão do vírus e morte pela covid-19. Sem dúvida, essa decisão produziu impactos positivos e negativos sobre o processo de ensino e aprendizagem: trouxe muitas reflexões sobre o uso das tecnologias no ensino; promoveu a intensificação das investidas do capital sobre o financiamento público; produziu a ampliação das desigualdades e das barreiras ao acesso à educação.

Os jovens pertencentes às classes sociais com menor poder aquisitivo foram, assim, os mais atingidos pelos aspectos perversos dessa desigualdade, principalmente, se pudermos escaloná-los entre os que possuem acesso à internet, aparelhos adequados para estudar, espaços para realização de estudos e os que residem no campo. Considerando que parte desses últimos, quase sempre, está desprovida dos itens anteriormente citados, sua relação com a escola no período da pandemia tornou-se ainda mais precarizada.

Na experiência dos jovens envolvidos em nossa investigação, pudemos verificar que estudar utilizando a internet não era um hábito para 74.3% deles, o que pode sugerir falta de familiaridade com alguns dos recursos disponibilizados nas aulas remotas, mesmo se tratando da geração Z (nascidos entre os anos de 1990 e 2010). Noutro aspecto da pesquisa, identificamos que 72,5% dos pesquisados consideram as aulas presenciais mais atrativas do que aquelas transmitidas pelos recursos disponibilizados pela rede mundial de computadores, o que pode ratificar a falta de hábito para estudar pela internet.

A falta de disciplina para realização dos estudos no período de suspensão das aulas presenciais foi uma das dificuldades enfrentadas, pois apenas 32% afirmaram ter reservado, nesse período, um horário para estudar. Mesmo com esse cenário, quando indagados se utilizaram alguma estratégia de estudo, 58,6% disseram que sim. Entretanto, entre eles, a organização de um horário foi apontada como a principal estratégia. Há, portanto, dois comportamentos nas respostas dadas pelos estudantes que tornaram a passagem pelo período de aulas não presenciais ainda mais difícil: 1) a falta de disciplina para estudar (68%) e 2) a ausência de estratégias para estudar (41,4%).

Entretanto, entre os estudantes que declararam sentir dificuldades para estudar, justificaram essa situação a partir de elementos que recortam desde a precariedade do ensino remoto (1. Dificuldade de entender as atividades; 2. Dificuldades para tirar dúvidas; 3. Aulas remotas), passando pelas condições familiares e pessoais (4. Falta de internet/acesso ruim; 5. Falta de concentração; 6. Falta de privacidade). Ressaltamos que na investigação 44,2% dos jovens pesquisados afirmaram não se sentir confortáveis com as condições disponíveis em suas residências para estudar.

Outro aspecto informado, quanto a essa dificuldade, está situado na dimensão de gênero, ou seja, na sobrecarrega de tarefas domésticas, especialmente, para as mulheres (7. Muitas atividades durante o dia/tarefas caseiras), embora essa dimensão possa pesar também sobre alguns homens, cabe lembrar que a participação negra e feminina aparece como importantes marcadores do perfil dos participantes neste estudo.

Do ponto de vista local, no período de aulas não presenciais, as escolas utilizaram, segundo os estudantes, as seguintes ferramentas para transmissão de atividades: Google Classroom, WhatsApp e o Google Meet, revelando a presença dos gigantes da internet Google e Facebook (empresa mãe do WhatsApp) no cotidiano das estratégias de ensino na pandemia no município.

Embora sejam os mais jovens os principais usuários da internet no Brasil (COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL, 2019), a falta de familiaridade para estudar utilizando a internet e a ausência de estratégias para estudar no período de suspensão das aulas presenciais podem revelar usos educacionais distintivos da rede de computadores pelos estudantes pesquisados.

CRUZANDO QUESTIONÁRIOS E ENTREVISTAS: OS DIFERENTES TEMPOS DA PESQUISA

A reabertura das escolas públicas para realização de aulas híbridas ocorreu, em Pernambuco (BR), a partir de 6 de outubro de 2020, de forma escalonada, primeiramente com turmas do 3º ano do Ensino Médio, sob um cenário de medo, dúvidas e expectativas. Em março de 2021, o Sindicato de Trabalhadores em Educação do Estado de Pernambuco divulgou resultados de um levantamento, realizado entre 23 de fevereiro e 15 de março do mesmo ano, apontando 480 casos positivos de covid-19 entre professores, estudantes e técnicos de 122 escolas estaduais, das 132 visitadas (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 2021).

O município estudado, até a data de 17 de junho de 2021, registrava 91 óbitos e 868 casos confirmados de covid-19, chegando a um índice de letalidade de 10,48%. Dado bem acima da média nacional que correspondia, nesse dia, a 2,40% (FERREIRA; COTA; COSTA, 2021). Soma-se a isso a ausência de infraestrutura para acolher casos de internação com UTI (unidade de Tratamento Intensivo), sendo os pacientes encaminhados para hospitais na capital pernambucana.

A presente contextualização serve para justificar nossa decisão por reduzir o quantitativo de entrevistas e introduzir os elementos que desejamos apresentar relativos ao cruzamento de dados entre os questionários e as entrevistas realizadas, de modo a identificar quais são os pontos de confluência entre os dois momentos da pesquisa (fase I - Aplicação de questionários, e fase II, realização de entrevistas).

As entrevistas permitiram confirmar muitos dos aspectos verificados na análise dos questionários, auxiliando o entendimento de suas particularidades. Isso posto, entre os estudantes entrevistados, a pandemia foi responsável por afetar as emoções de muitos deles. Os jovens vivenciaram o período que recorta nossa investigação com certa tristeza pelas dificuldades decorrentes das aulas remotas e, junto a isso, o medo da infecção pela covid-19. Além de relatarem solidariedade com as vítimas da doença, demonstraram o descontentamento com a ausência das aulas presenciais e os problemas do ensino remoto como fatores que exerceram influência sobre o aspecto emocional.

A violência doméstica foi outro dado que deixou de aparecer na maioria dos relatos apresentados, embora uma estudante afirmou ter presenciado violência dentro de sua residência, destacando a violência psicológica, e disse se sentir impotente diante dessa situação. Por ser um tópico sensível, ao serem perguntados sobre o que é violência e se foram expostos a ela durante a pandemia, os jovens limitaram a resposta sobre os tipos de violência que conhecem. Muitos tiveram dificuldade para falar, contudo, de forma geral, compreendem a violência como algo que é físico, mas também psicológico, como relata uma entrevistada: “Tem várias formas; violência física, psicológica. E tem a violência verbal […] que às vezes é pior do que a física.” (E3).

Dos problemas relativos ao acesso à internet, apenas dois jovens afirmaram não ter acesso, o que fazia com que eles tivessem que se deslocar para casas de vizinhos ou familiares para poderem acessar as aulas. Entretanto, apesar de os demais possuírem internet em suas residências, a qualidade dela era quase sempre precária. Os estratos de relatos abaixo ilustram essa problemática:

Ia para casa da vizinha. (E2)

Possuo, porém, não funciona bem. (E6)

Eu me deslocava para a casa da minha avó, para fazer [as aulas] lá. (E8)

Enquanto os jovens viram suas fontes de sociabilidade físicas (festas, passeios, escola e o transporte escolar) limitadas, na fase mais intensa da pandemia, a própria família deles testemunharam outras alterações nos ritmos de sua rotina: a intensificação de atividades escolares e domésticas.

A respeito da rotina dos jovens, após o início da pandemia, foi consenso entre os entrevistados que a carga de atividades escolares aumentou bastante, bem como a demanda por tarefas domésticas, com destaque à dificuldade de conciliar as duas atividades durante o dia, como ficou evidente nas respostas abaixo.

Não mudou nada, não. Eu fazia coisas de casa, também. Às vezes eu não participava das aulas porque não dava, por conta das coisas de casa para fazer. A preguiça também [risos]. (E3)

Mudou. [As tarefas] Aumentaram tanto na escola como em casa. (E6)

Oxe, ficou mais corrido! Porque tinha que fazer aula remota, aí agora voltou as aulas. Aí eu tinha que fazer aula remota um dia, e na outra aula [presencial] aí […] fazer negócio em casa também. (E8)

Era de manhã estudar e de tarde ajudar em casa. (E9).

Em se tratando da atratividade das aulas remotas, é nítido que as respostas dos entrevistados nos conduzem ao entendimento que o ensino remoto é precário e repleto de problemas, como vemos a seguir.

É porque a aula on-line tem muita dificuldade, porque às vezes a internet cai também, a pessoa fica várias aulas sem assistir, também. (E6)

[…] na sala de aula tem uma pessoa que fica perto de você, que pode ajudar caso você não tenha entendido. Em casa não, porque meus pais trabalham [e não podem ajudar] e tem meus irmãos que são pequenos. (E8)

[…] oxe, melhor presencial, remoto é muito difícil as coisas. (E9)

Outras pesquisas vêm evidenciando as dificuldades enfrentadas pelos estudantes no que tange ao isolamento social. A ampliação das tarefas domésticas aparece como consequência direta da constante presença dos jovens em casa em horários que não costumavam estar (BRAGA; PEREIRA, 2021, p. 21). Um dos grandes obstáculos verificados é a mudança brusca na rotina e dinâmica de estudos para o mundo virtual: na ausência da sala de aula presencial, no aumento de tarefas domésticas e escolares.

Assim, por exemplo, o cuidado com terceiros (irmãos menores, idosos e doentes) aparece como uma das tarefas domésticas combinada às aulas, incidindo sobre a quantidade e qualidade do tempo de estudo e culminando na falta de prioridade na entrega dos deveres escolares, como ilustrado no fragmento da entrevista abaixo:

Sim. Eu fazia sempre, mas tinha vezes que eu não conseguia fazer, porque minha mãe ficava

precisando que eu ajudasse com a minha avó. (E8)

Por outro lado, os relatos aqui apresentados podem indicar que a experiência com o ensino remoto “mostrou o peso da importância da socialização e da escola” (LUZ et al. , 2020, p. 188) para formação dos estudantes, produzindo uma onda de valorização do espaço físico escolar e das aulas presenciais, como veremos mais adiante.

No entanto, as dificuldades apresentadas com o ensino remoto, durante toda a pandemia, alimentam outro espectro que ronda a educação e formação dos jovens brasileiros: a evasão escolar. De acordo com a “Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: educação”, realizada durante o ano de 2019 e divulgada pelo IBGE em julho de 2020, 63,5% dos jovens com idade entre 18 e 24 anos não frequentavam a escola. Como se observa, o cenário que se constrói é bastante preocupante, porque as primeiras pesquisas sobre juventude e pandemia, como a realizada pelo Conjuve (2020), ao buscarem entender os impactos da pandemia sobre os jovens, já apontavam para a ampliação da evasão escolar entre eles. Os motivos seriam as dificuldades financeiras e os problemas com o ensino remoto.

A ausência de altos índices de violência domésticas identificados na investigação não invisibiliza outros problemas enfrentados pelos estudantes, como a necessidade de deslocamento para acesso à internet, as alterações na rotina doméstica e escolar com excesso de atividades e os problemas advindos do ensino remoto.

O RETORNO À ESCOLA, VELHAS PROBLEMÁTICAS E ALGUNS PONTOS CEGOS

Bourdieu foi um sociólogo que demonstrou como as desigualdades sociais afetam o processo de escolarização de um grande conjunto de pessoas. Segundo suas ideias, a escolarização combina conhecimentos, competências e disposições que o sujeito adquire em sua vida social. Por isso, os desnivelamentos do capital cultural influenciam diretamente no desempenho escolar, além do capital econômico e social (BOURDIEU, 1998, p. 42). Estudantes de classes pobres possuem menos capital cultural valorizado pelo sistema de ensino do que aqueles mais abastados economicamente. Sem a institucionalização de uma perspectiva educacional crítica e sensível a essas questões, a escola, vista como meio de superação de desigualdades, desempenha um papel legitimador dessas distâncias:

É provável por um efeito de inércia cultural que continuamos tomando o sistema escolar como um fator de mobilidade social, segundo a ideologia da escola libertadora, quando, ao contrário, tudo tende a mostrar que ele é um dos fatores mais eficazes de conservação social, pois fornece a aparência de legitimidade às desigualdades sociais, e sanciona a herança cultural e o dom social tratado como dom natural (BOURDIEU, 1998, p. 41).

A reflexão acima reafirma a necessidade de avaliar de que maneira os estudantes são vistos diante do ensino remoto, realidade que se estendeu, no período da pandemia, a todas as classes sociais, mas que impacta de forma diferenciada, a depender das condições dadas a sua materialidade, pelo grupo social a que pertence aquele estudante.

Um requisito fundamental para a educação não presencial é a organização do tempo, se fazendo necessário que o estudante organize sua logística para atender a esse imperativo. Assim, nas entrevistas, quase todos os estudantes ressaltaram que não reservam tempo para os estudos, a exceção de que destacaram que o tempo reservado era o da própria aula síncrona. Fato evidenciado pela fala do estudante 4:

Não separei tempo para estudar. Eu só estava estudando o que mandavam para mim, fazia as atividades, só que, tipo, não parava para estudar não. (E4)

No conjunto das estratégias para estudar, encontramos dois estudantes que informaram o deslocamento para casa de outras pessoas com o intuito de acessar a internet. Esse fato mostra, de um lado, a impossibilidade dos jovens de seguir em isolamento social em momentos cruciais para a contenção da covid-19, e de outro a exposição de pessoas de grupo de risco ao vírus. Um estudante (E2) afirma ter que “Ir para a casa da vizinha”, e outro (E8) relata a ida à casa dos avós, onde o sinal de internet era de melhor qualidade.

Tem que criar [estratégias], né? Eu ia pra casa da minha vó, fazia ligação com meus colegas, e a gente estudava junto pela ligação. (E8)

O ensino remoto tanto quanto o ensino a distância demanda um perfil de aluno automotivado: é esperado que esse esteja disciplinado (capaz de evitar dispersão e cumprir horários), organizado (apto a dividir o tempo entre o estudo e os horários de atividades on-line ) (PATTO, 2013, p. 307), portanto a responsabilidade individual sobre o aprendizado e a capacidade de absorção de conhecimento é esperada no ensino remoto, sem considerar as condições reais para isso. Entretanto, para jovens, sobretudo das camadas menos abastadas, que por vezes não possuíam previamente em seu repertório o hábito de estudar on-line , a ausência dessa autodeterminação tem sido observada. Revela-se, então, uma das facetas do capital cultural e como este se relaciona com os estudantes de realidades sociais diferentes. Além disso, a distância entre eles e os professores também opera como um potencializador de dispersão: o que gera um ciclo de frustrações que culmina muitas vezes na desistência e possível evasão.

Nas entrevistas, um dos temas foi o retorno das atividades encaminhadas pelas escolas. A ideia era construir um panorama realista e sensível sobre a situação dos estudantes em relação às atividades escolares. As respostas variam, mas denunciam a dificuldade encontrada por eles de retornar todas as atividades para os professores, sendo decisivo para isto: falta de equipamento ou acesso à internet, limitações de adaptação e dúvidas, além da já citada dificuldade para conciliar o tempo com as atividades domésticas. É importante ressaltar que uma resposta comum a essa questão teve como palavra-chave a tentativa . Os estudantes tentavam dar retorno às atividades, alguns com mais sucesso que outros:

Algumas, outras não dava tempo, não. Meu celular descarregava muito rápido. (E2)

A dependência do acesso à internet e tecnologia foi central, como demonstrado a seguir:

Nem sempre, respondia algumas. Até porque eu me mudei, né? Às vezes não tinha acesso à internet. Aí às vezes era encaminhada com atraso, e nem sempre os professores respondiam, porque eles têm esse negócio deles querer responder ou não, aí fica a critério deles. (E3)

Por outro lado, a experiência educativa na pandemia trouxe à tona, mais do que nunca, a importância da participação da família como suporte à educação escolar. Carmo, Tavares e Cândido (2020, p. 47) afirmam que: “Quando as aprendizagens ficam mais dependentes dos seus contextos familiares, como foi o caso do período de confinamento (entre março e junho de 2020), mais desiguais nas suas aquisições se tornam”. No entanto, considerando o contexto de famílias rurais pouco escolarizadas, além das dificuldades com o ensino remoto, a fala do estudante a seguir mostra suas estratégias para estudar:

Eu reunia, eu falava com as pessoas, tipo, da minha turma. Conseguiu fazer essa atividade? Me dá uma dica aí. Eu sempre pedia informações, aos professores também. (E4)

No momento em que as entrevistas ocorreram, as escolas estaduais vivenciavam o ensino híbrido. Com exceção de um estudante, todos os outros responderam que as turmas estavam divididas, de modo a evitar aglomerações. Os entrevistados avaliaram o retorno das aulas de maneira positiva e reforçaram que os protocolos de biossegurança estavam sendo utilizados.

Eu estou achando bom, melhor que o on-line. Eu estou aprendendo também, está mais organizado. Estava muito corrido para os professores, tinha muita atividade. Era muita sala de aula. Mas esse ano tá bem-organizado. (E4)

Já foi melhor do que o último que era só em casa. Eu tenho aula presencial todo dia, porque na minha escola só fica [dividido] os primeiros, anos porque é muita gente, no terceiro ano é pouca gente, então vamos todos os dias. (E9)

Um estudante faz a ressalva de que o ensino híbrido é uma continuidade do ensino remoto em relação à exclusão digital:

Não é muito bom, não. Porque, tipo, às vezes o 3G não pega, aí você passa um dia todo sem fazer. (E8)

Em outras palavras, o ensino híbrido também prevê atividades remotas: se o pacote de dados está insuficiente, se porventura o sinal de Wi-Fi estiver instável, é um dia de atividades não realizadas que será cobrado na escola. Se o aluno não entende um assunto abordado no digital, corre o risco de ter dificuldade na aula do dia seguinte, presencial. O ensino híbrido ainda carrega consigo os problemas do ponto de vista didático do ensino remoto, porém em escala reduzida. Por outro lado, o ensino híbrido pode, ainda assim, representar uma ameaça sanitária, caso não haja fiscalização sobre o cumprimento das novas regras, nem uma testagem eficiente.

O respeito aos protocolos sanitários na escola, em relação aos estudantes, foi uma questão levantada durante as entrevistas. Os jovens esclareceram haver uma rígida fiscalização e o não cumprimento dos protocolos acarreta retorno para casa:

Tem respeitado! Todo mundo fica de máscara lá, apesar de que também, se não ficar de máscara,

eles [funcionários da escola] mandam pra casa. (E7)

Os protocolos também sofreram ajustes, já que também fazem parte do “novo normal”, uma nova realidade em que todos estão em fase de adaptação. Embora os jovens considerem os protocolos importantes, há ainda alguns que consideram a situação ruim. É o que o depoimento abaixo revela:

Às vezes os alunos acham ruim, mas é para nosso bem, né? Tá cheio de cuidados lá. Todo mundo de máscara. (E9)

O deslocamento para a escola surgiu como tópico mais sensível e alarmante trazido pelos estudantes durante a fase das entrevistas. Embora as escolas estivessem cumprindo e fiscalizando as normas sanitárias, o transporte público escolar segue como ponto cego nos protocolos sanitários. Os jovens, sobretudo os das Zonas Rurais, utilizam o transporte público escolar diariamente como forma de deslocamento e acesso à escola. Todos os questionados responderam que se dirigem à escola no transporte escolar, entretanto os protocolos de distanciamento, higienização e uso de máscara só são respeitados no ambiente escolar, onde há fiscalização. As condições do transporte são avaliadas pelos estudantes:

Lotado, lotado! Ninguém usa máscara, ninguém respeita, alguns usam máscara. Não oferecem

álcool para a gente, vai gente em pé, lotado. (E3)

No escolar tá “normal”, como sempre. Igual antes da pandemia. Sem distanciamento, sem

máscara. Se a gente tiver álcool, tem que levar de casa! (E7)

Não vou mentir, não. Ninguém respeita, muita gente sem máscara. Álcool nós temos que levar de casa. (E8)

O relato a seguir surgiu como uma demanda espontânea das entrevistas, assim como a experiência individual de cada estudante foi relevante e carregou aspectos subjetivos e pessoais de cada jovem. A vivência da estudante E2 se sobressai das demais, tendo em vista que essa foi a única do 3º ano do Ensino Médio entrevistada. Ela relata a tristeza por não ter passado pelo rito de passagem (conclusão do Ensino Médio) de forma adequada, ou pelo menos daquele resultante de experiências de socialização mais ampla (a convivência com os amigos, fotos, festa, aula da saudade).

Sua fala revela a tristeza de ter concluído de forma on-line e não ter tido a oportunidade de se despedir adequadamente dos colegas, professores e da escola. No fim da entrevista, deixa claro que, se pudesse, teria aproveitado mais os anos presenciais:

Ah, aprendi algumas coisas [com a pandemia], né? Tipo, é… não perder tempo, porque o tempo é valioso. O “corona” veio e pronto, perdemos praticamente o ano todinho. Aí você deixa de fazer as coisas que você gosta, e quando menos esperar, já vai ser tarde. (E2)

Sendo a juventude um período de transição entre a condição de dependência da infância para a autonomia da vida adulta (LUZ, 2020, p. 187), a emergência da covid-19 preocupa, ao passo em que tem o potencial de retardar, ou precarizar a autonomia muitas vezes desejada por toda uma geração que testemunha a pandemia da covid-19.

Em suma, houve contribuições espontâneas acerca da avaliação geral do período de suspensão de aulas. Os jovens avaliaram positivamente a proposta do governo de suspensão das aulas, além do retorno híbrido. A rejeição às dificuldades múltiplas impostas pelo ensino remoto leva-os a acreditar que a suspensão das aulas foi a melhor saída para evitar as mortes em massa ao apreciarem o retorno presencial, como é relatado na fala do estudante E9:

Para mim foi uma coisa muito boa, tinha que suspender mesmo. A doença a cada dia vai aumentando, vai morrendo mais gente. Aqui na cidade mesmo parou tudo, só as escolas que estão mantendo as aulas. (E9)

Acho que [a suspensão foi positiva] sim! Porque senão todo mundo ia pegar o corona e morrer!

(E6)

Para os estudantes da rede estadual de Pernambuco (BR), estudar durante a pandemia tem se manifestado em diversas experiências. Ensino não presencial, ensino semipresencial e, no momento em que redigimos este texto, o retorno 100% presencial. Mesmo que, via de regra, a orientação dada aos professores seja a de não reprovação, o que se sabe é que muitos ficaram para trás. Desestímulos, falta de condições mínimas para estudos no ambiente de suas residências, dificuldades de conexão, aparelhos inadequados para acessar e realizar tarefas, acúmulos de atividades domésticas e escolares, problemas psíquicos e a dura realidade imposta pelo aumento do desemprego e rebaixamento das condições de vida.

O retorno às aulas presenciais acenou, em primeiro lugar, para um cenário menos desolador em relação às mortes, mas também um alívio para a fome de comer, aprender e se socializar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os impactos vivenciados na pandemia expuseram o acesso desigual tanto ao próprio sistema de saúde quanto à educação. Mais que isso, o vírus tem mostrado como a estratificação social é uma forte aliada da disseminação das formas de contágio, demonstrando as impossibilidades de muitos setores da sociedade, sobretudo os mais pobres e vulneráveis socioeconomicamente de poderem realizar o confinamento e distanciamento necessários, orientados pelos estudos de infectologia.

A análise mais ampla e o cruzamento do levantamento realizado, em que pese as suas limitações metodológicas, confirmam como uma determinada localidade reflete os dados macrossociológicos da repercussão e efeitos da pandemia da covid-19 sobre a educação. Mesmo vários pontos da pesquisa apontando situações favoráveis a um maior percentual de sujeitos, no que tange ao acesso às aulas remotas, o olhar dos analistas e dos gestores deve focalizar “aqueles que ficaram para trás”, forçados pelas assimetrias presentes na estrutura da sociedade em que vivemos.

Desse modo, condicionados ao seu contexto social, parte dos jovens pesquisados não puderam ter as mesmas oportunidades para vivenciar os estudos em situações minimamente aceitáveis, o que demanda a urgência de políticas públicas eficazes de modo que o fosso de desigualdades educacionais possa ser eliminado ou reduzido.

Nesse sentido, a falta de políticas públicas, um cenário de ausência de oportunidades e o aumento do desemprego são fatores que tendem a tornar a inserção socioeconômica, para a maioria dos jovens brasileiros, um horizonte cada vez mais ameaçado e precário.

Outras investigações puderam dar conta dessa realidade, demonstrando os impactos do isolamento social, da intensificação de aulas remotas na produção de efeitos sobre a saúde mental dos jovens, além da posição desfavorável desse grupo social diante dos índices de desemprego (DATAFOLHA, 2020; CONJUVE, 2020; GONZALEZ et al. , 2020; SILVA, 2020b). Assim, nosso estudo pode se somar a esses trabalhos reforçando como a situação juvenil nos permite compreender as particularidades com as quais são vividas as juventudes.

Se a desigualdade social que recepcionou a pandemia da covid-19 no Brasil tem uma dimensão histórica, ela não pode ser entendida como algo intransponível. Entretanto uma das características mais fortes do momento atual é: a falta de coordenação entre as diversas instâncias governamentais produzindo com isso mais problemas sociais, impulsionadas pelos impactos da pandemia. No que concerne à educação, a ausência de políticas coordenadas deixou evidente: a falta de formação dos professores para a utilização de recursos digitais e a oferta de uma conectividade ampla para os estudantes.

Portanto, o ambiente de desigualdade fez com que a pandemia se mostrasse como mais um obstáculo ao exercício da cidadania para muitos desses estudantes, fazendo com que o ato de estudar resultasse em um conjunto de esforços e da superação de doenças psíquicas para se ter acesso a um dos principais direitos sociais que é a educação.

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1O boletim cientistas sociais e o coronavírus, por exemplo, foi uma publicação de iniciativa conjunta da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e da Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM), com o objetivo de nos ajudar “a perceber como as epidemias nos afetaram ao longo da história e como o debate sobre as formas de reagir a ela sempre envolvem questões que extrapolam o agente biológico” (TONIOL, 2020:01).

Recebido: 09 de Fevereiro de 2022; Aceito: 05 de Abril de 2022

Tarcisio Augusto Alves da Silva Possui graduação em Ciências Sociais (Ênfase em Sociologia Rural) pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (2001), mestrado em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco (2004) e doutorado em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (2010). Atualmente é professor adjunto IV da Universidade Federal Rural de Pernambuco (Departamento de Ciências Sociais). Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia rural, Sociologia ambiental e Sociologia das Juventudes, atuando principalmente nos seguintes temas: meio ambiente, educação, sindicalismo rural, ensino e educação ambiental, desenvolvimento rural e juventudes. E-mail: tarcisio.asilva@ufrpe.br

Lucas Péricles de França Pereira Estudante do Bacharelado em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Programa de Iniciação Científica (Pibic)/UFRPE. E-mail: lucaspericles.fp@gmail.com

Bárbara Santos Sarinho Estudante do Bacharelado em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Programa de Iniciação Científica Voluntária (PIC)/UFRPE. E-mail: babisarinho@gmail.com

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