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Revista Brasileira de Política e Administração da Educação

versão impressa ISSN 1678-166Xversão On-line ISSN 2447-4193

Revista Brasileira de Política e Administração da Educação vol.39 no.1 Goiânia  2023  Epub 25-Set-2023

https://doi.org/10.21573/vol39n12023.113912 

Artigos

Indignação e esperança frente ao movimento neoconservador: análise a partir de Paulo Freire

Indignation and hope in the context of the neoconservative movement: analysis from Paulo Freire

Indignación y esperanza frente al movimiento neoconservador:análisis de Paulo Freire

RAFAEL BIANCHI SILVA1 
http://orcid.org/0000-0002-1170-7920

JOSE ALEXANDRE GONÇALVES2 
http://orcid.org/0000-0002-3254-0576

ADRIANA REGINA DE JESUS SANTOS3 
http://orcid.org/0000-0002-9346-5311

NATHALIA MARTINS BELEZE4 
http://orcid.org/0000-0002-7203-5005

1 Universidade Estadual de Londrina Programa de Pós-Graduação em Psicologia Londrina , PR , Brasil

2 Secretaria de Educação do Estado do Paraná Ponta Grossa , PR , Brasil

3 Universidade Estadual de Londrina Programa de Pós-Graduação em Educação Londrina , PR , Brasil

4 Universidade Estadual de Londrina Programa de Pós-Graduação em Educação Londrina , PR , Brasil


Resumo

O presente artigo tem como objetivo analisar projetos de lei em tramitação desde o ano de 2019 que buscam revogar a Lei nº 12.612/12 que conferiu à Paulo Freire, o título de “Patrono da Educação Brasileira”. Para tanto, foi realizado um levantamento dos documentos na página oficial da Câmara dos Deputados, pesquisando projetos de leis (PL’s), tendo como buscadores os termos “Educação”, “Escola”, “Professores”. Trata-se de uma pesquisa crítico-dialética, pois, buscou compreender as condições materiais da existência social adotando um movimento dialético diante deste processo de conhecimento tendo a dimensão da prática social como ponto de chegada e partida. A partir disso, observou-se que os PL buscam, com uma leitura equivocada sobre o pensador brasileiro, diminuir a sua importância na educação brasileira.

Palavras-Chave: Educação; Paulo Freire; Humanização; Neoconservadorismo

Abstract

The purpose of this article is to analyze the bills in progress since 2019 that seek to revoke law no. 12,612 / 12, that gave Paulo Freire the title of “Patron of Brazilian Education”. To this end, a survey of documents was carried out on the official website of the Chamber of Deputies, researching draft laws (PL’s), with the search engine the words “education”, “school”, “Teacher”. It is a critical-dialectical research, as it seeks to understand the conditions of social existence by adopting a dialectical movement before this process of knowledge, having the measure of social practice as a point of arrival and departure. From this, it was observed that PLs seek, with a mistaken reading of the Brazilian thinker, to diminish its importance in Brazilian education.

Key words: Education; Paulo Freire; Humanization; Neoconservatism

Resumen

El propósito de este artículo es analizar los proyectos de ley en curso desde 2019 que buscan derogar la Ley n.º 12.612 / 12 que otorgó a Paulo Freire el título de Patrono de la Educación Brasileña. Para ello, se realizó un levantamiento de los documentos en la página oficial de la Cámara de Diputados, investigando anteproyectos de ley (PL’s), utilizando los términos “Educación”, “Escuela”, “Docentes” como buscadores. Desde una reflexión crítica y dialéctica, se observó que el PL busca, con una lectura errónea del pensador brasileño, reducir su importancia en la educación brasileña.

Palabras-clave: Educación; Paulo Freire; Humanización; Neoconservadurismo

INTRODUÇÃO

[...], o que temos de fazer não é propriamente definir o conceito do tema, nem tampouco, tomando o que ele envolve como um fato dado, simplesmente descrevê-lo ou explicá-lo, mas, pelo contrário, assumir perante ele uma atitude comprometida. Atitude de quem não quer apenas descrever o que se passa como se passa, porque quer, sobretudo, transformar a realidade para que, o que agora se passa de tal forma,

venha a passar-se de forma diferente.

(Paulo Freire, 1981 ).

O atual contexto da sociedade contemporânea brasileira faz com que passemos da perplexidade ao riso da indiferença como arma de proteção diante do descalabro atual da situação política do país. Segundo Cohn (2000), é possível constatar no contexto brasileiro, a partir do governo Bolsonaro, a presença do início de um processo de destruição truculenta da rede de proteção social, do meio ambiente, do direito à terra por parte dos trabalhadores rurais, indígenas e ribeirinhos, dos direitos dos negros, dos LBGTQI+ e das ciências humanas, principalmente no que se refere à educação e, em especial, à perspectiva freireana.

Isso posto, a indignação diante de tal organização social, política, econômica e educacional remete-nos a olhar essa conjuntura pelo viés da esperança e de uma educação pautada na libertação do sujeito, perspectiva educativa defendida pelo educador Paulo Freire. Compreendemos que o educador pernambucano não está isento de críticas ou de discordâncias sobre seu legado ou que suas propostas de encaminhamentos de trabalho possam também se eximir de falhas. No entanto, a onda neoconservadora que se vê no Brasil, em especial desde as eleições de 2018, trouxe à cena o seu nome, fato que instigou a comunidade acadêmica e científica a entender melhor tal fenômeno.

O objetivo desse artigo é analisar os projetos de lei que buscam revogar a Lei nº 12.612/12 que conferiu a Paulo Freire o título de “Patrono da Educação Brasileira”. Destarte, como metodologia recorreu-se à pesquisa documental e bibliográfica tendo como premissa uma reflexão crítica, possibilitando assim, a interlocução do conteúdo do objeto analisado em relação às concepções do pensamento enunciadas autor de referência.

Para o levantamento dos documentos, foi definido como campo amostral projetos de lei (PL’s) apresentados em 2019 que estão em tramitação na Câmara dos Deputados. Foi realizada uma busca por meio da internet na página oficial da Câmara dos Deputados, buscando os referidos PL’s em tramitação a partir do referido ano. Para tanto, foram utilizadas inicialmente para busca as palavras-chaves “Educação”, “Escola” e “Professores”. Aplicando como filtro o recorte temporal indicado, foram encontrados 36 PL’s que tratam da temática “escola e as condições de trabalho dos professores” colocados em tramitação pela bancada eleita em 2018. Desse universo, três projetos de lei fazem referência à pessoa de Paulo Freire, os quais foram efetivamente analisados: PL 1930/19, 2589/19 e, por fim, o 3033/19.

Buscando contribuir para reflexões que fomentem práxis de repúdio ao desmonte da educação pública e ao autoritarismo, queremos destacar a relevância da temática que nos colocamos a analisar, que se manifesta oportunamente diante das comemorações do centenário de Paulo Freire. Além do mais, consideramos que esta pesquisa vem colaborar de certa maneira para a construção e consolidação do campo de pesquisa de políticas de currículo, por abordar aspectos filosóficos e sociológicos quando se propõe a discutir o papel da educação.

Para a realização desse trabalho, apresentaremos inicialmente, o contexto social, político e econômico vivenciado na sociedade contemporânea e suas implicações no campo educacional tendo como parâmetro a Pedagogia Freireana, para nos aprofundarmos nas propostas de lei e suas justificativas, em um segundo momento.

CONTEXTUALIZANDO O MOVIMENTO NEOCONSERVADOR E A EDUCAÇÃO PELO VIÉS DA ESPERANÇA

Nessa seção, analisamos e problematizamos o contexto político vivenciado no Brasil na atualidade caracterizado pela ascensão do neoconservadorismo, do ideário liberal e do fundamentalismo cristão. Conforme afirma Lopes (2019) , é possível identificar grandes mudanças na conjuntura política no Brasil desde o golpe político/jurídico/midiático que destituiu um governo em exercício em 2016, gerando impactos no âmbito da educação e nos demais aspectos políticos.

Segundo a autora, nas eleições de 2018, Bolsonaro vence-as por meio de um discurso fantasmático, apontando os partidos de esquerda, o marxismo cultural e a Pedagogia Freireana como causadores do não desenvolvimento da nação brasileira. Assim, apresenta-se para resolver as mazelas do Brasil com um discurso messiânico, colocando-se como único capaz de salvar e “endireitar” o país, materializado no slogan : “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.

Diante disso, a partir de 2019, vemos uma “onda” que paira sobre parte da sociedade brasileira, polarizando os sujeitos e se fazendo hegemônica no âmbito das políticas públicas voltadas para a educação tendo como princípios o não diálogo, o autoritarismo e a recusa ao pensamento freireano. Com a expansão do pensamento fundamentalista/conservador manifestado nas urnas, tanto a bancada da direita estabelecida como essa “nova” direita cresce no parlamento (BARBOSA, 2020).

A partir disso, foi possível constatar a intensificação de discursos e propostas de teor extremistas. No que se refere ao sistema educacional, aliados aos interesses do mercado, o foco é direcionado para a escola (básica e superior) enxergando-a como um campo para concentrar rápidas alterações.

Para compreender melhor o fenômeno é preciso ir ao encontro da gênese do pensamento conservador, marca no ocidente capitalista que serve de base para a recente versão neoconservadora. Surgido no contexto dos anos 1970, na esteira do neoliberalismo que anunciava um Estado mínimo, despontaram nos países centrais do sistema capitalista, grupos (pautados, por exemplo, no fundamentalismo cristão) que apoiavam a reforma do Estado atrelada a regulação dos costumes. Assim, ainda sob a égide de um pensamento dito liberal, “os neoconservadores preconizam um estado forte, sendo isto bem notório nas questões que envolvem aspectos como o conhecimento, os valores e o corpo” ( APPLE, 2002 , p. 65).

O pensamento neoconservador presente na sociedade contemporânea está atrelado a uma concepção idealista de passado com ênfase no regresso aos antigos valores e na busca daquilo que entendem como fundamento moral. Observa-se que essa perspectiva dificulta os processos educativos no quais as pessoas possam instigar a capacidade crítica e reflexiva do pensamento, afastando a educação de um caráter transformador, na qual seria possível almejar a libertação e emancipação do ser, produzindo o desejo de “[...] luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como seres para si” ( FREIRE, 2017 , p. 41).

A partir disso, podemos afirmar que os neoconservadores, atrelados aos interesses neoliberais, julgam a necessidade do retorno a uma visão de educação tradicional que tem como premissa a concepção de aluno como um indivíduo que nada sabe e o seu professor como um técnico, um burocrata, detentor do saber, o qual deve apenas reproduzir determinados conteúdos de acordo com as prescrições ditadas de instâncias superiores.

Corroborando com essa reflexão, Bourdieu (1989) argumenta que o capitalismo pressupõe a inculcação de disposições específicas que generalizam e naturalizam uma conduta maximizadora, voltada para um futuro de possibilidades abstratas e não mais para um “porvir” concretamente fundado nas regularidades da experiência tradicional. Desse modo, rejeita a ideia de que o fenômeno social é unicamente produto das ações individuais devendo a lógica dessas ações ser procurada na racionalidade dos atores.

Nesta perspectiva, as relações de força e dominação precisam ser problematizadas no contexto da educação, em especial no bojo das políticas e programas que orientam o desenvolvimento dela. Segundo o autor, é importante considerar a educação como um espaço para desvendar os fundamentos ocultos de dominação e poder, visto que, quase sempre, essas relações são desconhecidas pelos indivíduos que sofrem um processo de violência material e simbólica.

No âmbito do pragmatismo político, isso se manifesta objetivamente em programas curriculares enunciando “ordem” e “neutralidade” ou, na retórica da austeridade financeira, cobrando por melhor “qualidade”, “eficiência”, “competência” dentro das condições existentes. Tal movimento já foi visto no campo das políticas públicas norte-americanas para a educação nos anos de 1990 ( APPLE, 2002 ), retórica também dominante atualmente no Brasil.

Como exemplos aqui em nosso país, podemos apontar os programas de escolas cívico militares 1 , a BNCC 2 , o projeto “Future-se 3 ”, as recentes diretrizes para a formação de professores ( TORRES, 2020 ). Entendemos tais propostas como formas parciais e simplistas de abordar essa problemática tão complexa que é a Educação é pensá-la como um molde mistificado e homogêneo. O seu intuito, no âmbito mais geral, revestido da ideia de melhoria dos índices, na suposta atribuição

de qualificação do trabalho, não é outra coisa senão a resignação das massas, ou seja, transformar a visão de mundo dos indivíduos, conformando-os, por meio de uma entrega da execução dos processos educativos ao capital privado (REIS et al, 2019).

Em contraposição a essa concepção, Paulo Freire apresenta, ao longo de sua obra, uma visão diferenciada de educação nomeada como progressista. Ela parte do entendimento do processo educativo enquanto uma prática de liberdade e um ato dialógico no que se refere a formação do sujeito consciente e transformador de si mesmo e da sociedade. Henry Giroux (1997) , intelectual norte-americano que propagou o pensamento freiriano nos Estados Unidos e no Canadá, afirma que:

Freire introduz uma nova dimensão na teoria e prática educacional radical. Eu digo nova porque ele liga o processo de luta às particularidades das vidas das pessoas e ao mesmo tempo argumenta em prol de uma fé no poder dos oprimidos para lutarem no interesse de sua própria libertação. Esta é uma noção de educação que não provém apenas da análise crítica e do pessimismo orweliano; é um discurso que cria um ponto de partida ao tentar fazer com que a esperança seja realizável e o desespero não convincente. A educação na visão de Freire torna-se tanto ideal quanto referencial de mudança a serviço de uma nova espécie de sociedade. Enquanto ideal, a educação refere-se a uma forma de política cultural que transcende os limites teóricos de qualquer doutrina política específica, enquanto ao mesmo tempo liga a teoria e prática social aos aspectos mais profundos de emancipação. ( GIROUX, 1997 , p. 146).

Veremos a seguir a materialização de um ideário neoconservador que está a dominar a cena política no Brasil, identificados nos projetos de lei que criticam Paulo Freire e sua concepção de educação. Em contraposição a esse movimento, apresentaremos algumas considerações que buscam refletir dialeticamente o cenário social e educacional, bem como, os projetos de lei, tendo como base princípios pautados em uma educação crítica e emancipadora.

PAULO FREIRE POR MEIO DAS LENTES DOS PROJETOS DE LEIS

Conforme indicado anteriormente, selecionamos para a análise três projetos de leis que estão em tramitação desde 2019 no Congresso Nacional, buscando aprovação primeiramente na Câmara dos Deputados, com o intuito de cassar o título atribuído a Paulo Freire. São eles: PL 1930/19; PL 2589/19 e PL 3033/19. Neles, o conteúdo do artigo principal é objetivo: “Revoga-se a Lei nº 12.612, de 13 de abril de 2012, que declara Paulo Freire, Patrono da Educação Brasileira”. Enquanto estrutura, encontram-se nas justificações os pontos controversos. Em comum, temos fato de seus autores não terem nenhum vínculo específico ou formativo com a educação, de explicitamente assumirem-se liberais conservadores e de estarem em seus primeiros meses de mandato na Câmara do Deputados sendo eleitos pelo mesmo partido, o PSL – Partido Social Liberal (pelo qual o atual presidente foi eleito).

Para uma melhor compreensão, os projetos serão apresentados em quadros específicos referentes a cada projeto de lei, de forma a expor o máximo do teor das argumentações de justificação do nosso objeto principal para análise. Assim, apresentaremos três quadros descrevendo as razões elencadas pelos senhores deputados para a revogação da lei nº 12.612/13, seguido de nossa análise. Desse modo, mesmo que extensas, convidamos o leitor a acompanhar a sistematização presente no quadro 1 .

Quadro 1 Justificativa PL 1930/19 para revogar a Lei nº12.612/12 

Projeto de Lei, Autoria Justificação
PL 1930/19, Heitor Freire Em abril do ano de 2012, Paulo Freire, o pedagogo endeusado pela esquerda de nosso país, foi intitulado como Patrono da Educação Brasileira, para delírio dos marxistas do país capitaneados pela então Presidente Dilma Rousseff, [...]. Ainda que medida de cunho majoritariamente simbólico, a imputação unilateral de Paulo Freire como Patrono da Educação Brasileira representou a verdadeira supressão de um pensamento plural, que deveria ser natural no ambiente educacional e acadêmico. Reconhecido por seu método dialético de alfabetização, Freire denominou jocosamente a então maneira tradicional de educar. Ao introduzir um modelo pedagógico que reverte a ordem no ambiente escolar, Freire institui o método marxista crítico, em que o aluno deve quebrar a posição superior do mestre, questionando-o, insurgindo-se contra aquele que detém o conhecimento, ao que chamou de “educação libertadora”. [...]. O modelo “freiriano” de educação é celebrado pela reversão, pela indisciplina, pela insubordinação do aluno perante o professor. A péssima situação da educação brasileira nos tempos modernos revela por si só os resultados catastróficos da adoção dessa plataforma esquerdista de ensino. Ressalta-se aqui que, ainda que os argumentos posteriormente colocados sejam mais que suficientes para tal dispositivo legal não tivesse justificativa minimamente aceitável para sua criação, o maior absurdo é a sua imposição. Não satisfeita em impor suas práticas, a esquerda enfia seus símbolos por meio de leis, desprezando o contraditório, a pluralidade de ideias, como se seus personagens tivessem de ser aceitos por toda a população. Essa fraude legalizada precisa ser remediada. Nesse sentido, propomos através do presente projeto de lei simplesmente a revogação da Lei nº 12.612, de 13 de abril de 2012. Não se trata de propor um substituto, mas sim de isentar essa área de tamanha importância desprovida de viés ideológico. Que a nossa educação seja simbolizada pelos educadores, pelos alunos, pelo ensino de qualidade e pela inocência de nossas crianças, evitando a celebração daqueles que incentivam à balbúrdia e a insubordinação. É nesse sentido que peço o apoio dos estimados pares desta Casa Legislativa.

Fonte: os autores.

No quadro acima é possível observar que o deputado Heitor Freire, administrador de empresas por formação, procurou demonstrar em seu PL 1930/19 que o método utilizado por Paulo Freire para alfabetizar adultos camponeses incita o não respeito a hierarquia entre professor e aluno e indica, enquanto premissa, a necessidade de uma diferença de posição entre professor e aluno materializada como uma relação de dominação e autoridade do primeiro sobre o segundo.

Diante disso, é salutar destacar que tal justificativa apresentada pelo deputado não condiz com a proposta do pensador brasileiro visto que, em suas obras, o autor não ressalta a insubordinação do aluno em relação ao professor. Ao contrário, defende que a educação deve ser dialógica e horizontal na medida em que não é pautada pela transferência de saber, mas sim, como um encontro de sujeitos interlocutores que buscam dar sentido ao mundo e suas contradições ( FREIRE, 2005 ).

A justificativa apresentada do projeto de lei nº 1930/19 indica que a relação de igualdade ontológica entre educador e educando é considerada uma subversão da diferença hierárquica entre professor e aluno que seria própria e inerente a educação. Ao identificar na concepção freireana a proposição de simetria entre os envolvidos no processo educativo, o deputado entende que se tem mudança dos vetores de poder e controle em sala de aula (não mais do professor ao aluno, mas sim, o seu inverso), o que prejudicaria a ação educativa e pedagógica.

A partir disso, é possível vislumbrar o risco que a visão de Freire poderia trazer: a queda da hierarquização e liderança de um grupo dominante - neste caso o educador - em detrimento da assunção de outro que se encontrava submisso - o educando - culminando em uma condição de desordem social. Essa premissa é questionada por Paulo Freire em toda a sua obra a partir do entendimento de que o processo formativo parte do parâmetro de que educador e educando sejam entendidos como sujeitos que se relacionam na dinâmica histórica da sociedade de maneira horizontal e respeitosa.

Diferentemente de uma proposta unidimensional em termos formativos, para Freire, o sujeito é entendido cognoscível não apenas pelo ato racional, como também pela relação estabelecida com o outro, envolvendo o campo afetivo. É este processo que produz a humanidade, rompendo com a dicotomia entre as dimensões subjetiva e objetiva, unificando sensibilidade, emoção e criticidade (FREIRE, 1997).

Vê-se, portanto, que diferentemente de uma proposta unidimensional em termos formativos, o sujeito cognitivo necessita ser entendido não apenas como um sujeito centrado em conhecimentos neutros exteriores a sua existência, mas enquanto sujeito psicológico, social, político e relacional. A negação disso, segundo Freire (1983) , está relacionada com uma educação direcionada à manipulação e domesticação que limita o desenvolvimento humano e suas potencialidades através da coisificação do outro enquanto objeto da ação técnica autoritária.

O segundo projeto de lei é de autoria da deputada e advogada Caroline Toni (PSL). O quadro a seguir, enuncia as razões pelas quais deve ser realizada a revogação da lei nº 12.612/12:

Quadro 2 Justificativa PL 2589/19 para revogar a Lei nº12.612/12 

Projeto de Lei, Autoria Justificação
PL 2589/19, Carolina Toni Na sua obra, Paulo Freire preocupou-se tão somente discutir formação política e relegou a segundo plano os verdadeiros desafios da educação. O autor pouco se dedicou a analisar e oferecer caminhos aos docentes sobre recursos da ciência pedagógica, capazes de instrumentalizar as práticas em sala de aula e garantir conhecimento específico para o exercício do trabalho docente. As evidências demonstram que o enfoque excessivo na formação política do aluno, a que recorrem muitos cursos de graduação e de pós-graduação inspirados em Paulo Freire, não tem oferecido respostas às deficiências da educação nacional. Paulo Freire era adepto da teoria marxista e da sua aplicação na educação por meio da chamada “pedagogia do oprimido”- teoria essa de larga aplicação na educação nacional, desvirtuando a sua finalidade essencial para convertê-la na mera defesa de uma ideologia. Contudo, os alunos brasileiros mantêm níveis baixíssimos de aprendizagem nas avaliações nacionais e internacionais. Sequer conseguimos alfabetizar as crianças no início do ensino fundamental para que possam seguir com êxito os sucessivos anos de vida escolar. A vigência e manutenção de uma norma legal com esse teor sugere que se deva privilegiar um conjunto de ideias pedagógicas em detrimento de outras, quando os enormes desafios do nosso sistema educacional exigem olhares múltiplos e abordagens diferenciadas. A Constituição da República de 1988, em seu artigo 206, inciso III, prevê como um dos seus princípios o “pluralismo de ideias e concepções pedagógicas”, razão pela qual não é adequado ter um patrono para a educação brasileira estabelecido por lei federal, sob pena de violar-se a Carta Magna. A educação deve ser apartidária para que os estudantes possam desenvolver seus próprios conceitos e pensarem de forma livre, sem amarras ideológicas. Por esse motivo, é inconcebível que se adote determinado pensador como Patrono ou determinada linha ideológica como norteadora da Educação Brasileira. Assim, certa da importância desse projeto de lei, conto com o apoio irrestrito dos nobres pares.

Fonte: os autores.

No que se refere a este projeto de lei, percebe-se, por suas justificativas e posicionamento, que a intenção é depreciar os princípios teóricos e metodológicos da Pedagogia Freireana, expressando assim, uma visão equivocada acerca das ideias do autor.

Faz-se necessário ressaltar que Freire em nenhum momento dos seus escritos afirma que há uma relação antagônica entre formação, dimensão política e a ação educativa. Como aponta o autor, o político é reconhecido como espaço de poder indissociável da educação. É pela capacidade de dizer o mundo “[...] na medida em que o transformávamos, em que o reinventávamos, que terminamos por nos tornar ensinantes e aprendizes. Sujeitos de uma prática que se veio tornando política, gnosiológica, estética e ética” (FREIRE, 1999, p.12). Contribuindo com essa reflexão Demo (1996 , p.17) afirma que;

O homem político é aquele que tem consciência histórica, sabe dos problemas e busca soluções. Não aceita ser objeto. Quer comandar seu próprio destino. E amanhece o horizonte dos direitos, contra os dados e contra a imposição. Ator, não expectador. Criativo, não produto. Distinguimos nas civilizações e nas culturas a marca do que o homem foi e é capaz de fazer.

Outra afirmação que não condiz com a verdade presente nas justificativas do PL nº 2589/19 indica que que Paulo Freire pouco se dedicou a oferecer caminhos aos docentes sobre ciência pedagógica. Trata-se do contrário. Foi justamente por propor novos caminhos para os processos educativos que ele é referenciado, seja a partir de sua leitura crítica da realidade brasileira ou como propositor de fundamentos para a atuação e formação docente com obras que possuem o objetivo de construir um diálogo direto com o professor que que atua na educação básica, como é possível ver, por exemplo, nas obras de FREIRE (1997, 2005).

Reafirma-se, porém, que diferentemente de um ato educativo mecânico, aponta a importância de uma prática pedagógica pautada pela contradição e criticidade na leitura do mundo. A educação precisa estar voltada à transformação do mundo e isso é colocado em movimento com o processo dialético, próprio da relação educador/educando ( FREIRE, 1979 ). Nesse sentido, ensinar e aprender vinculam-se com o esforço “do professor de desvelar a compreensão de algo e com o empenho igualmente crítico do aluno de ir entrando como sujeito em aprendizagem, no processo de desvelamento que o professor ou professora deve deflagrar” ( FREIRE, 1996 , p.118-119).

Assim, o processo de humanização, como princípio da educação, contrapõe técnicas e procedimentos mecanizados e repetitivos. Isso é demonstrado quando afirma que “[...] a prática educativa, reconhecendo-se como prática política, se recusa a deixar-se aprisionar na estreiteza burocrática de procedimentos burocratizantes” (FREIRE, 2001, p.16).

O projeto de lei nº 2589/19 questiona também “o enfoque excessivo na formação política do aluno, a que recorrem muitos cursos de graduação e de pós- graduação inspirados em Paulo Freire”. Assim sendo, segundo o projeto de lei, as obras do educador não tem oferecido respostas às deficiências da educação nacional. Trata-se, porém, de um argumento pautado em uma visão reducionista limitada a uma opinião de quem não vivencia diretamente a realidade escolar, menosprezando os trabalhos de formação das instituições de ensino superior, não apresentando fundamentos científicos ou mesmo incluindo na análise realizada, elemento como o fator econômico (relacionado com o financiamento da educação).

Entendemos que culpabilizar exclusivamente as instituições de ensino pelo fracasso escolar e terceirizar eventuais frustrações atribuindo responsabilidades a outros agentes como o professor, Paulo Freire, ao aluno, entre outros, isentando o Estado da obrigação de investir em estrutura técnica, pedagógica e tecnológica da educação pública, é um argumento que mascara o lugar do construtor da política pública como responsável desse cenário.

Por fim, o último quadro, refere-se ao PL 3033/19 de Carlos Jordy (PSL), turismólogo por formação. Nele, há uma dupla proposição. Inicialmente, quer-se revogar a lei Nº 12.612/12 e ainda instituir como patrono da educação nacional o nome de Padre José de Anchieta. Assim, focamos na sistematização apenas passagens em alusão a Freire. Vejamos:

Quadro 3 Justificativa PL 3033/19 para revogar a Lei nº12.612/12 

Projeto de Lei, Autoria Justificação
PL 3033/19, Carlos Jordy [...] Entendendo o papel de São José de Anchieta como precursor da educação em nosso país e de seu rico trabalho literário e cultural, peço a mais célere aprovação desta matéria aos nobres pares deste Parlamento. A revogação da lei que declara Paulo Freire Patrono da Educação Brasileira se impõe diante da calamidade da educação nacional. Os testes internacionais em que o Brasil participa como medição de qualificação escolar, vem demonstrando a decadência do ensino nas escolas do país. O fracasso é de envergonhar o Brasil no mundo. Desde a adoção do método socioconstrutivista no Brasil, com linha de Lev Vygostsky, seguindo por Jean Piaget, e encabeçado no Brasil por Paulo Freire, o declínio da educação foi evidente. Todos estes engenheiros sociais materializam o que se denominou marxismo cultural. O ítalo-brasileiro, neurocientista e professor, Pierluigi Piazzi identificou os problemas do método socioconstrutivista, desconstituindo a falácia metodológica por meio do conhecimento do funcionamento do cérebro humano, e – por fim – demonstrara os prejuízos cognitivos das pessoas submetidas a este tipo de pedagogia. O historiador brasileiro Thomas Guiliano, na obra “Descontruindo Paulo Freire”, dentre vários espectros que aborda, demonstra que Paulo Freire tem uma retórica dócil e amável diante de tiranos criminosos como Stálin, Lênin, Mao Tsé Tung, Fidel Castro e afins. O Patrono da Educação Brasileira atualmente tem o descalabro de afirmar que acima de tudo “desejava combater uma visão de mundo adversária”, o que significa a construção de um novo mundo socialista. Paulo Freire, por meio das entidades comunistas mundiais, teve seu trabalho expandido mundo afora. [...].

Fonte: os autores.

O projeto de lei nº 3033/19 foi o que mais se esforçou na tarefa de apresentar argumentos no intuito de diminuir a importância do legado de Paulo Freire, inclusive trazendo alguns autores que descrevem críticas ao trabalho e às referências do intelectual pernambucano. Nos apontamentos em alusão a métodos de ensino, limita-se a responsabilizar certas abordagens educacionais por um insucesso ou prejuízo da educação como um todo. Vemos nos argumentos uma desvalorização de praticamente tudo o que já se disse ou se fez no campo da educação, de maneira simplória como se o conhecimento e as práticas anteriormente realizadas não tivessem importância dentro do contexto histórico em que foram produzidas ou materializadas nas políticas públicas.

Para legitimar uma proposta de educação pautada nos princípios neoconservadores (como alienação, autoritarismo e prescrição antidialógica) é aceitável perante a sua argumentação, a depreciação de intelectuais e de suas ideias por meio da produção de um discurso que além de parcial, é incorreto. A intenção clara de desprezo às correntes teóricas tem um objetivo: o autor do projeto de lei quer o resgate da pedagogia tradicional, simbolizada na figura do padre José de Anchieta. A defesa da alteração do nome do patrono da educação, sugerido pelo PL nº 3033/19, gerou uma resposta no dia 30 de maio de 2019 do “Santuário São José de Anchieta” o qual afirmou, em nota, que:

Recebe com preocupação a notícia de que existe um PL que propõe o nome do padre Anchieta para o patronato. O Padre José de Anchieta merece, de fato, todo louvor e reconhecimento pelo imenso bem que fez pelo nosso Brasil, principalmente, no que se refere ao tema da educação, no entanto, afirmam que não podem aceitar que seu legado seja “instrumentalizado para fins meramente ideológicos. Reconhecemos a imensa importância do legado de Paulo Freire para o Brasil e para o mundo. Tanto José de Anchieta como Paulo Freire caminham na mesma direção. Ambos optaram por estar à serviço da educação dos marginalizados. (SANTUÁRIO NACIONAL DE SÃO JOSÉ DE ANCHIETA, 2019).

Destarte, fica evidente na nota publicada pelo “Santuário São José de Anchieta” que a proposta defendida por Carlos Jordy (PSL) está pautada somente em questões partidárias desmerecendo, neste sentido, a educação e a importância de Paulo Freire no que tange ao processo de ensino e aprendizagem.

Faz-se necessário ressaltar, que o movimento neoconservador ao tentar retirar de Paulo Freire o título de “Patrono da Educação Brasileira”, recebido in memoriam , representou a imposição ao autor e à sua obra uma espécie de segundo exílio, tão violento quanto o primeiro no período de 1964 a 1984. Nesse sentido, defender o legado de Paulo Freire nada mais é do que reconhecer o trabalho de um homem do povo, criador de um pensamento pedagógico único e radicalmente democrático, por isso, revolucionário, o qual deixa um legado de mestre:

[...] o que um educador pode deixar como legado? Em primeiro lugar, pode deixar uma vida, uma biografia. E Paulo nos encantou, em vida, com sua ternura, doçura, carisma e coerência, compromisso e seriedade. Suas palavras e ações foram de luta por um mundo “menos feio, malvado e desumano”. Ao lado do amor e da esperança, ele também nos deixa um legado de indignação diante da injustiça ( GADOTTI, 2003 , p. 52).

Ao perceber tamanha amplitude da obra freireana, bem como sua contribuição em diferentes contextos culturais e em diferentes campos do conhecimento, Paulo Freire é considerado um dos maiores educadores do século XX. Os apontamentos sobre suas obras reafirmam que “[...] cabe, também, à educação a responsabilidade de abrir as portas da mente e do coração e de apontar horizontes de construção partilhada de sociedades humanas mais humanizadas” ( BRANDÃO, 2002 , p. 22). E, neste aspecto inegavelmente, o legado freireano, o pensamento pedagógico aponta para a educação inclusiva e aberta às diferenças, denunciando preconceitos e violências sofridas pelas populações marginalizadas.

Corroborando com essa reflexão a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação - ANPED publicou o manifesto intitulado “Defender Paulo Freire como ‘Patrono da Educação Brasileira’ é defender nossa produção intelectual, a boa prática pedagógica e o próprio Brasil” (ANPED, 2017). Nele é reconhecido o papel do educador na história da educação brasileira e sua luta para a construção da democracia:

É preciso que o Brasil encontre um mínimo de pontos de convergência. Nesse sentido, defender o legado de Paulo Freire nada mais é do que reconhecer o trabalho de um homem do povo, criador de um pensamento pedagógico único e radicalmente democrático, por isso, revolucionário. Respeitar Paulo Freire é resguardar a História daquelas pessoas imprescindíveis que dedicam sua vida, dia após dia, à luta por um mundo livre, fraterno, igualitário, justo, próspero e sustentável. ( ANPED, 2017 ).

PROBLEMATIZANDO AS CRÍTICAS A PAULO FREIRE

De início, faz-se necessário ressaltar que os problemas da educação no Brasil, apontados nos argumentos dos deputados autores dos projetos de lei, são incoerentes em relação aos princípios freireanos. As narrativas descritas nos documentos incitam a sociedade a uma ação antidialógica pois, segundo Freire (2017), os opressores, em seus discursos, produzem estratégias de dividir, de calar, de conquistar, de prescrever para prevalecer, criando mitos para serem facilmente entendidos pela massa. As fantasias ganham terreno nos idealismos que rondam os indivíduos imersos na cotidianidade e os dominadores sabendo disso não hesitam de afirmá-los sempre em suas falas.

Freire (2017) denunciava isso que hoje se tornou mais frequente nos discursos políticos dos membros da nova direita no Brasil para justificar suas ações. Dentre alguns dos mitos que podem ser elencados no discurso daqueles que querem diminuir a importância do autor no contexto educacional frases como “Deus acima de todos!”, o “herói da nação”, o “cidadão de bem”, a “cordialidade” do brasileiro; a “justiça social”, a “meritocracia” do sistema assim como a fantasia do “perigo comunista”.

Uma das possíveis razões da produção de tais retóricas encontra-se no alinhamento desta com a lógica formal, marcada pelo mecanicismo e objetivismo que rege os conservadores (LEFEBREV, 1991). Em vista de uma situação problema é realizada uma busca pela causa para o fenômeno e problemas identificados, o que remete à atribuição de origem exclusivamente a algo ou alguém.

Ainda se pode acrescentar que o próprio desconhecimento da realidade que os projetos de lei propostos pelos atores políticos analisados neste ensaio teórico têm em relação à educação é um aspecto categórico nesse caso específico.

A incompreensão somada ao imediatismo podem ser fatores que possivelmente os levem a enunciações desse tipo, expressando o subjetivismo idealista, quando direciona a um “culpado” os problemas da educação, como se realmente houvesse um único responsável pelo sucesso ou fracasso dos processos educativos.

Dessa forma, poderíamos questionar se a extirpação desse suposto mal produziria necessariamente algo melhor. Se dentro da lógica formal a resposta é positiva, no campo da realidade complexa, de fato, não encontramos indicações de comprovação. Porém, o entendimento de mundo que marca o discurso neoconservador, reacionário, mecânico e idealista, impede a percepção do movimento, tornando-os indiferentes ao transcurso dialético aceitando a existência de diferenças que provocam transformações nas pessoas e na sociedade como um todo.

Outro fenômeno observado está claramente relacionado a existência de cosmovisões diferenciadas e a concretude de seus símbolos. Como desdobramento, vê-se que se trata de algo estratégico do ponto de vista político a partir da criação de uma separação entre “nós” e “eles”, demarcando disputas e necessidade de tomar partido de um dos grupos discursivos. Assim, por exemplo, ao enunciar de maneira incansável as palavras, “esquerda”, “marxismo” e “Paulo Freire”, reconhece-se aquilo que Bakhtin (1981) denominou de “signo cultural”.

O signo, como explica o autor, possui um caráter ideológico. Ele pode exprimir uma dada realidade, como também suas contradições, ou seja, a luta de classes. Há uma tentativa de distorcer a realidade por meio da operação simbólica, pela apreensão e disseminação de um ponto de vista específico. Como afirma o autor, “[...] a classe dominante tende a conferir ao signo ideológico um caráter intangível e acima das diferenças de classe, a fim de abafar ou de ocultar a luta dos índices sociais de valor que aí se trava, a fim de tornar o signo monovalente” ( BAKHTIN, 1981 , p. 48). É exatamente esse processo que o conteúdo presente nas justificativas desses projetos de lei pretende inculcar no pensamento social.

O domínio do ideológico, que é o conteúdo presente nas discussões desses PL’s, coincide com o domínio dos signos. Portanto, reafirmamos que o mecanicismo e determinismos causais que apontam para um modo de pensar e atuar que restringe outras respostas possíveis aos problemas práticos, desconsiderando o esforço de pensar o contraditório. Isso se faz negando o “outro” e reafirmando suas próprias verdades por meio de mitos ou em certos casos argumentando violentamente todo e qualquer antagonismo. Tal aspecto nos ajuda a reconhecer que predomina nos neoconservadores, o que Freire (2017) chama de consciência opressora e, por isso mesmo, negam mudanças que não sejam por eles imposta.

Assim, diante da questão aqui analisada, os neoconservadores não aceitam Paulo Freire enquanto símbolo e disso derivam as ações que buscam apagá-lo enquanto referência da educação brasileira. Esse processo também leva à tentativa de apagamento das contribuições do autor e com elas, toda a direção dada aos processos educativos propostos pelo autor.

Nesse sentido, temem a conscientização com receio da emancipação dos sujeitos e as ações por eles colocadas em movimento a partir de sua condição de liberdade. Por isso mesmo, adotam uma postura antidialética, negando as contradições presentes na educação brasileira, o que leva, a partir de uma posição que objetiva e busca o controle do outro, calar a voz dos que se colocam a contradizê- los.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O legado de Paulo Freire choca-se contra a ideologia neoconservadora. A intencionalidade de suas obras, predominantemente, versa sobre a denúncia da realidade opressora e desumana, apostando no despertar da indignação pela conscientização crítica mediada pela releitura do mundo com a promoção da restituição do direito negado da fala, que pode suscitar um novo anúncio, como práxis e esperança de mudanças.

Assim, como uma antítese ao discurso político dominante, esse estudo teve o intuito de esclarecer equívocos e injúrias em relação ao pensamento do educador Paulo Freire, expressas em projetos de lei, que são documentos oficiais. Nesse sentido, afirmamos que o legado de Paulo Freire para a educação, as contribuições do seu pensamento para a promoção da mudança, não se apagarão mesmo diante da ofensiva de alguns representantes políticos acerca das suas obras, as quais tanto influenciaram o entendimento de um novo papel da educação comprometida com a formação humana dos sujeitos.

Faz-se necessário ressaltar que tais ataques, ao invés de depreciar Paulo Freire e retirá-lo da história, podem levar a um movimento contrário, provocando a disseminação de seu pensamento. Seus textos representam marcos atemporais na luta contra a desumanização e coisificação de homens e mulheres, fenômeno que ultrapassa a dimensão escolar e atravessa toda a sociedade. Ainda que sejam realizadas uma série de acusações de sua ineficácia visando assim diminuir sua importância, a cinco décadas práticas em diferentes países e populações seguem indicando respostas a tais críticas. Dessa maneira, acreditamos que os insultos poderão contribuir com a propagação de suas obras e, possivelmente novos leitores, pesquisadores e profissionais da educação poderão ter contato com a proposta freireana voltada a educação humanizadora como princípio para a cidadania.

Assim, defendemos uma pedagogia progressista que deve provocar no sujeito novas modos de ler e atuar sobre a história em uma presença transformadora no contexto em que está inserido, em contraposição à concepção de educação neoliberal, que desconsidera o educando enquanto sujeito, minimizando-o como mão-de-obra e consumidor, mantenedor do status quo . Considerando as contradições presentes no contexto político atual, concluímos que o pensamento de Paulo Freire se mostra muito relevante para a problematização e diagnóstico dos desafios a serem enfrentados pela educação brasileira.

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Recebido: 11 de Maio de 2021; Aceito: 20 de Novembro de 2021

Rafael Bianchi Silva Pos-doutorado em Psicologia (UEM). Doutor em Educação pela Unesp/Marília. Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: tibx211@yahoo.com.br

Jose Alexandre Gonçalves Mestre em Educação pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Estadual de Londrina. É professor na educação básica. E-mail: alexandregeopg@gmail.com

Adriana Regina De Jesus Santos Graduação em Pedagogia. Mestrado em Educação pela UEPG. Doutorado em Educação pela PUC-SP. Pós-Doutorado em Educação pela Universidade Federal Fluminense. Docente do Curso de Pedagogia e Coordenadora do Programa de Pós- Graduação em Educação da Universidade Estadual de Londrina. Coordenadora do Fórum de Coordenadores de Programas de Pós-Graduação em Educação da Região Sul. Líder do grupo de pesquisa cadastrado no CNPq: Currículo, Formação e Trabalho Docente. E-mail: adrianar@uel.br

Nathalia Martins Beleze Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Estadual de Londrina, Mestre em Educação - UEL, Especialista em Docência na Educação Superior- UEL, graduada em Pedagogia- UEL, formação em magistério nível médio. É professora colaboradora do Departamento de Educação da Universidade Estadual de Londrina, na área de Didática e professora estatutária do Município de Londrina. E-mail: nathaliamartins@uel.br

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