SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.5HISTÓRIA ORAL, VELHICE E O TEMPO PRESENTE: O CONTEXTO DO PATRIMÔNIO CULTURAL RURAL PAULISTAMEMÓRIA E PRÁTICAS EDUCATIVAS EM UM PROJETO DE EDUCAÇÃO DO CAMPO índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Revista Iberoamericana do Patrimônio Histórico-Educativo

versão On-line ISSN 2447-746X

Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo vol.5  Campinas jan./dez 2019  Epub 31-Maio-2019

https://doi.org/10.20888/ridphe_r.v5i0.9705 

Dossiê Temático

AS HISTÓRIAS DE ESTUDANTES CEGOS SOBRE O SEU INGRESSO NA EDUCAÇÃO BÁSICA

THE STORIES OF STUDENTS BLIND ABOUT THEIR INGRESS IN BASIC EDUCATION

LAS HISTORIAS DE ESTUDIANTES CEGOS SOBRE SU INGRESO EN LA EDUCACIÓN BÁSICA

LES HISTOIRES D'ÉLÈVES AVEUGLES AU SUJET DE LEUR INTÉGRATION À L'ÉDUCATION DE BASE

Luciane Maria Molina Barbosa1 

Mariana Aranha de Souza2 

Suelene Donola Mendonça3 

1Universidade de Taubaté lucianemolina.mestrado@gmail.com

2Universidade de Taubaté profa.maaranha@gmail.com

3Universidade de Taubaté profa.suelene@gmail.com


RESUMO

Objetiva-se compreender a trajetória de estudantes cegos, sobretudo quando do seu ingresso na Educação Básica. São sujeitos desta pesquisa seis estudantes cegos que ingressaram no Ensino Superior nas últimas duas décadas. De natureza qualitativa, tem-se como instrumento de coleta de dados a entrevista de História Oral, realizada individualmente e analisada por meio da Análise de Conteúdo. Como resultado verificou-se que a trajetória desses estudantes aponta elementos, como: os materiais usados pelos professores e pelas escolas que estudaram, a postura do professor durante as aulas, a existência ou não de algum acompanhante para o aluno e a forma da escola compreender o trabalho com a diversidade. As narrativas se configuraram em possibilidade de se rememorar as experiências, empoderar os sujeitos e refletir sobre as formas de se organizar as práticas educativas.

Palavras-Chave: Inclusão; Cegueira; Trajetória

ABSTRACT

The objective is to understand the trajectory of blind students, especially when they enter Primary Education. Six blind students enrolled in higher education in the last two decades are the subjects of this research. Of qualitative nature, we have as an instrument of data collection the oral history interview, performed individually and analyzed through Content Analysis. As a result, it was verified that the trajectory of these students points to elements such as the materials used by the teachers and the schools they studied, the teacher's posture during the classes, the existence or not of some companion for the student and the form of the school to understand the work with diversity. The narratives were configured to be able to recall the experiences, to empower the subjects and to reflect on the ways of organizing the educational practices.

Key words: Inclusion; Blindness; Trajectory

RESUMEN

Se pretende comprender la trayectoria de estudiantes ciegos, sobre todo cuando de su ingreso en la Educación Básica. Son sujetos de esta investigación seis estudiantes ciegos que ingresaron en la Enseñanza Superior en las últimas dos décadas. De naturaleza cualitativa, se tiene como instrumento de recolección de datos la entrevista de historia oral, realizada individualmente y analizada por medio del Análisis de Contenido. Como resultado se verificó que la trayectoria de estos estudiantes apunta elementos como los materiales usados por los profesores y por las escuelas que estudiaron, la postura del profesor durante las clases, la existencia o no de algún acompañante para el alumno y la forma de la escuela comprender el trabajo con la diversidad. Las narrativas se configuraron en posibilidad de rememorar las experiencias, empoderar a los sujetos y reflexionar sobre las formas de organizar las prácticas educativas.

Palabras-clave: Inclusión; Ceguera; Trayectoria

RÉSUMÉ

L'objectif est de comprendre la trajectoire des élèves aveugles, en particulier lorsqu'ils entrent dans l'enseignement primaire. Six étudiants aveugles inscrits dans l'enseignement supérieur au cours des deux dernières décennies font l'objet de cette recherche. De nature qualitative, nous avons comme instrument de collecte de données l'interview d'histoire orale, réalisée individuellement et analysée par l'analyse de contenu. En conséquence, il a été vérifié que la trajectoire de ces élèves indiquait des éléments tels que les matériaux utilisés par les enseignants et les écoles qu'ils étudiaient, la posture de l'enseignant pendant les cours, l'existence ou non d'un compagnon pour l'étudiant et la avec diversité. Les récits ont été configurés pour pouvoir rappeler les expériences, habiliter les sujets et réfléchir aux manières d’organiser les pratiques éducatives.

Key words: Inclusion; La cécité Trajectoire

INTRODUÇÃO

A inclusão escolar de pessoas com deficiência visual é um assunto bastante complexo na esfera educacional, principalmente por suscitar discussões acerca dos elementos facilitadores ou dos entraves que marcam o processo de aprendizagem de estudantes cegos e com baixa visão. Essa discussão, vista sob a perspectiva do aluno cego, traz uma abordagem mais direta, no sentido de entender, de fato, as influências do ambiente externo e da mediação docente para que o conhecimento não seja negligenciado pela falta de acessibilidade comunicacional, física ou atitudinal.

Na perspectiva da pessoa cega, as modalidades de acessibilidade se traduzem nas possibilidades de interação com os diversos elementos do cotidiano, por meio da apresentação de textos em formato Braille, áudio ou digital, eliminação de obstáculos nos trajetos, além das formas pelas quais suas condições são vistas por outrem, a fim de perpetuar estigmas ou incentivar os seus alcances.

Embora o tema da inclusão tenha ganhado certo destaque no meio acadêmico, tais questões percebem a pessoa com deficiência mais como objeto de pesquisas do que como sujeito que pertence a esse processo formativo. De fato, ainda há certa dificuldade dos professores em lidarem com as especificidades geradas pela deficiência, e isso inclui a deficiência visual. Tal condição decorre da falta do conhecimento sobre as maneiras pelas quais pessoas cegas apreendem os conceitos, já que a soberania da visão é comprovada pela visualidade presente nos materiais didáticos, nos apontamentos, nos gestos e nas falas dos professores. Além disso, os recursos de acessibilidade para atender estudantes com deficiência precisam ser pensados antes mesmo da chegada desse aluno na escola, oportunizando práticas mais coerentes e planejadas para contemplar essa diversidade.

Por outro lado, encontra-se no diálogo docente/discente contribuições muito positivas para a perpetuação de práticas inclusivas, considerando que esses estudantes, ao longo de sua vida, já tenham participado de inúmeras atividades de ensino em vários níveis da Educação Básica e, por este motivo, imprimiram em suas trajetórias experiências de sucesso e de fracasso, envolvendo as três modalidades de acessibilidade (comunicacional, física e atitudinal). Sendo assim, considera-se que esses estudantes podem trazer contribuições positivas ao contarem suas histórias, por também vivenciarem todo esse processo de construção de uma escola inclusiva.

UM DIÁLOGO SOBRE AS MINORIAS NA ESCOLA

Percebe-se que na construção do cenário da escola inclusiva, alargado pelas transformações do reconhecimento da diversidade, que se construíram os conceitos de integração e inclusão, substituindo a negação do sujeito que não podia pertencer ao grupo por conta de características que o destoava dos espaços.

Esse movimento de transição transpôs a ideia da concepção de um mundo homogêneo para uma concepção de defesa da diferença e da heterogeneidade, defendida por Bauman (2003), ao afirmar que a segurança e a liberdade são inversamente proporcionais na medida em que os sujeitos desviantes precisariam ser realinhados ou então, seriam excluídos daquela comunidade por força de uma dominação desproporcional.

Essa dominação, de certa forma, é também debatida por Bourdieu (1988), ao abordar os aspectos sobre capital cultural e violência simbólica presentes na escola francesa a partir da década de 1950. Ele percebeu que a abertura da escola para todos trouxe para o interior das instituições os reflexos da desigualdade social.

Entretanto, a realidade francesa, palco dos seus estudos, possibilita que se remeta também ao cenário brasileiro, principalmente a partir da década de 1990, em que, por meio da declaração de Salamanca, observou-se que as tentativas de inserção de alunos com necessidades educacionais especiais fracassaram, e então buscou-se fortalecer as políticas de inclusão escolar pela democratização do ensino de uma maneira mais centrada na não reprodução das desigualdades nem da violência simbólica praticada contra aqueles que, de alguma forma, não conseguiam acompanhar a escola por causa de situações de enfrentamento das desigualdades pela deficiência, pelas dificuldades ou pela afirmação de um capital abaixo do que era esperado no interior das escolas (BUENO, 2008).

Bourdieu (1988) afirma que se a escola absorve as realidades de desigualdades sociais, inconscientemente ela também é percebida como um espaço que não está em sintonia com um ensino qualificado, por não compreender os diferentes capitais culturais partilhados no seu interior. Isso é explicado pelo fato do sistema de ensino não conseguir trabalhar com as diferenças sem as diferenciações provocadas pela desigualdade, o que reflete no processo de exclusão vivenciado pelos estudantes com deficiência quando, por causa das suas condições específicas de acesso ao conhecimento, são colocados para fora do sistema de maneira indireta, por conta dos fracassos produzidos pela escola.

Bueno (2008), por sua vez, considera que os baixos resultados escolares, a partir da abertura da escola para todos, não reflete, por exemplo, uma realidade exclusiva das pessoas com deficiência, mas também revela as fragilidades que resultam na exclusão também daqueles sem deficiência.

Nesse sentido, o capital cultural, apontado por Bordieu (1988), é o mecanismo que exclui continuamente, mantendo no "interior" dos espaços escolares e nos níveis mais elevados de ensino aqueles que aparentemente cabem nos moldes de um ensino tradicional e rígido. Entretanto, pode-se perceber que as escolas, como grupos de pertencimento social, já incorporaram questões de identidades, como por exemplo, a presença de refugiados, de imigrantes, de pessoas com deficiência, de minorias religiosas, étnicas e raciais. Essas pessoas, no interior das escolas, encontraram, na década de 1990 por meio da declaração de Salamanca, as bases que as trouxeram de uma situação excludente para uma realidade inclusiva.

Embora as oportunidades e o acesso à aprendizagem fossem iguais para todas as pessoas, Bueno (2008) reforça que as crianças que não aprendiam eram consideradas fracassadas, e essa condição era atribuída a sua posição social. Por isso, o autor aponta a urgência em se estabelecer um olhar para a inclusão escolar enquanto política que perpassa as dimensões meramente conceituais.

O CONCEITO DE ESCOLA INCLUSIVA EM CONTRAPOSIÇÃO A INTEGRAÇÃO

Sassaki (1997) revela que a educação inclusiva constitui um paradigma educacional fundamentado na concepção de direitos humanos, que conjuga igualdade e diferença como valores indissociáveis, e que avança em relação à ideia de equidade formal ao contextualizar as circunstâncias históricas da produção da exclusão dentro e fora da escola.

Para Mantoan (2004), a escola tradicionalmente sempre se voltou para o atendimento de um público idealizado e operava a partir de um projeto educacional homogeneizador e que, por isso, ao reconhecer as dificuldades enfrentadas por essa minoria nos sistemas de ensino, evidenciou-se a necessidade de confrontar as práticas discriminatórias para criar alternativas para superá-las dentro do pressuposto da escola inclusiva.

O processo de integração no sistema regular de ensino tem como objetivo, como propõe o autor, “normalizar” o sujeito, a níveis físico, funcional e social, pressupondo a proximidade física, a interação, a assimilação e a aceitação, partindo do princípio de que integrar é assumir a diferença.

Nesse processo, a integração é substituída por um termo de maior abrangência, renomeada por inclusão que, de acordo com Sassaki (1997), consiste em eliminar certos fatores que excluem algumas pessoas do seio da sociedade, ao mesmo tempo em que, por mediação dela, deva-se acolher todas as pessoas indistintamente. É necessário que, como um todo, se conscientize-se de que precisa “atender às necessidades de seus membros” (SASSAKI, 1997, p. 2).

O autor destaca também que um dos benefícios da Declaração de Salamanca foi reconhecer que as pessoas com deficiência são potencialmente capazes nos mais variados campos do conhecimento e do trabalho, portanto necessitam de espaço para demonstrar essas capacidades até então negligenciadas.

Desse modo, na perspectiva da integração, que antecedeu o momento atual, a escola não estava preparada para atender o aluno que não se encaixasse nos moldes de normalidade previstos, pois quem não conseguisse acompanhar o currículo fechado proposto, era visto como incapaz, sendo encaminhado para classes ou escolas especiais, num sistema de ensino paralelo ao geral (MANTOAN, 2004).

Isso porque, no Brasil, a Educação Especial, que se configurou tradicionalmente como um sistema paralelo e segregado, historicamente foi responsável pela escolarização de pessoas com deficiência, distúrbios graves de aprendizagem e de comportamento ou de altas habilidades. Esse sistema hoje encontra-se em processo de ressignificação em face do paradigma da inclusão. A Educação Inclusiva significa pensar uma escola em que é possível o acesso e a permanência de todos os alunos, e onde os mecanismos de seleção e discriminação, até então utilizados, estão sendo cada vez mais substituídos por procedimentos de identificação e remoção das barreiras para a aprendizagem.

Para explicar, de fato, em que consiste a orientação para a Inclusão Escolar trazida pela Declaração de Salamanca, Bueno (2008) alerta que se pode “olhar” a inclusão sob dois vieses: um diz respeito aos sujeitos e o outro refere-se aos espaços onde o processo deve acontecer. Pode-se tratar de inclusão de diferentes pessoas em espaços diversos.

Assim, a Educação Inclusiva assume espaço central no debate acerca da sociedade contemporânea e do papel da escola Para o autor, a inclusão escolar se configura como sendo uma proposição política em ação, de incorporação de alunos que tradicionalmente têm sido excluídos da escola, enquanto que “educação inclusiva refere-se a um objetivo político a ser alcançado” (BUENO, 2008, p. 58). O autor aponta também que a inclusão escolar surge como uma nova missão da escola no sentido de promover a aprendizagem dos alunos com deficiências ou outras características peculiares de desenvolvimento.

Como preconizava a Declaração de Salamanca, o princípio básico da Educação Inclusiva é que todos os alunos, independentemente de suas condições socioeconômicas, raciais, culturais ou de desenvolvimento, fossem acolhidos nas escolas regulares, as quais deveriam se adaptar para atender às suas necessidades, pois estas se constituem como os meios mais capazes para combater as atitudes discriminatórias (UNESCO, 1994).

Nesse sentido, Inclusão Escolar significa pensar uma escola em que é possível o acesso e a permanência e a superação da lógica da exclusão, necessárias para sua aprendizagem. A Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994, p. 10) deixa claro esse aspecto quando afirma que “todas as crianças [...] têm direito fundamental à educação e que a elas deve ser dada a oportunidade de obter e manter um nível aceitável de conhecimentos”.

Para Sassaki (1998), a exclusão foi necessária para se pensar na inclusão, uma vez que todo processo compreendeu períodos de avanço e de retrocesso. Ao mesmo tempo em que o estigma o torna diferente, também se mostra como um mecanismo de reconhecimento com seus pares quando colocados em situações de pertencimento aos espaços inclusivos. Com isso, a inclusão de alunos com deficiência não deve ser entendida a partir do simples fato de colocá-los em classes comuns, como acontecia na integração. Quando esse processo é pensado a partir da necessidade da alteração no paradigma da escola, reforçado por um processo de reforma escolar e consequente mudança do sistema educacional vigente, percebe-se, como revelado por Bueno (2008), que esta proposta está longe de se concretizar efetivamente no território brasileiro, mesmo considerando o avanço da legislação sobre o assunto.

A inclusão escolar é um processo complexo quando se percebe que extrapola a ação sobre a pessoa com deficiência. Ele sugere mudança de paradigmas, reformulação das ações políticas-pedagógicas, repensar o currículo e os métodos de avaliação, desenvolver métodos que respeitem as diferentes formas e ritmos de aprendizagem de cada educando com deficiência ou não. Sair da visão estática de educação e avançar para uma perspectiva dinâmica.

Ao se pensar a inclusão escolar e o pertencimento dos estudantes com deficiência, como um dos grupos que vivencia mecanismos de exclusão dentro das escolas, destaca-se o fato desses sujeitos sofrerem com uma série de limitações em seu processo de ensino e aprendizagem por falta de abordagens qualitativas e de gestão do conhecimento sobre as suas necessidades. Sobre isso, Sassaki (1998) acrescenta que:

Na vida educacional, o que vai mudar daqui para frente é o paradigma pelo qual deverá ser vista a inserção escolar de pessoas com deficiência [...]. Esse paradigma é o da inclusão social – as escolas (tanto as comuns como as especiais) precisam ser reestruturadas para acolherem todo o espectro da diversidade humana, representada pelo alunado em potencial, ou seja, pessoas com deficiência físicas, mentais, sensoriais ou múltiplas e com qualquer grau de severidade dessas deficiências, pessoas sem deficiência e pessoas com outras características atípicas, etc. É o sistema educacional adaptando-se às necessidades de seus alunos (escolas inclusivas), mis do que os alunos adaptando-se ao sistema educacional (escolas integradoras). (SASSAKI, 1998, p. 9).

Fazendo um parâmetro da prática da integração com a prática da inclusão, pode-se afirmar que, a integração baseou-se no modelo médico da deficiência, no qual a pessoa com deficiência tinha que se tornar apta para satisfazer aos padrões aceitos no meio social. Já na prática da inclusão, segue-se o modelo social da deficiência, no qual não só a pessoa com deficiência tem que fazer a sua parte, mas a sociedade como um todo, para poder atender às necessidades comuns e específicas.

Sassaki (1998, p. 9) sugere, no sentido de tornar eficaz a inclusão do aluno com deficiência na escola regular, as seguintes ações a serem implementadas simultaneamente: “uma ampla e contínua campanha de esclarecimento do público em geral, das autoridades educacionais e dos alunos das escolas comuns e especiais e de seus familiares”. Para o autor, são imprescindíveis os programas de formação específica, com enfoque na inclusão, dos atuais e futuros professores comuns e especiais.

Esses programas deverão enfocar os conceitos inclusivistas, [...] os preceitos constitucionais brasileiros pertinentes ao direito à educação no ensino regular, os princípios da inclusão escolar, os procedimentos em sala de aula e as atividades extracurriculares que constituem as melhores práticas de ensino-aprendizagem já comprovadas por escolas inclusivas bem sucedidas. (SASSAKI, 1998, p. 9).

As sugestões apresentadas por Sassaki (1998) deixam claro que a legislação, embora de relevância inquestionável, por si só, não garante uma educação de qualidade para todos. A sociedade desejada deve ser transformada no cotidiano e os educadores estão inevitavelmente implicados neste processo. Para fazer frente às exigências de uma escola inclusiva, a formação profissional cumpre um papel preponderante para que ocorram mudanças atitudinais por meio de conhecimento técnico-prático e do desenvolvimento de habilidades e competências específicas, no sentido de abrir ou fechar as possibilidades e superar preconceitos, estereótipos e estigmas.

Segundo Mantoan (2001, p. 56), “não lidar com as diferenças é não perceber a diversidade que nos cerca, os muitos aspectos em que somos diferentes uns dos outros”. Cabe salientar, portanto, a importância de se promover uma educação que respeite a diversidade, oportunizando a construção do conhecimento de maneira igualitária.

O PERCURSO DO RECONHECIMENTO E A NARRATIVA

Ricoeur (2006) afirma que o percurso para o reconhecimento de si próprio passa pela experiência de poder dizer, de poder agir e de poder narrar-se. Somente pode dizer, pode fazer e pode narrar-se aquele que tem a coragem de deixar conhecer a si próprio, ou de reconhecer-se. É aquele que relembra seu passado e o compreende como sendo necessário para a constituição de quem é hoje. É aquele que tem coragem, porque, muitas vezes, as experiências vividas podem não ter sido tão boas assim, e trazê-las de volta ao presente pode abrir algumas feridas esquecidas.

O autor acredita que o processo do reconhecimento de si passa, primeiramente, pela capacidade do homem do conhecimento de si próprio e, sobretudo pela capacidade de descobrir que, devido a isso, ele pode dizer, pode afirmar coisas e pode fazer isso em primeira pessoa, utilizando-se de “instrumentos de linguagem que se limitam a ‘mostrar’ singularidades, transcendendo a especificação genérica: os pronomes pessoais, os advérbios de tempo e de lugar, as formas verbais, as descrições definidas” (RICOEUR, 2006, p. 111).

O autor ainda afirma que essa possibilidade de falar está ligada ao princípio da alteridade, pois quem fala, fala para ser ouvido por outra pessoa. Além disso, pode-se dar algo em resposta a um pedido ou a uma solicitação do outro. Por esse motivo, esse primeiro princípio está intimamente ligado ao princípio de poder fazer, já que considera que falar é fazer coisas com as palavras.

No entanto, de uma maneira mais específica, Ricoeur (2006) afirma que o homem capaz, quando se reconhece, além de poder dizer (fazendo coisas com as palavras), pode agir de forma concreta no ambiente físico e social em que vive. Nesse caso, o homem pode se reconhecer como a causa de uma ação, a qual torna-se absolutamente perceptível quando declara “fui eu que fiz”. Ele está diferenciando algo que ocorreu (porque deveria ocorrer de qualquer maneira) do que ele fez com que ocorresse, do que ele imprimiu com uma intenção.

O percurso do reconhecimento oferece a possibilidade de narrar as próprias experiências, tanto daquilo que se diz que é, quanto daquilo que se faz e se continua a fazer, e que caracteriza a própria individualidade. Para Ricoeur (2006, p. 114), essas são características inerentes à identidade, já que “sob a forma reflexiva do narrar-se, a identidade pessoal se projeta como identidade narrativa”.

Essa concepção é fundamental quando alguém se dispõe a realizar a narrativa de sua História de Vida, concebendo-a como única e irrepetível, extremamente útil para a compreensão de próprio percurso de formação pessoal e profissional, de forma a estabelecer a transformação do presente e do futuro.

Compreende-se, portanto, que a possibilidade de narrar-se é algo próprio do ser humano. O mesmo Ricoeur (2006, p. 417) afirma que a narrativa pode ser considerada a guardiã do tempo, “na medida em que só haveria tempo pensado quando narrado”.

METODOLOGIA

Esta pesquisa caracteriza-se como qualitativa, cujo tratamento dos dados se deu por meio de uma análise dos elementos trazidos nas narrativas da História Oral dos sujeitos pesquisados. É justificada pela complexidade do objeto e suas particularidades.

Cabe ressaltar que a palavra qualitativa implica uma ênfase em processos e significados que não são rigorosamente examinados ou medidos em termos de quantidade, intensidade ou frequência. Chizzotti (2008) afirma que pesquisadores qualitativos enfatizam a relação íntima entre o pesquisador e o que é estudado e os limites situacionais da investigação, buscando respostas para questões que enfatizam como a experiência é criada e significada.

A população pesquisada está inserida no cenário da escola inclusiva. Trata-se de seis pessoas cegas, dentro do universo de estudantes com deficiência, que se matricularam no Ensino Superior, na Modalidade à Distância ou Presencial, em cursos de Graduação e/ou Pós-Graduação na Região do Vale do Paraíba Paulista nas últimas duas décadas.

A periodicidade explica-se por querer investigar questões inerentes às percepções desses estudantes quando submetidos às práticas docentes ao longo desse cenário de transformações, tendo em vista que foi somente a partir da política da Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva instituída pelo Ministério da Educação em 2008, que as pessoas com deficiência passaram a pertencer, com maior força, nos espaços escolares. Se as concepções sobre integração e inclusão fazem parte da temporalidade a qual as escolas estão inseridas, há de se estabelecer práticas coerentes e condizentes com cada tempo.

A seleção dos sujeitos da pesquisa se deu por meio de levantamento no banco de dados do Censo Escolar e também pelas redes sociais. As redes sociais tem sido um espaço privilegiado de reunião entre pessoas com deficiência que, no encontro com seus pares, podem trocar experiências, relatar angústias, registrar conquistas e, assim, partilhar informações e conhecimentos úteis corroborando para o seu empoderamento enquanto cidadãos. O conceito de rede é uma das alternativas para as pesquisas qualitativas. Para Duarte (2015), a rede consiste em um grupo que se relaciona em torno de um ideal ou um foco comum. As pessoas pertencentes a uma rede podem indicar outras, agregando mais informantes, porque alguém daquele meio tem mais propriedade para fornecer informações do que somente quem observa de fora.

Por se tratar de pesquisa acadêmica, estão ocultos os nomes dos entrevistados, substituindo-os por Entrevistado, seguido de algarismos de 1 a 6. Também está mantido em sigilo os nomes das respectivas Instituições de Ensino Superior (IES), bem como as escolas de Ensino Fundamental e Médio que tenham frequentado.

Todas as entrevistas realizadas individualmente com os estudantes cegos foram transcritas manualmente. Após a transcrição, os textos foram editados, adaptando o discurso para uma linguagem formal e submetidos à Análise de Conteúdo.

A Análise de Conteúdo é compreendida como um meio da utilização e reunião de um conjunto de técnicas de análise das comunicações. Para Bardin (2011, p. 37), “não se trata de um instrumento, mas de um leque de apetrechos; ou, com maior rigor, será um único instrumento, mas marcado por uma grande disparidade de formas e adaptável a um campo de aplicação muito vasto: as comunicações”. Ela possibilita compreender o que dizem as pessoas. No caso desta pesquisa, procurou-se analisar o conteúdo da fala dos estudantes cegos no contexto de vida deles, tendo como base a fundamentação teórica para contextualizar os elementos favoráveis ou os entraves encontrados no processo de escolarização desses sujeitos de acordo com suas narrativas.

A HISTÓRIA ORAL

Para Ribeiro (2007), a História Oral apresenta a possibilidade de uma conversação, como resultado das narrativas dos sujeitos entrevistados, o que favorece a compreensão das histórias por eles vividas e, consequentemente, da construção desse conhecimento narrado. Para a autora,

As narrativas são resultados de uma conversação, uma criação conjunta, desde o momento de sua gravação. A narrativa é organizada por sua estrutura vocabular, a partir das palavras usadas; por sua situação social, a interação intersubjetiva estabelecida entre os presentes; e por sua performance, pois quem fala, fala para uma audiência e essa performance é parte integrante da narrativa (RIBEIRO, 2007, p. 37).

As narrativas orais, disparadas por meio das entrevistas, apresentam um rico instrumento de pesquisa e de análise, uma vez que se ancoram nos acontecimentos vividos pelos sujeitos e recontados a partir do seu próprio olhar. São os próprios sujeitos que viveram a experiência que dela falam, agora de uma forma já racionalizada e refletida. A grande contribuição está em possibilitar que os sujeitos pertencentes a categorias sociais geralmente excluídas das relações sociais possam ser ouvidos, deixando sua própria visão de mundo e aquela do grupo ao qual pertencem. A análise, com base na literatura, permite estudar o tempo presente de modo mais dinâmico.

Nesse sentido, Ribeiro (2007) enfatiza a importância do entrevistador assumir a posição coerente de mediador da narrativa, que compreende seu papel de quem conduz as temáticas discutidas sem, contudo, tornar-se um impositor.

Defende-se a importância de uma autoria que admita negociações e que nos momentos de encontro, em especial o da entrevista, o pesquisador aja como mediador, sem perder a noção da necessidade de sua condução, mas, por outro lado, sem torná-la uma imposição. Essa autoria precisa aparecer nos trabalhos de pesquisa. O autor/mediador se faz presente em todos os momentos da pesquisa, iniciando na organização do projeto, passando pela realização e transcriação das entrevistas, finalizando com uma interpretação do material produzido. Justamente por essa mediação constante é que se acredita que a história oral seja uma nova forma de produção de conhecimento (RIBEIRO, 2007, p. 37).

Quando optou-se pela História Oral para compor este trabalho, esperava-se que cada sujeito transcrevesse suas experiências por meio de narrativas que estivessem ancoradas em um roteiro estabelecido. O que se percebe é que, embora haja um direcionamento estrutural para essas entrevistas, cada um dos sujeitos percebe sua relação com o entorno de forma diferente, produzindo assim um discurso sobre o que experimentou com base numa verbalização mais performática do que um evento formal. A partir da mediação, eles relacionam fatos, relatos em situação de interação humana e em ação direta com o objeto que provocou a lembrança, seja ele favorável ou não.

As narrativas orais proporcionam um foco especialmente rico para a investigação, pois estão duplamente ancoradas em eventos humanos: a narrativa conta um evento e é um evento. A narrativa não é apenas contada, ela é apresentada, “performatizada”. A performance é compreendida por Richard Bauman como arte comunicativa que abrange a responsabilidade do narrador perante seus ouvintes, esclarecendo a forma como sua apresentação é conduzida por meio do seu conteúdo referencial. Cada performance é diferente e única, apresentando novos aspectos emergentes das circunstâncias distintivas dos eventos. Estes são acontecimentos, como uma festa, um ritual, uma feira, uma narrativa e neles, a performance é desenvolvida (ALMEIDA; AMORIM; BARBOSA, 2007, p. 105).

Justamente por considerar essa performance como composição da análise, é que esta pesquisa pretendeu lançar mão deste instrumento como uma maneira de recontar, por meio das diferentes percepções, como se deram as práticas escolares inclusivas ao longo do percurso formativo dos estudantes que hoje se declaram como pessoas com deficiência visual. As relações que estabeleceram com o entorno na época, talvez provocassem neles outro registro interno diferente do que hoje são capazes de oralizar. A História Oral é um caminho marcado por vozes que retratam um cenário em um tempo e espaço. Essas vozes se unem sob um único objetivo: o de reconhecer sua identidade e sua função social dentro de um grupo de pertencimento. Essa perspectiva foi destacada por diversas vezes nas falas de cada sujeito que, quando agrupadas, permitiu uma compreensão direta sobre o que pensam acerca dos seus processos formativos à luz de suas lembranças.

O entrevistador oferece oportunidades de condução para que o sujeito entrevistado, entendido como o narrador das histórias de vida, assuma o seu papel de autoria na narrativa de sua própria história, o que o leva, de fato, a uma situação de empoderamento e de consequente consciência do vivido.

[...] ao construir as histórias de vida faz-se com que cada narrador se transforme em personalidades centrais dos acontecimentos daquela comunidade e tenha a oportunidade de mostrar suas próprias percepções. Com essa perspectiva, não se pretende forjar “novos heróis”, mas apenas comprovar que qualquer colaborador é tão importante como agente histórico quanto os líderes ou os governantes reconhecidos pela “história oficial” (RIBEIRO, 2007, p. 41).

Por estarem imersos na realidade da cegueira, por exemplo, a História Oral possibilitou aos sujeitos olhar para o passado, de modo que puderam ressignificar os acontecimentos, de forma reflexiva. Esse encontro com suas lembranças ultrapassou a fronteira da neutralidade na medida em que suas experiências foram sendo alargadas enquanto iam sendo transportadas para o futuro real da cegueira. Mas isso não implica em distorção da realidade. Muito pelo contrário: transpor as fronteiras da lembrança conduzindo-a às vivências do presente produz um material riquíssimo de análise, no sentido em que a pesquisa busca compreender, nos dias de hoje, o impacto das relações que marcaram a identidade de um grupo historicamente.

CARACTERIZAÇÃO DOS SUJEITOS

Dos seis entrevistados, participantes dessa pesquisa, dois deles ainda estavam cursando graduação no momento da entrevista, de novembro de 2017 a janeiro de 2018, ambos no curso de Direito, em IES diferentes. Quatro deles são egressos de IES dos cursos de Direito, Nutrição, Licenciatura em Pedagogia e Licenciatura em História, em três IES distintas, sendo que a Entrevistada 2, pedagoga, e o Entrevistado 5, advogado, frequentaram a mesma IES.

Sabendo que as entrevistas aconteceram de novembro de 2017 a janeiro de 2018, tem-se que apenas os dois estudantes que ainda estavam cursando o Ensino Superior no ato da pesquisa, o faziam em Universidades localizadas no próprio município de residência: o Entrevistado 1 e o Entrevistado 4. Os outros quatro egressos frequentaram Universidades fora do seu município de domicílio. Já dos seis entrevistados, três deles vivenciaram o processo formativo na mesma IES, embora relatem experiências muito diferentes e peculiares, o que reforça que suas histórias de vida influenciaram a percepção que construíram acerca dos processos formativos que participaram, mesmo que estes tenham ocorrido em outros níveis e modalidades, conforme pode ser observado nas análises acerca das práticas escolares inclusivas da Educação Básica ao Ensino Superior.

Os sujeitos dessa pesquisa possuem idade que varia de 23 a 36 anos, todos eles com situação atual de visão oscilando entre cegueira legal e visão nula, apesar de nem sempre terem iniciado a escolarização básica nessa condição. Este fator é demonstrado pela matrícula desses estudantes nas instituições de Educação Básica que unanimemente cumpriram o preconizado pela legislação atual no sentido de que as Instituições de Ensino, sejam elas particulares ou públicas, não negaram essa matrícula (BRASIL, 1988).

Contudo, é de extrema relevância conceituar a deficiência visual, explicitando e classificando esses sujeitos de pesquisa, como parte da caracterização, visto que apesar das semelhanças quanto ao quadro clínico, as situações de apropriação do externo é variável, assim como as suas condições de visão ao longo da vida. A atribuição de valores quanto a percepção visuocêntrica merece uma compreensão mais enfática na medida em que os repertórios imagéticos são conseguidos mediante direta relação estabelecida com o objeto. Isso significa que as experiências visuais delimitam a compreensão de mundo que sustenta o aprendizado desses sujeitos, sendo que quando essas experiências estão impedidas pela deficiência visual, outras vias de comunicação são ativadas (VYGOTSKY, 2011).

Mais uma vez, tem-se que essa análise é sustentada nos estudos da defectologia e nos pressupostos de Vygotsky (2011), quando aponta os mecanismos de compensação utilizados pelas pessoas com deficiência para a apropriação do externo, quando por meio de caminhos alternativos elas conseguem um tipo de mediação com aquilo que, de outra forma, estaria impedido. Essa compreensão demonstra, não apenas a ausência de um dos sentidos, fator que compromete drasticamente as formas pelas quais esses estudantes acessariam essas informações, mas também traz para esta investigação um caráter mais lógico de entendimento das experiências vivenciadas durante o percurso escolar, tendo em vista que a relação entre a condição de visão e o início da escolarização torna-se um indicador importante para a reflexão acerca das condições nas quais se deram o trabalho com a inclusão.

De fato, a aceitação desses estudantes para que participassem do processo formativo, por si só, não consistiu em elemento único, responsável por fortalecer a identificação da escola inclusiva, mas dependeu, sobretudo, do enfrentamento das situações mediante às necessidades específicas que surgiram durante a escolarização dos estudantes com deficiência visual.

Além disso, no âmbito educacional, alguns outros entraves puderam comprometer o acesso ao currículo a estudantes com cegueira, sobretudo aos que se viram atingidos por essa condição após o início da escolarização, pois o excesso de informações visuais constituiu um grande vilão na inclusão escolar dos entrevistados. Para maximizar as potencialidades das pessoas com deficiência visual e alargar suas possibilidades de participação e pertencimento, foi importante a apropriação dos recursos adaptados que potencializaram o uso dos sentidos remanescentes, provendo acesso às informações e os conteúdos escolares, mediante a compreensão dos caminhos alternativos de desenvolvimento, conforme apontam os estudos de Vygotsky (2011).

Dos entrevistados, apenas dois deles possuem cegueira congênita, ou seja, já nasceram sem enxergar. Três deles foram atingidos pela cegueira ainda na Educação Básica e, por fim, apenas uma das entrevistadas vivenciou a perda total da visão com o Ensino Superior em andamento.

Por isso, ela foi a única que experimentou, conscientemente, o momento exato da transposição entre a baixa visão e a cegueira, diferentemente dos demais, cuja pouca idade foi responsável por obscurecer suas lembranças mais diretas sobre esse fato.

Onde eu perdi total a minha visão, foi numa prova teórica de anatomia. Eu fiquei muito nervosa com a prova e eu estava lendo o que estava escrito, de repente começou a embaralhar. Aí eu piscava, descansava um pouco a vista, olhava de novo a prova. Aí eu enxergava de novo, começava a ler a pergunta, dali embaralhava de novo até a hora que eu perdi total; eu não enxerguei mais (Entrevistada 6).

Entretanto, a representação da cegueira nem sempre se dá de forma pontual. Tanto é que a baixa visão foi a condição vivenciada por ela e por mais outros três entrevistados até atingirem progressivamente uma condição insatisfatória no ato de enxergar. Por se tratar da dificuldade que mais incidiu sobre os entrevistados, coube aqui também trazer o entendimento sobre a conceituação do que seria baixa visão, que pode ser compreendida como sendo:

[...] a alteração da capacidade funcional da visão, decorrente de inúmeros fatores isolados ou associados, tais como: baixa acuidade visual significativa, redução importante do campo visual, alterações corticais e/ou de sensibilidade aos contrastes, que interferem ou que limitam o desempenho visual do indivíduo (BRASIL, 2006, p. 16).

No Brasil é considerada legalmente cega a pessoa que, de acordo com o Decreto 3.298, tenha “acuidade visual igual ou menor que 20/200 no melhor olho, após a melhor correção, ou campo visual inferior a 20° (tabela de Snellen), ou ocorrência simultânea de ambas as situações” (BRASIL, 1999, s/p). Isso significa que a cegueira legal não necessariamente é a visão nula. É classificada como sendo uma possível percepção de luz, porém não funcional para as tarefas do dia-a-dia nem para as atividades escolares de leitura e escrita.

TRAJETÓRIAS NO ENSINO FUNDAMENTAL: O INÍCIO DA ESCOLARIZAÇÃO E A SITUAÇÃO DE VISÃO

O início da escolarização se deu, para a maioria dos entrevistados, em um momento de transição para a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que aconteceu em dezembro de 1996. Isso porque conforme suas idades cronológicas, a participação deles no Ensino Fundamental se deu basicamente na década de 1990 e início dos anos 2000.

Os relatos apontam essa compreensão, no sentido em que trazem registros de suas memórias escolares e, estas, se comparadas com suas idades cronológicas no ato da entrevista, realizadas num intervalo de dois meses, trazem o entendimento de que essa participação consciente no processo formal de ensino só foi possível apenas a partir do Ensino Fundamental, excluindo-se, então, a etapa da Educação Infantil dessa análise.

Assim aconteceu com a Entrevistada 1, atualmente com 30 anos, e cuja participação escolar se deu por volta de 1994, como afirmou: “Eu entrei no colégio aos meus 8 anos de idade, no Ensino Fundamental I, no caso naquela época era primário que se falava, e comecei no pré” (Entrevistada 1).

O entrevistado 5, de 27 anos, não revelou ao certo quando iniciou a escolarização formal, mas disse só ter conseguido ingressar na escola regular no primeiro ano do Ensino Fundamental, após ter frequentado uma Escola Especial. Assim, deixou à mostra a transição entre o modelo de integração e o da inclusão que ainda não tinha sido totalmente dissolvido no cenário da escola pública brasileira: “Eu fui entrar de fato numa escola regular no Ensino Fundamental, na primeira série” (Entrevistado 5).

Já a Entrevistada 6, de 34 anos, relatou que sua entrada na escola se deu também no Ensino Fundamental, de uma forma consciente e sem apresentar deficiência visual até então. “Quando eu iniciei os estudos no Fundamental eu ainda não era deficiente visual. Eu comecei a apresentar problemas visuais com 7 anos e foi na escola que tudo começou a aparecer” (Entrevistada 6).

A Entrevistada 2 também iniciou os estudos antes mesmo do aparecimento da LDB de 1996, como pode ser verificado: “Eu fui pro pré. Fiz o primeiro ano, mas parei. [...] Tinha visão parcial. Tinha baixa visão” (Entrevistada 2).

Com isso, temos aqui os quatro entrevistados que ingressaram no Ensino Fundamental antes mesmo da Educação Especial ser elevada a uma modalidade transversal a todos os níveis de ensino, condição esta conseguida somente a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), muito embora as condições visuais da Entrevistada 6 ainda não fosse a de deficiência no ato dessa matrícula.

Foi também com a LDB de 1996, que a matrícula no ensino regular de estudantes com deficiência reforçou o já estabelecido pela Declaração de Salamanca, cuja abertura da escola para todos previa o atendimento às pessoas com deficiência como mais um grupo de estudantes que, segundo Bueno (2008), estavam às margens dessa escolarização, sofrendo diversos mecanismos de exclusão. Para ele, a Declaração de Salamanca não representou, por si só, um divisor de águas que marcou o acesso do grupo de pessoas com deficiência a escolarização. Estas já tinham garantido o direito de frequentar a escola regular a partir da Constituição de 1988 (BRASIL, 1988), mas que em número menor, algumas poucas já haviam conseguido ultrapassar os limites da escola regular mesmo antes da década de 1980.

Corroborando com o que está estabelecido na LDB 9394/96, no seu Capítulo V, sobre a Educação Especial, apontando que a matrícula deverá acontecer preferencialmente na rede regular de ensino para os estudantes com deficiência, a Entrevistada 3 e o Entrevistado 4, ambos na condição de estudantes com cegueira no momento do ingresso ao Ensino Fundamental, revelaram que essa matrícula aconteceu sem restrição, porém com bastante relutância por parte de professores, no decorrer do processo formativo e, por vezes, certa rejeição institucional, também praticada pelos gestores: “Eu entrei na escola, no primeiro ano, era em 2001 mais ou menos. [...] Tinha professor que realmente, realmente não queria, sabe?” (Entrevistada 3).

A rejeição encontrada pela Entrevistada 3 também aparece, em continuação a essa mesma fala, em outro momento posterior desta análise, identificando as resistências atitudinais geradoras de entraves pedagógicos para a escolarização desses sujeitos.

Entretanto, ainda no que se refere a entrada de estudantes que apresentavam deficiência visual no Ensino Fundamental, temos que o Entrevistado 4 atribuiu o seu acesso à escola regular a uma constante persistência dos pais, que abriram caminho para o seu pertencimento aos espaços formais de ensino, frente às recusas por sua matrícula. Ele se refere à brigas travadas por parte dos diretores, que não sabiam como lidar com a sua condição visual. “Eles brigavam porque eles não sabiam o que fazer comigo, né?! O que esse menino cego está entrando no regular aqui? Incomodava. [...] O meu pai, ele brigou muito. Meu pai e minha mãe brigaram muito por mim” (Entrevistado 4).

Diante dessa análise, percebe-se que, antes mesmo do enfrentamento das situações pedagógicas e das práticas escolares vivenciadas dentro da Educação Básica, os estudantes com cegueira precisaram superar as adversidades atitudinais frente ao estranhamento acerca das suas condições, pois a deficiência os estigmatizava aos olhos desses professores e diretores.

Tal estranhamento é ainda resquício de uma visão histórica sobre a incapacidade e o tratamento dispendido pela sociedade às pessoas com deficiência, da Antiguidade à Idade Moderna, por meio das relações sociais estudadas por Mazzotta (1996) e Caiado (2003), que ficaram enfraquecidas a partir das soluções encontradas no século XIX, quando, na França, iniciaram as primeiras tentativas para a escolarização das pessoas cegas e das pessoas surdas, muito embora as aulas ainda acontecessem em espaços segregados.

O INGRESSO NA ESCOLA, A BAIXA VISÃO E A CEGUEIRA

A partir das caracterizações, os participantes da pesquisa apontaram nas suas falas uma variação entre cegueira legal e visão nula e as consequências dessa condição no início de suas trajetórias escolares, conforme pode ser observado nos recortes trazidos: “Eu fazia todas as atividades normalmente. Tinha um pouco de dificuldade. Só que a dificuldade era pequena, uma coisinha ou outra [...] usava óculos, 7 graus naquela época desde os meus 2 anos de idade” (Entrevistada 1).

A estudante de Direito, Entrevistada 1, também revelou ter iniciado o Ensino Fundamental com 8 anos. Suas dificuldades, segundo consta, eram decorrentes de miopia, hipermetropia e estrabismo e até o 2º ano do Ensino Fundamental não precisou de recursos especializados. Foi alfabetizada em tinta, com letras comuns, necessitando de ampliação de caracteres a partir daí. “Letra ampliada foi no 2º ano, só que as dificuldades foram aumentando, eu não estava conseguindo mais. Até a quarta série foram aumentando as dificuldades” (Entrevistada 1).

A baixa visão também foi a condição enfrentada pelo Entrevistado 5 no seu ingresso à escolarização. Ele relatou que durante o Ensino Fundamental vivenciou a transição para a cegueira legal e recebeu, nos primeiros anos dessa escolarização básica, instruções em tinta, com letras ampliadas, e em Braille, por meio da sua participação numa Escola Especial, talvez preventivamente, disse ele:

A minha patologia é má formação congênita. Eu tenho baixa visão, vamos dizer, baixíssima visão. Hoje tenho percepção de luzes e claridade, mas eu já tive um alcance visual satisfatório. Cheguei a ser alfabetizado no modo convencional. Conforme o tempo foi passando, eu fui tendo essa perda visual (Entrevistado 5).

O destaque aqui está nas condições visuais distintas e, ao mesmo tempo, com características tão peculiares. Enquanto os erros de refração, como miopia, hipermetropia e estrabismo não determinam, por si só uma condição de deficiência (AMIRALIAN, 1997), a má formação congênita traz prejuízos de ordem funcional e progressiva. Apesar disso, a Entrevistada 1 também teve uma perda visual progressiva e considerável durante a sua escolarização básica e, mesmo assim, só teve seu diagnóstico de retinose pigmentar aos 15 anos de idade.

Já com relação à segunda entrevistada, ela não revela, em seu discurso, o momento exato em que iniciou os estudos, embora tenha trazido um dado interessante acerca do início da sua escolarização.

Eu fiz o pré em Cachoeira Paulista. Fiz o primeiro ano, mas parei. Depois eu fui pra Lorena, voltei pro primeiro lá na escola Gabriel Prestes, mas não aguentei porque era o dia inteiro. Fiquei lá um ano, passei, mas eu não quis ficar lá. Voltei pra Cachoeira e fui fazer com minha irmã tudo de novo, a primeira série de novo (Entrevistada 2).

Segundo ela, essas tentativas aconteceram em decorrência da sua condição visual, por causa da toxoplasmose contraída pela mãe durante a gestação, embora tenha revelado pouca ou quase nenhuma dificuldade nesse início, tanto que foi alfabetizada em tinta, sem recursos de ampliação de letras. Também ressaltou que não utilizava óculos nessa época. No entanto, sua condição de baixa visão era mais severa nessa fase inicial da escolarização, evoluindo rapidamente para cegueira, como constatado na sua fala: “Tinha trinta e poucos por cento de visão. Depois de seis meses eu parei, eu fiquei doente, tive que parar. Eu fiquei de cama, eu fiquei sem andar, eu perdi a visão” (Entrevistada 2).

Embora não tivesse consciência do momento exato em que deixou de enxergar, a cegueira, naquela época, revelou-se como condição decisiva para a evasão da Entrevistada 2 do Ensino Fundamental. Constituiu-se em fator de exclusão e de abandono temporário dessa escolarização como se a falta de visão anulasse também as suas possibilidades de desenvolvimento acadêmico.

O impacto dessa ausência de possibilidades foi percebido pelo fato da Entrevistada 2 ter ficado seis anos sem frequentar espaços formais de escolarização e, somente depois, iniciado os estudos numa Escola Especial de Atendimento a Pessoas com Deficiência Visual, onde permaneceu por mais quatro anos e meio até retornar à uma escola regular. Depois disso, participava das duas instituições nos moldes do contra turno: “Na escola regular parei no primeiro ano. Voltei em 1999, nessa Escola Especial, seis anos depois. Eu só voltei pra poder aprender Braille relembrar, né? Pra poder ler e escrever. Mas assim em escola regular eu não voltei nesse tempo” (Entrevistada 2).

Foi nessa mesma Escola Especial de Atendimento a Pessoas com Deficiência Visual que o Entrevistado 5 também frequentou a Educação Infantil, sendo inserido ao ensino do Braille. Ambos, Entrevistada 2 e Entrevistado 5, permaneceram ali por muitos anos, mesmo enquanto frequentavam a escola regular. Recebiam nessa Escola Especial uma espécie de Atendimento Educacional Especializado, ainda nos moldes da integração, conceito este já superado quando da transição para uma escola inclusiva, apontado por Bueno (2008), ao tratar sobre os benefícios da inclusão escolar enquanto política educacional responsável por compreender as diferenças a partir da diversidade. Por isso mesmo, o apoio recebido em caráter exclusivo demonstrou ser quase sempre insuficiente para complementar o que faziam no ensino regular.

Essa questão dessa ajuda que era oferecida por essa Escola Especial era um pouco limitado. Faltava algumas coisas. Faltava uma comunicação entre a Escola Especial com a Escola Regular. E às vezes isso acabava afetando no que era exposto em sala de aula. Muita coisa ficava só na parte conceitual, não tinha uma prática. Principalmente na matemática, na área das exatas. Eu tive essa grande dificuldade (Entrevistado 5).

Nota-se que o Entrevistado 5, embora não estivesse satisfeito com o Atendimento Educacional Especializado que recebia naquele espaço, atribuía importância no sentido de que a Escola Especial poderia ajudá-lo a enfrentar as barreiras presentes no ensino regular quanto a visualidade presente nos conteúdos e nos procedimentos metodológicos em sala de aula, o que não aconteceu. Apesar disso, ele também informou que sua alfabetização se deu de forma conjunta, tanto pela escrita convencional como no Sistema Braille, mas não deixou claro se houve essa parceria por parte da escola especial com a regular.

Em contrapartida a esse entendimento, a Entrevistada 2 viu nessa Escola Especial a oportunidade que teve ao aprender e aprimorar os conhecimentos específicos, como as diferentes simbologias Braille, por exemplo, mas também não via muita relação entre a Escola Especial com o ensino regular.

Lá eu aprendia só Braille. Fiquei quatro anos e meio. Depois uma professora de lá me incentivou a estudar. Aí eu voltei a estudar. Fiz a prova de reclassificação e passei [...]. Na Escola Especial, além de passar a matéria, aprendia várias coisas que eu não sabia do Braille, de simbologias de matemática, química, física, que eu não sabia, que era mais complicado. Eu fui aprendendo. Foi muito importante (Entrevistada 2).

Ainda no que se refere ao ingresso no Ensino Fundamental, a Entrevistada 6 também só apresentou certa dificuldade para enxergar depois que iniciou o ensino regular. As dificuldades eram muito leves e foram identificadas pelos professores que notaram desconforto da aluna ao visualizar o quadro negro, pois sentava-se nas últimas carteiras devido à altura. Ela também frequentou alguns meses de aulas de Braille na mesma Escola Especial que a Entrevistada 2 e o Entrevistado 5, mas numa situação peculiar de reabilitação, que ocorreu em paralelo ao momento do Ensino Superior, pouco mais tarde.

Quando eu iniciei os estudos no [Ensino] Fundamental eu ainda não era deficiente visual. Eu comecei a apresentar problemas visuais com sete anos e foi na escola que tudo começou a aparecer [...]. Então eu passei a sentar na primeira carteira e continuei os meus estudos. E aí sim, eu fui apresentando dificuldades visuais conforme foi passando o tempo. Eu tive quedas visuais com 12 anos e com 14 também (Entrevistada 6).

Do discurso da Entrevistada 6, pode ser extraído que ela mesma ainda não tinha consciência das suas dificuldades e que, segundo o seu relato, as percepções sobre a deficiência visual só foram possíveis a partir da conversa dos professores com seus pais, decidindo ambos que a aluna sentaria nas primeiras fileiras de carteiras. De certa forma, a observação da professora revelou um cuidado com as formas pelas quais seus alunos relacionam-se com os elementos de aprendizagem.

A descrição da Entrevistada 6 também impõe certa melancolia pelo tom de voz. Angustiada, ela ainda conta que recorda ter usado óculos como uma tentativa de correção dessas dificuldades. No que se refere a terminologia, ela utiliza a expressão "deficiente" para ressaltar a condição visual, como se suas dificuldades mais acentuadas fossem atribuídas a uma ineficiência no funcionamento da visão, ideia suplantada posteriormente em sua fala e combatida pela perspectiva adotada atualmente sobre o conceito de deficiência numa perspectiva social defendida por Sassaki (1997). “Eu cheguei a usar óculos, porque, eu não lembro qual foi a questão visual, se foi miopia ou astigmatismo, mas eu usava 0,25 e 0,75 e isso não fazia diferença pra mim. Então eu passei a não usar mais, porque não era esse o problema” (Entrevistada 6).

Ao serem analisadas, as falas dos entrevistados trazem a observação de que assim que acessaram o universo escolar numa condição visual favorável, eles se perceberam parte do processo mesmo mediante as necessidades de adaptações mínimas, quase sempre solucionadas com uso de óculos, de uma aproximação com o objeto de leitura ou de uma letra um pouco maior. Apesar disso, o registro da Entrevistada 2 e do Entrevistado 5 trouxeram também a percepção de que ambos precisaram recorrer, mais cedo, a adaptações mais efetivas para suprir suas dificuldades visuais progressivas. Eles atingiram a condição de cegueira em um curto espaço de tempo e necessitaram, com isso, recorrer aos meios alternativos para o desenvolvimento acadêmico, sendo o uso do Sistema Braille eleito como a forma de leitura e de escrita, cuja naturalização para eles se deu mediante a aprendizagem na escola especial que frequentaram.

Ao contrário do que foi exposto até aqui sobre a baixa visão e o ingresso na escola regular, dois dos seis entrevistados já eram cegos ao iniciarem a Educação Básica.

Conhecer as relações que travaram no início da escolarização requereu um olhar cuidadoso sobre as condições que os levaram a necessitar de estratégias inovadoras e diferenciadas para conquistarem os espaços de pertencimento. Isso significa que as bases do aprendizado também se dão a partir da visualidade e se esta estiver impedida, outros canais de acesso à informação precisam ser estimulados e empoderados por esses estudantes, conforme aponta Vygotsky (2011). A maneira como são percebidos, sobre a constituição de suas identidades (GOFFMAN, 1988), também configura as formas como construirão os seus olhares para o conhecimento disponível nessa etapa da educação formal aqui analisada.

Deste modo, os entrevistados que se apresentaram como cegos desde o início da escolarização contaram que esse período foi quase nulo, mas nem por isso menos importante. Os relatos da Entrevistada 3 e do Entrevistado 4 foram ao encontro de situações de enfrentamento de barreiras impostas pelo meio externo, conforme pode ser observado a seguir:

Meu primário, pra começar, ele foi praticamente nulo. Do primeiro ao quarto ano, mais ou menos, foi bem complicadinho, porque eu mudei bastante de cidade e de escola também. [...] Eu sou deficiente visual na verdade desde que eu nasci. Eu tinha um pouquinho de visão, mas muito, muito pouco mesmo, então nunca me adiantou de nada (Entrevistada 3).

Eu sempre estudei em escola normal desde que eu era pequeno. Eu não lembro com quantos anos ao certo eu entrei na escola, mas quando eu era pequeno eu estudava na escola regular de manhã e na escola de aprendizagem especial pra pessoas com deficiência, à tarde. [...] E também já teve um tempo que eu estudei numa escola só pra pessoas com deficiência, em São Paulo. Só que lá eu não me adaptei muito à escola e aí eu vim embora (Entrevistado 4).

O Entrevistado 4 trouxe na sua fala uma questão que mereceu destaque nessa análise. Apesar de ter frequentado também Escolas Especiais diversas a que os Entrevistados 2, 5 e 6 frequentaram, ora no contraturno, ora no regime de educação exclusiva, as experiências não acrescentaram resolutividade no que tange ao pertencimento ao currículo da escola regular. Nas duas situações ele questionava sobre os métodos aplicados ali, que não o levavam ao aprendizado dos conceitos comuns. Se por um lado, a escola regular não dava conta de muitos aspectos metodológicos e didáticos para atender os alunos com deficiência visual, para ele essa escola que ele nomeia de “escola de aprendizagem especial pra pessoas com deficiência” também não o dava. Quando questionado sobre o que ele fazia lá no contraturno, ele foi enfático: “O que eu fazia lá? Tudo o que eu quisesse fazer” (Entrevistado 4).

Continuando os questionamentos sobre o que ele realizava nesse espaço, com certa ironia, considerou que ali ele não teve o acompanhamento necessário das disciplinas do ensino regular. Segundo ele: “Ah ta, vai nessa. Sinto muito te informar. Isso não consta” (Entrevistado 4).

De certa forma, a chegada ao Ensino Fundamental dos dois entrevistados aconteceu de forma tranquila e não relataram nenhum impedimento ao seu acesso, mesmo para os que já iniciaram este percurso na condição de estudante com cegueira. Contudo, no decorrer da entrevista, verificou-se que essa plena aceitação não permaneceu todo o tempo e alguns entraves atitudinais foram constatados, principalmente nas falas da Entrevistada 1, da Entrevistada 3 e do Entrevistado 4.

Acompanhando seus relatos, talvez eles ainda não tivessem consciência dessa rejeição, já que agiram pacificamente frente às tentativas frustradas que reforçavam o afastamento deles do ensino regular sob diversas alegações, ora do gestor, ora dos professores. Desse modo, a resiliência os ajudou a provar suas capacidades, quando não desistiram dessa participação, mesmo que o pertencimento estivesse ameaçado. “Eu sempre fui muito bem elogiado pelos meus professores, apesar das brigas que os meus diretores tinham. Eles brigavam porque eles não sabiam o que fazer comigo. O que esse menino cego está entrando no regular aqui? Incomodava” (Entrevistado 4).

Percebe-se que o Entrevistado 4 atribuía valor ao elogio que os professores faziam a ele, mas apesar disso, narrou suas dificuldades com o aprendizado dos conceitos em sala de aula. Quando questionado sobre o que ele fazia quando os professores passavam matéria no quadro, ele disse, com convicção, que abandonava aquele espaço sem significado para ele: “Eu saía da sala. Simplesmente o que eu fazia era: professor, eu vou tomar água. E, tchau! Não voltava mais” (Entrevistado 4).

De fato, esse comportamento revelou a falta de habilidade dos professores e, indiretamente da coordenação e gestão, em lidar com as especificidades pedagógicas aplicadas para a qualificação do processo de ensino e aprendizagem do estudante cego, visto que a inclusão escolar deveria ir muito além da matrícula desses estudantes, apenas.

Com a Entrevistada 1 essa rejeição aconteceu de forma mais velada, quando foi convidada a refazer o ano letivo por causa das dificuldades para enxergar, embora ela ainda conservasse um bom resíduo visual: “Eu tive que fazer o pré novamente, porque a diretora falou que mesmo com boas notas, por causa do meu problema visual eu tinha que fazer o ano novamente” (Entrevistada 1).

Já com a Entrevistada 3, a rejeição foi muito mais explícita, também manifestada para a família que não hesitou sobre a permanência da estudante ali, mesmo ciente das barreiras pedagógicas.

Tinha professor que realmente não queria. Na quarta série mesmo eu cheguei a quase repetir porque a professora estava perto de se aposentar e ela falou pra minha mãe que trabalhar comigo era um desafio que ela não precisava, era um trabalho que ela não precisava ter (Entrevistada 3).

Enquanto o enfrentamento das questões atitudinais ia sendo superado por parte daqueles estudantes que ingressaram na Educação Básica já na condição de cegueira, para aqueles cuja situação visual se fazia mais dificultada no decorrer dos anos, as soluções nem sempre se firmavam no âmbito pedagógico. De fato, o que foi notado na fala da Entrevistada 1 revela um julgamento precipitado de que a deficiência visual acarretaria em prejuízos para o cumprimento de um currículo padronizado, cujas atividades precisavam seguir um dado protocolo. Assim, as decisões partiram da escola, sem considerar os alcances da aluna e adaptações do professor que, por ventura, pudessem funcionar como qualificadoras de uma prática inclusiva alicerçada no enfrentamento dos desafios na gestão de sala de aula. “Quando foi piorando as dificuldades a escola decidiu que eu tinha que ter uma acompanhante. Por que como que eu ia fazer as minhas atividades?” (Entrevistada 1).

Entretanto tal decisão, apesar de impositiva, não foi gerida pela própria instituição escolar, ficando sob responsabilidade da família os encargos financeiros da acompanhante. Hoje, tal condição, de onerar a família para adaptar as condições e estruturas da escola inclusiva, é repudiada pela Lei Brasileira de Inclusão (BRASIL, 2015), que traz que a escola privada também exerce sua função social ao cumprir o dever da inclusão, fomentando os recursos físicos ou humanos que garantam o acesso e a permanência dos estudantes com deficiência. “Eles me arrumaram essa acompanhante e foi trocando, tive várias acompanhantes. Foi uma por ano. Uma chegou a dois anos. Aí a outra chegou a seis meses. [...] Eu tinha que ir atrás, pagar a acompanhante, até o meu terceiro colegial, até o 2º grau” (Entrevistada 1).

Apesar disso, a presença da acompanhante podia ser entendida como um apoio a mais para a estudante e também como mais um elemento para esta análise, visto que dentre os seis sujeitos essa condição foi peculiar apenas à Entrevistada 1, enquanto participante do processo formativo na Educação Básica.

CONCLUSÃO

Sabemos que embora a inclusão escolar tenha se consolidado no cenário da educação formal, há questões de ordem atitudinal que colocam estudantes e professores frente a frente com suas fragilidades e, nesse ponto, ambos saem derrotados, visto que o dialógico é suplantado pela falsa ideologia dominante da normalização. Isso significa que o processo de inclusão é, antes de mais nada, duas ações que vão ao encontro dessa centralidade. Do mesmo modo, quando existe o enfrentamento dos desafios, a diversidade torna-se mais real para o reconhecimento das diferenças na superação dos possíveis mecanismos de exclusão encontrados no ambiente escolar.

Os dados coletados nessa pesquisa demonstraram que as condições para que aconteça o pertencimento dos estudantes com deficiência no espaço formal de escolarização dependem de diversos fatores que estão nas entrelinhas do processo de ensino e aprendizagem. As formas pelas quais esse processo de ensino se orienta, pela mobilização dos saberes docentes, mostram-se como potencializadoras desse percurso formativo ou como entraves a um possível progresso desses estudantes.

Ficou claro também, na fala de todos os entrevistados, que a participação da família na busca de soluções para a ausência de recursos na escola inclusiva aparece como uma grande fatia nas decisões pela escolha dos recursos utilizados.

Permitir que esses estudantes falassem sobre seu processo de ingresso na Educação Básica, por meio de entrevistas de História Oral, pelas quais pudessem se reconhecer e narrar-se, foi uma escolha intencional diante dos estudos que orientam a reflexão acerca da inclusão e da diversidade. Ao mesmo tempo, mostraram-se potencializadoras de empoderamento por parte desses estudantes, fator decisivo para um modo de ver e refletir sobre a própria história e, a partir dela, possibilitar questionamentos e reflexões mais amplas e profundas, como as aqui apresentadas.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, J. R., AMORIM, M. A., BARBOSA, X. Performance e objeto biográfico: questões para a história oral de vida. Oralidades: revista de História Oral, ano 1, n. 2, p.101-110, jul./dez. 2007. [ Links ]

AMIRALIAN, M. L. T. M. Compreendendo o cego: uma visão psicanalítica da cegueira por meio de Desenhos-Estórias. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997. [ Links ]

BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa, Portugal: Edições 70, LDA, 2011. [ Links ]

BAUMAN, Z. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. [ Links ]

BRASIL. Constituição Federal. 1988. Presidência da República. Brasília: DF, 1988. [ Links ]

BRASIL. Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Presidência da República. Brasília: DF, 1996. [ Links ]

BRASIL. Decreto 3.298, de 20 de dezembro de 1999. Presidência da República. Brasília: DF, 1999. [ Links ]

BRASIL. Saberes e práticas da inclusão: desenvolvendo competências para o atendimento às necessidades educacionais especiais de alunos cegos e de alunos com baixa visão. Coordenação geral SEESP/MEC. Brasília: MEC, Secretaria de Educação Especial, 2006. [ Links ]

BRASIL. Lei n.º 13.146. Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Presidência da República. Brasília: DF, 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13146.htm. Acesso em: 25 nov. 2018. [ Links ]

BOURDIEU, P. Os excluídos no interior. In: NOGUEIRA.M.A.; CATANI, A. (Org.) Escritos da Educação. Petrópolis, RJ. Vozes, 1988. p. 219-227. [ Links ]

BUENO, J. G. S. As Políticas de Inclusão Escolar: uma prerrogativa da Educação Especial? In: BUENO, J. G. S.; MENDES, G. M. L.; SANTOS. R. A. dos (Org.). Deficiência e Escolarização: novas perspectivas de análise. Araraquara, São Paulo: Junqueira & Marrin; Brasilia, DF: Capes, 2008. [ Links ]

CAIADO, K. R. M. Aluno deficiente visual na escola: lembranças e depoimentos. Campinas: Autores Associados: PUC, 2003. [ Links ]

CHIZZOTTI, A. Pesquisa qualitativa em ciências humanas e sociais. São Paulo: Cortez, 2008. [ Links ]

DUARTE, R. Pesquisa qualitativa: reflexões sobre o trabalho de campo. Cadernos de Pesquisa, n. 115, p. 139-154, mar. 2015. [ Links ]

GOFFMAN, E. Alinhamentos Intragrupais e Alinhamentos Extragrupais. In: GOFFMAN, E. Estigma – notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC, 1988. p. 96-106. [ Links ]

GOFFMAN, E. Desvios e comportamento desviante. In: GOFFMAN, E. Estigma – notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC, 1988. p. 118-124. [ Links ]

MANTOAN, M. T. E. Pensando e fazendo educação de qualidade. São Paulo: Moderna, 2001. [ Links ]

MANTOAN, M. T. E. O Direito de Ser, sendo diferente na escola. R. CEJ, Brasília, n. 6, p. 36-44, jul./set. 2004. [ Links ]

MAZZOTTA, M. J. S. Educação Especial no Brasil: história e políticas públicas. São Paulo: Cortez, 1996. [ Links ]

RIBEIRO, S. L. S. Visões e perspectivas: documento em história oral. Oralidades: revista de História Oral, ano 1, n. 2, p. 35-44, jul./dez. 2007. [ Links ]

RICOEUR, P. O percurso do reconhecimento. São Paulo: Loyola, 2006. [ Links ]

SASSAKI, R. K. Construindo uma sociedade para todos. Rio de Janeiro: WVA, 1997. [ Links ]

SASSAKI, R. K.. Entrevista. Revista Integração, Brasília, v. 8, n. 20, p. 8-10, ago. 1998. [ Links ]

UNESCO. Declaração de Salamanca e linha de ação sobre necessidades educativas especiais. Brasília: CORDE, 1994. [ Links ]

VYGOTSKY, L. S. Fundamentos da defectologia. Havana: Pueblo y Education, 2011. (Obras completas, tomo 5). [ Links ]

Recebido: 15 de Setembro de 2018; Aceito: 27 de Novembro de 2018

Creative Commons License  This is an Open Access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution Non-Commercial License, which permits unrestricted non-commercial use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original work is properly cited.