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Revista Iberoamericana do Patrimônio Histórico-Educativo

versão On-line ISSN 2447-746X

Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo vol.5  Campinas jan./dez 2019  Epub 31-Maio-2019

https://doi.org/10.20888/ridphe_r.v5i0.9706 

Dossiê Temático

MEMÓRIA E PRÁTICAS EDUCATIVAS EM UM PROJETO DE EDUCAÇÃO DO CAMPO

MEMORY AND EDUCATIONAL PRACTICES IN A COUNTRYSIDE EDUCATION PROJECT

MEMORIA Y PRÁCTICAS EDUCATIVAS EN UN PROYECTO DE EDUCACIÓN DEL CAMPO

MEMOIRE ET PRATIQUE PEDAGOGIQUE DANS UN PROJET D’EDUCATION RURALE

Edna Maria Querido de Oliveira Chamon1  2 

1 Universidade de Taubaté /UNITAU;

2 Universidade Estácio de Sá /UNESA edna.chamon@gmail.com


RESUMO

Este artigo busca apresentar novas práticas educativas trazidas por uma proposta de Educação do Campo desenvolvida em um programa de Licenciatura no Brasil. Essas práticas buscam integrar o trabalho de formação docente ao desenvolvimento de atividades junto às comunidades rurais, em um projeto de resgate da memória local sobre a evolução dos meios de transporte na região. Para além de uma proposta de caráter escolar, o artigo procura mostrar de que maneira uma formação em Educação do Campo pode apontar para novas perspectivas políticas e sociais, contrapondo-se a uma visão instrumental da educação e oferecendo uma formação integral do ser humano.

Palavras-Chave: Educação do Campo; Fotografia; Meios de transporte

ABSTRACT

This article presents new educational practices brought by Rural Education proposal developed in a Bachelor's degree program, in Brazil. These practices seek to integrate teacher training into the development of activities with rural communities, in a project to rescue local memory about the evolution of means of transport in the region. Beyond an academic proposal, the article seeks to show how a training program in Rural Education can point to new political and social perspectives, opposing an instrumental vision of education and offering an alternative training proposal, envisaging the integral human being formation.

Key words: Rural Education; Photography; Ways of transport

RESUMEN

Este artículo busca presentar nuevas prácticas educativas traídas por una propuesta de Educación del Campo desarrollada en un programa de Licenciatura en Brasil. Estas prácticas buscan integrar el trabajo de formación docente al desarrollo de actividades junto a las comunidades rurales, en un proyecto de rescate de la memoria local sobre la evolución de los medios de transporte en la región. Además de una propuesta de carácter escolar, el artículo busca mostrar de qué manera una formación en Educación del Campo puede apuntar a nuevas perspectivas políticas y sociales, contraponiéndose a una visión instrumental de la educación y ofreciendo una formación integral del ser humano.

Palabras-clave: Educación del Campo; Fotografía; Medios de transporte

RÉSUMÉ

Cet article présente les nouvelles pratiques éducatives apportées par une formation d’éducation rurale développée dans un programme de licence au Brésil. Ces pratiques cherche intégrer le travail de formation des enseignants au développement d'activités avec les communautés rurales, dans le cadre d'un projet visant à récupérer la mémoire locale sur l'évolution des moyens de transport dans la région. Au-delà d'une proposition scolaire, l'article cherche à montrer comment une formation d’éducation rurale peut mettre en évidence de nouvelles perspectives politiques et sociales, s'opposant à une vision instrumentale de l'éducation et offrant une formation intégrale de l'être humain.

Key words: Education Rurale; Photographie; Moyens de transport

INTRODUÇÃO

A educação é um dos pilares de todo processo de construção nacional e de modernização. O chamado processo civilizatório sempre foi associado à educação (COSTA; MUSIAL; BRANDÃO, 2015). Isso ocorreu, por exemplo, na Revolução Francesa com o ideal de uma educação nacional, cuja principal função era criar o novo sujeito-cidadão francês. Ocorreu, também, no papel que reformas educacionais profissionais tiveram em saltos modernizadores tais como na Coreia do Sul e no Brasil.

Paralelamente, a questão da terra também é central aos processos de formação nacional. Nos casos europeus o caminho para a sociedade moderna foi entendido como um trajeto do campo para as cidades (HOBSBAWM, 1979). Capitalismo, modernidade e urbanização estiveram sempre interligados, reforçando um discurso que separa a vida rural da vida urbana, ao invés de destacar sua necessária integração.

Nos processos latino-americanos, essa relação é fortalecida pelo histórico de inserção no capitalismo pela via da exportação extrativista e agrícola, pelo histórico de alta concentração de terra nas mãos das elites rurais e pela associação entre modernidade e cultura urbana.

No caso brasileiro, as relações entre educação, modernização e terra nos levam aos debates sobre a Educação do Campo, debates que não podem ser considerados politicamente neutros, dadas as relações indicadas. Uma busca de uma educação libertadora, voltada para a totalidade do ser humano, implica necessariamente que os conceitos como eficiência e produtividade sejam rejeitados como base para uma Educação do Campo.

Ao mesmo tempo, as bases disciplinares sobre as quais repousa a educação – e que sustentaram o desenvolvimento da ciência até os dias atuais – tem sido duramente criticadas em função da postura reducionista que representam, e de um certo esgotamento de suas possibilidades de fazer avançar o conhecimento sobre novas áreas e novos problemas que se apresentam, desde as questões ambientais até as questões de política e economia global (MINAYO, 2009).

Assim, cada vez mais, a formação de professores está alicerçada sobre as bases epistemológicas de um modelo interdisciplinar de construção do conhecimento, que deve, no entanto, ser reconhecido em sua perspectiva histórica de construção do conhecimento disciplinar e dos desdobramentos originados dessa construção, que se traduzem em uma tensão entre:

  1. de um lado, a construção histórica da ciência e sua relação com o capitalismo (e cooptação por parte dele). A esse respeito, Boaventura Souza Santos (SANTOS, 2000) fala sobre a predominância da energia regulatória sobre a energia emancipatória da ciência;

  2. por outro lado, o “querer ser” e o “perceber-se” interdisciplinar, ação do sujeito, implicando seu potencial de transformação (FAZENDA; GODOY, 2014).

Este texto apresenta e discute uma experiência interdisciplinar proposta em um curso de formação de educadores do campo, estabelecida dentro dessa perspectiva e tensão, afastando-se de uma formação acadêmico-científica e profissional enraizada em um modelo puramente disciplinar.

O projeto de pesquisa e intervenção desenvolvido durante a formação docente inscreve-se em uma conjuntura de transformação das práticas, elas mesmas ligadas às mudanças ideológicas, políticas, econômicas, culturais e sociais de nossa época, revertendo na esfera da formação integral do sujeito, considerando aqui a amplitude de possibilidades na e da Educação do Campo.

Esse projeto explora as possibilidades de formação docente a partir do trabalho da memória da comunidade do campo no qual estão inseridos os alunos, dentro de um tema gerador interdisciplinar ligado ao transporte: suas modalidades, sua evolução e suas relações com a história dessa comunidade.

A EDUCAÇÃO DO CAMPO

A tensão, com vistas a transformação, dos conceitos de “educação rural” e “educação do campo” é fenômeno relativamente recente, tendo por referência fundamental a primeira conferência nacional “Por uma Educação Básica do Campo”, realizada em 1998 e organizada pelo MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). Um histórico dessa transformação pode ser encontrado em Souza (2008), Freitas (2007) e Molina (2003).

É preciso ressaltar aqui que tal transformação vai na direção de anseios e objetivos da população que vive no campo, anunciando, como diz Caldart (2004), um movimento que, mais do que o direito de ser educado no lugar onde se vive, defende o direito a uma educação pensada a partir desse lugar e com sua participação, vinculada à cultura e às necessidades humanas e sociais da população do campo.

A Educação do Campo representa, portanto, a manifestação de um projeto de sociedade, voltada para o equilíbrio entre o bem-estar humano e a preservação da natureza. Estando associada a esse projeto de sociedade, a Educação do Campo vai muito além de sua versão escolarizada e, seguramente, na contramão da lógica capitalista dominante. Sua proposta incorpora muitas dimensões – política, social, cultural – além da própria dimensão pedagógica que lhe é própria.

Associada a essa proposta, encontram-se os projetos de formação docente para a Educação do Campo. Considerando-se que a transposição de uma educação de caráter urbanocêntrico para o campo viola os fundamentos da Educação do Campo, visto que questões centrais como territorialidade e formas de produção ficam marginalizadas nessa transposição, uma outra pedagogia deve ser reivindicada pelo campo e, nessa esteira, uma outra formação docente.

Esses pontos já estão reconhecidos nas Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo que definem a Educação do Campo

[...] pela sua vinculação às questões inerentes a sua realidade, ancorando-se na temporalidade e saberes próprios dos estudantes, na memória coletiva que sinaliza futuros, na rede de ciência e tecnologia disponível na sociedade e nos movimentos sociais em defesa de projetos que associem as soluções exigidas por essas questões à qualidade social da vida coletiva no País. (BRASIL, 2002, p. 37).

Também, o Plano Nacional de Educação (BRASIL, 2014) prevê o estabelecimento de estratégias que “[...] considerem as necessidades específicas das populações do campo e das comunidades indígenas e quilombolas, asseguradas a equidade educacional e a diversidade cultural;”, o que aponta para os aspectos específicos da Educação do Campo.

A FORMAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO DO CAMPO

O projeto analisado refere-se a uma formação de Licenciatura em Educação do Campo, com ênfase em Ciências da Natureza e Matemática, oferecida pela Universidade de Taubaté, SP, que contou com recursos do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), por meio do programa PROCAMPO (Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo), e da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), por meio do programa PIBID Diversidade (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência – Diversidade).

Essa Licenciatura em Educação do Campo é uma formação de professores para a docência no ensino fundamental e médio em Educação do Campo, orientado para a atuação em escolas rurais da região do Vale do Paraíba Paulista, estado de São Paulo. Trata-se de uma Licenciatura específica interdisciplinar, ou seja, orientada para uma grande área de conhecimento – Ciências da Natureza e Matemática – e não para uma disciplina específica.

O curso é baseado na Pedagogia da Alternância (RIBEIRO, 2008), com aulas presenciais nos meses de janeiro e julho, que correspondem ao Tempo Escola. No restante do ano, durante o Tempo Comunidade, existem atividades realizadas pelos alunos em suas comunidades por meio de projetos de intervenção, acompanhados por professores que se deslocam até as comunidades do campo.

É no contexto dessas intervenções, realizadas junto às comunidades rurais às quais os alunos pertencem, que se desenvolveu o projeto educativo de memória na área de transporte.

O PROJETO “EDUCAR NA INTERDISCIPLINARIDADE” E SEU SUBPROJETO “TRANSPORTE”

A proposta do projeto “Educar na Interdisciplinaridade” previa o trabalho conjunto de licenciandos, professores da Universidade de Taubaté e professores de escolas rurais na forma de uma pesquisa-ação que integrasse os interesses e as necessidades da comunidade escolar do campo, a construção da profissão docente para o licenciando e as possibilidades de geração e difusão de conhecimento. A proposta se desenvolveu sob duas óticas complementares:

  1. a formação do licenciando no espaço da prática escolar, que é própria da proposta de Licenciatura em Educação do Campo; e,

  2. o desenvolvimento, dentro da área de Ciências da Natureza e Matemática, de estratégias didático-pedagógicas interdisciplinares, com ênfase na realidade do campo e orientadas por um tema transversal específico, que compunha um subprojeto. Esse tema transversal deveria associar o potencial da interdisciplinaridade à especificidade do campo e às disciplinas próprias da grande área de formação.

Dessa maneira, a formação do licenciando e a reflexão sobre a realidade do campo se deram de maneira interdisciplinar, apoiadas em um projeto que era, ao mesmo tempo, pesquisa, prática escolar e reflexão sobre a comunidade. O subprojeto sobre transporte incorporava-se como tema transversal nesse projeto interdisciplinar maior.

O ensino de Ciências da Natureza e Matemática não poderia prescindir da contextualização histórica e empírica dessas áreas do conhecimento. Em especial, tratando-se de Educação do Campo, era necessário associar a esse ensino a territorialidade que lhe é própria, permitindo refletir sobre a realidade local e suas relações com a realidade global.

O deslocamento físico de pessoas e cargas de um local para outro – em uma definição simplificada de transporte – é um dos aspectos fundamentais da relação local-global, com forte impacto na atividade do campo. Questões de acesso e de deslocamento das pessoas, questões de custo logístico para o agronegócio, questões de investimento público em infraestrutura, questões de geração de emprego e renda estão ligadas à temática do transporte, sua viabilidade, sua disponibilidade, sua manutenção.

O subprojeto buscava explorar o tema transporte a partir das disciplinas que compreendem as áreas de Ciências da Natureza e da Matemática, usando os conhecimentos dessas disciplinas para compreender as formas de transporte e seus impactos no campo. Trabalhou-se, dessa forma, o tema em diversas perspectivas, entre as quais:

  • Importância para a agricultura da região, em termos de custos (frete), distâncias, tempos e modais disponíveis;

  • Comparação entre os diferentes modais existentes e sua aplicabilidade/adequabilidade à região;

  • Comparação entre os diferentes modais e seus impactos ambientais na região.

Essas atividades buscaram associar as características e atividades da região às questões de territorialidade e modos de existência das comunidades que nela viviam, integrando essa visão aos conhecimentos – geográficos, matemáticos, físicos etc. – estudados na Licenciatura.

A MEMÓRIA COMO PRÁTICA EDUCATIVA

A memória é um elemento fundamental na construção identitária, além de ter um papel decisivo na construção das representações de um grupo social. Ainda que Le Goff (1990) atribua à psicologia um estudo mais ligado à memória individual[1], os trabalhos em psicologia social se debruçam principalmente sobre os estudos da chamada memória social (SÁ, 2015). Sob esse ponto de vista (o da psicossociologia), os princípios de uma memória social podem ser sintetizados:

(1) a memória tem um caráter socialmente construtivo, e não meramente reprodutivo das experiências individuais passadas; (2) são as pessoas que se lembram e se esquecem, embora o que ou como se lembram e se esquecem seja determinado pela sociedade, pela cultura e, em especial, pela linguagem; (3) a construção da memória não se produz senão através da interação e da comunicação sociais; (4) lembranças e pensamentos estão sempre e intrinsecamente associados nos fenômenos de memória social; (5) motivação, afeto e sentimento desempenham um papel importante na construção da memória social. (SÁ, 2012, p. 95-96).

Do ponto de vista da psicologia social, ainda, uma memória documental – que é uma fração da memória histórica – somente tem sentido a partir do momento em que ela é “mobilizada” pelo grupo social (ou seja, os documentos são lidos, revisitados, referidos). É nessa perspectiva que a memória documental vai adquirir função ou valor de prática educativa.

No caso específico em estudo, há que se entender as relações entre teoria e prática no contexto das propostas contra-hegemônicas apresentadas pela Educação do Campo. Nesse contexto, as propostas de uma Educação do Campo rejeitam a exclusão da cultura e do conhecimento dos sujeitos do campo e afirmam o trabalho como princípio educativo (CHAMON, 2016). As práticas dos sujeitos do campo – ligadas à territorialidade e aos modos de existência e produção das comunidades do campo – devem ser objeto de teorização e devem integrar as formas propriamente escolares, transformando-se, assim, em práticas educativas.

A Educação do Campo propõe o resgate do trabalho como produtor de conhecimento e dos saberes práticos como fonte ou origem de princípios pedagógicos. “Os professores sabem. Os alunos também sabem. Só que são saberes diferentes. É no coletivo da Escola que estes saberes são trocados. O resultado é um saber melhor para todos” (MST, 2005, p. 33).

Essa transformação de saberes práticos em princípios pedagógicos é perseguida no subprojeto sobre Transportes, nas perspectivas apresentadas anteriormente. Os temas estudados – modais, custos, distâncias, meio ambiente – buscam uma associação entre as diversas disciplinas da grande área de Ciências da Natureza e Matemática e as práticas locais relativas a agricultura e transporte.

No entanto, o enraizamento das disciplinas nas práticas locais demanda um conhecimento de campo, da realidade local, razão pela qual o subprojeto Transportes buscou envolver a comunidade do entorno das escolas. Foram realizadas, pelos alunos, visitas e estudos sobre as formas de agricultura local (familiar, orgânica e outras), sobre a geografia física da região (distâncias, relevo) e sobre outros aspectos que poderiam dialogar com as disciplinas clássicas da grande área da Licenciatura.

No bojo dessa pesquisa de campo, a partir de visitas à comunidade local (à qual pertencem os alunos) e entrevistas, surgiu a proposta de resgatar uma parte da história dos meios de transportes da região por meio de registros fotográficos disponíveis na própria comunidade. Trata-se de registros familiares, muitos deles sem data definida, coletados a partir de dois princípios norteadores, desenvolvidos na próxima seção: envolver a comunidade local nas atividades da Licenciatura; e, correlacionar a temática “Transporte” à grande área de Ciências da Natureza e Matemática.

Em uma perspectiva mais ampla, essa atividade alinhou-se também à proposta de uma Educação do Campo na qual os sujeitos e os saberes do campo são ativos no processo educacional. O trabalho, entendido como atividade humana transformadora e consciente, produtor de meios de vida, em seus aspectos materiais e culturais, é princípio fundante de toda atividade relacional do homem, seja com outros homens (o que funda as leis, a política e o Estado), seja com a natureza (o que funda a ciência e a técnica) (DORE, 2014). É, portanto, também fundante da Educação, vista como processo de transformação do homem.

A MEMÓRIA DO TRANSPORTE E O PROJETO DE EDUCAÇÃO DO CAMPO

Uma das propostas do projeto “Educar na Interdisciplinaridade” era pensar o campo a partir de categorias ligadas à territorialidade e às comunidades locais. A subordinação do campo à lógica econômica é reducionista, visto que esta é apenas uma dimensão da ideia de território. Nesse sentido, a proposta da Licenciatura em Educação do Campo e dos projetos a ela associados podem ser vistos como uma reação contra-hegemônica às propostas educacionais que visam, seja a transposição para o campo da educação desenvolvida na cidade, seja a instrumentalização dessa educação para fins de uma lógica de exploração e subordinação do campo.

Como parte dessa proposta, era fundamental o trabalho junto à comunidade local na qual vivem os alunos que participavam da formação. A integração com a comunidade atendia aos objetivos básicos do projeto proposto, que incluíam: a) a construção de competências que contemplassem a diversidade do campo nos seus aspectos sociais, culturais, políticos, econômicos, de gênero, geração e etnia; b) o desenvolvimento da capacidade de investigar a realidade escolar do campo e refletir sobre ela; e, c) a promoção, por meio da pesquisa-ação, das investigações de novas estratégias didático-pedagógicas que integrassem as diferentes disciplinas da área de Ciências da Natureza e Matemática.

Essa integração atendia, também, às diretrizes nacionais, que orientavam na direção da “[...] temporalidade e saberes próprios dos estudantes, [e] na memória coletiva que sinaliza futuros [...]” (BRASIL, 2002, p. 37), e, finalmente, ao próprio pensar a educação a partir da existência do campo.

Essa memória do transporte se produziu a partir de visitas dos estudantes à população das comunidades locais e das conversas propiciadas por essas visitas, e também da obtenção de registros fotográficos relativos aos meios de transporte ou a eventos relacionados a eles. Essas visitas e entrevistas aconteceram ao longo do segundo semestre de 2013.

O ponto de vista privilegiado nesse subprojeto foi o do envolvimento da comunidade e das relações potenciais com disciplinas da área da Licenciatura. Dessa forma, o foco da atividade voltou-se para a diversidade dos meios de transporte, e não necessariamente para o histórico de seu desenvolvimento. As fotografias selecionadas para este artigo buscaram, assim, apresentar os diversos meios de transporte colocados à disposição da comunidade local: a bicicleta, o caminhão, o ônibus, o cavalo, o carro de boi, e o andar a pé. Selecionou-se apenas uma fotografia de cada modal, a título ilustrativo, de um total de 26 fotografias coletadas.

O conjunto das 26 fotografias foi exposto nas escolas e registrado em relatórios, como forma de preservar esses registros.

As Figuras 1 a 6 reproduzem essa seleção de fotografias de meios de transporte obtidas pelos alunos junto à população da comunidade do entorno do Município de Cunha, no interior do estado de São Paulo.

Fonte: Município de Cunha, SP, 2013.

Figura 1 Primeiro morador do Bairro de Pedra Grande (Cunha, SP) a ganhar uma bicicleta. 

Fonte: Município de Cunha, SP, 2013.

Figura 2 Caminhão para transporte de pessoas. 

Fonte: Município de Cunha, SP, 2013.

Figura 3 Carro de boi. 

Fonte: Município de Cunha, SP, 2013.

Figura 4 Ônibus tipo “jardineira”. 

Fonte: Município de Cunha, SP, 2013.

Figura 5 Trole. 

Fonte: Município de Cunha, SP, 2013.

Figura 6 Transporte de gado a pé. 

O objetivo desses registros, em função da natureza da Licenciatura, era buscar formas de desenvolver atividades relacionadas aos conhecimentos escolares que eram desenvolvidos no Tempo Escola. Aspectos de geografia física e matemática, relacionados a distâncias, tempos, condições das estradas, capacidade de transporte, formas de energia utilizadas, eram as ideias a ser desenvolvidas.

Os registros fotográficos foram usados de forma comparativa, identificando-se as formas e condições atuais de transporte e comparando-as com as formas históricas registradas em termos das temáticas da grande área de concentração da Licenciatura. Temas como distâncias, tempos, velocidades, modais, modificações de relevo e meio ambiente formaram o foco das análises feitas pelos alunos nas aulas, envolvendo matemática, geografia e física. A participação da comunidade se deu ao longo das visitas e entrevistas e, posteriormente, no momento da exposição.

De ponto de vista psicossocial, ocorreu a chamada “mobilização funcional” dos documentos (fotografias), no sentido da circulação da informação dentro de um grupo social (os alunos) e entre grupos geracionais (alunos e membros mais velhos da comunidade). Essa comunicação fortalece o caráter identitário dos sujeitos do campo, por meio de uma história e uma raiz comuns, o que é, também, parte de uma proposta de Educação do Campo.

Assim, o objetivo dessa coleção de registros fotográficos não foi, em primeira instância, o de exposição ou de preservação da memória, embora o trabalho realizado tenha, também, atingido esse resultado. As fotografias foram efetivamente expostas nas escolas onde os alunos desenvolviam suas atividades de estágio e de intervenção pedagógica. Também, o material ficou registrado nos relatórios enviados aos órgãos de fomento que financiaram o projeto e nos arquivos das próprias escolas, ainda que o material original tenha sido devolvido a seus proprietários.

Um outro objetivo, este também ligado à formação para Educação do Campo, também foi atingido. O de envolver a comunidade no projeto de Licenciatura e associar a produção de existência no campo ao projeto educacional.

A exposição desses resultados – entendidos aqui como resultados pedagógicos – foi feita por meio de cartazes e apresentações nas escolas ao longo do segundo semestre do ano de 2013, incluindo extensões de trabalhos sobre transporte desenvolvidos com os alunos de escolas do fundamental. Foram feitas exposições dos trabalhos abertas ao público em geral como culminância da proposta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo principal da experiência apresentada era integrar um projeto educacional de caráter interdisciplinar a uma proposta diferenciada de Educação do Campo, na qual o envolvimento da comunidade e o trabalho dos alunos junto a ela pudessem ser integrados a um movimento que, sendo pedagógico na origem, transcendesse o âmbito escolar e abraçasse a própria produção da existência no campo.

Dessa forma, existe a proposta – inerente a um projeto de Educação do Campo – de envolvimento dos sujeitos do campo em seu projeto de formação e de ancoragem nos saberes práticos dos alunos e na memória coletiva (BRASIL, 2002). No caso específico analisado, trabalhou-se com uma formação de Licenciatura em Educação do Campo, com ênfase em Ciências da Natureza e Matemática. Um projeto de ensino-aprendizagem denominado “Transporte” operava como um tema transversal para atividades dos alunos. O projeto buscava associar questões de territorialidade (deslocamento, custos logísticos, investimento público, meio ambiente) a questões próprias da grande área da Licenciatura (física, matemática, geografia).

Como parte desse projeto, os trabalhos de campo – visitas à comunidade e entrevistas com a população local – levaram a um levantamento da história dos meios de transporte utilizados pela comunidade local por meio de registros fotográficos. Esse levantamento tinha como propósito primeiro o envolvimento da comunidade e a conexão com os conteúdos da grande área de Ciências da Natureza e Matemática. De um ponto de vista psicossocial, buscava também mobilizar conteúdos históricos e representacionais como forma de fortalecimento identitário.

O registro fotográfico buscou o resgate da memória, sem dúvida, mas um resgate como forma de afirmar a existência presente e apontar para um outro futuro possível, no qual a instrumentalização da natureza possa ser substituída pela construção de um projeto de desenvolvimento humano integral.

Essa é uma característica das propostas de Educação do Campo. A interdisciplinaridade que lhes é própria avança para além do âmbito escolar e, afirmando um novo projeto de escola, afirma uma nova proposta de sociedade. Aquilo que Caldart (2004) chama de Pedagogia do Movimento é isso: o enraizamento do projeto educacional no projeto social e político. Aqui, a memória representada nas fotografias une gerações em torno da existência local.

As fotografias – recolhidas pelos alunos, utilizadas em aula em conexão com temas da física, geografia, matemática, expostas para o público nas escolas – funcionaram como prática educativa em um sentido amplo, abarcando não apenas conteúdos didáticos escolares, mas também formas de socialização e construção de uma identidade do campo por meio da memória da comunidade.

REFERÊNCIAS

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1Ele se redime depois, no capítulo dedicado à memória: “[...] psicologia social, na medida em que esta memória está ligada aos comportamentos, às mentalidades, novo objeto da nova história, traz a sua colaboração” ( LE GOFF, 1990 , p. 407).

Recebido: 15 de Setembro de 2018; Aceito: 26 de Dezembro de 2018

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