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Revista Iberoamericana do Patrimônio Histórico-Educativo

versão On-line ISSN 2447-746X

Rev. Iberoam. Patrim. Histórico-Educativo vol.5  Campinas jan./dez 2019  Epub 31-Maio-2019

https://doi.org/10.20888/ridphe_r.v5i0.9707 

Dossiê Temático

MEMÓRIAS SOBRE A TECNOLOGIA ASSISTIVA: CONTRIBUIÇÕES DA HISTÓRIA ORAL PARA A ANÁLISE DOS PROCESSOS DE MEDIAÇÃO NO PERCURSO ACADÊMICO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA VISUAL

MEMORIES ON ASSISTIVE TECHNOLOGY: CONTRIBUTIONS OF ORAL HISTORY TO THE ANALYSIS OF THE MEDIATION PROCESSES IN THE ACADEMIC PATH OF PERSONS WITH VISUAL IMPAIRMENTS

MEMORIAS SOBRE TECNOLOGÍA ASISTIVA: CONTRIBUCIONES DE LA HISTORIA ORAL PARA EL ANÁLISIS DE LOS PROCESOS DE MEDIACIÓN EN LA TRAYECTORIA ACADÉMICA DE PERSONAS CON DEFICIENCIA VISUAL

MÉMOIRES DE LA TECHNOLOGIE D´ASSISTANCE: APPORTS DE L’HISTOIRE ORALE À L’ANALYSE DES PROCESSUS DE MÉDIATION DANS LE PARCOURS ÉDUCATIF DE DÉFICIENTS VISUELS

Celma dos Anjos Domingues1 

Adriana Lia Friszman de Laplane2 

Ricardo Santhiago3 

1Universidade Estadual de Campinas. celma.domingues@gmail.comBrasil

2Universidade Estadual de Campinas. adrifri@fcm.unicamp.brBrasil

3Universidade Federal de São Paulo. ricardo.santhiago@unifesp.brBrasil


RESUMO

Este ensaio aborda as contribuições da História Oral para a reflexão sobre os processos de mediação implicados nas mudanças tecnológicas e os impactos da Tecnologia Assistiva na história da educação de pessoas com deficiência visual. O estudo se debruça sobre as memórias de uma pessoa com deficiência visual, registradas em entrevista. Investiga os modos como ela reconstrói a história sobre os usos dos recursos de Tecnologia Assistiva e sobre as formas de mediação que atravessam esses processos. As ferramentas da História Oral permitiram enfocar uma narrativa singular, que se entrecruza com contextos históricos, sociais, culturais e econômicos, que perpassam a história das políticas educacionais e a história das conquistas pela garantia dos direitos das pessoas com deficiência. As análises nos levaram a refletir sobre os processos de mediação e as concepções sobre deficiência implicadas nos instrumentos, entendidos como técnicos, mas também semióticos, com repercussões para a discussão sobre o papel da Educação em sua relação com a Tecnologia Assistiva.

Palavras-Chave: História Oral; Tecnologia Assistiva; Deficiência visual

ABSTRACT

This essay discusses the contributions of Oral history for the reflection on the procedures of mediation involved in technological change and on the impact of Assistive Technology in the history of education of people with visual impairment. The study deals with the memories of a person with visual impairment, registered in an interview. Investigates the ways she reconstructs the story about the uses of Assistive Technology resources and on ways of mediation involved in these processes. Oral history tools have made it possible to focus on a singular narrative, which intersects with historical, social, cultural and economic contexts, crosscutting the history of educational policies and the history of the achievements to the guarantee of the rights of people with disabilities. The analysis led us to reflect on the processes of mediation and on the conceptions of disability involved in the instruments, understood as technical, but also, as semiotic, with repercussions on the discussion about the role of education in its relationship with Assistive Technology.

Key words: Oral History; Assistive Technology; Visual impairment

RESUMEN

Este ensayo analiza las contribuciones de la Historia Oral para la reflexión sobre los procedimientos de mediación en el cambio tecnológico y el impacto de la Tecnología Asistiva en la historia de la educación de las personas con discapacidad visual. El estudio aborda los recuerdos de una persona con discapacidad visual, registrados en una entrevista. Investiga las maneras en que ella reconstruye la historia de los usos de los recursos de Tecnología Asistiva y sobre las formas de mediación que atraviesan estos procesos. Las herramientas de la Historia oral han hecho posible centrarse en un relato singular, que cruza con contextos históricos, sociales, culturales y económicos, y atraviesa la historia de las políticas educativas y la historia de los logros por la garantía de los derechos de personas con discapacidad. El análisis nos llevó a reflexionar sobre los procesos de mediación y sobre las concepciones de discapacidad implicadas en los instrumentos, entendidos como técnicos, pero también semióticos, con repercusiones en la discusión sobre el papel de la Educación en su relación con la Tecnología Asistiva.

Palabras-clave: Historia Oral; Tecnología Asistiva; Discapacidad visual

RÉSUMÉ

Cet essai explore les apports de l’Histoire orale à la réflexion sur les processus de médiation impliqués dans les changements technologiques et les effets de la Technologie d’Assistance sur l’histoire de l’éducation de déficients visuels. Il porte sur les mémoires d’une de ces personnes, enregistrées lors d’un entretien, et examine comment celle-ci reconstruit l’histoire de l’utilisation des ressources de la Technologie d’Assistance et des formes de médiation traversant ces processus. Les outils de l’Histoire orale ont permis de discerner une narrative singulière qui s’entrecroise avec des contextes historiques, sociaux, culturels et économiques parcourant l’histoire des politiques d’éducation et des conquêtes pour la garantie des droits des déficients. Nos analyses nous ont conduit à réfléchir aux processus de médiation et aux conceptions de déficience mobilisés dans nos instruments, compris comme techniques autant que sémiotiques, et aux répercussions sur la discussion du rôle de l’Éducation dans sa relation à la Technologie d’Assistance.

Key words: Histoire Orale; Technologie d’Assistance; Déficience visuelle

INTRODUÇÃO

As pessoas com deficiência visual, de maneira geral, contam ou deveriam contar (de acordo com a legislação existente e com as ideias inclusivas que permeiam as práticas sociais e educativas nas últimas duas décadas), em suas trajetórias, com o apoio de recursos, dispositivos e serviços que possibilitam o acesso a informações, a leitura de textos, a locomoção, enfim, a participação e inclusão nas práticas sociais. Estes diferentes recursos, dispositivos e serviços formam o que se define como Tecnologia Assistiva, uma “área do conhecimento, de característica interdisciplinar, que engloba produtos, recursos, metodologias, estratégias, práticas e serviços que objetivam promover a funcionalidade, relacionada à atividade e participação, de pessoas com deficiência, incapacidades ou mobilidade reduzida, visando sua autonomia, independência, qualidade de vida e inclusão social” (BRASIL, 2009a, p. 13). A Tecnologia Assistiva (TA) é referenciada como um direito humano fundamental (GARCIA, PASSONI, GALVÃO FILHO, 2013; GARCIA, 2014) e seu papel principal é o de promover, possibilitar e incentivar a inclusão e a participação das pessoas com deficiência. Relacionam-se, quando se fala em Tecnologia Assistiva, várias áreas de conhecimento, que envolvem não apenas aspectos técnicos, instrumentais, mas também a discussão sobre os direitos das pessoas com deficiência e a equiparação de oportunidades. Estes mesmos autores e muitos outros, no contexto nacional e também internacional, chamam a atenção para lacunas existentes no acesso aos recursos de Tecnologia Assistiva.

No processo de participação nas práticas sociais, uma grande diversidade de instrumentos, técnicos e semióticos (DOMINGUES, 2004) vai sendo incorporada a partir de interações diversas nos mais diferentes contextos e espaços: na escola, no trabalho, no lazer, na saúde, entre outros. Ao analisarmos como se efetiva este processo de apropriação das práticas, enfatizamos a noção de que a produção de instrumentos carrega em si as relações humanas e as relações de poder, configurando-se assim, dentro de movimentos históricos. Essas relações dizem respeito aos diferentes atores individuais e institucionais envolvidos no processo de criação, produção, disseminação e uso dos artefatos tecnológicos, e se desenvolvem em um ambiente permeado por uma rede complexa de fatores. Entre esses, destacam-se a falta de conhecimento dos atores sobre as necessidades das pessoas com deficiência e, também, a concorrência de interesses conflitantes, que conduz a negligenciar os direitos de diferentes grupos de pessoas.

As mudanças tecnológicas envolvem avanços, retrocessos e eventuais defasagens no que se refere às condições de acesso dos indivíduos aos diferentes tipos de produtos. No caso da deficiência, por exemplo, algumas inovações oferecem novas possibilidades de acesso, enquanto outras ensejam novas barreiras (D'AUBIN, 2007; FERRI, 2015). Uma atualização em um sistema operacional, por exemplo, pode implicar o surgimento de problemas na utilização de um determinado software ou dispositivo de Tecnologia Assistiva, levando o usuário a buscar soluções para a eventual incompatibilidade ou mesmo à substituição dos recursos. A compreensão desse processo, na sua dimensão histórica e na sua não linearidade, desmistifica a ideia de que a tecnologia, por si só, elimina as barreiras ao acesso. Abre-se um espaço, assim, para refletir sobre outras dimensões que afetam, que fazem parte, deste complexo processo, entre as quais a da mediação.

A mediação envolve as particulares relações entre pessoas e instrumentos técnico-semióticos que permitem formas de interação em que o outro pode ser representado, por exemplo, pelo próprio usuário ou por espaços virtuais que permitem encontros com textos, conhecimentos e práticas produzidos em outros momentos, por múltiplos sujeitos, em diferentes lugares. O conceito de mediação, tal como analisado no contexto da chamada “sociedade da informação”, especialmente nos estudos de Almeida (2008; 2009), reflete a complexidade destas interações. O autor questiona, neste contexto, qual seria o papel dos mediadores na rede e destaca as mudanças decorrentes da “ascensão das ‘novas tecnologias’” e das “mudanças sociais, econômicas e políticas” (ALMEIDA, 2008, p. 17).

As novas tecnologias de informação e comunicação – TICs, colocam ao nosso alcance uma infinidade de informações e dados, algo jamais sonhado, e que excede, em muito, as capacidades cognitivas individuais. Porém, essa gigantesca memória eletrônica a nossa disposição, especialmente na World Wide Web, a rede mundial de computadores, não é, por si só, garantia de construção ou acesso ao “conhecimento”. A “rede” oculta, também, diferenciações sociais, hierarquias, relações e seleções arbitrárias, processos de ocultamento – diferentemente do que propõe certa ideologia da “democratização do conhecimento”. (ALMEIDA, 2009, p. 11).

Novas formas de mediação constituem-se como parte das inovações tecnológicas e estas formas de mediação ocorrem na história singular de cada sujeito e em suas relações com os instrumentos, mas estas relações se dão em um contexto político, tecnológico, econômico, social e cultural. A perspectiva da história oral nos permite pensar, a partir dos pontos de vista dos diferentes atores, nos testemunhos como “interpretações sobre a História em suas múltiplas dimensões: factuais, temporais, espaciais, conflituosas, consensuais” (DELGADO, 2006, p. 15).

Tendo em vista a discussão sobre a complexidade e historicidade da tecnologia e o entendimento dos processos de mediação no entrelaçamento entre o individual e o social, o presente estudo vale-se das contribuições de ferramentas de análise da história oral (ALBERTI, 1990; THOMPSON, 1992; DELGADO, 2006; FERREIRA, AMADO, 2006; BOSI, 2012) para analisar a reconstrução da memória sobre o uso de recursos de Tecnologia Assistiva por pessoas com deficiência visual, com o objetivo de refletir sobre e dar visibilidade aos processos de mediação implicados nas mudanças tecnológicas e seus impactos na Educação.

ASPECTOS METODOLÓGICOS

Por muito que se deva à memória coletiva, é o indivíduo que recorda. Ele é o memorizador e das camadas do passado a que tem acesso pode reter objetos que são, para ele, significativos dentro de um tesouro comum. (BOSI, 2012, p. 411).

Para responder ao objetivo proposto, recorremos a um depoimento que integra um conjunto de entrevistas realizadas no contexto de um projeto de pesquisa mais amplo1, que busca analisar o processo de difusão da inovação em Tecnologia Assistiva2. Alguns dos temas abordados incluíram: as características da atividade que realizam como mediadores; as formas de acesso e uso dos recursos de Tecnologia Assistiva; os problemas enfrentados no acesso, mediação e uso dos recursos; a que categorias de mediação recorrem; os avanços percebidos na difusão da inovação em TA; perspectivas futuras para a difusão da inovação em TA; recomendações sugeridas para a difusão da inovação em TA; percepção dos mediadores a respeito do próprio papel na difusão de TA.

Entendemos esses depoimentos como parte do patrimônio histórico-educativo, na medida em que os entrevistados reconstroem, nos seus relatos, vivências que remetem aos modos de se relacionar com a TA. Estas histórias fazem parte da história da educação, da história das políticas e da história dos movimentos de lutas pelos direitos das pessoas com deficiência e das conquistas consumadas em garantias legais. São histórias que apresentam narrativas (ALBERTI, 2012) de como os sujeitos vivenciaram os processos de apropriação de práticas relativas ao uso da Tecnologia Assistiva em suas trajetórias. Em última instância, esses processos são, eles mesmos, situações de criação compartilhada – e não apenas de explicitação, pela narrativa – de saberes que compõem o patrimônio histórico-educativo. Como escreveu Alessandro Portelli, a entrevista de história oral “se estrutura sobre uma diferença que a torna significativa”, ganhando significado “se entre os sujeitos envolvidos existe uma diferença significativa e um deles está em situação de aprendizagem” (PORTELLI, 2016, p. 13).

Este olhar abre possibilidades para a perspectiva de uma narrativa que é “parcial, inacabada” (VILANOVA, 1994, p. 47), compreendida também em suas condições de produção e de interpretação, ampliando, portanto, os significados para além dos enunciados (THOMPSON, 1995). Estas condições, que se dão no momento da entrevista e também no momento da apresentação e análise dos dados, envolvem os conhecimentos que o pesquisador tem sobre o tema, as interações que acontecem no momento da entrevista (ALVES et al., 1992; VILANOVA, 1994; PATAI, 2010) e sua posterior apresentação como dados passíveis de análise e interpretação. Incluem também a análise do silêncio, daquilo que não foi dito (VILANOVA, 1994). Colocam-se, assim, na interpretação, tanto a subjetividade do narrador quanto a subjetividade do pesquisador (COSTA, 2014).

(RE)CONTANDO HISTÓRIAS SOBRE O USO DE RECURSOS DE TECNOLOGIA ASSISTIVA: INOVAÇÃO, MEDIAÇÃO E DEFICIÊNCIA VISUAL

A narradora cujo texto constitui objeto do presente estudo é uma jovem profissional, com formação universitária em nível de pós-graduação (doutorado), que tem deficiência visual congênita. A sua atuação envolve a pesquisa na intersecção de diversas áreas do conhecimento, incluindo a área da Tecnologia Assistiva. Sempre gostou de tecnologia e tem acesso a pesquisas de ponta na área. A sua entrevista é particularmente relevante para este trabalho já que, nela, descreve-se detalhadamente um percurso permeado por lembranças de datas, eventos e de usos dos recursos de Tecnologia Assistiva ao longo do tempo, em diferentes circunstâncias. A atenção constante às inovações, a compreensão do papel da tecnologia e das implicações do uso de cada recurso no momento histórico em que aparece e a reflexão sobre o próprio percurso se apresentam como elementos exemplares para a análise aqui empreendida.

A análise da entrevista nos permitiu compreender os modos de uso e os significados atribuídos aos recursos e dar visibilidade aos processos de mediação implicados.

Recontando sua história de uso dos recursos e respondendo a algumas indagações da entrevistadora sobre a busca de soluções aos desafios enfrentados, a narradora transita entre o passado, o presente e as perspectivas futuras e apresenta, em sua fala, referências aos processos de mediação. Optamos aqui por apresentar primeiramente os fragmentos da entrevista em que a narradora discorre sobre os usos dos instrumentos e os processos de mediação. Na sequência, apresentaremos nossas considerações.

A gente já tem a vivência do outro século (risos). Então, na década de 80, que foi quando eu fiz o ensino fundamental e depois, no final da década de 90 o ensino médio, a gente tinha predominantemente pra estudo e pra uso os recursos de leitura e escrita em braille, tanto a reglete, quanto a máquina de escrever em braille, a máquina Perkins.3 A gente usava em todas as atividades da escola, acadêmicas, e aí, eram recursos que nos davam uma autonomia relativa, porque se você escrevia um texto em braille, com a máquina braille, o professor não sabia braille, então precisava que alguém que soubesse braille transcrevesse aquele texto pra que o professor pudesse ler. E nada garantia que a pessoa que transcrevesse o texto, nem que não fosse intencionalmente, mas fosse realmente fiel àquilo que você tinha escrito. A pessoa podia errar [...] E passava por ela. Tinha a mediação dela. Você não conseguia escrever alguma coisa e a outra pessoa diretamente ler. Então, assim, dava uma autonomia relativa e mesmo pra que um livro, um texto, enfim, pudesse ser lido por mim, também precisava que alguém batesse em braille, transcrevesse pro braille para que eu lesse, então, não tinha essa autonomia que a gente tem hoje. Até que surgiram estes novos recursos, que agora já não são tão novos (risos), mas na época eram [...] De leitor de telas e a própria impressora braille, que daí tornou possível que a gente lesse alguma coisa sem precisar de uma terceira, de uma outra pessoa que transcrevesse ou que ditasse, enfim, porque se aquilo já tá disponível no formato digital, basta que a gente use um leitor de telas e leia. Ou mesmo, se eu quero escrever alguma coisa para alguém, eu posso escrever no computador e a pessoa lê, sem que ela saiba braille. E, além disso, nada impede que eu imprima em braille o que uma pessoa escreveu, sem que ela saiba braille. Então, teve um avanço muito grande em relação à autonomia e mesmo em relação ao acesso às informações, porque tem muita informação na internet, disponível, enfim, que antes a gente não podia ler.

[...]

depois, essas novas tecnologias que começaram a propiciar o acesso a, hoje você pode entrar no site, pode ler as notícias, pode ter acesso à informação. E graças a essa evolução mesmo da Tecnologia Assistiva.

[...]

Então, eu comecei a ter contato com esses recursos que foram surgindo, até com a linha braille, acho que é o recurso talvez mais moderno [...] porque ele é fantástico, porque ele propicia mesmo que a gente possa ter contato em tempo real com o que está aparecendo na tela do computador. É um recurso que eu uso bastante. A impressora braille também, principalmente quando eu quero transportar algum documento e lê-lo com mais atenção. São esses novos recursos e também aplicativos pra celular, como esse aplicativo que nos permite digitar em braille pelo celular. Eu sou muito adepta do braille (risos). Esse, por exemplo, eu acho que não é muito comum as pessoas, cegos usarem, eu acho, esse aqui que digita em braille [...] eu acho que não, que as pessoas acabam ditando mesmo. Mas como eu sou muito adepta do braille, eu acabei gostando e acabei aprendendo a digitar mais rápido com ele do que no próprio teclado do celular.

[...]

E aplicativos também que têm surgido – isso eu não uso muito, mas tem aplicativo de localização e, esse também que tira foto dos objetos, leitor de dinheiro também uso, que é pra identificar as notas. Então são novos recursos que vão surgindo. E aí, recursos assim, eu acho que também contam, da vida diária mesmo, a bengala, recurso que a gente cria pra vida diária, pra organização dos objetos, que acho que também contam como Tecnologia Assistiva pra vida diária.

[...]

[meu contato com leitores de tela] foi mais ou menos em 2000. Eu tava na [...] faculdade já, no terceiro, mais ou menos, no terceiro ou quarto ano da faculdade. É que antes eu já tinha começado a usar o DosVox4. O DosVox eu comecei a usar em 95, e tinha lá na [nome da instituição] um projeto de ensinar o DosVox.

[...]

Aí, 95, que eu tava no final do ensino médio e aí eu comecei, só que assim, eu não conseguia ainda muito usar o computador no contexto da escola. Eu fazia ainda os trabalhos na máquina Perkins. E eu lembro que eu tava aprendendo a digitar, porque tinha que aprender, eu não sabia o teclado e aí eu fiquei muito empolgada com esta ideia de fazer um trabalho no computador sem precisar que o professor, alguém transcrevesse, porque este era o meu sonho. E teve um trabalho de determinada matéria, que eu nem lembro que matéria, acho que era história, que eu inventei, eu falei: “nossa (risos) vou fazer num computador esse trabalho”, porque imagina só o professor receber o trabalho diretamente de mim sem ninguém transcrever [...] Vou fazer. E a voz era uma voz terrível, assim (risos) era muito sintetizada, muito robotizada, mas tudo bem. E eu tava aprendendo a digitar, e digitava muito devagar e fui fazendo o trabalho, acho que até eu fiz em braille primeiro, porque, assim, durante bastante tempo eu fazia isso, fazia o trabalho em braille primeiro e depois digitava, não conseguia digitar direto. E eu fiz tudo em braille, digitei, digitei, digitei, mas passei horas, e aí eu não sei o que aconteceu [...] que eu puxei um fio do computador, eu não sei se eu enrosquei a mão no fio e ele desligou da tomada, e ele não salvou, eu perdi todo o trabalho que eu fiz [...] Então a minha primeira experiência de fazer trabalho no computador não foi muito bem-sucedida, né? (risos) Eu podia ter desistido ali mesmo (risos). Mas eu gostava também dessa área de aprender a tecnologia, tudo, aí na faculdade eu comecei a usar o computador inclusive em sala de aula, substituindo a própria máquina Perkins que a gente levava, que fazia barulho, o computador era mais silencioso também, então eu passei a levar. E comecei a fazer os trabalhos. Só que o que eu falei: durante bastante tempo eu tinha que fazer o trabalho em braille e aí depois eu digitava. Aí eu comecei a não dar conta disso [...] porque eu tinha que fazer duas vezes praticamente. Aí eu comecei a aprender a fazer no computador direto, que antes eu não conseguia fazer isso, eu que tinha que ler na mão pra fazer.

[...]

[sobre as dificuldades enfrentadas no uso] Eu acho que o recurso ele tem que interagir com outros aplicativos que a gente quer utilizar, então, assim, quando a gente tá usando o leitor de telas, o leitor tem que interagir com o navegador, tem que interagir com o editor de textos, e eu acho que nesta interação do recurso de TA com outros aplicativos é que às vezes a gente enfrenta algumas dificuldades, porque às vezes ele não lê adequadamente, ou porque a gente mesmo não tem uma compreensão muito clara daquela tela e precisa de ajuda pra entender a estrutura da tela, os próprios sites que também muitas vezes não são acessíveis, e... dificuldades assim, às vezes do próprio programa que às vezes faz uma atualização e aí a gente ainda não atualizou esta atualização, precisa acompanhar o programa e os outros aplicativos, e também, ah, e também eu acho que algumas dificuldades, relacionadas ao acesso, ao custo mesmo de alguns recursos, né? Então, assim, aqui [local de trabalho] tem uma linha braille. Mas... mas eu não consigo ter uma... porque... é caro né?

[...]

eu tenho uma impressora Braille que eu adquiri quando eu entrei na faculdade... aquela [marca da impressora][...] ela é frente e verso e de formulário contínuo... e a gente não conseguiu o drive dessa impressora, que é mais antiga, que tem vinte anos, né, pra funcionar com ele [a versão atual do sistema operacional], então ela tá desativada, e faz tempo que ela tá desativada e eu... e eu... queria usar a minha própria impressora né? [...] Que teve esse problema de atualização.

[...]

[sobre a busca de soluções] Ah, então, a gente acho que busca as pessoas mais experientes [...] que têm mesmo esta experiência tanto em Tecnologia da Informação como em Tecnologia Assistiva, né? E pra coisas mais pontuais assim, acho que às vezes o pessoal aqui do suporte de TI também... é muito interessante essa relação com o pessoal aqui do suporte de TI. [...] Porque pra muitos deles a Tecnologia Assistiva também não é uma área familiar

[...]

[sobre mediadores com os quais obteve apoio] Sim, acho que tem as pessoas, profissionais que nos ajudam, tanto as pessoas que são já experientes em TA quanto as pessoas que são da própria Tecnologia da Informação que também podem nos ajudar, e acho que existem alguns sites hoje em dia que fazem esta atualização de novos aplicativos, que a gente entra também pra ver, assim, ah, olha, surgiu um aplicativo novo [...] acho que mesmo feiras, exposições, que a gente vai pra conhecer o que tem de novo, os novos recursos, e também a gente tá em contato com pesquisas, então ver também o que está sendo desenvolvido, quem tá desenvolvendo, que tipo de solução que, ainda que exista só em protótipo, mas que daqui a pouco pode ser que seja um produto, então a gente também tem essa mediação. E eu acho que mediação também que eu tive ao longo da vida, de profissionais que não são da Tecnologia Assistiva, mas que também me atenderam, então foi... pessoa que me atendeu em AVD [atividades de vida diária], em orientação e mobilidade [...] a minha TO [terapeuta ocupacional]

[...]

[sobre outros usuários] Então, a gente também conversa com os usuários e também, algumas coisas que eles também precisam eles me perguntam e às vezes a gente se surpreende porque eu uso um determinado recurso pra uma coisa e a outra pessoa, de repente, nem gosta daquele recurso, nem usa, fala: “nossa, eu testei e achei horrível, pra mim não serviu”. E são pessoas diferentes, né? Então, o mesmo recurso pode ser usado, experimentado, de forma diferente por cada pessoa. Então os outros usuários também acabam fazendo essa, essa mediação.

[...]

às vezes a gente mesmo vê em feira determinado recurso, mas assim, a gente fica pensando: “nossa, mas se eu comprar eu não vou saber usar”

[...]

Em relação à difusão eu acho que esta questão [...] de muitas vezes o recurso existir mas o usuário não tem informação... é que eu tô muito em contato com essa área, então eu acabo sabendo o que surge, mas eu suponho que muitas pessoas acabam não tendo acesso, a saber que uma nova pesquisa foi feita, a saber que um novo recurso tá surgindo, a ver se aquele recurso atende mesmo à demanda dela ou não, porque faltam esses canais de informação.

[...]

[sobre perspectivas futuras para a área] eu acho que é uma área muito promissora, acho que é uma área muito abrangente, então, .... eu acho que tem muitos caminhos possíveis e eu não sei se todos esses caminhos, ah, atendem totalmente a demanda daquilo que as pessoas precisam, porque acho que ainda falta o pesquisador e o desenvolvedor, né, conversar com o usuário. Porque às vezes o desenvolvedor fala: “ah! eu vou desenvolver um dispositivo que vai fazer o cego, né, andar sozinho e se localizar e enxergar” e ele vai por um monte de, de fio, de eletrodo e não sei o quê, né, assim que, que ele acha aquela ideia maravilhosa, mas não tem nada, ninguém no cotidiano usaria aquilo (risos), ninguém se disponibilizaria a usar no dia a dia esse recurso. Então acho que falta muita aproximação entre o pesquisador e o usuário pra que os recursos que sejam desenvolvidos possam atender mesmo as demandas. É uma área muito promissora, mas que tem ainda muitas dificuldades, em relação ao acesso a, o produto poder ser é... viver todo esse ciclo, desde a pesquisa até o protótipo, até ele realmente chegar à pessoa, ao usuário. E, então eu acho que hoje a gente tem um potencial tecnológico muito maior do que o que realmente existe. Eu acho que já tem possibilidade de fazer recursos muito mais avançados do que de fato existem, só que a gente ainda tem problemas nesse ciclo e faz com que as coisas não sejam desenvolvidas totalmente. Talvez a gente, hoje em dia, já tenha recurso suficiente, com essa questão aí que fala, que eu acho engraçado esse nome, que é a “internet das coisas” (risos)... então, tem muitas coisas que podiam estar plugadas e conectadas e tal, mas que por conta dessas dificuldades ainda não existem, disponíveis, no cotidiano, facilmente pras pessoas, mas é uma área que tem um futuro muito promissor haja visto que nesses 20 anos, digamos, – pensar na evolução que teve nesses 20 anos, é, de certo, em 5 anos vai ter uma evolução talvez equivalente àquela que a gente viveu em 20 anos, em período cada vez menor de tempo vai ter uma evolução maior, então eu acho que é uma área assim muito promissora que a gente nem imagina o que vai ter daqui a um tempo.

Destacamos, a partir desta narrativa, alguns elementos que permitem discutir os processos de mediação e as concepções sobre deficiência que subjazem à criação dos instrumentos, considerados como objetos de cultura e, portanto, como produtos gerados nas relações sociais.

No relato da narradora aparecem reflexões sobre o impacto da Tecnologia Assistiva nas atividades escolares e sobre as vantagens, desvantagens e os diferentes graus de autonomia propiciados pelos instrumentos disponíveis. Ela destaca, nas décadas de 80 e 90, o uso do sistema braille para leitura e escrita. Este podia ser escrito por meio da reglete e da máquina braille. A autonomia na leitura e na escrita é considerada algo muito importante, mas, ainda era necessária a mediação de outras pessoas (família, professores, profissionais especializados) para realizar as transcrições, já que a maioria dos professores não conhecia o braille o suficiente para ler um texto. Do mesmo modo, ela descreve a dependência gerada pela necessidade de transcrições manuais de textos de e para o sistema braille. Tanto no caso da leitura como no da escrita, o usuário com deficiência visual não poderia estabelecer uma relação direta com qualquer tipo de texto. A relação de interlocução passaria sempre pelo outro proficiente em braille. Por isso, a narradora descreve, retrospectivamente, esses recursos como promotores de uma “autonomia relativa”.

Do relato, mas também do que não é dito, emerge a ideia de que a situação muda radicalmente quando o leitor de telas para uso no computador é incorporado, no início do século XXI. Ainda na década de 1990 os programas de leitura de textos começaram a ser utilizados nas instituições especializadas e em algumas escolas. A entrevistada cita os programas e recursos com os quais teve contato e as possibilidades de interação direta com a informação e com a escrita que estes propiciaram.

A transição dos recursos mecânicos para os de informática é interessante porque permite compreender a importância do sistema braille como base para a aprendizagem, assim como algumas das razões da sua permanência no cenário da Tecnologia Assistiva. A convivência entre o novo e os saberes já incorporados desmistifica a ideia de que a tecnologia implica necessariamente o descarte do que já existia. Entende-se, assim, a propriedade da argumentação de autores como McLuhan (1969) e, baseando-se em suas ideias seminais desenvolvidas na obra “Os meios de comunicação como extensão do homem”, Jenkins (2009) e Santaella (2009), ao postular que o surgimento de um novo meio implica não a substituição dos anteriores, mas sua coexistência.

De acordo com o relato, a narradora encarou com curiosidade e alegria a novidade que permitiria finalmente experimentar uma relação direta com o texto, sem intermediação nem transcrição, possibilitando uma experiência inteiramente nova de mediação e de autonomia. O leitor de telas permite ao usuário a liberdade de navegar pela rede, ler notícias e quaisquer outros conteúdos por ela escolhidos.

Os próprios termos empregados pela narradora aludem à dimensão afetiva presente em seus gestos de manutenção dos objetos mecânicos e de adesão aos novos recursos eletrônicos. Ecléa Bosi (2003, p. 26), a partir de sua leitura de Violette Morin e de sua experiência realizando entrevistas, entende elementos como estes como “objetos biográficos”, que “envelhecem com o possuidor e se incorporam à sua vida [...] Cada um desses objetos representa uma experiência vivida, uma aventura afetiva”. A ênfase que eles adquirem na própria narrativa confirma, ainda, que, “como fonte de descobertas, o objeto biográfico ancora memórias e representações” (ALMEIDA et al., 2007, p. 102).

Ainda, o desenvolvimento de outros recursos que interagem com o computador, como a impressora braille e a linha braille, confere visibilidade à dimensão da variedade de experiências e estilos, decorrentes de uma multiplicidade de fatores sociais, culturais e subjetivos que deve ser levada em consideração quando se desenvolvem recursos de TA. Nesse sentido, observamos que toda criação tecnológica pressupõe um modelo que reflete concepções culturais da época da qual participam o desenvolvedor e também dos atores envolvidos na disseminação dos produtos tecnológicos e em sua aplicação em diferentes contextos.

A história singular da narradora remete às mudanças significativas ocorridas nas concepções sobre deficiência. A hegemonia do modelo médico prevaleceu até as últimas décadas do século XX e ainda hoje se encontra vigente em muitas áreas. O modelo médico colaborou para a afirmação de um paradigma que entendia a deficiência como problema individual e orgânico, dando origem a classificações, iniciativas de tratamento e ao desenvolvimento de recursos que pudessem compensar a deficiência. Em contraposição a ele, o modelo social retirou o foco do indivíduo e da deficiência e passou a considerar as barreiras e empecilhos à participação social, responsabilizando o ambiente por criar essas barreiras e também por oferecer meios de derrubá-las e promover a igualdade de oportunidades de participação (DINIZ, 2012). Essas mudanças resultaram também em modificações no desenvolvimento de produtos e recursos de TA, já que os desenvolvedores de tecnologia foram desafiados e mesmo forçados (por pressão social, pelos movimentos sociais e de defesa dos direitos humanos, por razões mercadológicas e jurídicas) a incorporar às suas criações elementos que tornassem os produtos tecnológicos acessíveis a todos. No campo da inovação tecnológica em geral e da inovação em TA (GARCIA, PASSONI, GALVÃO FILHO, 2013) é importante destacar o papel fundamental da participação das pessoas com deficiência em todo o processo e da consideração das necessidades e demandas dos usuários. Este aspecto também é assinalado pela narradora, que analisa que esta ainda é uma questão que necessita de avanços, com uma maior interação entre desenvolvedores e usuários.

Identificamos aqui um duplo movimento: por um lado, uma mudança de ponto de vista que transforma a deficiência em uma característica humana a ser levada em consideração na criação de artefatos, objetos e processos de modo a respeitar a diversidade; por outro, a lógica que atravessa a vida social nas sociedades capitalistas e transforma essa característica (assim como todas as outras) em um nicho de mercado, que deve ser atendido.

As mudanças nas concepções são o produto de um movimento amplo que envolve uma história de lutas e reivindicações por parte das pessoas com deficiência. Essas mudanças estão registradas nos documentos que reconhecem os direitos das pessoas com deficiência em todas as esferas da vida humana. No contexto brasileiro os instrumentos legais vigentes defendem a perspectiva educacional inclusiva (BRASIL, 2008, 2009b, 2011a, 2011b, 2015). Entretanto, a presença de barreiras persiste e pode ser confirmada pelos depoimentos de docentes, gestores, familiares e alunos com deficiência. São comuns, mesmo nos tempos atuais, os relatos em que a busca ou provisão de recursos de Tecnologia Assistiva e a produção de materiais acessíveis permanece como responsabilidade dos indivíduos ou de suas famílias.

No relato da narradora, a questão das barreiras também é recorrente. Ela cita uma variedade de situações que nos levam a identificar duas ordens diferentes de barreiras: as que decorrem da inovação e das características do mercado tecnológico e fazem com que novos artefatos dificultem o uso de produtos de Tecnologia Assistiva de gerações anteriores; e as barreiras e os problemas que se referem ao conhecimento, acesso e disponibilidade de recursos.

No primeiro caso, as barreiras são inerentes às regras do mercado de um modo geral, mas a dinamicidade e a concentração características do setor de Tecnologia da Informação tornam mais evidente e rápido o processo de obsolescência de equipamentos, programas e aplicativos, por exemplo. Todavia, na área de Tecnologia Assistiva, a obsolescência adquire contornos dramáticos e tem efeitos muito negativos, na medida em que o alto custo de alguns equipamentos (devido a fatores como a escala de produção, necessidade de importação e outros) dificulta as possibilidades de substituição.

Esse tipo de barreira impede, em muitas situações, a participação social plena, como por exemplo, a realização de atividades acadêmicas pela dificuldade de acesso a informações em sala de aula, acesso a textos escritos e entrega de trabalhos, dentre outras.

Neste contexto revelam-se ainda os problemas do acesso, da disponibilidade, dos custos e da falta de conhecimento sobre os recursos. Estas barreiras dizem respeito ao cenário mais amplo dos modos de difusão da tecnologia na sociedade e mais especificamente no contexto educativo. Na área da educação, os recursos tecnológicos utilizados, de forma geral, não acompanham os avanços. São notórias as dificuldades de incorporação das tecnologias às práticas educativas. Esta incorporação, além das questões de ordem política e econômica, envolve o domínio de técnicas e o aprendizado de conhecimentos específicos.

Neste cenário, que em muitos aspectos se refere a assuntos de interesse coletivo - problemas de acesso, tipos de recursos utilizados em diferentes momentos (“a gente tinha”, “a gente usava”) e a identificação com vários grupos de pertença - emergem a subjetividade da narradora, os significados particulares atribuídos à tecnologia (“eu gostava também desta área de aprender a tecnologia”) e as possibilidades oferecidas no seu contexto de vida e de trabalho (compra de uma impressora braille, acesso à linha braille no trabalho, acesso a pesquisas, visitas a feiras de produtos, entre outros).

Pensar a história do uso dos recursos do ponto de vista de um sujeito revela, assim, questões mais amplas a serem discutidas na área da Tecnologia Assistiva ao mesmo tempo em que permite refletir sobre o papel da subjetividade: em quê, para cada sujeito singular, aquela tecnologia impacta e significa. Como as preferências, os itinerários de vida, o contexto social, e os conhecimentos anteriores afetam as relações com a tecnologia. Uma narrativa singular remete, desse ponto de vista, à história das políticas, a uma história social, à história de um grupo social, e é nesse sentido que a história oral ganha vulto enquanto patrimônio educativo, operando na recuperação, no registro, na difusão e na indução de interpretações (e, desejavelmente, de mudança social) a partir de experiências localizadas, dificilmente acessíveis de outra forma.

O foco no entrelaçamento entre o individual e o social evidencia a multiplicidade de aspectos que compõem essas histórias, assim como a sua importância para a compreensão dos processos educativos e do papel da Tecnologia Assistiva na área da Educação.

CONCLUSÃO

A complexidade dos processos de mediação é revelada na entrevista na menção às múltiplas relações que implicam professores, profissionais, técnicos, usuários, redes sociais, a própria tecnologia, feiras e grupos diversos. As formas de mediação encontram-se, assim, intrínseca e dinamicamente relacionadas às tecnologias, sujeitos e grupos.

O uso de diferentes tipos de recursos, mecânicos ou eletrônicos, modifica radicalmente as possibilidades de interação entre os atores no cenário educacional e as relações das pessoas com deficiência com o conhecimento. A reconstrução e a reinterpretação da história pela narradora – ou, mais propriamente, a “história da memória” que sua narrativa constitui – mostra-se capaz de garantir visibilidade e de encaminhar leituras sobre o papel central de algumas inovações tecnológicas, como o leitor de telas e outros aplicativos, no acesso a computador, celular e internet. A mudança tecnológica incide como fator na emergência de novas formas de mediação que proporcionam um grau de autonomia nunca antes alcançado e potencializam a participação social. No entanto, este processo não é linear. A narrativa sobre o uso da tecnologia ao longo da trajetória acadêmica da entrevistada desenha um panorama promissor e ao mesmo tempo tenso, pleno de contradições e defasagens, no qual as barreiras ainda persistem em muitos contextos. A perspectiva histórica nos permite fugir das considerações generalizantes e simplistas sobre as inovações e as formas de mediação. Um desafio e tanto para refletirmos sobre o conceito complexo da mediação em sua relação com a tecnologia.

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1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

2 Foram realizadas 15 entrevistas com profissionais e usuários experientes em TA. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa.

3 A reglete consiste em uma prancha de madeira onde o papel é fixado entre duas placas de metal ou plástico presas por dobradiça, onde se marcam, através de uma ponta de metal chamada punção, os pontos em baixo-relevo nas celas braille. A escrita é produzida do lado inverso do papel, da direita para a esquerda para que seja feita a leitura dos pontos em alto-relevo da esquerda para a direita. A máquina Perkins consiste em uma máquina de datilografar em braille, com 9 teclas, uma para cada um dos 6 pontos do braille e as teclas de espaço, mudança de linha e retrocesso do carrinho. A impressora braille possibilita que sejam impressos materiais em braille diretamente a partir do computador. A linha braille ou display braille é um equipamento que, acoplado ao computador, apresenta em braille, de forma eletrônica e dinâmica, as informações da tela. Leitores de telas são softwares que retornam, através de síntese de voz, as informações da tela do computador e permitem o acesso aos programas e à internet. Os leitores de telas permitem a utilização do computador e dos diversos aplicativos e existem leitores para os diversos sistemas operacionais: Windows, IOS e Linux (Para maiores detalhes sobre estes e outros recursos, consultar: (DOMINGUES, 2004; REILY, 2004).

4 O DosVox foi criado no Núcleo de Computação Eletrônica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É um sistema que utiliza síntese de voz e contém diversos aplicativos para uso por pessoas com deficiência visual, tais como editor de textos, calculadora vocal, jogos, etc. Não se trata de um leitor de telas, mas sim de um sistema com aplicativos próprios. Para maiores informações, consulte o site do Núcleo de Computação Eletrônica da UFRJ (http://intervox.nce.ufrj.br/dosvox/intro.htm).

Recebido: 15 de Setembro de 2018; Aceito: 30 de Janeiro de 2019

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