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Educação & Formação

versión On-line ISSN 2448-3583

Educ. Form. vol.6 no.2 Fortaleza mayo/ago 2021  Epub 20-Abr-2021

https://doi.org/10.25053/redufor.v6i2.4091 

Dossiê

O corpo é voz, mas na Educação Física não: compreensões sobre corpo na formação docente

The body is a voice, but not in Physical Education: understandings about the body in teacher education

El cuerpo es voz, pero no en Educación Física: entendimientos sobre el cuerpo en la formación docente

Daniella Rocha Bittencourti 
http://orcid.org/0000-0003-2577-9033; lattes: 3710078170355375

Lucélia de Moraes Braga Bassaloii 
http://orcid.org/0000-0002-0412-6052; lattes: 6941089571024585

iUniversidade do Estado do Pará, Belém, PA, Brasil. E-mail: bittencourt@hotmail.com

iiUniversidade do Estado do Pará, Belém, PA, Brasil. E-mail: lbassalo@uol.com.br


Resumo

O trânsito de sentidos e significados que emergem dos entendimentos de estudantes de Educação de Física sobre o corpo e, mais especificamente, sobre o corpo no campo de atuação e formação na Educação Física é o que move a tessitura deste artigo. Trata-se de uma investigação qualitativa reconstrutiva que intencionou delinear os significados do corpo e, mais especificamente, sobre o corpo no campo da Educação Física dialogando com a Fenomenologia Social. Para a reunião de dados, optou-se pela Entrevista Narrativa e, para a análise, o Método Documentário. Os sujeitos da pesquisa foram estudantes de uma universidade pública do município de Belém, Pará. Os resultados denotam uma disputa de concepções sobre o corpo que se delineiam a partir da natureza biológica e de marcadores sociais e culturais, indicando fragilidades sobre o objeto de estudo da Educação Física, o corpo.

Palavras-chave: Formação de Professores/as; Corpo; Educação Física

Abstract

The transit of senses and meanings that emerge from the understanding of Physical Education students about the body and, more specifically, about the body in the field of activity and training in Physical Education is what moves the fabric of this article. It is a qualitative reconstructive investigation that intended to outline the meanings of the body and, more specifically, about the body in the field of Physical Education in dialogue with Social Phenomenology. For the data collection, we opted for the Narrative Interview and Documentary Method. The research subjects were students, from a public university in the city of Belém, Pará, Brazil. The results denote a dispute of conceptions about the body that are outlined based on biological nature and social and cultural markers indicating weaknesses in the object of study of Physical Education, the body.

Keywords: Teacher education; Body; Physical Education

Resumen

El tránsito de los sentidos y los significados que surgen de la comprensión de los estudiantes de Educación Física sobre el cuerpo y, más específicamente, sobre el cuerpo en el campo de la actividad y el entrenamiento en Educación Física es lo que mueve el tejido de este artículo. Es una investigación reconstructiva cualitativa que pretende esbozar los significados del cuerpo y, más específicamente, sobre el cuerpo en el campo de la Educación Física en diálogo con la Fenomenología Social. Para la recolección de datos, se optó por la entrevista narrativa y, para el análisis, el método documental. Los sujetos de investigación fueron estudiantes de una universidad pública de la ciudad de Belém, Pará, Brasil. Los resultados denotan una disputa de concepciones sobre el cuerpo que se describen en función de la naturaleza biológica y los marcadores sociales y culturales que indican debilidades en el objeto de estudio de la Educación Física, el cuerpo.

Palabras clave: Formación del profesorado; Cuerpo; Educación Física

1 Introdução

A educação - aqui especificamente, o ensino superior - é um campo repleto de contradições e disputas, pois, ao mesmo tempo que pode disseminar uma educação classificatória e reguladora, também pode trabalhar a partir do reconhecimento da diversidade de corpos e sujeitos. A Educação Física, como parte desse processo, também tem se desdobrado segundo essas disputas.

Há, portanto, uma concepção que parte de uma imagem de corpo universalizado, idealizado e mecanizado que desconsidera a multiplicidade de corpos e de formas de expressão que solicita o atendimento a um modelo de corpo e movimento considerado ideal pela sociedade. Há ainda uma concepção que, na contramão desta primeira, visa ensinar a Educação Física de uma perspectiva plural e emancipatória que encara o sujeito como participante ativo do processo de construção e assimilação das práticas corporais e do significado de corpo.

Diante deste impasse, torna-se claro que o corpo não é somente um composto biológico, ele também se delineia na organização social, constrói-se e é construído na e pela história/cultura. Tomando como inspiração teóricos pós-estruturalistas, pode-se dizer que o corpo é um elemento das relações de poder e alvo permanente do processo de disciplinarização, isso porque, em meio às contradições, é tensionado ora para a mecanização e generalização, ora para a pluralidade e emancipação.

No que tange à formação em Educação Física, professoras e professores são constantemente alvos de mecanismos de regulação do poder que pretendem determinar lugares sociais e modos de atuação que hierarquizam e designam quais corpos são adequados e quais são desviantes, de modo que tais acepções incidem sobre os/as estudantes, seus corpos e sua atuação sobre outros corpos ao fim da graduação.

Com base na percepção dessa dinâmica, a questão sobre como os/as estudantes de Educação Física percebem o corpo implicado na Educação Física emergiu com um desafio de entendimento concretizado numa pesquisa sobre as relações de gênero na formação de professores/as de Educação Física. A investigação dirigiu seu olhar para a região da Amazônia paraense, buscando as singularidades que transitam sobre os sentidos e significados do que é o corpo e principalmente do que é o corpo na Educação Física, a partir das perspectivas dos/as discentes de um curso de formação de professores/as em Educação Física que existe há 50 anos. Tal fato denota uma historicidade, trajetória e legitimação de formação presente nas diferentes gerações de professores/as para o estado e quiçá para a região. Este artigo apresenta uma parte desses resultados e concentra-se no modo como os/as alunos de Educação Física compreendem o corpo.

Assim, o trânsito de sentidos e significados que emergem dos entendimentos de estudantes de Educação de Física sobre o corpo, especificamente sobre o corpo no campo de atuação e formação em Educação Física, é o que move a tessitura deste texto.

2 Caminhos da pesquisa

Adotou-se como procedimentos metodológicos a abordagem qualitativa reconstrutiva, por considerar que a experiência cotidiana, como afirma Bohnsack (2020, p. 34), “[...] é estruturada simbolicamente, ela consiste de construções simbólicas, já mesmo no âmbito das ações rotineiras, das ações pré-teóricas ou ateóricas”, assim como o enfoque da Fenomenologia Social, de Alfred Schütz (1970). Como forma de reunião de dados, utilizou-se a Entrevista Narrativa, como proposto por Fritz Schütze (2013), e, para a análise e interpretação das narrativas, o Método Documentário, proposto por Karl Mannheim e adaptado por Ralf Bohnsack (BOHNSACK; WELLER, 2013).

A Fenomenologia Social permite acessar através das experiências cotidianas dos/as estudantes sobre o corpo na Educação Física um universo de sentidos e significados, compreendendo, assim, o mundo da vida (Lebenswelt). A preocupação de Alfred Schütz, de acordo com Weller e Zardo (2013), centra-se na compreensão do sentido do mundo da vida cotidiana, no modo como as pessoas interagem no dia a dia, ou seja, a Fenomenologia Social volta-se para o mundo do senso comum, o mundo intersubjetivo que o sujeito experimenta no curso de sua existência no cenário da vida e da ação social.

Para alcançar a compreensão dos/as discentes sobre corpo e enxergar esse fenômeno de forma autêntica, a técnica de reunião de dados adotada foi a Entrevista Narrativa, uma vez que esta permite acessar os sujeitos em suas trajetórias e biografias e compreender os arranjos das experiências promovidas pela formação docente em Educação Física no que diz respeito ao corpo.

Para a interpretação dessas narrativas, optou-se pelo Método Documentário, por permitir aceder os sentidos que emanam das narrativas dos sujeitos e os significados suscitados pelas suas compreensões sobre o corpo na Educação Física. O Método Documentário aponta um caminho para a análise e interpretação da “[...] singularidade de experiências concretas, que carecem de uma análise teórica” (WELLER et al., 2002, p. 378), neste caso em como os/as universitários de um curso de Educação Física concebem o corpo e suas nuances.

O método é composto de etapas que visam alcançar a reconstrução dos elementos que norteiam a motivação e ação dos sujeitos, identificando o conjunto de elementos que compõem um modelo de orientação ou o “quadro de referência” (frame) (BOHNSACK; WELLER, 2013). Para manter os elementos orais no texto escrito, o método utiliza um conjunto de códigos para transcrição, assim como indicado por Weller (2005), em substituição aos sinais de pontuação.

As etapas permitem que a compreensão se desencadeie e vislumbram a passagem do sentido imanente para o sentido documentário, sendo denominadas de interpretação formulada e interpretação refletida, realizadas conforme recomendação de Weller e Otte (2014). A interpretação formulada se iniciou com a transcrição e codificação de todas as entrevistas, a identificação das metáforas de foco (SILVA, 2019) relacionadas aos objetivos da pesquisa e a reescrita dos dados orais, de modo que mesmo aqueles/as que não se relacionem com o contexto possam entendê-lo. Neste momento não são tecidos comentários, comparações ou trazidas informações alheias às falas como modo de aceder ao sentido imanente. A etapa seguinte, a interpretação refletida, analisou o conteúdo e os elementos presentes nas falas transcritas, desencadeando um processo de identificação de posicionamentos ou o modo como o corpo foi tratado ou elaborado pelo(a) estudante, que compõem o “quadro de referência” que norteia as falas. O processo de compreensão neste estágio faz uso tanto do contexto empírico, particularmente nesta investigação a formação universitária, quanto do conhecimento teórico disponível.

Após essas duas fases, desenvolveu-se a análise comparativa, que tem como objetivo a realização de comparações entre entrevistas (sujeitos diferentes) em busca de similaridades, padrões e aspectos particulares ou “[...] em que medida os quadros de referência que orientam as formas como um determinado tema ou problema foi narrado apresentam semelhanças ou diferenças” (WELLER; OTTE, 2014, p. 329) e constituem o tertius comparativo (WELLER, 2005), ou seja, procura-se perceber contrastes entre casos que são supostamente análogos.

Participaram da pesquisa como entrevistados estudantes matriculados no sétimo ou oitavo semestre do Curso de Educação Física da Universidade do Estado do Pará (CEDF-UEPA), especificamente do Campus III, localizado na capital paraense, Belém. Assim, o corpus compõe-se de dados orais obtidos com oito discentes, quatro homens e quatro mulheres, sendo pelo menos um homem e uma mulher de cada um dos três turnos (manhã, tarde e noite). Esse cuidado contribuiu significativamente para que se pudesse perceber possíveis contrastes entre sujeitos de um mesmo meio social.

Os termos do estudo e os princípios éticos de pesquisa foram apresentados na assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Tendo em vista a ética que direciona a pesquisa com seres humanos, as identidades foram mantidas em sigilo. Como recurso de anonimato, adotou-se a orientação do Método Documentário de utilizar as letras do alfabeto. As participantes são, portanto, identificadas pela letra “f” (feminino) e os participantes pela letra “m” (masculino), de modo que se apresentam neste texto os posicionamentos de quatro mulheres (Bf, Df, Ef e Hf) e quatro homens (Am, Cm, Fm e Gm) estudantes de Educação Física e que compõem o modelo de orientação denominado “binarismo”.

3 Corpo, Educação Física e formação de professores/as

Os significados do corpo são produzidos e reproduzidos em diversos espaços e tempos. Pensar o corpo é pensá-lo na cultura, com marcas e indícios de pertencimento a um determinado lugar. Pode-se dizer que o corpo vai além de seu funcionamento biológico, ele é um constructo de multiplicidades e possibilidades históricas que orientam os sentidos do que ele é e como deve ser.

Para compreender o corpo, de acordo com Abreu, Sabóia e Nobrega-Therrien (2019) é necessário levar em consideração a realidade social no qual ele está inserido em conjunto com os aspectos que compõem a educação, a política e a cultura, além de refletir sobre esse corpo envolvido por questões éticas e estéticas que se inter-relacionam e dialogam. Os lugares sociais e as posições que os sujeitos ocupam, como afirma Louro (2018), dizem respeito a seus corpos, pois estes são o que são graças à cultura e ao modo como ele é significado no interior de uma sociedade.

Segundo Foucault (2014), essas posições sociais são inscritas nos corpos através de uma série de mecanismos normativos que nos fazem crer que elas já nasceram conosco. Existe uma série de modos, técnicas e táticas que investem e sujeitam o corpo a cerimônias e a emanar sinais constantes que mantenham o controle de cada corpo no mesmo nível de mecânica, de gestos, de atitudes, de movimentos.

O controle dos corpos é notório na Educação Física. A todo momento, os corpos dos/as estudantes são corrigidos, dispostos segundo uma forma e um espaço, com movimentos milimetricamente demarcados e institucionalizados. Segundo Soares (2012, p. 7), “[...] a Educação Física constituir-se-á em valioso objeto de disciplinarização da vontade, de adequação [...] dos gestos e atitudes necessários à manutenção da ordem. Estará organicamente ligada ao social biologizado”.

É possível perceber que a Educação Física e, a partir dela, o corpo racionalizado são vistos apenas dentro de seus limites biológicos. As explicações que se tem acerca das práticas corporais se vinculam estreitamente a explicações biologicistas e biologizantes do corpo com técnicas meticulosamente calculadas. Essas técnicas, conforme Yazbek (2015), são detalhadamente implicadas no processo de formação do sujeito e de seus corpos e são aplicadas como forma de controle minucioso do corpo, o que significa dizer que há práticas sociais imbuídas de poder que informam e tentam colocar efetivamente cada sujeito em um determinado lugar.

Para Foucault (2014), essa é a atuação do poder que incide sobre o corpo, pois envolve aprimorar e adestrar os corpos dos sujeitos para que se tornem úteis para o sistema, assim o poder trabalha o corpo em sua interioridade de modo que possa manipular seus elementos e produzir comportamentos desejados. Para este autor, o corpo está mergulhado em um campo político apertado que lhe impõe obrigações e limitações. Aprisiona-se o corpo num “sistema de sujeição” que não diz respeito “[...] exatamente a ciência de seu funcionamento”, mas de “[...] um controle de suas forças que é mais que a capacidade de vencê-las” (FOUCAULT, 2014, p. 29-30).

Na teoria foucaultiana, o disciplinamento dos corpos ocorre principalmente nas instituições como as escolas, os hospitais e as organizações militares. Nesses locais, as pessoas são inscritas e distribuídas segundo uma forma e estão o tempo todo sob a vigilância dos demais e de si mesmos para que correspondam às expectativas criadas em torno de seus corpos. Nesse sentido, assim como afirmam Louro, Felipe e Goellner (2013, p. 7), “[...] espaços e instâncias sociais, ensinam formas de ser e de estar no mundo; [...] estabelecem hierarquias, classificam, aprovam e desaprovam corpos e aparências; sancionam e penalizam comportamentos”.

Na Educação Física, conforme indica Louro (2014), os/as alunos/as são, na maioria das vezes, dispostos/as em fileiras e são levados/as a executar movimentos repetitivos para alcançar gestos técnicos perfeitos, o que denota uma forte relação entre essa área, o exame constante e a disciplina dos corpos. Ou seja, os corpos se constroem em meio às relações de poder, a um conjunto de verdades que estabelece o que é normal/anormal, certo/errado, excluindo aqueles que julga negativamente.

Segundo Goellner (2013), a produção do corpo é tanto individual quanto coletiva, já que está inscrito num contexto histórico e cultural. Por outro lado, não está inerte a um tempo ou modo, sempre é possível reagir, seja por meio da aceitação ou da resistência. Fato é que, para a autora, o corpo “[...] é um campo político, como o corpo, ele próprio é uma unidade biopolítica” (GOELLNER, 2013, p. 41).

Do ponto de vista da produção do corpo de modo coletivo, é possível perceber que ele é um campo de disputas que coloca em voga significados daquilo que se considera como adequado para um determinado tempo e espaço. Desse modo, os/as estudantes da Educação Física, como futuros/as professores/as, estão indubitavelmente envolvidos/as nesse processo e assumem um lugar importante da perspectiva da produção dos discursos sobre o corpo e do modo como a Educação Física é ensinada na escola.

Para Ludorf (2009), os/as professores/as de Educação Física podem ser considerados/as educadores/as, uma vez que possuem um papel social de formação e contribuição dos valores socioculturais, subjetivos e políticos. Além disso, Silva e Moreira (2021) destacam que, quando os/as professores/as de Educação Física participam e se envolvem na elaboração do projeto escolar, as chances de atender a expectativas e interesses da comunidade escolar pode se materializar na prática pedagógica. Isso significa dizer que o/a docente ativo/a em sua escola pode ouvir, transferir e efetivar os interesses dos/as alunos/as, dentre os quais as demandas referentes ao corpo e suas manifestações, de modo que somente a Educação Física poderá perceber as nuances envolvidas com maior sensibilidade.

Assim, as concepções de corpo e a formação de professores/as de Educação Física estão imbricadas, de tal modo que estão presentes nas visões de mundo de estudantes de uma área em que o objeto de estudo e suas práticas se relacionam ao e com o corpo, de modo que refletir sobre o corpo e suas práticas torna-se uma possibilidade de romper com os padrões educacionais impostos que o deslegitimam como meio de aprendizado e de constituição integral do conhecimento crítico e democrático, assim como indicam Rodrigues e Couto (2020).

4 O corpo é voz

Como já apontado, o modelo de orientação denominado “binarismo” resultou do tertius comparativo delineado a partir das entrevistas realizadas com os/as discentes do curso de Educação Física. Os posicionamentos identificados referem-se a como eles/as compreendem o corpo tanto do ponto de vista mais geral quanto do ponto de vista mais específico, relacionado ao corpo na Educação Física.

É interessante frisar que a questão sobre o modo como compreendiam o corpo - e mais especificamente o corpo na Educação Física -, entre todos os temas propostos na entrevista (já que a pesquisa versava também sobre outras temáticas), não foi uma solicitação simples para os/as participantes, de modo que a apontaram como a mais complexa. É surpreendente que, mesmo que o corpo seja o alvo de atuação da Educação Física, este tenha sido um tema tão pouco refletido (apesar de muito estudado), a ponto de os/as concluintes sentirem dificuldades em associar o corpo à sua área de atuação ou às suas próprias vidas.

4.1 O corpo

A comparação do modo como compreendiam o corpo fez emergir cinco posições das entrevistas narrativas dos/as estudantes. A primeira posição, denominada “o corpo é seu”, emana das narrativas de Am e Df. Na tentativa de explicar o modo como entende o corpo, Am discorre:

O corpo é pessoal o corpo (2) é seu o corpo tu::u eu acho que o corpo é pessoal a gente tem a visão de corpo como (.) é:é um condutor ou uma coisa do movimento algum motor do movimento (.) mas eu acho que o corpo é=é próprio a pessoa faz com o corpo o que ela quiser (2) eu creio que o corpo seja seu seja próprio seu eu próprio u::um refúgio teu algo que tenha certeza que é seu (2) é isso.

Esse estudante encara o corpo como “pessoal” e repete quatro vezes o termo “seu”, deixando claro que percebe o corpo como subjetivo e traçando esse pensamento a partir de uma ideia que coloca o sujeito como dono de si, livre para fazer o que “quiser”, uma vez que é “próprio”, ou seja, é sua propriedade.

De maneira semelhante, Df afirma que:

O corpo (2) pra mim ele:: não é... não vamos dizer que é objeto mas é como(.) se fosse...é como se fosse o teu objeto que tu pudesse usar ele da forma que você quiser por exemplo: pra dança tem gente que:: no meu caso eu prefiro utilizar a parte da minha corporeidade pra dança e:: [...] pra mim o corpo ele só é uma forma de você se expressar tanto é não importa se... é:: o biótipo e sim o que você gosta de fazer com ele o que você pretende fazer.

Inicialmente a estudante afirma que o corpo “não é objeto”, mas volta atrás e diz que ele é “como se fosse”, utilizando o pronome possessivo “teu” para expressar pertencimento do corpo ao sujeito. De modo similar ao discente Am, a estudante Df afirma que se pode “usar” o corpo da “forma” que “quiser”. Essa expressão apresenta a ideia de liberdades e “preferências” na utilização do corpo que independem da estrutura física ou do biótipo.

Nas duas narrativas, observa-se a ideia de liberdade vinculada ao corpo, em que o sujeito tem direito sobre si e o corpo se configura como a forma de expressar esse direito, de modo que cada pessoa apresenta suas preferências, gostos e atitudes através dele. Assim, as narrativas de Am e Df demonstram sua compreensão de que o corpo é algo individual.

A segunda posição acerca do significado de corpo emana da narrativa de Bf, em que seu entendimento se vincula à religiosidade. Esse posicionamento recebeu o nome de “o corpo é um templo”. Ela pontua:

Olha o corpo pra mim (2) digamos assim que (.) É um instrumento né É o que nos move quando a gente vai fazer as coisas mas indo pra outras visões (2) é: se a gente for ver ele não é @nada@ não é nada por que nós somos a gente morre o corpo vai pra debaixo pra terra e::: a gente vira pó não tem como mas é:: o corpo ele é na minha visão assim ele é um templo do=do na minha religião o templo do espirito santo então tudo que faço assim tudo que eu vejo sempre procuro... Lógico não sou perfeita né a gente não é perfeita mas é:: pra glorificar a Deus assim ter um propósito né Então ã::ã a gente tem que sempre ter essa...esse cuidado até de passar pro aluno é:: qual é a visão do corpo pra ele né é:: a questão da valorização [...] tem muitas pessoas que as vezes se perdem cuidam mais do corpo a questão do objeto mas não cuidam da mente né Do seu psicológico e aí ele se torna apenas um objeto não se torna algo de valor né Como fazendo parte de si..é:: da sua vida né.

Ao afirmar que o corpo é um “instrumento” e que é aquilo que “nos move”, reflete o discurso sobre a mecânica do corpo. Entretanto, pode-se perceber a relevância que “outras visões” têm sobre sua compreensão, pois passa a discorrer, a partir de uma perspectiva religiosa, que o corpo não é “nada”. Ao utilizar esse termo, ela assegura uma visão profana do corpo, que possui pouco ou nenhum significado para a religião, uma vez que ele “vai pra debaixo da terra” e “vira pó”. Por ser insignificante, o corpo deve alimentar os valores da religião, ou seja, ser “templo”, “glorificar” e ter “um propósito” que agrade a Deus, fazendo-o merecedor de “valorização”; caso o corpo seja alvo de prioridade, ele perde o “valor” e se torna um “objeto”. Vê-se a definição de corpo atrelada às convenções religiosas nesse trecho, portanto o corpo não pode manifestar suas vontades ou se considerar livre, mas tão somente fazer morada de valores e obediência à vontade divina.

Na terceira posição, denominada “do micro ao macro”, estão as narrativas de Cm e Ef, que apontam que o corpo está para além dos aspectos anatômicos. Cm apresenta o seguinte:

O corpo ele seria um objeto de estudo da Educação Física mas não só a partir do corpo biológico a gente quando eu acho quando a gente trata o corpo tem que tratar ele do micro ao macro ou seja a nível fisiológico a níveis sociais ou seja a gente tem que entender o corpo como um ser muito complexo composto de diversos fatores muitas coisas vão influenciar como esse corpo vai interagir com ele mesmo e com os outros.

Para este estudante, o corpo constitui o eixo central da área da Educação Física e utiliza a expressão “não só” para assegurar que seu entendimento é multifatorial, que o corpo está para o discente tanto “a nível fisiológico” quanto a “níveis sociais” e que o corpo é “complexo”. Da fala de Cm pode-se identificar que ele percebe o corpo para além dos aspectos anatômicos e fisiológicos e o enxerga como um corpo que interage “com ele mesmo e com os outros”. De igual modo, Ef pontua:

Bom (.) o corpo pra mim hoje em dia né com a (2) a possibilidade que eu tive aqui dentro do curso de aprender com pessoas que são referências em falar sobre o corpo é que além do fisiológico, né a gente tem ele como maneira de se expressar né como arte, né e:: é isso que eu tenho hoje em dia do corpo vai pra além do biológico, tem o pensar, tem o se expressar tem o corpo como arte né é isso que eu tenho hoje em dia.

Ela pondera que o corpo é “além do fisiológico” e que ele pode ser percebido de maneira diversa, exemplificando que pode ser “uma maneira de se expressar” e “como arte”. Na narrativa dessa universitária, pode-se inferir que o corpo é uma possibilidade de comunicação e de materialização visível de sentimentos.

A quarta posição, intitulada “o corpo é uma máquina”, emana das narrativas de Fm e Hf e apresenta o entendimento de corpo vinculado a uma perspectiva biológica. O estudante Fm assume o que se segue: “É pergunta difícil... o corpo biologicamente braço perna membros tronco (.) mas se fosse caracterizar o corpo seria isso”. De modo muito sucinto, completa afirmando que o corpo é “biologicamente” e o “caracteriza” como suas partes. Ao dizer que esta é uma “pergunta difícil” e descrever o corpo dividido em partes, demonstra que possivelmente, mesmo sendo esse o seu objeto de investigação na formação, nunca havia pensado a respeito do assunto.

De modo semelhante, Hf afirma: “@Difícil essa@ (4) ã::: corpo dependendo do assunto específico é pode ser de certa forma uma máquina pode ser um instrumento pode ser várias coisas”. Ao iniciar sua fala, a discente reconhece, entre risos, a dificuldade em falar sobre o assunto e, refletindo acerca da complexidade da pergunta sobre como entende o corpo, demora cerca de quatro segundos para então iniciar sua resposta e afirmar que a definição de corpo está sujeita a um “assunto específico”, mas que, de certo modo, ele é uma “máquina” e pode “ser várias coisas”, o que denota a noção de corpo útil, funcional e disciplinado para ser utilizado como instrumento de trabalho, de vigilância e de exame.

Nas duas narrativas é possível interpretar que os/as estudantes compreendem a complexidade do tema. Ambos utilizam o termo “difícil” para caracterizar a pergunta. Ao responderem, apresentam o corpo assim como o veem imediatamente, inclusive, durante a entrevista, apontam para o próprio corpo e para o da entrevistadora, ou seja, Fm apresenta as partes, que são os “membros”, e Hf apresenta o todo como a “máquina”, o “instrumento”.

Na quinta posição, intitulada “o corpo é voz”, encontra-se a fala de Gm, em que o estudante traz o corpo como expressão:

O corpo pra mim da minha prática o corpo é voz (2) o corpo transmite o que tu tá o que tu pensa o que tu és é:: a forma que tu te veste a forma que tu te movimenta a forma que tu te expressa eu acho que o corpo diz muito do que tu és acho que o corpo é a tua imagem externa eu costumo falar assim: ‘a tua aparência externa é um cartão postal’ se tu cuida do teu cartão postal tu atrai os visitantes (3) se tu for uma ótima pessoa os visitantes vão querer voltar se tu não fores eles vão ver que era só cartão postal então eu acredito que:: tu cuidar de ti tu cuidar do teu corpo tu passar isso tu passar vita=vitalidade e=e te comunicar com o teu corpo é importante até pra atrair as pessoas certas né pra tua vida eu acho que o corpo não é mera estética, eu acho que ele diz muito do que tu és e ele pode falar minha arte é falar com o corpo então é isso que eu penso do corpo.

Gm inicia a narrativa se apropriando do conceito de modo pessoal ao dizer “pra mim”, “minha prática”, “minha arte”, ou seja, ele traça o entendimento de corpo a partir de suas experiências para definir que o corpo “é voz”, “transmite”, “pensa”, “movimenta”, “cuida”, “diz”, “expressa” e “não é mera estética”. Utiliza todos esses termos para qualificar o corpo como comunicação, mas ele pondera que as mensagens transmitidas dependem do transmissor, pois podem ser de “vitalidade” ou não, o qual, dependendo de quem se é, atrai pessoas “certas” ou não.

A partir desses elementos, é possível perceber que, dentre as cinco posições, a que se difere fortemente é a nominada como “o corpo é uma máquina”, que refere se ao corpo a partir de uma perspectiva biológica. Segundo Soares (2012), essa compreensão está associada ao histórico biologicismo presente na Educação Física, que objetiva fortalecer e disciplinar os corpos para que eles produzam mais e melhor.

A primeira posição, “o corpo é seu”, trata de uma concepção que discorda da quarta posição, “o corpo é uma máquina”, e apresenta o entendimento de liberdade e de corpo subjetivo, em que o sujeito constrói a si mesmo e ouve suas vontades. Em Foucault (2014), a liberdade ou as práticas de liberdade são uma forma de lutar e de contrapor a produção de uma subjetividade marcada pelo controle e pela disciplina.

De modo similar, a quinta posição, “o corpo é voz”, traz como perspectiva o corpo como forma de expressão de sentimentos, em que o movimento tem ligação profunda com o sujeito, com o que ele deseja repassar a quem o vê. Isso se relaciona à terceira posição, em que o corpo é compreendido como complexo e formado por vários fatores, capaz de, para utilizar um termo foucaultiano, resistir à disciplinarização e, utilizando Louro (2018), atravessar fronteiras e romper com estereótipos.

A segunda posição, “o corpo é um templo”, singulariza o corpo ao considerá-lo como profano, reduzido à conservação de valores morais, o qual não pode ter voz. Fica clara a influência dos dogmas religiosos que incidem sobre o corpo de modo a estabelecê-lo como impuro.

4.2 O corpo na Educação Física

Parte-se agora para a compreensão do entendimento dos/as estudantes sobre o corpo no campo específico da Educação Física, em que se delinearam duas posições, resultantes do processo de comparação. A primeira trata do corpo no campo da Educação Física a partir de uma perspectiva biológica e instrumentalista; e a segunda o enxerga de modo integral, contrária a uma visão fragmentada.

A primeira posição nominada, como “é só uma questão biológica mesmo”, emana das narrativas dos/as estudantes Am, Gm, Hf, Df e Fm, que relacionam diretamente o entendimento de corpo como biológico à Educação Física. O estudante Am apresenta:

O corpo nas matérias mai::is ligadas (2) a=a técnica são é um corpo mais motor um corpo mais biológico é um corpo que a gente tem que ter ser apto a fazer tais movimentos determinados movimentos h::mm é um corpo que a gente tem que cuidar cuidar sim é::é pra ter saúde é::é e eu vejo essa visão de corpo mais biológico um corpo mais ligado ao movimento e a todos os benefícios que o movimento traz ao nosso corpo e::e (2) e ligado bem bem atrelado aos aspectos da saúde pelo menos eu vejo aqui no curso.

Ao finalizar este trecho da narrativa, o discente afirma que seu entendimento é o que consegue perceber “no curso”, o que denota não ter uma opinião sobre o corpo fora do contexto da formação ou que os estudos que realizou no curso atendem à sua percepção do corpo. Ele ainda reitera que esse entendimento do curso decorre das “matérias mais ligadas à técnica”, ou seja, nas disciplinas da área biológica, de modo que conceitua o corpo em uma perspectiva “mais biológico” e “atrelado aos aspectos da saúde”. Nesse trecho é possível observar que o universitário apresenta um debate crescente do curso, que é o da vinculação da Educação Física ou das práticas corporais ao campo da saúde. Gm esclarece esse ponto de vista de maneira precisa:

Na Educação Física na Educação Física escolar (3) na:: atualidade eu penso no corpo como uma ferramenta essencial porque como a gente tá na era da tecnologia as crianças elas ficam muito nas redes sociais nos joguinhos e elas acabam não tendo prática corporal e isso a gente vê o reflexo até aqui na Educação Física pessoas que têm muito pouca memória motora elas não conseguem executar atividades simples elas têm dificuldades tropeçam muito demais caem demais e isso se reflete até quando tu fica idoso se você não tem uma vida ativa quando você era novo quando você for idoso você vai cair mais seu corpo vai enfraquecer mais rápido entendeu [...] tu ter uma=uma vivencia na escola com a Educação Física é importante justamente porque no meio urbano a gente não tem mais espaço não tem mais como brincar na rua=não tem mais como brincar na rua como a gente tinha quando era antes, então a Educação Física se torna importante pra levar a essas crianças e jovens a memória motora essencial que nem...que eles necessitam pra viver melhor né viver saudável dormir melhor aprender melhor é: até andar melhor ter postura é questão de saúde pra mim na=na Educação Física pra mim o corpo é questão de saúde de bem estar de viver bem.

O estudante Gm explica o que Am diz perceber no curso ao iniciar sua fala chamando a atenção para as problemáticas que perfazem a “atualidade”. Ele diz que, por conta da “tecnologia”, as crianças não têm “prática corporal”, ou seja, não fazem atividades físicas, o que, para ele, traz como “reflexos” não conseguir “executar atividades simples”. Explica que não movimentar o corpo acarreta falta de saúde, isto é, mesmo que o indivíduo não tenha doenças, ele não é saudável, por apresentar “dificuldades”, como falta de habilidades motoras, pois “tropeçam”, “caem”. Assim, para Gm, “o corpo é questão de saúde”, “de viver bem”, mas não é a um corpo que é social a que ele se refere, mas a um corpo em movimento, ou seja, um corpo que tenha “memória motora”, que tenha sido exposto à prática de atividades que supostamente lhe trarão saúde, um corpo biológico, que aqui é “uma ferramenta essencial” da Educação Física.

Sobre o corpo na Educação Física, Hf diz: “Acho que instrumento é o que mais se encaixa da nossa área porque com ele a gente dá aula a gente aplica aula a gente recebe aula faz aula então basicamente o corpo não sei se ficou claro mas enfim é isso”. Para a universitária, o corpo é “instrumento” da Educação Física, porque com ele abre-se possibilidade de ensino-aprendizagem tanto para o/a aluno/a quanto para o/a professor/a; a discente argumenta que isso é “basicamente o corpo”. De modo semelhante, Df apresenta:

Olhando pro lado corpo assim que os pais sempre falam quando a parte:: sexual do corpo sempre falam ‘ah olha menina não pode fazer isso não pode usar isso porque vai chamar a atenção dos meninos ou não pode usar isso por causa dos professores’ e eu sempre achei isso uma @ um pouco.. uma bobagem assim @ porque eu acho que nas aulas de Educação Física como qualquer outra aula (.) as pessoas têm que aprender respeito assim por mais que na Educação Física seja onde a gente mais utiliza o nosso corpo como=como um material, então eu acho que é isso.

A estudante destaca a erotização do corpo ao suscitar o fato de colocarem as meninas sob vigilância para que elas não apresentem condutas que despertem a “parte sexual do corpo”. Para se contrapor a essa ideia, Df utiliza um argumento utilitarista, reduzindo o corpo a “um material”, de modo que se pode inferir que seu entendimento é de que o corpo é um instrumento da aula de Educação Física.

Sobre o corpo na Educação Física, Fm aponta:

O corpo ele é muito importante na área da Educação Física e:: primeiro o que eu penso não importa o corpo eu acho que acredito que:: que aqui dentro a gente tá tendo a mesma formação o mesmo conteúdo... mas a sociedade não vê assim né [...] então o corpo pra mim interfere, é só questão biológica mesmo questão genética não interfere no conhecimento no ensino e aprendizagem do professor de forma alguma [...]:: a questão do corpo né na aula de Educação Física na aula não do professor de Educação Física ele é muito importante né visto que a gente tem uma história em relação ao culto ao corpo culto ao belo da Educação Física militarista então infelizmente hoje não é enxergado assim né uma visão vamos dizer assim (2) é=é mais atual né que o corpo não interfere na pedagogia na metodologia do professor [...] aqui dentro continua ainda bem=ainda bem ainda é muito discutível não há respeito.

Apesar de iniciar a narrativa afirmando que o corpo “é muito importante” para a Educação Física, a estudante diz que “não importa o corpo”, ou seja, apesar de o corpo ser relevante do ponto de vista do movimento, o biótipo não deve ser o mais importante. Ele afirma que, mesmo que na “sociedade” exista um padrão de corpo aceitável para as práticas corporais, o tipo de corpo é indiferente, pois “é só uma questão biológica” e “genética”.

A segunda posição, cujo nome é “não somos máquinas”, emana das narrativas de três estudantes, Bf, Cm e Ef, que apontam que o corpo é mais do que biológico. A estudante Bf afirma:

Olha além dele ser é:: um corpo como (2) constituído de órgãos de=de=de é:: quando a gente fala assim a gente tem que ter cuidado porque eu penso o corpo como forma integral que falam o corpo de forma global principalmente dentro do curso porque houve muito esse debate né que antes era tratado principalmente quando você levava pra área mais biológica ‘ah o corpo é músculo=músculo por músculo é:: exercício pelo exercício né’ A questão do corpo você não ser só o corpo apenas como físico mas o corpo também a gente vê de=de=de forma não desintegrada né De forma integral de=de trabalhar esse=esse aluno até porque ele não é uma máquina não somos máquinas mas trabalhar todas essas áreas com ele e é por isso que no curso nós temos essa esse grande @poder@ né De=de mas só que nós precisamos utilizá-lo ao nosso favor de poder utilizar as atividades assim como pra tudo a gente precisa se concentrar.

A universitária inicia com a palavra “além” para descrever que o corpo na Educação Física é mais do que “órgãos”. Ela diz pensar o corpo de “forma integral”, “global”, e que esse é um posicionamento que difere da História, em que o corpo era tido “apenas como físico”. Afirma que essas concepções de corpo são debatidas no curso, mas que todas as “áreas” podem ser trabalhadas e que isso é considerado um “poder”. Sobre o debate acerca das concepções de corpo, Ef comenta:

Bom é:: (8) assim tem visões né dentro da Educação Física do que é o corpo né por ser como eu já tinha falado antes também é:: uma=uma (2) Educação Física ainda em evolução né nós temos n’s pensamentos sobre o que é o corpo né desde o apenas biológico né até essa questão né de=de dizer ‘não o corpo é tudo né’ o corpo é como eu já tinha falado maneira de se expressar é dançar é aprender é ensinar né então eu acho que=que tem várias maneiras de pensar o que é o corpo dentro da Educação Física agora eu não posso te falar né o que é certo o que é errado cada pessoa tem uma maneira de dizer né o que é o corpo dentro da Educação Física.

A estudante Ef afirma que há “visões” que transitam “dentro da Educação Física do que é corpo”. Ela pondera que as discussões em torno dessas visões ocorrem porque a Educação Física ainda está em “evolução”. Para a universitária, existem “pensamentos” contraditórios que ora tendem para colocar o corpo como “apenas biológico”, ora tendem para colocá-lo como “tudo”. Todavia, ela pondera que não pode falar “o que é certo ou errado”, pois esse pensamento é subjetivo. Ela pontua que o corpo é um modo de “expressar”, “aprender”, “ensinar”, trazendo à tona o entendimento de corpo como forma de comunicação.

Ainda sobre o debate no interior do curso acerca do corpo, Cm aborda:

Muitas das vezes eu acho que as pessoas ainda estão é:: influenciadas aqui na nossa formação a ver um corpo muito fragmentado que vê um corpo somente as questões fisiológicas aí depois eu já vejo só a patologia aí as vezes eu só vejo o corpo a partir de da=da antropologia eu só vejo o corpo do sujeito a partir da sociologia mas aí as vezes a gente não tá conseguindo ver o corpo a partir desse conjunto de todas nossas=nossas áreas todas essas disciplinas que a gente tá tendo e às vezes as pessoas não tão conseguindo fazer essa relação pra entender mais o nosso aluno esse corpo que tem é:: diversas faces diversas influências.

Ele afirma que há uma influência na formação que os/as fazem ver o “corpo muito fragmentado”, o que coaduna com o posicionamento de Bf, que diz que o corpo está sendo debatido na formação, e com o de Ef, que indica que há visões sobre o corpo. Mas Cm pondera que esses debates muitas vezes fragmentam o entendimento e que não há uma “relação” para que se possa “entender” o/a aluno/a. Defende seu ponto de vista ao final afirmando que o corpo tem “diversas influências”. Ele continua e apresenta sua opinião:

A gente tem que pensar primeiramente que a gente tá trabalhando corpos diferentes=corpos diferentes seja na questão de gênero seja na questão de deficiência seja na questão é:: econômica social seja em questões de patologias então todos os corpos são diferentes ou seja essa diferença que eu vou ter que procurar é:: trazer pra minhas aulas eu vou ter que levar muito em consideração todos esses contextos dos corpos diferentes dentro da minha aula.

Cm apresenta a concepção de “corpos diferentes” para relacionar o corpo à Educação Física. É no ser diferente que o/a professor/a que ele denomina como “eu” deve embasar suas “aulas”, pois é necessário perceber os “contextos” desses corpos. Pode-se inferir que o discente percebe os corpos de formas distintas e que as aulas de Educação Física precisam levar isso em consideração.

É interessante notar neste tópico que os/as estudantes que defenderam o corpo livre ao refletirem apenas sobre o corpo reduzem-no à dimensão biológica quando sua reflexão se volta para o campo da Educação Física. Na primeira posição, “é só uma questão biológica mesmo”, encontra-se um posicionamento mais vinculado à formação e ao curso, em que os/as discentes apontam que é o que conseguem perceber. Nessa posição, surge o conceito de saúde vinculado à Educação Física e à responsabilização dos sujeitos por sua saúde apenas através da prática de atividades físicas. A esse respeito, Soares (2012) pondera que historicamente a Educação Física naturaliza uma visão biológica de sujeito que veicula um ideal de esforço individual para a saúde, de modo que discipline suas vontades e seus gestos e mantenha a ordem.

A segunda posição, “não somos máquinas”, mostra um posicionamento contrário. O corpo se apresenta como integral, como biológico, sim, mas também como social, como comunicador. Essa posição revela o movimento de disputas ideológicas acerca das concepções de corpo e demonstra que há uma intensa mobilidade no interior do curso.

5 Considerações provisórias

O processo de comparação realizado a partir do Método Documentário permite elencar algumas considerações acerca dos sentidos e significados que transitam entre os/as universitários/as do curso de Educação Física no modelo de orientação “binarismo”. Pode-se observar que os/as estudantes possuem uma visão diferenciada entre os significados de corpo e de corpo na Educação Física, o que anuncia uma dissociação e contradição no modo como o corpo é entendido e tratado na formação. Além desse aspecto, evidencia-se que o corpo é apresentado, na maioria das disciplinas, apenas pelo seu viés biológico, o que deixa de levar em consideração as múltiplas vertentes que envolvem o corpo, seu caráter histórico e temporal e as relações de poder que estão presentes e o atravessam.

Outro elemento que emergiu da comparação se refere ao contraste entre posições que revelam abordagens críticas quanto ao corpo, indicando o entendimento a respeito da diversidade e das possibilidades de ensino dos conteúdos e aquelas que demonstram o entendimento de corpo apenas sob uma perspectiva fisiológica e instrumental. Como tensão, indica um movimento entre as vertentes conservadoras do biologicismo e as que supõem o rompimento com esse modo de entendimento presente na área.

Com a investigação, foi possível demonstrar que os cursos de formação na universidade possuem um importante papel na formação de compreensões sobre o corpo, sendo premente refletir se será mantido o reforço à dicotomização entre corpo e sociedade e ao viés biológico ou se será assumido o debate sobre corpo imerso num contexto sócio, político, histórico e cultural, sobre resistências a padrões e a normas, em defesa da liberdade.

Por fim, espera-se que, dentro dessas nuances, esta pesquisa colabore para que futuros/as ou atuantes professores/as se aprofundem naquele que pode ser considerado o objeto de estudo da Educação Física, de modo que possam desenvolver debates e compreensões mais aprofundados sobre o corpo, sobre a educação e sobre as relações de poder que incidem sobre ele.

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Recebido: 25 de Setembro de 2020; Aceito: 04 de Janeiro de 2021; Publicado: 29 de Março de 2021

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Daniella Rocha Bittencourt, Universidade do Estado do Pará, Programa de Pós-Graduação em Educação

https://orcid.org/0000-0003-2577-9033

Mestra em Educação, especialista em Pedagogia da Cultura Corporal e graduada em licenciatura plena em Educação Física pela Universidade do Estado do Pará. Professora efetiva da Rede Básica de Ensino do município de Ananindeua, Pará.

Contribuição de autoria: Desenvolveu a pesquisa e redigiu o texto.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/3710078170355375

E-mail: bittencourt@hotmail.com

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Lucélia de Moraes Braga Bassalo, Universidade do Estado do Pará, Programa de Pós-Graduação em Educação

https://orcid.org/0000-0002-0412-6052

Doutora em Educação pela Universidade de Brasília, mestra em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará e licenciada em Pedagogia pela União das Escolas Superiores do Pará. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará, vinculada ao Departamento de Filosofia e Ciências Sociais.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/6941089571024585

E-mail: lbassalo@uol.com.br

Editora responsável:

Lia Machado Fiuza Fialho

Pareceristas ad hoc:

Evandro Moreira e Bruno Araújo

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