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Educação Matemática Debate

versão On-line ISSN 2526-6136

Ed. Mat. Deb. vol.7 no.13 Montes Claros  2023  Epub 01-Jan-2023

https://doi.org/10.46551/emd.v7n13a01 

Artigos

Desafios de uma estudante de mestrado profissional em Educação Matemática: o que minha experiência permite dizer

Lutieli Rodrigues BotelhoI 
http://orcid.org/0000-0002-0600-7428

João Carlos Pereira de MoraesII 
http://orcid.org/0000-0001-9513-018X

I Secretaria Municipal de Educação de Arroio Grande - Arroio Grande (RS), Brasil. lutieli.luna@gmail.com

II Universidade Tecnológica Federal do Paraná - Curitiba (PR), Brasil. joaomoraes@utfpr.edu.br


Resumo

Desde sua criação, o mestrado profissional permite a reflexão de mestrandos sobre a prática pedagógica em Matemática. Nesse contexto, este artigo enseja analisar os desafios de uma mestranda de um programa profissional em compor a sua intervenção de campo e as ressonâncias desta para a sua profissionalidade. Para tanto, a metodologia apoia-se numa perspectiva narrativa, em que se descreve os pontos significativos do processo de campo do mestrado. Como resultado, percebe-se que o momento de planejamento e o momento de aplicação são fundamentais e marcantes na constituição da profissionalidade em um contexto de mestrado profissional, possibilitando espaços significativos de reflexão e produção da identidade de pesquisador da própria prática. Com o estudo, conclui-se a necessidade de os mestrados profissionais desencadearem discussões sobre a formação dos estudantes-professores que frequentam seus cursos.

Palavras-chave:

Mestrado Profissional. Experiência. Desafios.

Abstract

Since its creation, the professional master's degree has allowed master's students to reflect on pedagogical practice in Mathematics. In this context, this article aims to analyze the challenges of a master's student of a professional program in composing her field intervention and the resonances of this for her professionalism. To this end, the methodology is supported by a narrative perspective, in which the significant points of the master's field process are described. As a result, it can be seen that the moment of planning and the moment of application are fundamental and striking in the constitution of professionalism in a context of professional master's, allowing significant spaces for reflection and production of the identity of a researcher in his own practice. With the study, the need for professional master's degrees to trigger discussions on the training of student-teachers who attend their courses is concluded.

Keywords: Professional Master's; Experience; Challenges.

Resumen

Desde su creación, la maestría profesional ha permitido a los estudiantes de maestría reflexionar sobre la práctica pedagógica en Matemáticas. En ese contexto, este artículo tiene como objetivo analizar los desafíos de una estudiante de maestría de un programa profesional en la composición de su intervención de campo y las resonancias de esto para su profesionalismo. Para ello, la metodología se apoya en una perspectiva narrativa, en la que se describen los puntos significativos del proceso de campo de la maestría. Como resultado, se puede apreciar que el momento de la planificación y el momento de la aplicación son fundamentales y llamativos en la constitución del profesionalismo en un contexto de maestría profesional, permitiendo espacios significativos de reflexión y producción de la identidad de un investigador en su propio práctica. Con el estudio, se concluye la necesidad de que las maestrías profesionales desencadenen discusiones sobre la formación de los estudiantes-docentes que frecuentan sus cursos.

Palabras clave: Máster Profesional; Experiencia; Desafíos.

1 Introdução

Formar-se professora e pesquisadora não é um processo linear e/ou de causas-efeitos predeterminadas. Para nós , essa formação, ao mesmo tempo que é fruto de escolhas do sujeito, é uma composição do acaso. Ela é encontro entre professora e aquilo que o é diferente, estrangeiro (LARROSA, 2011).

Para que esse tornar-se professora e pesquisadora seja discutido, a escolha mais viável que encontramos está no narrar esse processo, uma vez que é nas especificações das processualidades que pontos significativos da formação se sobressaem.

Nesse sentido, esse estudo visa analisar os desafios de uma mestranda de um programa profissional em compor a sua intervenção de campo e as ressonâncias desta para a sua profissionalidade. Para que esse objetivo se consolide, elencamos as seguintes seções do artigo: Referencial teórico, discutindo a ideia de formação docente; Aspectos metodológicos, em que apontamos a perspectiva de análise do artigo; Dissertação constituída, descrevendo a dissertação que deu origem as reflexões; e Análise de dados, apresentando as reflexões produzidas.

2 Referencial teórico

A partir dos estudos da epistemologia da prática (SCHÖN, 1992), no campo da formação docente, promove-se a compreensão que a identidade do professor é composta por saberes. Essa perspectiva coloca em evidência que uma transformação possível no ensino pode ocorrer a partir da reflexão da prática profissional dos sujeitos e dos conhecimentos produzidos no cotidiano escolar.

Ao pensar na prática como construção de conhecimento, Tardif (2000) ressalta que este saber é plural e multidimensional, o que permite concebê-lo como composto por diferentes saberes, oriundos de diferentes fontes e diferentes contextos. Nesse sentido, as práticas intervencionistas em um mestrado profissional configuram-se com um desses contextos e fontes, capaz de potencializar a formação docente.

Nesse sentido, Pimenta (1999) aponta que a constituição dessa identidade toma como característica a mutabilidade e a historicidade da produção da docência. Ou seja, a docência constitui-se como elemento que se transforma conforme as demandas, história e encontros vividos pelo sujeito professor.

Tais encontros são capazes de gerar experiências e afetos. Como aponta Larrosa (2011), por experiência considera-se aquilo que nos passa. Isto é, os encontros que são capazes de produzir ressonâncias e desestabilizar o professor, potencializando a criação e/ou ressignificações de novos saberes docentes. Na condição de ideário formativo, talvez seja essa a intencionalidade dos programas de mestrado profissionais.

Em caminho similar, segundo Roldão (2008), por meio dessas práticas formativas e reflexivas, constitui-se o que se define como profissionalidade docente. Ou seja, o “processo progressivo de construção profissional que segue ao longo de toda a vida ativa do professor” (ROLDÃO, 2008, p. 42 ). A partir desta perspectiva, o curso em mestrado profissional pode potencializar a criação de estratégias e mecanismos para a continuidade da formação docente.

3 Aspectos metodológicos

A discussão apresentada pauta-se em uma abordagem qualitativa (BOGDAN e BIKLEN, 1994), em que se preocupa com as subjetividades e compreensões do vivenciado pela primeira autora ao longo da realização do seu mestrado profissional em Educação. Deste modo, neste artigo, sujeito e pesquisadora entrelaçam-se, ambos se encontram nas escritas do estudo.

A sujeito-pesquisadora-autora da pesquisa é Pedagoga e Mestra em Educação, com diplomações obtidas em uma instituição federal do Rio Grande do Sul. Em ambos os cursos suscitados dedicou-se a estudar a formação docente e o ensino de Matemática para crianças, o que fomenta o seu desejo formativo para o campo da Educação Matemática. Além disso, realiza a sua atuação docente em diversos grupos com crianças dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental da região que reside.

Para a produção de dados, o estudo utilizou-se de uma política narrativa de conhecimento, em que visualizamos a consolidação de poéticas de conhecimento, com o objetivo de

romper com a separação hierárquica entre o discurso que explica e aquilo que deve ser por ele explicado; a separação entre o intelectual (que teria conhecimento da racionalidade do poder e da dominação) e o homem ordinário (o louco, o prisioneiro, o trabalhador, enfim o indivíduo que não teria consciência de sua dominação) (MARQUES e PRADO, 2018, p. 9).

Nesse sentido, conforme Torril (2008), a investigação narrativa consiste no “estudo de como os seres humanos experimentam o mundo, e pesquisadores narrativos coletam essas histórias e escrevem narrativas de experiência” (p. 292). Assim, o narrar da pesquisa é fruto dos atravessamentos experimentados pela professora-pesquisadora do estudo ao longo de sua intervenção no mestrado profissional.

Desta forma, a narrativa de análise de dados é composta por dois momentos: (i) descritivo sobre a dissertação, visando que os leitores conheçam e compreendam a pesquisa realizada ao longo do mestrado profissional; e (ii) analítico da intervenção de mestrado, ressaltando o ato de planejar e as ações da intervenção como dimensões que forjam a profissionalidade da pesquisadora.

4 A dissertação constituída

A dissertação foi constituída como uma pesquisa-ação, problematizada inicialmente pelas vivências da primeira autora com o campo de estágio no curso de Pedagogia e seu trabalho de conclusão de curso, já realizados em uma turma de 1º ano do Ensino Fundamental de uma escola da periferia numa cidade do interior do Rio Grande do Sul.

Conforme Thiollent (1986), a pesquisa-ação embasa-se em questões empíricas e tem sua estrutura associada com uma ação direcionada para compreensão e/ou resolução de um problema de cunho mais coletivo.

Já, para Engel (2000, p. 184), “o processo de pesquisa deve tornar-se um processo de aprendizagem para todos os participantes e a separação entre sujeito e objeto de pesquisa deve ser superada”. Ou seja, os sujeitos passam a participar do processo de pesquisa, deixando de ser apenas um contribuinte e passam a fazer parte da ação de pesquisa, em colaboração com o planejamento de ações que auxiliem na busca da resolução do problema de pesquisa.

Nesse contexto, a partir de uma fase exploratória com entrevistas com a professora e observação no 1º ano do Ensino Fundamental, elaborou-se o seguinte objetivo de pesquisa: Analisar as contribuições do material concreto não estruturado para o ensino de número no 1º ano do Ensino Fundamental em uma escola no interior do Rio Grande do Sul.

Para aprofundamento, realizamos uma fase de teorização, em que se dedicou ao estudo sobre os elementos teóricos centrais da pesquisa, que foram: a formação do conceito de número, o uso de materiais não estruturados para o ensino de Matemática e, ainda, uma revisão de literatura sobre a temática.

Já em terceiro momento, elaboramos a fase de planejamento e intervenção, em que descreve e desenvolve-se a sequência didática de trabalho, a qual é apresentada no Quadro 1.

Quadro 1: Relação de atividades 

Atividade Descrição Material
Usos sociais do número - Discussão sobre usos sociais do número; - Recorte dos códigos de barras de embalagens e desenhar os respectivos produtos. Embalagens
Comparação e Agrupamento de quantidades - Será jogado um dado e o número que sair os alunos devem utilizar para fazer agrupamentos com os palitos de picolé. Palitos de picolé
Comparação e Agrupamento de conjuntos - Discussão comparativa entre dois grupos de tampinhas: maior, menor e igual. Tampinhas de garrafa
Contar quantidades até a centena - Reprodução fictícia de práticas de compra e venda exercidas em um mercado. Cédulas de dinheiro fictícias

Fonte: Dados da Pesquisa

Perante as incursões do campo e as dificuldades e potencialidades da análise da intervenção, alguns pontos significativos da formação da autora-pesquisadora foram suscitados e elencados nas análises a seguir.

5 As análises empreendidas

A partir das intenções da pesquisa, elaboramos um processo (auto)avaliativo da intervenção que emerge do encontro das compreensões da pesquisadora a partir do campo de pesquisa. Para tanto, a pesquisadora releu o diário de campo e retomou lembranças significativas dos momentos da prática pedagógica, relativos a dois momentos: a) planejamento da intervenção e b) atividades desenvolvidas.

5.1 Planejamento da intervenção

Para realizar a construção do planejamento das atividades, eu tive dificuldade por não conhecer a turma profundamente, seus conhecimentos ou necessidades. Embora tenha realizado momentos de observação, considero que outros elementos poderiam ter sido realizados . Entre as estratégias possíveis, poder-se-ia realizar uma avaliação diagnóstica.

Ao referir-se sobre o assunto, Haydt (2000), por exemplo, ressalta que,

no início de cada unidade de ensino, é recomendável que o professor verifique quais as informações que seus alunos já têm sobre o assunto, e que habilidades apresentam para dominar o conteúdo. Isso facilita o desenvolvimento da unidade e ajuda a garantir a eficácia do processo ensino-aprendizagem (p. 20).

Nesse sentido, uma estratégia inicial que trouxesse um diagnóstico sobre o conceito de número produziria elementos interessantes para a intervenção.

Destacamos que a avaliação não deveria ser uma prova sobre números, mas uma ação que, como ressalta Luckesi (2002), representasse nossa concepção pedagógica de atuação.

Assim, considero que elaborei o planejamento sem me aprofundar nos conhecimentos prévios dos alunos sobre o conceito de número. Algumas estratégias iniciais para tal poderiam ser o uso de jogos, roda de conversa ou atividades que problematizassem o conceito.

Contudo, ressalto que, por estarmos em um momento de pandemia, a escola pediu que otimizasse meu tempo com o grupo. Muitas das possibilidades pensadas no início da pesquisa foram reduzidas. Nesse sentido, a intervenção priorizou uma nova ética do ato de pesquisar, em que, por respeito à vida e a saúde, limitou muitas de suas ações.

Por outro lado, ao planejar a intervenção foi gratificante propor atividades que evidenciassem elementos da prática social da comunidade. Relembro, aqui, que conheço a escola e a comunidade que está inserida desde minha graduação, como apontei na introdução da pesquisa. Assim, considero que ter espaço para o debate do conceito de número, discutindo elementos do contexto de vida dos alunos, permitiu que meu fazer pedagógico estivesse atrelado a “um contexto histórico e social que dá estrutura e significado ao que é feito” (WENGER, 1998, p. 47).

Outro ponto relevante para o meu tornar-se professora e pesquisadora foi planejar práticas de sala de aula que se afastassem daquilo que vivi nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Assim como outros pedagogos (MORAES, 2018), minha história de vida com a Matemática é regada de anedotas de professores de Matemática carrascos, exercícios repetitivos e decorebas. Neste contexto, procurei uma ação que viesse com uma possibilidade reflexiva e problematizadora sobre o conceito de número para as crianças, para além das “continhas”.

Quanto ao planejamento com material concreto não-estruturado para o ensino de número, o momento pandêmico dificultou o processo de elaboração de atividades. Tudo o que tocávamos ao longo da intervenção precisava ser esterilizado antes e após o seu uso. Além disso, houve momentos que necessitei parar a intervenção para pedir que os alunos não compartilhassem os objetos. De certo modo, percebi que essa prática inibia os debates em duplas ou grupo, bem como estimulava a individualização na turma.

Mesmo com essa dificuldade, ao fazer o planejamento, senti que contemplava aspectos da realidade dos alunos, uma vez que as atividades foram pensadas com objetos que fizessem parte do contexto de vida destes. Ou seja, conforme aponta Reys (1971), os materiais concretos possibilitam trazer um vínculo dos conceitos com os contextos vividos pelas crianças.

5.2 Atividades desenvolvidas

As atividades foram elaboradas a partir das habilidades elencadas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o 1º ano do Ensino Fundamental sobre o conceito de número. Essa ideia foi pertinente para o desenvolvimento da pesquisa, uma vez que a intenção de uma proposta curricular é gerar sua implementação e impacto nas práticas de ensino e nas aprendizagens dos alunos (SACRISTÁN, 2013).

Contudo, uma das ações passível de ser realizada para ampliar a atuação da intervenção sobre o conceito de número seria a constituição do conceito em uma rede de significados. Conforme Machado (2008), um conceito se forma a partir de uma multiplicidade de relações, aplicações, sentidos, ideias, usos sociais etc. Ou seja, no campo de nossa pesquisa, o conceito de número se faz em sua multiplicidade.

Em meu processo de teorização e planejamento, busquei algumas dessas relações, mas tornar-se-ia interessante a criação de um todo. Quem sabe um mapa do conceito de número, de modo a não perder de vista a totalidade conceitual no cotidiano das atividades e nas interações com o grupo de crianças. Assim, não perderíamos oportunidades de debate em sala sobre relações do conceito de número, mesmo que elas não pertencessem à aula em questão.

Ainda considero relevante problematizar a possibilidade de que as atividades fossem constituídas por uma mesma temática. Percebi que, ao longo do processo, as crianças associavam ações realizadas em um dia com o outro, o que me faz perceber uma continuidade da ação. No entanto, uma ideia potente para a prática pedagógica em Matemática nos Anos Iniciais seria processos de roteirização do ensino (MORAES, 2018). Ou seja, a partir de um tema, criar sequências para produzir mecanismos de ensino. Segundo Moraes (2018), essa ideia permite produzir um situação-fio que conduz a ação docente e que problematiza o objeto de estudo. Ressalto dois exemplos que poderiam contribuir para essa ideia: a pedagogia de projetos (HERNÁNDEZ, 1998) e as sequências didáticas (DOLZ, NOVERRAZ e SCHNEUWLY, 2004).

Quanto à primeira atividade, eu pretendi levar os alunos ao debate sobre as funções dos números (ordem, contagem e código) e seus usos no nosso cotidiano. Entre os pontos positivos desta atividade, aponto a participação da turma. Acredito que a idade das crianças (6 e 7 anos), a minha fala inicial pedindo apoio do grupo e uma intervenção pautada em perguntas, fizeram que o grupo se manifestasse ativamente.

Por outro lado, estranhei as respostas dos alunos sobre “lugares que encontramos números” ser restrita ao ambiente da sala de aula. Torcia para que os alunos citassem outros exemplos, como: peso, altura, brinquedos, documentos pessoais, letreiros etc. Porém, não aconteceu de imediato.

Deste modo, aprendi que a intervenção pedagógica necessitaria acrescentar certos questionamentos inesperados ou, ainda, mudar o rumo ao longo das conversas com a turma. Assim como aponta Nóvoa (2006), na minha condição de iniciante, a sala de aula como campo de pesquisa e docência é um desafio.

Acredito que lidar com inesperado é uma das necessidades tanto do pesquisador quanto do professor iniciante. Nesse contexto, o apoio de outros se tornou fundamental. Muitas retomadas para que essa pesquisa acontecesse foram feitas pelo meu orientador. Muitas retomadas para que a intervenção com os alunos acontecesse foram feitos pela professora da turma. Talvez esse apoio seja reflexo de uma superação ao que Nóvoa (2006) adverte:

[...] se não formos capazes de construir formas de integração, mais harmoniosas, mais coerentes, desses professores, nós vamos justamente acentuar, nesses primeiros anos de profissão, dinâmicas de sobrevivência individual que conduzem necessariamente a um fechamento individualista dos professores (p. 14).

Durante a primeira atividade, ainda, comecei a perceber a necessidade de respeitar o tempo de aprendizagem dos alunos. Acredito que consegui apresentar ao grupo o número não somente como um instrumento de contagem, mas também a ideia de número como código. No entanto, considerei curto o tempo que ofereci para esse debate, devido às dúvidas que o grupo apresentou. Nesse sentido, percebo a necessidade de aprimorar tal elemento em meus processos de pesquisa e de ensino. Ou, como diz Albuquerque (2010), saber lidar com o tempo de aprendizagem dos alunos é uma característica do professor eficaz.

Ao fazer uma retrospectiva dessa atividade e se pudesse sugerir um elemento significativo nesse contexto, diria que meu planejamento viria com “cartas na manga”. Talvez ter a disposição outras atividades que trabalhassem o tema ou, ainda, momentos de rodas de conversa para sintetizarmos o debate. Senti falta, por exemplo, de uma discussão mais aprofundada sobre o conceito de número como código em documentos pessoais.

Na segunda atividade, pedi para que os alunos contassem palitinhos com a mesma quantidade das letras do seu nome. A minha intenção se referia ao trabalho com o ato de contar, comparar e estabelecer relações com as ideias de ”mais que” e ”menos que”.

Entre os pontos positivos deste momento, aponto o interesse e participação do grupo na atividade. Acredito que um dos elementos da situação que a tornaram marcante pauta-se na vinculação da atividade com o nome dos alunos. Segundo o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil, a identidade “é um conceito do qual faz parte a ideia de distinção, de uma marca de diferença entre as pessoas, a começar pelo nome, seguido de todas as características físicas, do modo de agir e de pensar e da história pessoal” (BRASIL, 1998, p. 13). Deste modo, considero que aquilo que é relativo a nós pode ser promotor de interesse do grupo de sujeitos do campo de pesquisa.

Já como ponto negativo, eu ressalto a dificuldade de conter a empolgação do grupo e o excesso de falas, bem como o tempo exacerbado da minha exposição, que tomaram muito espaço da ação pedagógica. Nesse sentido, eu acrescentaria para a pesquisa mais espaços de registros das crianças em papel. Segundo Powell e Bairral (2006),

há alguns anos educadores matemáticos têm explorado a ligação entre a escrita e a matemática, particularmente a escrita como suporte no aprendizado. Objetivos e modos de implementação da escrita no ensino têm sido variados. Dessa variedade distinguem-se duas abordagens: produto e processo-produto. Enquanto na primeira a escrita é usada como um recurso para declarar conhecimento, na segunda ela é considerada um meio de conhecimento. Na primeira, educadores envolvem educandos em atividades escritas para fins que incidem mais na matemática, e, na segunda, nos próprios alunos. Devemos evitar essa polarização. Os indivíduos devem ter oportunidades para analisar seu processo de pensamento, os significados construídos e as formas de raciocínio matemático presentes. O desenvolvimento individual e do pensamento matemático, mediante a escrita, é o que devemos objetivar (p. 50-51).

Neste sentido, considero que incrementaria a minha prática de intervenção mais momentos de escrita, mesmo que estas não fossem de modo formal, mas que permitissem as crianças refletir sobre os próprios pensamentos sobre número.

Quanto ao material concreto não-estruturado, a segunda atividade contou com o uso de palitos de picolé e o elástico de dinheiro. Percebi que este foi o material mais potente no processo de construção da aprendizagem do grupo. Minha compreensão parte do entendimento de Santos, Oliveira e Oliveira (2013), quando ressaltam que o papel do material concreto é desenvolver o raciocínio do aluno e a produção de esquemas e significados conceituais.

A ação de fazer os grupos de palitos (amarradinhos) permitiu um processo de manipulação constante dos objetos, transformando unidades em grupos. Deste modo, vislumbrei que processos cognitivos do conceito de número - contagem, agrupamento, adição etc. - ocorreram em associação com os processos manuais do uso do material.

Além disso, aponto duas questões sobre o uso deste material. A primeira delas é que o maior êxito na realização dessa atividade ocorreu com os alunos com maior dificuldade. Penso que tal fato associa-se com os achados na pesquisa de Selva e Brandão (1998), ao ressaltarem que o material permite que os alunos possuam um apoio na construção de seus pensamentos matemáticos, relacionando, assim, o concreto e o abstrato.

Por sua vez, a segunda questão é que os alunos com maior facilidade quanto ao conceito de número, apresentaram dificuldades em utilizarem o material concreto em sua atuação. Muitos estavam acostumados em apoiar a contagem e agrupamento em cálculos mentais, o que fez os palitinhos tornarem-se objetos que atrapalhavam seus processos de trabalho com o conceito de número.

Na terceira atividade, eu esperava que os alunos conseguissem realizar a contagem sequencial e agrupar os palitos. Considero que alcancei os objetivos esperados para este momento, uma vez que todos os alunos conseguiram contar corretamente e executar as somas solicitadas.

Nesta atividade, elenquei como estratégia significativa para o trabalho com o conceito de número junto aos alunos a relação feita entre o individual e o coletivo. Assim, em alguns momentos houve o debate no grupo, como estava sendo o processo de intervenção até então, e, em outros, tive momentos de conversas individuais com os alunos.

A abordagem coletiva otimizou o meu tempo com a turma, mas, ao mesmo tempo, escondia inferências e falas de alunos mais tímidos. Já a abordagem individual, feita mesa a mesa, apresentou-se significativa para os alunos e, com ela, consegui perceber mais profundamente suas compreensões. No entanto, o olhar individual demandou um tempo e dedicação maior de atuação, bem como um maior controle do grupo de crianças.

Vale ressaltar que neste dia de atuação, eu fiquei com receio de utilizar a reta numérica, apresentada como um possível elemento de apoio para a habilidade numérica, conforme a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017).

Para Ventura (2006), o uso da reta numérica no ensino da Matemática:

1º Possibilita um mais alto nível de ativação mental, no fornecimento de suporte de aprendizado.

2º trata-se de um modelo mais natural e transparente para operações numéricas.

3º Por se um modelo aberto para estratégias informais e fornecer também suporte para a criança desenvolver estratégias mais formais e eficientes;

4º Por ser um modelo que melhora à flexibilidade de estratégias mentais (VENTURA, 2006, p. 53).

No contexto da pesquisa, imaginei que o material poderia tirar o foco dos materiais não estruturados da pesquisa. Contudo, ressalto que talvez a reta numérica pudesse subsidiar uma prática pedagógica em que encorajamos a criança a colocar todos os tipos de objetos, eventos e ações em todas as espécies de relações possíveis (KAMII, 1990).

Na mesma perspectiva de Kamii (1990), quanto ao material concreto não estruturado nessa atividade (palitos de picolé e copos), penso que minha atuação focalizou demasiadamente nas questões que envolvem as respostas coletivas. Eu poderia ter dado mais espaço para que os alunos explorassem o material, construindo os seus agrupamentos como achassem pertinente, elaborando hipóteses e discutindo-as com os colegas da turma. Acabei inferindo que nem sempre a interferência docente/pesquisador imediatista é viável e potente para a construção de ideias pelos alunos.

Na última atividade, eu explorei o uso do mercadinho como estratégia para o ensino de conceito de número. Acredito que por ser uma atividade que imita uma prática da realidade, esta foi à atividade com maior participação e inferências do grupo. Assim, penso que este momento alcançou os pressupostos de Lorenzato (2012), de uma perspectiva que se afasta do tradicional,

dando lugar ao desenvolvimento da inteligência dos aprendizes e à consequente formação de pessoas que saibam discernir, escolher e decidir. Conseguindo ampliar suas visões e questionamentos, não se retendo somente ao contexto de sala de aula os tornando seres autônomos, críticos e reflexivos , p. 58).

Além disso, considero que a proposta do minimercado promoveu uma atitude lúdica para o conceito de número. Essa parte de um olhar imaginativo e criador sobre o contexto social da criança, valendo-se disso para o processo de aprendizagem e desenvolvimento dos conceitos matemáticos no primeiro ano do Ensino Fundamental.

Quanto ao material concreto não-estruturado utilizado nessa atividade, cédulas de dinheiro fantasia, notei que, embora possamos considerar este um potente elemento matemático do cotidiano das crianças, o seu uso no ambiente escolar necessita de uma prática de planejamento como qualquer outro material.

A potência deste material esteve que os alunos reviveram situações reais de uso matemático com as cédulas, a ponto de, até mesmo, imitar momentos vividos no cotidiano. Tal fato permite considerar as cédulas um bom material para o trabalho no ensino de Matemática, uma vez que “apresenta aplicabilidade para modelar um grande número de ideias matemáticas” (LORENZATO, 2011, p. 87)

Por fim, além desses pontos, durante todo o percurso da intervenção, outro ponto marcante no processo de intervenção é que sempre procurei cultivar uma atitude: “estou indo para ouvir, mais do que ser ouvida”. Acredito que essa seja uma atitude de humildade necessária. Não tenho a experiência da professora no trabalho com o ensino de Matemática com crianças do 1º ano. Mesmo que tivesse essa experiência, eu estava numa condição nunca vivida, a de pesquisadora. Assim, eu precisei de calma e de muito apoio da professora e da turma.

6 Considerações finais

Esse artigo emergiu com objetivo de analisar os desafios de uma mestranda de um programa profissional em compor a sua intervenção de campo e as ressonâncias desta para a sua profissionalidade. Como forma de alcançar esse ensejo, utilizou-se uma análise narrativa da prática intervencionista ao longo da realização da pesquisa de mestrado. A narrativa possibilitou dar visibilidade e potência para os acontecimentos do tornar-se professora. Assim, quem somos é fruto das múltiplas experiências, dúvidas e construções da nossa relação com o outro e com os desafios do cotidiano.

A partir da análise, notou-se que dois momentos foram marcantes para a constituição formativa da autoria: o planejamento e a aplicação. Quanto ao planejamento, visualiza-se a necessidade de práticas diagnósticas mais aprofundadas e norteadoras das ações de intervenção. No que se refere a aplicação, a participação do grupo e o espaço de reflexão do mesmo são fundamentais para o êxito da realização da pesquisa.

Contudo, essa pesquisa ressoa alguns limites. O primeiro deles é que essa é a história de uma mestranda. Alguns pontos podem ser vividos e experienciados por outros, mas não há como generalizar que todos vivam as mesmas angústias e desafios. O segundo deles consiste que o olhar sobre o objeto é carregado de subjetividades e tensões próprias de uma iniciante em pesquisa. Talvez aqueles com uma estrada maior nesse mundo tenham desafios outros.

Por fim, considera-se que este artigo pode contribuir para minimizar a ansiedade e angústias de mestrandos que desejam realizar a sua pesquisa de campo, bem como permite potencializar práticas em mestrados profissionais interessadas em uma formação docente continuada e reflexiva de seus estudantes.

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Recebido: 27 de Junho de 2022; Aceito: 28 de Outubro de 2022; Publicado: 01 de Janeiro de 2023

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