SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.28 número56O LUGAR DA VELHICE NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DA EJA: ANÁLISE DE CONHECIMENTOS EM GERONTOLOGIAVIOLÊNCIA ESCOLAR E PRÁTICA PEDAGÓGICA: UMA REVISÃO INTEGRATIVA índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Linguagens, Educação e Sociedade (LES)

versão impressa ISSN 1518-0743versão On-line ISSN 2526-8449

Revista LES vol.28 no.56 Teresina  2024  Epub 21-Mar-2025

https://doi.org/10.26694/rles.v28i57.4118 

Artigo

PRÁTICAS DE LEITURA NA ESCOLA E QUALIDADE NA/DA EDUCAÇÃO

READING PRACTICES AT SCHOOL AND QUALITY IN/OF EDUCATION

PRÁCTICAS DE LECTURA EN LA ESCUELA Y CALIDAD EN/DE LA EDUCACIÓN

Cintia Chung Marques Corrêa1 

Doutora em Educação pela Universidade Católica de Petrópolis (UCP/RJ), Brasil. Professor Assistente da Universidade Católica de Petrópolis (UCP/RJ), Brasil.


http://orcid.org/0000-0002-3091-8942

Fernanda Gonçalves Doro1 

Doutoranda em educação pela Universidade Católica de Petrópolis (UCP/RJ), Brasil. Bolsista da CAPES.


http://orcid.org/0000-0002-4742-3436

1Universidade Católica de Petrópolis


RESUMO

O presente artigo tem por objetivo mostrar como o desenvolvimento de práticas de leitura no ambiente escolar se constitui numa ferramenta essencial para a construção de um sistema educativo de efetiva qualidade, alinhado com o contexto em que os estudantes estão inseridos. Trata-se de um estudo exploratório bibliográfico de cunho qualitativo que buscou esclarecer a conceituação histórica do termo qualidade na/da educação e apresentar as discussões relacionadas aos parâmetros de qualidade a serem adotados no sistema educacional brasileiro a partir de obras de referência de Luiz Fernandes Dourado; Marcelo Mocarzel e Jorge Najjar; e Romualdo Portela de Oliveira e Gilda Cardoso de Araújo. Dessa forma, também, por meio do levantamento bibliográfico, buscou-se a compreensão dos processos que envolvem a leitura como um ato social, ferramenta essencial para a democratização da educação e implantação de uma sociedade mais justa, nas obras de Paulo Freire enquanto que para a discussão acerca da leitura e letramento literário, foram utilizadas as publicações de Magda Soares, Isabel Solé e Rildo Cosson. Conclui-se o artigo, (re) afirmando a estreita relação existente entre os processos de qualidade na/da educação e as práticas de leitura dentro do contexto escolar como uma consequência da educação libertadora, considerando que o domínio da língua escrita e da leitura crítica tornam possível o aumento da qualidade dos resultados das ações educacionais e se manifestam positivamente no meio social, tornando-o mais justo e democrático.

Palavras-chave: Qualidade na/da educação; leitura; educação libertadora

ABSTRACT

This article aims to show how the development of reading practices in the school environment constitutes an essential tool for building an educational system of effective quality, aligned with the context in which students are inserted. This is an exploratory bibliographic study of a qualitative nature that sought to clarify the historical conceptualization of the term quality in/of education and present discussions related to the quality parameters to be adopted in the Brazilian educational system based on reference works by Luiz Fernandes Dourado ; Marcelo Mocarzel and Jorge Najjar; and Romualdo Portela de Oliveira and Gilda Cardoso de Araújo. In this way, also, through the bibliographical survey, we sought to understand the processes that involve reading as a social act, an essential tool for the democratization of education and the implementation of a fairer society, in the works of Paulo Freire, while for In the discussion about reading and literary literacy, publications by Magda Soares, Isabel Sole and Rildo Cosson were used. The article concludes, (re)affirming the close relationship between quality processes in/in education and reading practices within the school context as a consequence of liberating education, considering that the mastery of written language and critical reading they make it possible to increase the quality of the results of educational actions and manifest themselves positively in the social environment, making it more fair and democratic.

Keywords: Quality in/of education; reading

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo mostrar cómo el desarrollo de prácticas lectoras en el ámbito escolar constituye una herramienta esencial para la construcción de un sistema educativo de calidad eficaz, alineado con el contexto en el que se insertan los estudiantes. Se trata de un estudio bibliográfico exploratorio de carácter cualitativo que buscó esclarecer la conceptualización histórica del término calidad en/de la educación y presentar discusiones relacionadas a los parámetros de calidad a ser adoptados en el sistema educativo brasileño a partir de obras de referencia de Luiz Fernandes Dourado; Marcelo Mocarzel y Jorge Nájjar; y Romualdo Portela de Oliveira y Gilda Cardoso de Araújo. De esta manera, también, a través del levantamiento bibliográfico, buscamos comprender los procesos que involucran la lectura como acto social, herramienta esencial para la democratización de la educación y la implementación de una sociedad más justa, en las obras de Paulo Freire, mientras que para En la discusión sobre lectura y alfabetización literaria se utilizaron publicaciones de Magda Soares, Isabel Solé y Rildo Cosson. El artículo concluye, (re)afirmando la estrecha relación entre los procesos de calidad en/en la educación y las prácticas lectoras en el contexto escolar como consecuencia de la educación liberadora, considerando que el dominio de la lengua escrita y la lectura crítica posibilitan incrementar la calidad. de los resultados de las acciones educativas y se manifiestan positivamente en el entorno social, haciéndolo más justo y democrático.

Palabras clave: Calidad en/de la educación; lectura; educación liberadora

INTRODUÇÃO

A educação básica, de acordo com o artigo 208 da Constituição Federal e Emendas 14/96, 53/2006 e 59/2009, é obrigatória e gratuita a todos os cidadãos de quatro a 17 anos de idade, inclusive àqueles que não tiveram acesso na idade adequada. Nesse contexto, é previsto, ainda, atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino. A garantia de qualidade é citada no inciso VII, do artigo 206, como um dos princípios aos quais o ensino deverá ser ministrado. Apesar da ênfase ao tema, o documento não define os parâmetros de qualidade mínima para a aprendizagem ser garantida.

A discussão em torno do tema qualidade na/da educação vem tomando espaço entre acadêmicos, pesquisadores, professores e sociedade em geral, pois, além da imprecisão dos elementos que definem qualidade, a educação sofre transformações ininterruptas com a dinâmica da evolução do mundo e da sociedade. Questiona-se o que é qualidade na educação; como definir os padrões mínimos de qualidade num território tão diversificado geográfica, social e culturalmente como o brasileiro; a quem cabe definir os padrões mínimos de qualidade; quem são os responsáveis por garantir a qualidade na educação; como avaliar a qualidade existente. E embora essas e muitas outras questões sejam calorosamente debatidas nos meios acadêmicos e de pesquisa, os órgãos fiscalizadores do sistema educativo não definiram, oficialmente, os parâmetros de qualidade que as escolas devem oferecer e possuir.

O presente estudo aponta a prática de leitura na escola como um dos princípios que contribuem para o desenvolvimento e a garantia da qualidade na/da educação. Nesse contexto, o exercício da leitura no âmbito escolar envolve não só a prática pela prática, mas diversos elementos indispensáveis para que o trabalho de ensino e aprendizagem da leitura se desenvolva como: profissionais qualificados e valorizados, ambiente adequado à aprendizagem, material pedagógico atualizado, formação continuada para professores e condições de acesso e permanência ao ensino para todos os alunos da educação básica.

Diversos autores e pesquisadores apontam para a relação do desenvolvimento de formação de leitores e incentivo à leitura à melhoria da qualidade na/da educação. Cosson (2019) afirma que o ensino de literatura na escola busca a formação de leitores capazes de inserirem em suas comunidades, manipular instrumentos culturais, dando sentido à vida e ao meio em que está inserido. Assim, o ensino da leitura é capaz de ampliar o universo dos seres humanos, por meio da educação.

Magda Soares foi incansável no sentido de mostrar a relação do trabalho bem desenvolvido de alfabetização e letramento com o avanço da aprendizagem e aprimoramento da qualidade na/da educação básica. Segundo esta grandiosa pesquisadora, o letramento é considerado responsável por produzir resultados importantes aos indivíduos: “desenvolvimento cognitivo e econômico, mobilidade social, progresso profissional, cidadania” (Soares, 2004, p. 74).

A relação existente entre a apropriação de práticas de leitura e o nível de qualidade na/da educação também é comprovada por meio dos resultados das avaliações do Saeb (Brasil, 2022). Embora as evidências utilizadas pelo Saeb tenham sido impactadas pela pandemia do Coronavírus, os resultados em relação ao domínio da leitura e escrita não tiveram mudanças significativas, a maioria dos estudantes avaliados seguem abaixo do nível esperado de utilização da linguagem escrita. Importante ressaltar que a defasagem nos processos de leitura e escrita refletem diretamente na aprendizagem de outras disciplinas. Dessa forma, Souza (2019) atribui ao leitor maduro, a capacidade de redirecionar , confrontar e aproximar o significado de textos em outros textos, mostrando a interdependência do processo de ensino e aprendizagem de diferentes conteúdos.

Partindo desses pressupostos, o objetivo deste artigo é mostrar como o desenvolvimento de práticas de leitura no ambiente escolar se constitui numa ferramenta essencial para a construção de um sistema educativo de efetiva qualidade, alinhado com o contexto em que os alunos estão inseridos. Compreende-se que essas práticas deverão ir muito além do ensino dos processos de decodificação, pois, a ênfase, nessa visão, recai sobre às leituras de mundo, às visões das realidades macro e micro de cada indivíduo, ao fortalecimento da cidadania e ao reconhecimento do sujeito sobre o seu papel como agente político e social.

O exercício de leitura no contexto escolar, neste caso, refere-se à leitura literária e às práticas em que a leitura é utilizada socialmente.

A literatura compreendida criticamente, nas práticas realizadas dentro da escola, faz com que os estudantes possam ir além do consumo superficial de textos literários. Dessa forma, toma-se a leitura literária como um processo de comunicação que, segundo Cosson (2019), demanda respostas do leitor, levando-o a explorar a obra de diversas maneiras, sob os mais variados aspectos, fornecendo “os instrumentos necessários para conhecer e articular com proficiência o mundo feito linguagem” (p. 30).

As práticas de leitura com fins sociais estão relacionadas ao conceito de letramento cunhado por Magda Soares (2004). Segundo a pesquisadora, o termo é compreendido como “o conjunto de práticas sociais ligadas à leitura e à escrita em que os indivíduos se envolvem em seu contexto social” (Soares, 2004, p. 72).

Para a construção deste trabalho, realizamos um estudo exploratório bibliográfico acerca dos temas: qualidade na/da educação; e leitura. Para o primeiro, utilizamos como referência bibliográfica as obras de Luiz Fernandes Dourado (2007); Marcelo Mocarzel e Jorge Najjar (2020); e Romualdo Portela de Oliveira e Gilda Cardoso de Araújo (2005) para esclarecer a conceituação histórica do termo e apresentar as discussões relacionadas aos parâmetros de qualidade a serem adotados no sistema educacional brasileiro. Para o segundo tema, tomamos como base os pressupostos de Paulo Freire (1981), (1987, 1989, 2001) para a compreensão dos processos que envolvem a leitura como um ato social, ferramenta essencial para a democratização da educação e implantação de uma sociedade mais justa. Ao final, buscamos traçar relações entre os dois temas, considerando que ambos são processos que têm o objetivo comum de melhorar a qualidade de vida das pessoas por meio da educação. Além dele, serviram também como arcabouço para a discussão acerca da leitura e letramento literário, publicações de Magda Soares (2004, 2006, 2020), Isabel Solé (1997) e Rildo Cosson (2019).

Na primeira parte do estudo, são abordados os conceitos de qualidade na/da educação a partir da ótica de pesquisadores da área, com a evolução do conceito de qualidade na/da educação e a definição de elementos essenciais para que a educação brasileira possa ser conduzida nos princípios de qualidade.

Na segunda parte, são expostos os conceitos de leitura numa visão ampla e democrática com o objetivo promover a qualidade na educação de forma libertadora, mostrando como as práticas de leitura dentro da escola se constitui num dos instrumentos de construção da qualidade na/da educação.

Ao final, são tecidas algumas considerações buscando relacionar as práticas de leitura na escola aos processos de qualidade na/da educação, em seguida, apresentados as referências utilizadas no estudo.

EDUCAÇÃO E QUALIDADE

A educação é um fenômeno que ocupa diferentes dimensões e espaços da vida social, pois ao mesmo tempo que se constitui por meio das interações sociais, é elemento que compõe essas relações. Segundo Dourado (2007), a educação é perpassada pelos limites e possibilidades da dinâmica econômica, social, cultural e política. Neste contexto, a qualidade na/da educação ocorre numa perspectiva polissêmica, uma vez que envolve múltiplas dimensões, não se limitando apenas às quantidades mínimas de insumos considerados indispensáveis para o desenvolvimento dos processos de ensino e aprendizagem, já que outros importantes elementos devem ser considerados nestas discussões, como as condições de trabalho e valorização, além da motivação e engajamento dos profissionais envolvidos nos processos educacionais.

Por muito tempo, no Brasil, a escola pública atendeu a um público restrito, oferecendo um ensino apropriado apenas à camada mais favorecida da sociedade. Com a expansão das vagas visando atender a todos os sujeitos em idade escolar fez-se necessária a apropriação não só da escola ao novo público, mas de todos os setores que fizessem parte do contexto que possibilitaria a permanência dos estudantes na escola, como transporte, saúde, alimentação, vestuário, cultura, esporte e lazer. Sendo assim “preciso matricular o projeto de vida desses novos alunos numa perspectiva ética, estética e ecopedagógica” (Gadotti, 2010, p. 4), para que se pudesse garantir um ensino de qualidade a todos os estudantes. Porém, o crescimento da demanda de matrículas não foi respaldado pelo investimento adequado no setor educacional, o que impossibilitou um maior desempenho do sistema educacional.

As discussões sobre a qualidade na/da educação se originam da necessidade de atribuir um sentido ao conceito de qualidade. O que deve ser considerado qualidade na/da educação? Quais parâmetros devem ser utilizados para aferir a qualidade de um sistema? Qual o tipo de qualidade adequada ao sistema escolar brasileiro? Enquanto ainda não é definido o padrão de qualidade a ser adotado nas escolas, os sistemas escolares têm tentado se adaptar às exigências dos órgãos superiores que, normalmente, estão ligados aos parâmetros internacionais de educação.

No presente estudo, considera-se que a qualidade adequada a um sistema escolar seja um processo que se constitua mediante a interação constante de diversos atores e de diversos fatores. Dessa forma, a utilização de recursos nesse processo para que haja resultados satisfatórios e a forma de mensuração desses resultados deveriam levar em consideração a diversidade geográfica, social e cultural de cada contexto.

Sabe-se, pois, que diversos órgãos internacionais financiadores de programas educacionais vêm opinando há algumas décadas a respeito dos conceitos de qualidade na/da educação. De acordo com Dourado (2007), a Organização das Nações Unidas para a Educação Ciência e Cultura (UNESCO) e o Banco Mundial têm participado ativamente do apoio técnico e da elaboração de projetos educativos para os países em desenvolvimento. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) mostraram-se bastantes atuantes nesse processo desde as décadas de 1980 e 1990.

Segundo Dourado (2007), para a CEPAL, a avaliação é o meio mais eficaz para o controle das políticas e intervenção no campo educacional. Assim, a qualidade deve ser aferida por meio de avaliações e provas capazes de diagnosticar a situação de cada contexto, norteando os caminhos a percorrer. A CEPAL aponta, ainda, o estabelecimento de parâmetros de referência e ações que visem alcançar o padrão considerado de qualidade, a partir de programas curriculares adequados, capacitação docente, aumento das jornadas escolares e investimento em infraestrutura.

Para a UNESCO, conforme cita Dourado (2007), a ênfase recai sobre a dimensão pedagógica que deve ser efetivada por meio do currículo cumprido. O currículo, nesse sentido, deve levar em consideração as condições, possibilidades e aspirações das distintas populações às quais se insere. Há, ainda, o foco na equidade e na eficiência do uso dos recursos destinados à educação. A avaliação é o meio pelo qual poder-se-ia medir o desempenho dos estudantes, porém, não será suficiente se não houver um trabalho de análise direcionado a esses resultados considerando as diferentes variáveis em torno do fenômeno educativo.

Já o Banco Mundial, priorizando a mensuração da eficiência e eficácia dos sistemas educativos, centra seus projetos na expansão do acesso, na busca da equidade e eficiência interna e na qualidade considerada pela instituição. Assim, o financiamento de projetos pelo Banco Mundial prioriza aqueles que visem a aquisição de livros textos, capacitação de professores, equipamento de laboratório, avaliação de aprendizagem, sistemas de exame, pois esses estariam diretamente ligados à melhoria da qualidade das instituições.

No Brasil, historicamente, a qualidade no ensino vem sendo considerada a partir de três olhares diferenciados. De acordo com Oliveira e Araújo (2005), a princípio, a qualidade esteve ligada ao número de vagas ofertadas; em seguida, passou a ser determinada pelas disfunções no fluxo ao longo do ensino fundamental; um terceiro olhar passou a considerar a generalização de sistemas de avaliação baseados nos resultados dos testes padronizados.

Para o primeiro indicador de qualidade da educação, o critério principal era a oferta de vagas, o que poderia ser resolvido com a construção de prédios, compra de material escolar e contratação de professores, sem levar em consideração a sua formação e as condições de trabalho. Porém, tendo 60% da população brasileira analfabeta na década de 1920, a escola só foi capaz de atender aos interesses de uma minoria privilegiada. Assim, os alunos das classes populares, mesmo tendo acesso à escola, dificilmente conseguiam concluir os estudos, já que as suas experiências culturais não eram consideradas no contexto escolar e todo este processo se tornava complexo e inviável.

O exame de admissão seria um exemplo de obstáculo imposto aos alunos das classes populares para continuarem os estudos. Esse tipo de teste era desenvolvido a partir de provas eliminatórias que davam acesso aos alunos aprovados ao ensino ginasial. O exame de admissão foi extinto pela Lei 5.692/71.

O segundo indicador para o debate da qualidade na educação, segundo Oliveira e Araújo (2005), surgiu na década de 1970. A partir desse período, passou-se a utilizar como critério de análise da qualidade do ensino, a comparação entre o número de alunos que ingressavam no sistema de ensino e o número de alunos que conseguiam concluir o ensino fundamental. Assim, se o número de egressos se mostrasse muito abaixo do número dos ingressantes, todo o sistema estaria com a qualidade comprometida.

Oliveira e Araújo (2005) afirmam que, de acordo com o Ministério da Educação, no final da década de 1980, o índice de reprovação na 1ª série do ensino fundamental chegou a ser de 48%, fora os casos de abandono, cerca de 2% nessa série. Em busca da regularização do fluxo do ensino fundamental, na década de 1990, o governo brasileiro incentivou a adesão aos ciclos de escolarização. A partir da publicação da LDB 9.394/96, houve um declínio nos altos percentuais de matrícula na primeira série do ensino fundamental por repetência e uma distribuição mais equitativa nas outras séries que estiveram cada vez mais próximas do percentual de um fluxo homogêneo. Em relação a aprendizagem, a adoção dos ciclos e a promoção automática pouco contribuíram o que tornou a questão da qualidade ainda mais complexa.

O terceiro indicador estaria ligado à capacidade cognitiva dos estudantes aferida por testes padronizados em larga escala, nos moldes do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB), do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e do Exame Nacional de Cursos, conhecido como Provão, para o Ensino Superior, além do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA). Dessa forma, os sistemas que apresentam um bom desempenho nos exames são considerados de qualidade.

Atualmente, o controle de qualidade na/da educação tem sido citado por alguns importantes documentos que fomentam o sistema de educação brasileiro: Documento de Referência da Conferência Nacional de Educação (MEC, 2009), a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e o Plano Nacional de Educação (PN E).

O Eixo II do Documento de Referência da Conferência Nacional de Educação (MEC, 2009) associa a qualidade da educação aos processos de gestão democrática e avaliação. O documento assinala um conjunto de variáveis que interferem na qualidade na/da educação ligadas às questões macroestruturais como a concentração de renda, desigualdade social, a garantia do direito à educação, a organização e a gestão do trabalho educativo, entre outros.

O documento mais recente voltado à organização curricular do sistema educacional brasileiro, a BNCC, faz uma tímida referência ao tema. No capítulo de introdução, afirma que se espera que a BNCC seja a balizadora da qualidade da educação, no sentido de desenvolver competências para que se possa alcançar qualidade. Em seguida, cita o PNE e a ênfase da meta 7 em garantir a qualidade da educação básica em todas as etapas e modalidades de ensino.

O item 4, do artigo II, da Lei N° 13.005/2014, assinado pela então presidenta da república Dilma Rousseff, prevê a melhoria da qualidade da educação, aprovando o PNE e tomando outras providências. O PNE aponta como estratégia de garantia de qualidade da educação, a pactuação interfederativa para a implantação de diretrizes pedagógicas para a educação básica e para a BNCC. Esses princípios têm o objetivo de nortear as ações para que se atinja as metas de qualidade estabelecidas no documento. E mesmo que o PNE relacione uma série de ações a serem consumadas, o Plano não deixou claro o sentido de qualidade na/da educação, mas sim objetivos a que se pretenderia chegar. Houve, assim, uma preocupação muito grande no aprimoramento de técnicas para que o desenvolvimento de ferramentas avaliativas dos alunos, professores, gestão, sistemas e de comparação externas com outras escolas, outros sistemas e até mesmo outros países.

O item 7.21 da meta 7 do PNE aponta para a definição dos parâmetros mínimos de qualidade dos serviços da educação básica a serem utilizados como referência para infraestrutura das escolas, recursos pedagógicos e insumos, num prazo de até dois anos a partir da publicação do PNE. Em consulta ao relatório do terceiro ciclo de monitoramento das metas do Plano Nacional de Educação, é possível perceber o desenvolvimento de uma análise detalhada sobre a evolução do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) e do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB). Ao que indica o relatório, o resultado do IDEB para o ensino fundamental (anos iniciais) teria sido bastante satisfatório no período de 2007 a 2017, superando as metas estabelecidas. Já a média de desempenho dos alunos do 5º ano em Língua Portuguesa e em Matemática nas avaliações nacionais do SAEB apresentou crescimento na taxa de aprovação, porém, há ainda, um percentual significativo de alunos cuja proficiência estaria situada nos níveis mais baixos das escalas estabelecidas.

Em relação aos anos finais do ensino fundamental, o IDEB, embora tenha apresentado uma trajetória crescente no período de 2007 a 2017, não atinge, desde 2013, as metas fixadas no PN E. A reprovação e o abandono nessa etapa afetaram cerca de 13% dos estudantes. No ensino médio, o IDEB, que desde 2011 era de 3,7, apresentou um crescimento em 2017, para 3,8, continuando, no entanto, abaixo da meta intermediária fixada para esse ano (4,7).

Conforme pôde-se notar, a compreensão em relação ao sentido de qualidade na/da educação pelos órgãos oficiais mostrou-se, historicamente, superficial e incapaz de contribuir para o desenvolvimento do sistema educacional brasileiro de maneira efetiva, com o poder de envolver todas as dimensões que deveriam participar desse processo. Nesse sentido, Mocarzel; Najjar (2020) propõem a adoção de uma nova epistemologia das qualidades na/da educação por meio de um paradigma multidimensional que rompe com uma visão positivista e simplista de pensamento, possibilitando a discussão de qualidades a partir de concepções que congregam percepções distintas, mas igualmente válidas. Os autores citam quatro dimensões simultânea e dialeticamente articuladas, a partir dos trabalhos de Sanders (2007): dimensão econômica, dimensão pedagógica, dimensão política e dimensão cultural.

A dimensão pedagógica detém o seu olhar para os direitos básicos dos estudantes como o acesso e permanência à educação; profissionais atuantes com boa formação inicial e continuada; currículos e materiais didáticos que dialoguem com a diversidade; planejamento e avaliação adequados aos objetivos pedagógicos; garantia da aprendizagem e da formação integral dos sujeitos (Mocarzel e Najjar, 2020), atuando como um elemento de superação das expectativas em relação aos alunos e ao progresso desses.

Na dimensão da eficiência econômica, o enfoque recai sobre os recursos necessários e investimentos substanciais que garantam insumos essenciais aos atos educativos a fim de que se alcance uma educação de qualidade, considerando, assim, essencial o necessário à infraestrutura, profissionais valorizados tanto por meio de planos de carreira quanto pela própria sociedade e gestão eficiente de recursos econômicos.

A dimensão da efetividade política compreende a qualidade na/da educação a partir de um compromisso político, com as devidas mediações. De acordo com Adorno (1995), citado por Mocarzel; Najjar (2020), para que se haja compromisso com a vida e a dignidade humana, a educação deve emancipar e fomentar a consciência crítica. Dessa forma, a educação efetiva se constrói a partir de vínculos com sua dimensão política, no debate sobre cidadania, diversidade e injustiça. Nessa perspectiva, ideias de neutralidade política são nulas, pois nesse contexto, o que se busca é o exercício do pensamento com liberdade e criticidade para que se possa realizar escolhas políticas conscientes, afastando qualquer forma de censura e alienação.

A dimensão de relevância cultural percebe a escola como um espaço de encontro de culturas, onde choques, opressões e inviabilizações podem ocorrer, visto que a diversidade cultural é uma constante dentro do âmbito escolar, o que torna indispensável o respeito às múltiplas culturas dos diferente sujeitos, as culturas que se desenham na sociedade, proporcionando acolhimento e apoio à transformação.

Essas quatro dimensões citadas por Mocarzel; Najjar (2020) são capazes de delimitar fatores essenciais para o crescimento progressivo do sistema educacional brasileiro, uma vez que contemplam as necessidades reais para a melhoria da aprendizagem e qualidade na educação.

Sendo assim, é possível perceber, que as dimensões citadas mensuram os elementos mínimos para que o sistema educativo brasileiro possa se desenvolver de maneira justa e responsável. Além da estrutura física e material, todo o aparato humano é visto como elemento de extrema relevância para o desenvolvimento de práticas de qualidade na educação que levarão a resultados também de qualidade.

As práticas de leitura são vistas nesse contexto como uma das ferramentas voltadas para a construção na/da qualidade na educação. Nesse sentido, a leitura se apresenta como um objeto dinâmico que ao mesmo tempo em que leva os sujeitos ao seu desenvolvimento integral, é o resultado do seu próprio trabalho.

Leitura e escola estão histórica e culturalmente ligadas já que o ensino da leitura é de responsabilidade da instituição escolar e todas as atividades escolares giram em torno da linguagem escrita. Portanto, é natural que, nesse contexto, a leitura se constitua como um nicho a ser considerado dentro do processo de construção da qualidade na/da educação. O próximo tópico tem por objetivo trazer contribuições na discussão sobre a relação do desenvolvimento das práticas de leitura e a construção de uma educação de qualidade.

LEITURA E QUALIDADE NA/DA EDUCAÇÃO

No contexto desta pesquisa, o termo leitura é bastante amplo e não se limita ao ato de decodificação do texto lido. O ato de ler “não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas se antecipa e se alonga na inteligência do mundo” (Freire, 1989, p.11). Assim, considera-se que, muito antes de estar alfabetizado e compreender o que um texto escrito pode representar, os seres humanos, seres sócio histórico culturais, por meio da sua experiência e contato com o ambiente, desenvolvem o seu conhecimento de mundo, vendo, ouvindo, sentindo cheiros e sabores, tocando, tentando entender, participando, interagindo, falando, observando e fazendo a sua “leitura de mundo”.

Para Paulo Freire, “a leitura do mundo precede a leitura da palavra” (Freire, 1989, p. 11), e por isso, é possível constatar que a leitura ocorre a todo momento: lemos o céu pela manhã quando observamos o nascer do sol; lemos as nuvens, buscando fazer previsões de temperatura para o dia; lemos a brincadeira de uma criança com o seu cachorro de estimação; lemos o revoar dos pássaros, sempre unidos seguindo na mesma direção; lemos o cardápio do almoço quando sentimos o aroma que vem da cozinha; lemos o comportamento de uma pessoa e suas atitudes para prevermos suas reações...

Nessa mesma direção, Yunes (2009, p.35) afirma que

Ler é inscrever-se no mundo como signo, entrar na cadeia significante, elaborar continuamente interpretações que dão sentido ao mundo, registrá-las com palavras, gestos, traços. Ler é significar e ao mesmo tempo tornar-se significante. A leitura é uma escrita de si mesmo, na relação interativa que dá sentido ao mundo.

Nessa visão, todos os seres humanos possuem a capacidade de leitura e de interpretação do mundo em conformidade com os seus conhecimentos, suas experiências, seus julgamentos. Ao ler, o sujeito se insere como signo, ou seja, como unidade fundamental de entendimento de um código, seja por meio de palavras, gestos ou traços, escritos ou não, pois pode utilizar os cinco sentidos para fazer a leitura do mundo e também do texto escrito.

Assim, é possível perceber que a leitura não é um conteúdo que se ensina somente na escola, nas aulas de Língua Portuguesa. Ela ocorre também nas experiências vivenciadas no dia-a-dia, nas brincadeiras, nas conversas informais, na compreensão de uma notícia, na maior parte dos momentos da vida do ser humano, pois, conforme Koch (2014, p. 26), o texto ocorre em toda situação comunicativa concreta de interação social, seja ele resultado da linguagem escrita ou não, quando a informação chega ao destinatário, compreende-se a ocorrência de um texto.

A leitura de mundo é ato fundamental para desenvolver um olhar crítico sobre a realidade. Já o exercício da leitura e compreensão do texto escrito é essencial para a imersão do sujeito no mundo contemporâneo e para o exercício da cidadania.

O que se sugere nesse contexto é que a leitura seja uma das ferramentas e um instrumento para se construir um sistema educacional de qualidade, pois ao mesmo tempo em que fornece subsídios para construir uma educação de qualidade, ela é o resultado da própria ação.

A valorização da leitura e da escrita como forma de inclusão social, colocada e discutida por Paulo Freire nas décadas de 1950 e 1960, retomou a pauta de discussões dos pesquisadores da educação na sociedade globalizada. Na década de 1990, os Parâmetros Curriculares Nacionais propuseram o uso da linguagem voltado para a inserção no mundo da escrita de forma a ampliar as possiblidades de participação social no exercício da cidadania. Na segunda metade dos anos 1980, o letramento passou a ser destaque nos estudos relacionados a alfabetização e o seu uso nas práticas sociais.

O conceito de alfabetização tem se modificado ao longo dos anos. Segundo Soares (2020), até meados de 1980, era considerada alfabetizada a pessoa que relacionasse os sons da fala às letras do sistema alfabético, sem a necessidade de serem compreendidos. Somente no final da década de 1980, é que a alfabetização passou a ser considerada um sistema de representação no qual seria preciso compreender o que a escrita representaria e a notação que eram representados os fonemas, tendo como princípio a arbitrariedade.

Para Solé (1997), uma pessoa é considerada alfabetizada quando utiliza com destreza as habilidades de decodificação relacionando o texto lido aos objetivos, ideias e experiências prévias. Já o letramento pode ser visto como o uso das habilidades de leitura e escrita em funções sociais.

Com o desenvolvimento dos estudos das ciências da linguagem, especialmente da Fonética e da Fonologia e da Psicologia do Desenvolvimento e Psicologia Cognitiva, foi também nos anos de 1980 que se percebeu que somente a alfabetização não era capaz de formar leitores e produtores de textos, pois as práticas realizadas na escola não eram as mesmas utilizadas socialmente. Dessa forma, entra em cena o conceito de letramento.

De acordo com Soares (2004), o termo letramento foi utilizado pela primeira vez em 1986, por Mary Kato, em seu livro no mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística. Depois disso, o assunto tomou grande proporção já que a maioria dos pesquisadores da área perceberam que mais do que saber ler era necessário que o sujeito se apropriasse da língua escrita fazendo uso dela nos diversos contextos em que estivesse inserido.

O letramento pode ser compreendido, assim, como “o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita” (Soares, 2004, p. 18). É um fenômeno que contribui para que as pessoas aumentem o controle sobre suas vidas, já que aumenta a capacidade de lidar racionalmente com decisões, facilitando a identificação, compreensão e a ação de transformar relações e práticas sociais de desigualdade social.

Alfabetização e letramento consistem em processos cognitivos e linguísticos diferentes devido à natureza de cada um, porém são compreendidos como processos simultâneos e interdependentes. Assim, a alfabetização se concretiza a partir da “aquisição da tecnologia da escrita – não precede nem é pré-requisito para o letramento”, mas a sua aprendizagem deve estar pautada em atividades de letramento, ou seja, atividades que envolvam “leitura e produção de textos reais, de práticas sociais de leitura e de escrita” (Soares, 2020, p. 21).

Ler, compreendendo o texto é muito importante, mas ler, analisando e desenvolvendo uma capacidade crítica em relação ao conteúdo observado coloca esse processo em outro nível de compreensão. Sendo um fato social, é instrumento de formação da cidadania, porém ler e escrever não garantem a plenitude da cidadania, pois é necessário que se desenvolvam num contexto político, jamais como um “que fazer neutro” (Freire, 2001, p. 30).

O sistema escolar como instituição social responsável por promover os conteúdos disciplinares, deve estar consciente de seu papel, visto que é por meio da educação que se pode alcançar o desenvolvimento cognitivo, econômico, a mobilidade social, a formação profissional e, principalmente, fazer valer a cidadania.

Sendo assim, os usos das habilidades de leitura e escrita possibilitam a transformação da realidade por meio da prática consciente, por serem potentes instrumentos de cidadania. Instrumentos esses que libertam os seres humanos do sistema social engessado de desigualdade de direitos, de falta de respeito e marginalização das minorias. Dessa forma, a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo, mas por uma certa forma de “escrevê-lo” ou “reescrevê-lo”, quer dizer, de transformar por meio da prática consciente. (Freire, 1989, p.13).

Na sociedade contemporânea, a interação com a língua é elemento essencial para que as relações sociais possam ocorrer de forma positiva. Assim, de acordo com Souza; Barbosa (2007), sendo o indivíduo capaz de expressar-se bem, ouvindo o outro e utilizando o seu conhecimento de mundo e da organização dos textos na compreensão das experiências vivenciada, contribui para construção de sentidos e ressignificação da vida.

Saber ler e escrever deixa, portanto, de se referir apenas ao domínio do código e passa a se referir à necessidade do desenvolvimento de um estado ou condição, no qual o indivíduo assuma a postura de interlocutor e participe ativamente das diversas práticas de leitura e escrita na sociedade (Souza; Barbosa, 2007, p. 142).

Compreende-se, então, dentro desse contexto, que o sujeito que domina as ferramentas de leitura e de escrita e as utiliza de forma a interagir na sociedade exercendo a sua cidadania, é um sujeito, além de alfabetizado, letrado. Por isso, muito tem a contribuir Soares (2004), quando afirma que

A leitura do ponto de vista da dimensão individual de letramento (a leitura vista como uma “tecnologia”) é um conjunto de habilidades linguísticas e psicológicas, que se estendem desde a habilidade de decodificar palavras escritas até a capacidade de compreender textos escritos. Essas características não se opõem, completam-se (p. 68).

O sujeito que não tem acesso à educação e não é capaz de realizar a leitura da palavra escrita, não pode exercer os seus direitos de cidadão em sua plenitude, não acessa os bens culturais das sociedades letradas e consequentemente têm seus direitos negados. Ter o domínio da língua escrita aumenta a capacidade de tomar decisões diante de situações diversas do cotidiano e de contextos maiores. Nesse sentido, pode-se ter a ideia da amplitude que o exercício da leitura ocupa na vida dos sujeitos leitores e nos efeitos que exerce sobre a sociedade.

Sendo a leitura um ato político e um fato social a qual a escola é responsável por promover, a discussão em relação ao ato educativo está diretamente ligado ao ensino da leitura e à formação do leitor. Para Paulo Freire (1989), não há como negar a natureza política do processo educativo e é por esse motivo que, no contexto desse estudo, tomou-se por base a educação como objeto de libertação e a leitura sendo uma das ferramentas utilizadas para se alcançar esse fim, pois, “a alfabetização como ato de conhecimento, como ato criador e como ato político é um esforço de leitura do mundo e da palavra” (Freire, 1989, p. 19), o que faz com que não haja mais texto sem contexto.

Assim, levando em consideração que a educação é a única forma pela qual o cidadão se liberta do domínio das classes opressoras, não há como produzir uma educação neutra, já que ela é carregada de ideologia e objetivos sociais. Nesse contexto, é inevitável não pensar em um sistema que leve os estudantes das classes oprimidas das escolas públicas a assumirem a posição de protagonistas da educação e consequentemente da sociedade. Dessa forma, a necessidade de garantir a qualidade na educação por meio do acesso à leitura tomada de forma crítica e construtiva vai realizar o sonho de uma sociedade mais justa e igualitária.

Para Paulo Freire o estudo deve ser percebido a partir do condicionamento histórico-sociológico do conhecimento, buscando relações entre o conhecimento e outras dimensões. Nessa visão, os sujeitos interagem com os conhecimentos já existentes e os conteúdos. “Estudar é uma forma de reinventar, de recriar, de reescrever – tarefa de sujeito e não de objeto” (1981, p. 9). Dessa maneira, a interação com o conhecimento passa pela atitude crítica do estudante. Atitude essa que ele deverá tomar diante do mundo e da realidade.

A prática da leitura dentro da escola deve ser organizada de maneira que todos os alunos possam interagir nas atividades, percebendo que por meio do domínio da língua escrita tomarão seus papéis políticos e sociais nos meios em que estão inseridos. Havendo qualidade na ação de ensinar a língua escrita, o que inclui a leitura, o desenvolvimento da compreensão da realidade e do papel de cada sujeito enquanto cidadão será possível obter-se a qualidade na educação por meio do trabalho eficiente de práticas de leitura. E uma sociedade formada de indivíduos conscientes e capacitados é uma sociedade com a qualidade resultante do trabalho iniciado dentro da escola, por meio de práticas eficientes.

Após as considerações acerca da importância do desenvolvimento de práticas significativas de leitura dentro da escola, é preciso tecer reflexões em torno dos tipos de leituras que serão abordadas nas aulas. É muito importante trabalhar com diversos gêneros textuais, visto que a leitura é compreendida, nesse contexto, a partir da sua função social.

Alguns gêneros são bastante abordados nas escolas, como: carta, listas, notícias, reportagens, texto instrucional, texto publicitário, história em quadrinhos, charges, anúncios, entrevistas. Obviamente, são totalmente necessários para que os estudantes desenvolvam um tipo de reflexão crítica em torno dos assuntos e suas relações. Porém, são os textos literários que têm perdido lugar na escola e no cotidiano das pessoas em razão do avanço das tecnologias digitais.

O processo de leitura, apreensão e reflexão do texto literário na escola é chamado por Cosson (2019) de letramento literário. Esse processo tem como objetivo formar leitores capazes de se inserir na comunidade, interagindo com os instrumentos culturais, construindo sentido para si para o mundo em que vive.

A responsabilidade de formação de leitores de literatura é historicamente atribuída à escola. Magda Soares (2011) afirma que a escolarização da literatura infantil é inevitável, já que esta nasceu atrelada àquela. O livro de literatura infantil e infanto-juvenil é produzido, inevitavelmente, para ser introduzido nas instituições escolares. E a escola faz uso desse material para suplementar as suas metodologias. Portanto, cabe à escola fazer uso desse material em benefício da formação do estudante como leitor e como cidadão.

O texto literário, de acordo com Koch (2014, p. 26), não pode ser visto como uma estrutura acabada, pois deve ser “abordado no próprio processo de planejamento, verbalização e construção”. Dessa forma, é possível perceber que a arte literária é produtora de sentido próprio. Yunes (2009, p. 53), confirma essa tese ao afirmar que a proposta de significação de cada obra só pode ser concluída a partir do encontro dos olhares tanto do autor, quanto do leitor em interação, pois “cada um carrega seus acervos e repertórios que vão se cruzar e atualizar no ato da leitura”. Assim, as práticas desenvolvidas no ambiente escolar devem considerar os múltiplos olhares sobre o texto literário já que “toda leitura é inevitavelmente marca pelos hábitos, expectativas e hipóteses da ‘comunidade interpretativa’ da qual o leitor é membro”. (Jouve, 2012, p. 61).

Tomando o trabalho de desenvolvimento de práticas de leitura no ambiente escolar como uma ferramenta essencial para a construção de um sistema educativo de efetiva qualidade, é essencial um trabalho organizado de maneira a garantir o acesso de todos os estudantes ao domínio e uso da leitura.

O ensino da leitura na escola e o incentivo de sua prática desenvolvidos de maneira responsável contribui para o aumento da qualidade na/da educação, porém, é preciso compreendê-los como parte de um processo em que ações interdependentes são necessárias para que se possa construir um sistema educacional capaz de atender às demandas da sociedade com eficiência. Outros fatores são imprescindíveis, como os já citados neste estudo: profissionais qualificados e valorizados, ambiente adequado à aprendizagem, material pedagógico adequado, formação continuada para professores, condições de acesso e permanência ao ensino para todos os alunos da educação básica, gestão das secretarias e escolas desenvolvidas com competência, entre outros.

Sendo assim, não se pode limitar o potencial das mudanças produzidas no sistema educacional com a introdução da leitura como um instrumento promotor de qualidade na educação, mas também não é possível superestimá-lo, levando a crer que aí está a solução de todos os problemas relacionados à educação.

CONSIDERAÇÕES

Os parâmetros utilizados para a aferição da qualidade na/da educação sempre estiveram atrelados às demandas e os contextos sociais vivenciados em que cada período. Conforme citado anteriormente, os parâmetros são estabelecidos pelos órgãos competentes, porém, além de reunir elementos essenciais para determinada época, sofrem influência de instituições internacionais. Assim, considerando que a qualidade é uma construção plural, que envolve aspectos diversos, compreende-se que o paradigma multidimensional de qualidade na/da educação seja o mais adequado para o contexto atual, a fim de construir as bases que levarão o sistema educacional brasileiro a formar cidadãos competentes não só nos conteúdos escolares, mas também na tomada de postura crítica sobre a realidade em que está inserido, garantindo que a educação seja uma ferramenta de libertação.

O paradigma multidimensional de Sander (2007), citado por Mocarzel; Najjar (2020), apresenta quatro dimensões simultânea e dialeticamente articuladas: dimensão econômica, dimensão pedagógica, dimensão política e dimensão cultural. Observando os aspectos de cada uma dessas dimensões, pode-se afirmar que a prática da leitura perpassa por todas elas de maneira interdependente, o que se faz relevante quando a educação é compreendida a partir da visão libertadora.

A dimensão pedagógica detendo o seu olhar para os direitos básicos dos estudantes, carrega em si a responsabilidade do acesso e permanência do estudante na escola, a valorização do profissional atuante na área de educação, oferecendo formação inicial e continuada adequadas, além da organização pedagógica alinhada aos objetivos almejados e a garantia da aprendizagem e da formação integral dos sujeitos. A leitura, nesse contexto, além de ser um recurso pedagógico, é um dos objetivos do sistema escolar. Dessa forma, se constitui num dos direitos básicos de todo cidadão brasileiro, sendo a sua prática essencial para o desenvolvimento das atividades escolares de forma consciente e crítica.

A dimensão da eficiência econômica trata os recursos e investimentos substanciais que garantem insumos essenciais aos atos educativos para que se alcance uma educação de qualidade, que incluirá infraestrutura, gestão eficiente de recursos econômicos, garantia de profissionais capacitados e valorizados pelo sistema.

Na perspectiva da dimensão da efetividade política, ideias de pseudoneutralidade política são nulas, pois nesse contexto, o que se busca é o exercício do pensamento com liberdade e criticidade para que se possa realizar escolhas políticas conscientes, afastando qualquer forma de censura e alienação. Sendo assim, a apreensão da língua escrita é fundamental para a prática libertadora das consciências ingênuas e crítica dos discursos corrompidos. As práticas de leitura no ambiente escolar capacitarão os sujeitos a compreenderem melhor o contexto social em que estão inseridos e a construírem uma sociedade mais justa.

No paradigma multidimensional cultural, para se ter qualidade, é preciso valorizar e respeitar as múltiplas culturas dos diferentes sujeitos, seja no chão da escola, seja nas políticas públicas educacionais e ter um olhar plural para as culturas que se desenham na sociedade, propiciando acolhimento e transformação (Mocarzel E Najjar, 2020). Além do que, sendo a cultura instrumento da expressão humana, a língua escrita nesse contexto, proporciona o crescimento da exposição cultural já que o ser humano também deixa as suas marcas na sociedade e no mundo por meio dela.

Mediante o que foi exposto nesse trabalho, pode-se perceber a importância das práticas de leitura em todos os setores ligados à promoção da qualidade na/da educação. A organização pedagógica do sistema escolar democrático está pautada na leitura como um meio de análise crítica dos contextos, já a eficiência econômica se organiza para que se atinja um nível de qualidade que seja capaz de suprir as necessidades da educação à serviço da sociedade. Na perspectiva política, será por meio da leitura e da língua escrita que os sujeitos se farão entendedores da realidade social em que estão inseridos e tomarão a dimensão de seus papéis, e o paradigma cultural demonstra por meio da leitura do mundo a compreensão dos indivíduos.

Sendo assim, faz-se necessário um lugar de destaque para essa prática que não só contribui para o aumento da qualidade na/da educação, mas também para o aumento da qualidade na/da sociedade.

A educação na visão libertadora está baseada na práxis e “implica na ação e na reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo” (Freire, 1987, p. 43), compreendendo o homem como ser histórico-cultural, consciente da sua relação com o mundo, capaz de problematizar a realidade e trazer soluções para seu contexto.

Dessa forma, estabelecer uma relação estreita entre os processos de qualidade na/da educação e as práticas de leitura dentro do contexto escolar é uma consequência da compreensão da educação sob a ótica libertadora, pois é por meio do domínio da língua escrita e, consequentemente da leitura crítica, que os sujeitos terão a possibilidade de aumentar a qualidade dos resultados da ação educacional, o que, consequentemente, trará reflexos nos meios em que está inserido.

REFERÊNCIAS

BRASIL. [Constituição (1988)] Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2016. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf. Acesso: 17 jan. 2023. [ Links ]

BRASIL. Documento Referência – Conferência Nacional de Educação. 2009. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/docref.pdf. Acesso em 17 jan. 2023. [ Links ]

BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb). Diretoria de Avaliação da Educação Básica (DAEB). 2022. [ Links ]

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos jurídicos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso: 01 de fevereiro de 2023. [ Links ]

BRASIL. Lei n° 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação -PNE e dá outras providências. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos jurídicos. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13005.htm. Acesso: 17 jan. 2023. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2017. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=79601-anexo-texto-bncc-reexportado-pdf-2&category_slug=dezembro-2017-pdf&Itemid=30192. Acesso: 17 jan. 2023. [ Links ]

COSSON, R. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2019. [ Links ]

DOURADO. Luiz Fernandes. (org.). A Qualidade da Educação: conceitos e definições. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2007. Disponível em: https://www2.unifap.br/gpcem/files/2011/09/A-Qualidade-na-educacao-DISCUSS%C3%83O-N%C2%BA-24.pdf. Acesso: 13 jan. 2023. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Ação Cultural para a liberdade. 5 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. [ Links ]

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1989. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Política e educação: ensaio. 5 ed. São Paulo: Cortez Editora, 2001. [ Links ]

GADOTTI, Moacir. Qualidade na educação: uma nova abordagem. São Paulo: Editora e livraria instituto Paulo Freire, 2010. [ Links ]

JOUVE, V. Por que estudar literatura? Trad. Marcos Bagno e Marcio Maciolino. São Paulo: Parábola, 2012. [ Links ]

KOCH, I. V. O texto e a construção de sentidos. 10. Ed. São Paulo: Contexto, 2014. [ Links ]

MOCARZEL, Marcelo; NAJJAR, Jorge. Qualidade na/da educação como um marco referencial das políticas e práticas educacionais: um enfoque multidimensional. Em Aberto, Brasília, v. 33, n. 109, p. 27-46, set./dez. 2020. Disponível em: http://emaberto.inep.gov.br/ojs3/index.php/emaberto/article/view/4498. Acesso: 17 jan. 2023. [ Links ]

OLIVEIRA, Romualdo Portela de; ARAÚJO, Gilda Cardoso de. Qualidade na educação: uma nova dimensão da luta pelo direito à educação. Revista Brasileira de Educação. nº 28. Jan /Fev /Mar /Abr, 2005 Disponível em: https://www.scielo.br/jj/rbedu/a/t64xS8jD8pz6yNFQNCk4n7L/abstract/?lang=pt. Acesso: 17 jan. 2023. [ Links ]

SOARES, Magda. A escolarização da literatura infantil e juvenil. In: EVANGELISTA, A. A. M.; BRANDÃO, H. M. B.; MACHADO, M. Z. V. (Org.). A escolarização da leitura literária. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. p. 17-48. [ Links ]

SOARES, Magda Becker. Alfaletrar: toda criança pode aprender a ler e a escrever. São Paulo: Contexto, 2020. [ Links ]

SOARES, Magda Becker. Letramento: um tema em três gêneros. 2ed. Belo Horizonte: autêntica, 2004. [ Links ]

SOLÉ, I. Estratégias de leitura. 6ª ed. Porto Alegre: Artmed, 1997. [ Links ]

SOUZA, R. J. de. et al. Leitura do professor, leitura do aluno: processos de formação continuada. UNESP – Presidente Prudente, 2019. Disponível em: file:///C:/Users/profe/Downloads/leituraprofessor.pdf. Acesso: 04 set. 2019. [ Links ]

SOUZA, R. J; BARBOSA, G.A. da S. Leitura e produção de texto na formação continuada de professores alfabetizadores. Linguagens, Educação e Sociedade, Teresina, Ano 22, n. 37, jul./dez. 2017. p. 132-148. Acesso: 11 fev. 2024. [ Links ]

YUNES, Eliana. Tecendo um leitor: uma rede de fios cruzados. Curitiba: Aymará, 2009. [ Links ]

Recebido: 27 de Março de 2023; Aceito: 10 de Janeiro de 2024; Publicado: 17 de Janeiro de 2024

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.