CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O final da década de oitenta e inicio da década de noventa (sec. XX) foram marcados pelos avanços acelerados das tecnologias digitais da informação e da comunicação, que provocaram e continuam provocando significativas transformações alinhadas, sobretudo, ao processo de globalização. Tais transformações desencadearam mudanças de práticas sociais de leitura e escrita no âmbito da vida pessoal/cotidiana, cultural e laboral etc., que passaram a ter forte influência do uso das tecnologias e de múltiplas linguagens.
No contexto educacional e dos estudos linguísticos, esse cenário reverberou nas pesquisas acadêmicas, nos curriculos escolares, nas práticas pedagógicas e em outros campos, inquietando pesquisadores e professores sobre a diversidade cultural e diversidade de linguagens dos textos contemporâneos e a multiplicidade de letramentos que isso implicaria (Rojo, 2019). Foi movido por essas mudanças nas práticas letradas e na multiplicidade de culturas e das novas tecnologias da sociedade contemporânea que um grupo de professores e pesquisadores se reuniu na cidade de Nova Londres (Estados Unidos da América), em 1994, para discutir os rumos da educação linguística naquele momento e nos anos que viriam. O grupo, que ficou conhecido como Grupo de Nova Londres4 (New London Group) — doravante GNL ou NLG, foi formado com o intuito de discutir uma proposta de abordagem de letramento diferente daquela que estava sendo posta pelo currículo tradicional, tendo em vista as transformações que estavam acontecendo na sociedade letrada.
O grupo propôs um redesenhamento da didática de ensino de língua, que deveria passar a considerar a diversidade linguístico-cultural e o desenvolvimento tecnológico. Para o GNL, essas duas dimensões permeavam, mais do que nunca, o contexto pessoal, social e profissional dos cidadãos e fazia-se necessário, portanto, uma abordagem de educação pautada no pluralismo linguístico, na diversidade cultural, bem como em práticas de linguagem que envolvessem as tecnologias da informação e da comunicação. As discussões perduraram por pelo menos dois anos e, em 1996, o grupo publicou um texto — como fruto das discussões — denominado Manifesto da Pedagogia dos Multiletramentos: redesenhando futuros sociais (A pedagogy off multiliteracies: designing social futures).
Mais de vinte anos se passaram e a teoria da Pedagogia dos Multiletramentos continua a se apresentar como uma abordagem didática pertinente, considerando que as questões discutidas pelo grupo continuam a fazer sentido nos dias atuais. Sobretudo pelo fato de que as tecnologias evoluíram — e tendem a evoluir cada vez mais — e, com isso, impactam as formas de interação dos mais diversos grupos sociais. Sob a influência dessa abordagem, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que se apresenta como um documento parametrizador dos currículos da Educação Básica, traz os multiletramentos como uma das diretrizes da área de linguagens. Este documento teve a sua terceira versão homologada em 20 de dezembro de 2017, pelo Ministério da Educação, contemplando as etapas da Educação Infantil e do Ensino Fundamental. E em 2018 foi lançada uma última versão do documento, dessa vez, contemplando as etapas da Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio.
Nesse sentido, o presente estudo, recorte de uma pesquisa de mestrado, de natureza documental, tem como objetivo principal analisar as relações de interferência entre a Pedagogia dos Multiletramentos (Grupo Nova Londres) na BNCC (Brasil, 2018), buscando observar, especificamente, como está caracterizada a proposta de multiletramentos apresentada na BNCC de Língua Portuguesa dos Anos Finais do Ensino Fundamental.
Para a constituição da análise, recorremos ao aporte teórico situado nos trabalhos de Cazden et al (2021); Grupo Nova Londres (2021) 5; Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020) 6; Rojo (2019); Ribeiro (2020), entre outros autores. E por se tratar de uma pesquisa documental de abordagem qualitativa, a metodologia utilizada focou no procedimento de análise e interpretação da fonte documental (BNCC), aliado à revisão bibliográfica. Assim, a análise de conteúdo, apoiada pelo recurso de busca e seleção de palavras-chave contribuíram para a constituição e análise dos dados que se constituem em excertos deste documento oficial.
Considerados estes aspectos introdutórios e mobilizadas pelo objetivo deste artigo, na primeira seção são postos em discussão alguns conceitos e diretrizes relativos à teoria da Pedagogia dos Multiletramentos; na segunda seção, descrevemos a metodologia utilizada na pesquisa; na terceira seção apresentamos e discutimos os resultados do trabalho investigativo; e na última seção, apresentam-se algumas reflexões finais acerca do tema objeto de estudo.
PEDAGOGIA DOS MULTILETRAMENTOS: IMERSÃO NAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM DO SÉCULO XXI
O Manifesto da Pedagogia dos Multiletramentos (A Pedagogy of Multiliteracies: designing social futures), apresentado pelo GNL em um contexto de mudanças globais em diferentes dimensões (ascensão de novas tecnologias da informação e comunicação, processos afirmativos de diversidade cultural e identitária, ampliação do capitalismo neoliberal entre outros aspectos), consiste em um “manifesto programático, como uma espécie de ponto de partida, aberto e provisório” (GNL, 2021, p. 105-106) para se pensar a configuração da educação linguística para os novos tempos.
O GNL (2021, p. 106) considera o manifesto como “[...] uma visão geral teórica do contexto social atual de aprendizagem e as consequências das mudanças sociais para o conteúdo (o “o quê”) e a forma (o “como”) da pedagogia do letramento”. E nessa perspectiva, multiletramentos é a palavra-chave, que desloca o olhar dos estudos do letramento para as diferentes semioses e canais de comunicação, como explicitado na citação a seguir.
Decidimos que os resultados de nossas discussões poderiam ser encapsulados em uma palavra – multiletramentos – palavra essa que escolhemos para descrever dois aspectos importantes em relação à emergente ordem cultural, institucional e global: a multiplicidade de canais de comunicação e de mídia, e a crescente saliência da diversidade cultural e linguística. A noção de multiletramentos complementa a pedagogia do letramento tradicional ao abordar esses dois aspectos relacionados à multiplicidade textual (GNL, 2021, p. 106).
De acordo com essa abordagem, o termo multiletramentos faz referência a dois aspectos fulcrais: às múltiplas formas de comunicação, propiciadas pelo advento das tecnologias digitais, bem como à grande e crescente diversidade cultural e linguística que emergia na sociedade dos anos noventa do século XX. A noção de letramento (no singular) não fazia mais sentido para o GNL, porque já não correspondia às novas demandas e necessidades — que estavam surgindo em razão do processo acelerado de globalização — das sociedades naquele momento e, por isso, tal noção foi ampliada passando a ser considerada em sua forma pluralizada (letramentos). A citação de Kalantzis; Cope; Pinheiro (2020) ampliam a nossa compressão sobre essas mudanças e o papel das Pedagogias críticas nesse processo.
As pedagogias críticas lidam com a ideia de que os letramentos estão no plural, reconhecendo as múltiplas vozes que os aprendizes trazem para a sala de aula, os diversos locais da cultura popular, as novas mídias e as diferentes perspectivas que existem em textos do mundo real. Além disso, defendem a ideia de que os estudantes são construtores de significado, agentes, participantes e cidadãos, que usam a aprendizagem dos letramentos como uma ferramenta que lhes permite maior controle sobre os modos como agem para construir significados em suas vidas, em vez de elemento destinado a torná-los alienados, inundados ou excluídos por textos com os quais não estão familiarizados (Kalantzis; Cope; Pinheiro, 2020, p. 139).
O que estava sendo posto em discussão quando o grupo se propôs a pensar numa renovação do currículo tradicional eram as transformações que estavam acontecendo no mundo de forma muito rápida. Para o GNL, faziam-se necessárias mudanças no âmbito da educação, visto que não era mais concebível e não fazia mais sentido um currículo fechado e tradicionalista diante do mundo globalizado em que as tecnologias digitais estavam avançando rapidamente e afetando diretamente a vida das pessoas em suas dimensões pessoal, social e laboral. Para o grupo, a educação precisava caminhar junto a essas mudanças, uma vez que novas e múltiplas formas de linguagens estavam sendo demandadas pelas diversas agências e esferas sociais, impulsionando mudanças nas atividades humanas e linguageiras no contexto da contemporaneidade.
Diante disso, o grupo explana acerca do que seria necessário ensinar na escola frente a tais mudanças. Momento em que o GNL elege como conceito-chave o termo Design. “O conceito-chave que apresentamos é o de Design, em relação ao qual tanto somos herdeiros de padrões e convenções ligadas aos sentidos/significados quanto somos designers ativos de sentidos” (Cazden et al., 2021, p. 20).
O GNL argumenta que a utilização do termo design se justifica pelo fato de que este não apresenta associação negativa para professores, como ocorre com o termo “gramática”. Portanto, o grupo defende que tal conceito é suficiente para dar aporte tanto a um currículo de linguagem como também a uma pedagogia (GNL, 2021). A definição de design, como argumentam Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020), está atrelada a duas noções: design como substantivo e design como verbo. Como substantivo, faz referência à forma e à estrutura das coisas que existem, sejam elas naturais ou criadas pelos seres humanos. Design como verbo é compreendido no sentido de constituir-se como uma sequência de ações, isto é, o que fazemos na tentativa de representar e comunicar algo.
Queremos trabalhar com essa dualidade de significados para o termo design a fim de destacar dois aspectos intimamente relacionados a esse vocábulo: design como estrutura de significado (as partes que compõem uma oração, um livro, um vídeo, bem como as conexões específicas que mantém essas partes juntas) e design como agência totalmente influenciada e dirigida (nossa intenção de comunicar, a mensagem que criamos e sua interpretação para/por outra(s) pessoa(s) (Kalantzis; Cope; Pinheiro, 2020, p. 173).
Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020) definem representação como a construção de significado que fazemos para nós mesmos, a partir da utilização de um sistema de sinais para “fazer sentido” sobre e com o mundo. Já a comunicação são os sinais que construímos, que podem ser recebidos por outra pessoa em algum momento. “Propomos tratar qualquer atividade semiótica, incluindo o uso da língua, para produzir ou consumir textos, como uma questão de design envolvendo três elementos: designs disponíveis, designing e redesigned” (GNL, 2021, p. 121, grifos do grupo).
Essa estrutura é baseada em uma teoria particular do discurso. Ela vê a atividade semiótica como uma aplicação criativa e combinada de convenções (recursos – Designs Disponíveis) que, no processo de design, transforma, ao mesmo tempo que reproduz, essas convenções (Fairclough, 1992a, 1995). Aquilo que determina (designs disponíveis) e o processo ativo de determinação (designing, que cria o redesigned) estão constantemente em tensão. Essa teoria se encaixa bem com a visão de vida social e de sujeitos sociais em sociedades em rápida mudança e culturalmente diversas [...] (GNL, 2021, p. 120).
Os designs disponíveis são os [...] “padrões de significado disponíveis para nós em forma de herança cultural e ambiental, que se traduzem em convenções de linguagem, imagens, sons, gestos, toques e espaço” (Kalantzis; Cope; Pinheiro, 2020, p. 173). Assim, podemos dizer que os designs estão envoltos em nossas interações sociais, sobretudo, se partimos da premissa bakhtiniana de que toda comunicação humana é mediada por um gênero do discurso. Os gêneros do discurso são compreendidos por Bakhtin (2003) como tipos relativamente estáveis de enunciados, elaborados, por sua vez, conforme a esfera em que a língua é utilizada. Na relação com os estudos dos multiletramentos, o gênero, inicialmente, pode ser concebido como um design disponível, e a nossa forma de utilizá-lo estaria conectada ao processo de designing, em que lançaríamos mão de recursos linguísticos, imagéticos, sonoros, gestuais, táteis e espaciais, por exemplo, para darmos sentido ao que queremos representar e sequencialmente comunicar. [...] “Ao colocar os designs disponíveis para uso, o construtor de significado nunca simplesmente replica ou copia os designs encontrados” (Kalantzis; Cope; Pinheiro, 2020, p. 174). Quando fazemos uso dos designs disponíveis, consequentemente estamos criando algo novo, uma vez que estamos expondo o nosso modo de representar e comunicar algo para alguém em um dado tempo e espaço. Conforme Kalantzis, Cope e Pinheiro (2021, p. 174):
Usamos os recursos de significado que nos estão disponíveis, mas sempre adicionamos algo de nós mesmos, na medida em que expressamos esses significados como nossos. Nesse sentido, sempre recriamos o mundo de uma forma que diz algo sobre quem somos: uma maneira de falar, um estilo de pensamento, um timbre em nossa voz, uma nuance em nossa postura, um tom de argumentação; tudo isso constitui o tipo único de pessoa que somos, as sutilezas de nossa personalidade, o que torna nossos significados tão distintivos uns dos outros.
O resultado desse processo seria o (re)designed, ou seja, [...] “um resíduo, um traço de transformação que é deixado no mundo social do significado” (Kalantzis; Cope; Pinheiro, 2020, p. 176). Para esses autores, a construção de significado é um processo dinâmico. Dessa forma, na abordagem dos multiletramentos, o foco está na fluidez de significados, nas suas diferentes interpretações, bem como na necessidade de negociar esses significados socialmente, “[...] reformulamos significados contínua e ativamente, pois estamos sempre atribuindo sentidos ao mundo de novas maneiras; nossas próprias maneiras” (Kalantzis; Cope; Pinheiro, 2020, p. 171).
Por considerar a construção de significado como um processo dinâmico, a Pedagogia dos Multiletramentos distancia-se da didática tradicional, em que a ênfase está no ensino de língua enquanto código e, portanto, na ideia de que os significados são estáticos. Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020) identificam sete modos de significação: escrito, visual, espacial, tátil, gestual, auditivo e oral. A multimodalidade diz respeito à conexão de todos esses modos. A figura 1 ilustra esses modos de significação.
Essa figura confirma a presença e relações de interconectividade proposta por esses autores, para eles “a multimodalidade é a teoria de como esses modos de significado estão interconectados em novas práticas de representação e comunicação” (Kalantzis; Cope; Pinheiro, 2020, p. 181). Sendo assim, toda representação e toda comunicação é multimodal, por essa razão apresentam os modos de significação de forma interligada. Esses modos de significação foram pensados e organizados, de acordo com os autores, conforme as semelhanças que apresentam em relação a seus vizinhos:
[...] a escrita e a imagem são expressas visualmente, isto é, sua experiência se dá no espaço, que é visual; por isso, imagem e texto escrito podem ser facilmente reunidos em um mesmo local (mais facilmente, na mídia digital, do que nunca); o tátil, por sua vez, é o encontro corporal com objetos no espaço; já o gesto é uma relação corporal com o espaço e uma representação com uma afinidade muito próxima ao toque. O gesto também frequentemente se sobrepõe à fala, colocando em ação dois modos simultâneos e estreitamente interconectados. Os modos escrito, visual, espacial e gestual usam nosso sentido de visão; o modo oral, o sentido da audição; o modo tátil, os sentidos corporais de toque, olfato e paladar; e os modos gestual e tátil, os sentidos de cinestesia ou presença corporal (Kalantzis; Cope; Pinheiro, 2020, p. 182).
Todavia, os autores pontuam que cada modo foi categorizado distintamente, porque cada um deles representa um lugar específico. Isto é, cada modo possui seu sistema próprio de interconexão em relação às demais partes que compõem o significado. Ainda, cada modo faz uso de recursos distintos para representar e comunicar determinado significado. “[...] por exemplo, caneta e papel, teclado, tela de toque, câmera e telefone, dispositivos de gravação de voz e som, vídeos e videogames que capturam gestos e ferramentas para dar às coisas que fazemos textura, gosto e cheiro” (Kalantzis; Cope; Pinheiro, 2020, p. 183).
A hibridização desses modos ficou ainda mais evidente nas novas práticas de comunicação proporcionadas, sobretudo, pelas novas tecnologias digitais e, consequentemente, pela multiplicidade de canais de comunicação. Novos modos de significação foram adicionados a essas práticas de comunicação contemporâneas, requerendo dos sujeitos envolvidos o domínio de múltiplas linguagens, tanto para que possam se comunicar com eficiência, como também para que possam compreender os significados por trás dos recursos multimodais. Dessa forma, o letramento tradicional (da letra e do impresso) não é mais suficiente, uma vez que é preciso lidar, agora mais do que nunca, com práticas e eventos moldados pelas múltiplas linguagens, isto é, pelos multiletramentos.
Diante disso, o GNL sugere que o conceito-chave de design seja trabalhado a partir de quatro componentes pedagógicos, denominados de Prática Situada, Instrução Aberta, Enquadramento Crítico e Prática Transformada. Em aplicações subsequentes às ideias elaboradas pelo GNL, Kalantzis, Cope e Pinheiro (2020) reformularam os componentes pedagógicos mencionados acima. Dessa forma, reorganizaram-os respectivamente, em Experienciando (o conhecido e o novo); Conceitualizando (por nomeação e por teoria); Analisando (funcionalmente e criticamente) e Aplicando (adequadamente e criativamente). Essa reconfiguração na nomenclatura não altera as noções que os termos representam, mas amplia tais noções. No quadro 1, é possível visualizar, de forma sucinta, o que cada um desses componentes pedagógicos representa.
Quadro 1 Processos de conhecimento
Experienciando (o conhecido e o novo) | Relaciona-se com os conhecimentos e experiências dos estudantes. Assemelha-se, assim, com as suas origens culturais e identitárias. Ademais, esse componente pedagógico possibilita a imersão em novas situações de aprendizagens. |
Conceitualizando (por nomeação e por teoria) | Refere-se à processos de categorização de elementos acerca de determinado conceito/conteúdo (por nomeação), como também às generalizações que os aprendizes constroem a partir da categorização dos conceitos de forma interpretativa (por teoria). A metarrepresentação é um elemento importante da conceitualização por teoria. É importante salientar que este processo não implica o desenvolvimento de atividades mecanicistas, nem tampouco transmissão direta (CAZDEN et al., 2021, p. 54). |
Analisando (funcionalmente e criticamente) | Está relacionado às inferências e conclusões dos aprendizes no que concerne aos conceitos apresentados, assim como avaliar de forma questionadora as perspectivas presentes na construção do conhecimento. |
Aplicando (adequadamente e criativamente) | Consiste na aplicação dos conhecimentos adquiridos de forma adequada e criativa. O conhecimento desenvolvido é caracterizado com um resultado provisório — partindo-se do pressuposto de a construção do conhecimento é baseada na ideia de designs e, por isso, não se dá de forma fixa, mas é compreendido como um processo, que está em constante movimento — dos demais processos de aprendizagens. |
Fonte: Elaborado pelas autoras.
É importante ressaltar que esses processos não representam, necessariamente, etapas hierárquicas a serem seguidas rigorosamente. Eles podem, inclusive, acontecer simultaneamente. É possível que em determinados momentos, a depender dos objetivos do professor, um componente pedagógico seja mais focalizado em relação a outro ou ser revisitado em outro momento a depender da necessidade/finalidade pedagógica.
Esses processos de conhecimento são baseados na ideia de que o conhecimento humano é inicialmente desenvolvido a partir das interações que são construídas de forma colaborativa. (Cazden et al., 2021, p. 49). Portanto, representam, basicamente, o caminho a ser trilhado em direção a uma educação linguística apropriada às demandas da vida pessoal, social e profissional dos estudantes. É certo que tal proposta carece, ainda, de um refinamento mais claro, porque como afirma Ribeiro (2020) “tal proposta se ressente da falta de exemplos, daí a importância de um chamamento à experimentação e às tentativas, a fim de refiná-la” (Ribeiro, 2020, p. 12). Ainda assim, a proposta parece nos oferecer um indicativo interessante para repensarmos o modelo atual da educação linguística e experimentarmos novas possibilidades de ensinoaprendizagem (uma vez que a proposta consiste justamente nessa ideia, de experimentar e buscar formas de suplementar modelos pedagógicos pautados em currículos fechados e pouco flexíveis).
Ainda no que tange à noção de multimodalidade, Kress e Leeuwen (1996 [2006]), ao problematizarem a alfabetização unicamente verbal, chamam a atenção para a necessidade da valorização da comunicação visual, sob a justificativa de que as imagens exercem, cada vez mais, um papel de maior significância nos textos que circulam nas esferas sociais escolar, acadêmica, publicitária, jornalística etc. Além disso, os autores problematizam o fato de que a produção de textos multimodais é, paradoxalmente, ignorada pela escola na perspectiva do ensino.
Fora da escola, no entanto, as imagens desempenham um papel cada vez maior, e não apenas em textos para crianças. Seja na mídia impressa ou eletrônica, seja em jornais, revistas, CD-ROMs ou sites, seja como materiais de relações públicas, anúncios ou como materiais informativos de todos os tipos, a maioria dos textos agora envolve uma interação complexa de texto escrito, imagens e outros elementos gráficos. ou elementos sonoros, concebidos como entidades coerentes (muitas vezes no primeiro nível visual em vez de verbal) por meio de layout. Mas a habilidade de produzir textos multimodais desse tipo, por mais central que seja seu papel na sociedade contemporânea, não é ensinada nas escolas (Kress; Leeuwen, 1996[2006], p. 16-17, tradução nossa).7
Embora as proposições enfatizadas por Kress e Leeuwen (1996) sejam válidas para se pensar acerca da importância do trabalho com a linguagem multimodal na escola, é importante ressaltar que há no contexto da educação básica brasileira atual um movimento no âmbito das pesquisas acadêmicas e da formação docente que desencadeiam no âmbito escolar mudanças e iniciativas promissoras na perspectiva de incluírem os textos multimodais como objeto de ensino. Paiva e Coscarelli (2022), ao discutirem acerca de questões relacionadas às demandas enfrentadas pelos professores de Língua Portuguesa no que tange ao trabalho com letramentos digitais, contribuem com iniciativas de projetos que podem orientar os docentes quanto às metodologias de ensino pertinentes a esses aspectos.
No que se refere aos documentos oficiais, a BNCC de Língua Portuguesa dos Anos Finais apresenta como sugestões uma grande diversidade de gêneros discursivos que contemplam práticas de leitura, escrita e oralidade a partir da perspectiva dos multiletramentos e da multimodalidade. Esses gêneros apresentados na BNCC pressupõem mudanças significativas no que tange às práticas pedagógicas de ensino de Língua Portuguesa, especialmente dos Anos Finais do Ensino Fundamental.
Mesmo considerando os avanços das pesquisas e das mudanças quanto ao uso dos artefatos tecnológicos e digitais na escola, as proposições de Kress e Leeuwen (1996 [2006]) ainda são pertinentes, considerando que essas mudanças ainda não atingem o percentual total de escolas brasileiras, situação que confirma-se no período da pandemia, quando muitas escolas, sobretudo na zona rural, não tinham as condições mínimas de funcionamento no modelo remoto ou à distância pela falta de equipamentos e de rede de internet.
Retomando os postulados de Kress e Leeuwen (1996 [2006]), importantes para entendermos as bases de um trabalho com os textos multimodais, podemos dizer, a partir desses autores, que a comunicação visual se fundamenta numa estrutura sintática que pode, portanto, ser objeto de análise assim como acontece com a linguagem escrita. Para isso, os autores baseiam-se na GSF — Gramática Sistêmico Funcional — elaborada por Michael Halliday, em que a língua é concebida como um processo social e a gramática, por sua vez, como um recurso para a construção de significado. A partir de tal noção, os autores propõem a GDS — Gramática do Design Visual, partindo do pressuposto de que assim como há uma gramática para operar nos significados escritos, pode haver também uma gramática que dê conta dos significados visuais, uma vez que esses, igualmente, representam/comunicam significados dotados de padrões e de posições ideológicas.
O FAZER METODOLÓGICO DA PESQUISA
A pesquisa aqui proposta classifica-se como uma pesquisa de abordagem qualitativa do tipo documental. Entendemos que essa abordagem propicia a busca de resposta para a questão problema formulada “[...] a abordagem qualitativa está enraizada na interpretação de uma dada realidade humana em sua totalidade e não na sua quantificação” (Souza; Kerbauy, 2017, p. 31). À abordagem qualitativa interessa os significados e a compreensão dos fenômenos que não podem ser mensurados estatisticamente, indo ao encontro aos objetivos de nossa investigação.
Uma pesquisa documental, de acordo com Gil (2008, p. 51), [...] “vale-se de materiais que não receberam ainda um tratamento analítico, ou que ainda podem ser reelaborados de acordo com os objetivos da pesquisa”. Para Sá-Silva, Almeida e Guindani (2009, p. 5), “a pesquisa documental é um procedimento que se utiliza de métodos e técnicas para apreensão, compreensão e análise de documentos dos mais variados tipos”. Sendo assim, tomamos como objeto de análise de fonte primária o documento da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) de Língua Portuguesa dos Anos Finais do Ensino Fundamental (Brasil, 2018), com o objetivo de analisar nesse documento a proposta para os multiletramentos, focalizando as relações com a Pedagogia dos Multiletramentos (Grupo Nova Londres). Utilizamos como técnica de constituição dos dados a análise de conteúdo — definida por Bardin (1977, p. 31) como [...] “um conjunto de técnicas de análise das comunicações” —, associada ao recurso de seleção e localizador de palavras-chave, buscando encontrar respostas para a pergunta norteadora: Que relações de interferência são observáveis entre a Pedagogia dos Multiletramentos e a proposta de multiletramentos da BNCC do Ensino Fundamental?
A escolha por esta temática justifica-se por duas razões: a primeira deve-se ao fato da BNCC ser o documento parametrizador mais recente no tocante à orientação curricular da Educação Básica e com significativa inserção na formação docente e na escola. Assim, faz-se necessário estudar e debater esse documento a fim de contribuir para os avanços do ensino de Língua Portuguesa, sobretudo no Ensino Fundamental que se constitui a base da formação escolar; a segunda está relacionada ao viés teórico que o documento indica mobilizar, que é o campo teórico da Pedagogia dos Multiletramentos. A considerável abrangência de gêneros discursivos multimodais e o uso de terminologias próprias dessa abordagem nos chamou a atenção para a necessidade de uma análise científica, buscando evidenciar como o campo teórico sobre o qual se sustenta a proposta para o trabalho com os multiletramentos está posto na BNCC. O quadro 2 ilustra o corpus analisado.
Quadro 2 Textos da BNCC tomados como objeto de análise
BNCC – Anos Finais do Ensino Fundamental (BRASIL, 2018) |
a – Língua Portuguesa (BRASIL, 2018, p. 67- 86). b – Campos de atuação — campo jornalístico-midiático (BRASIL, 2018, p. 140), campo de atuação na vida pública (BRASIL, 2018, p. 146), campo das práticas de estudo e pesquisa, (BRASIL, 2018, p. 150) e campo artístico-literário (BRASIL, 2018, p. 156). |
Após o processo de codificação, fizemos a unitarização dos dados e definimos as unidades de análise. Optamos pela definição de unidades de análise por palavras e temas, isto é, relemos o texto a partir dos elementos que decodificamos e buscamos identificar a ocorrência de palavras e temas que interessavam à nossa proposta de pesquisa. Conforme destaca Moraes (1999, p. 5) “a decisão do que será a unidade é dependente da natureza do problema, dos objetivos da pesquisa e do tipo de materiais a serem analisados”. Assim, definimos como categoria de análise o eixo conceitual de “multiletramentos”.
MARCAS DA PEDAGOGIA DOS MULTILETRAMENTOS NA BNCC DE LÍNGUA PORTUGUESA – ANOS FINAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL
O principal argumento que rege a BNCC de Língua Portuguesa (Brasil, 2018) são as transformações nas práticas de linguagem ocorridas neste século devido, sobretudo, ao desenvolvimento das tecnologias digitais da informação e comunicação (TDIC), o que vai ao encontro com a necessidade de uma prática pedagógica ancorada nos multiletramentos. No componente curricular de Língua Portuguesa (Brasil, 2018), o texto assume o centro do trabalho pedagógico, se apoiando numa perspectiva enunciativo-discursiva e, para isso, a orientação é de que os gêneros discursivos/textuais devam ser concebidos como núcleo do ensino da língua e desenvolvimento das práticas de letramentos. Nesse sentido, a BNCC argumenta em prol do “desenvolvimento de habilidades de leitura, escuta e produção de textos em várias mídias e semioses” (Brasil, 2018, p. 67).
Essa perspectiva concebe a linguagem como uma ação que se estabelece sempre de forma interindividual, isto é, a linguagem é compreendida como um processo dialógico que se desdobra nas práticas sociais. Diante da perspectiva de linguagem assumida pela BNCC, já identificamos um prenúncio de interlocução entre esse documento e a teoria dos multiletramentos do GN L, quando considera o lugar das várias mídias e semioses no desenvolvimento das habilidades de leitura, escuta e produção de textos.
Visando compreender como a noção de multiletramentos está posta na BNCC de Língua Portuguesa dos Anos Finais do Ensino Fundamental, iniciamos o nosso percurso investigativo fazendo uma busca — utilizando o recurso localizador de palavras — pelo termo “multiletramentos”. Para isso, fizemos um recorte do documento e extraímos dele apenas o conteúdo referente ao componente de Língua Portuguesa dos Anos Finais do Ensino Fundamental. Identificamos três ocorrências do termo “multiletramentos” no texto introdutório (Brasil, 2018, p. 67-86). Nosso objetivo, ao fazermos a busca pelo termo não foi, necessariamente, quantificar, mas entender em que momentos a BNCC o utiliza e com que propósito. O primeiro registro aparece no excerto que compõe o exemplo 1, a seguir.
Exemplo 1
Essa consideração dos novos e multiletramentos; e das práticas da cultura digital no currículo não contribui somente para que uma participação mais efetiva e crítica nas práticas contemporâneas de linguagem por parte dos estudantes possa ter lugar, mas permite também que se possa ter em mente mais do que um “usuário da língua/das linguagens”, na direção do que alguns autores vão denominar de designer: alguém que toma algo que já existe (inclusive textos escritos), mescla, remixa, transforma, redistribui, produzindo novos sentidos, processo que alguns autores associam à criatividade. Parte do sentido de criatividade em circulação nos dias atuais (“economias criativas”, “cidades criativas” etc.) tem algum tipo de relação com esses fenômenos de reciclagem, mistura, apropriação e redistribuição (Brasil, 2018, p. 70, grifos nossos).
No primeiro registro, com termos em destaque no exemplo 1, a BNCC apresenta a noção de multiletramentos associada às múltiplas formas de comunicação e, consequentemente, às práticas de linguagem, propiciadas, sobretudo, pela ascensão da cultura digital. Percebemos que essa perspectiva da BNCC, tal como se apresenta no enunciado, dialoga estreitamente com o que defende a Pedagogia dos Multiletramentos, qual seja uma reformulação dos currículos de línguas (no sentido de suplementá-los), visando a implementação de práticas que estejam em consonância com as necessidades da sociedade contemporânea.
Ainda no mesmo excerto, dois outros termos foram destacados, a saber: práticas contemporâneas de linguagem e designer. Quanto ao termo designer (derivado do termo design proposto pelo Grupo Nova Londres), a BNCC ao utilizá-lo o associa ao perfil de alguém que é mais do que usuário da língua/linguagem, isto é, alguém que se apropria de algo que já existe, transforma e atribui/produz novos significados. Esse movimento denominado de designer inclui textos escritos, como a própria BNCC enfatiza e pode ser compreendido também como um tipo de reescrita. O termo design corresponde ao “o quê” da Pedagogia dos Multiletramentos e remete, segundo Kalantzis, Cope, Pinheiro (2020) tanto à forma e à estrutura das coisas que existem, como ao processo de ação, de recriar algo à nossa própria maneira. Esse conceito é justificado a partir da compreensão de que há uma dinamicidade nos significados que produzimos, que perpassam os vários modos (multimodalidade) de significação dos textos.
Embora nosso objetivo fosse observar a ocorrência do termo multiletramentos, destacamos os termos práticas contemporâneas de linguagens e designer por compreendermos que ambos estão estreitamente conectados à noção de multiletramentos pensada pelo GNL e, além disso, são utilizados pela BNCC de forma complementar a tal noção.
A segunda ocorrência do termo “multiletramentos” é demonstrada no excerto seguinte.
Exemplo 2
Da mesma maneira, imbricada à questão dos multiletramentos, essa proposta considera, como uma de suas premissas, a diversidade cultural. Sem aderir a um raciocínio classificatório reducionista, que desconsidera as hibridizações, apropriações e mesclas, é importante contemplar o cânone, o marginal, o culto, o popular, a cultura de massa, a cultura das mídias, a cultura digital, as culturas infantis e juvenis, de forma a garantir uma ampliação de repertório e uma interação e trato com o diferente (Brasil, 2018, p. 70, grifos nossos).
Neste exemplo, o termo “multiletramentos” aparece de forma associada à diversidade cultural, contemplando a segunda dimensão do significado dos multiletramentos, proposto pelo GNL. A diversidade cultural é, segundo Kalantzis, Cope, Pinheiro (2020) um recurso social no tocante à formação de novos espaços e pode, ainda, ser fortemente abordada em sala de aula porque vai em direção de uma pedagogia plural do ponto de vista linguístico e cultural. Nesse sentido, a BNCC, ao trazer a noção de diversidade cultural, reconhecendo-a como uma premissa dos multiletramentos, ratifica, mais uma vez, seu viés teórico que se alinha à Pedagogia dos Multiletramentos.
O terceiro registro do termo multiletramentos aparece num excerto correspondente ao eixo da leitura (p. 72). Nele, os multiletramentos são associados às mudanças ocorridas nas práticas sociais em detrimento das tecnologias, do hipertexto, da hipermídia e da web 2.0, que possibilitaram o surgimento de novos gêneros textuais/discursivos e com eles novas e múltiplas formas de leitura e interação. Nesse excerto, é enfatizado, ainda, o conceito de reconfiguração do papel de leitor que, perante esse cenário da cultura digital, passa a ser também produtor de novos significados. Vejamos como isso se apresenta no exemplo 3:
Exemplo 3
Refletir sobre as transformações ocorridas nos campos de atividades em função do desenvolvimento das tecnologias de com unicação e informação, do uso do hipertexto e da hipermídia e do surgimento da Web 2.0: novos gêneros do discurso e novas práticas de linguagem própria da cultura digital, transmutação ou reelaboração dos gêneros em função das transformações pelas quais passam o texto (de formatação e em função da convergência de mídias e do funcionamento hipertextual), novas formas de interação e de compartilhamento de textos/conteúdos/informações, reconfiguração do papel de leitor, que passa a ser também produtor, dentre outros, como forma de ampliar as possibilidades de participação na cultura digital e contemplar os novos e os multiletramentos (Brasil, 2018, p. 72, grifos nossos).
Como dito anteriormente, o excerto referente ao exemplo 3, que traz o termo “multiletramentos”, aparece numa seção direcionada ao eixo de leitura. Nos textos direcionados aos demais eixos analisados (produção de textos e oralidade) não há ocorrências do termo. O que não quer dizer, necessariamente, que a noção de multiletramentos não seja contemplada nesses eixos, dado que tal noção pode estar contemplada sob outras roupagens, a partir da utilização de outros termos e ideias que correspondam, em alguma medida, aos pressupostos da teoria dos multiletramentos. Todavia, entendemos que as lacunas terminológicas nos eixos de produção de textos e de oralidade, também orientadores do ensino de língua no Ensino Fundamental, poderão repercutir de forma negativa na compreensão e no trabalho docente, uma vez que a presença implícita da noção de multiletramentos nesses eixos tendem a induzir o professor a focalizar os multiletramentos apenas na perspectiva do eixo da leitura, onde eles se apresentam de forma contundente.
Ademais, nos três primeiros exemplos apresentados, identificamos que é estreita a relação entre a BNCC e o Manifesto Programático da Pedagogia dos Multiletramentos, visto que o documento parece estar revestido teoricamente de proposições já pensadas pelo Grupo Nova Londres há quase três décadas e que ainda assim continuam atuais. Ao que se vê nestes exemplos, a BNCC tem como eixo norteador a ideia de uma prática de ensino de Língua Portuguesa que possibilite aos alunos do Ensino Fundamental compreender a pluralidade de linguagens contemporâneas que perpassam todas as dimensões da vida social.
O discurso da BNCC de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental se sustenta, sobretudo, sob a justificativa de que o ensino de língua materna deve proporcionar experiências que contribuam para a ampliação dos letramentos, de forma que torne possível a participação significativa e crítica do estudante nas diferentes práticas sociais permeadas e constituídas pela oralidade, escrita e outras linguagens (BRASIL, 2018, p. 67, grifo nosso). Inclusive, o documento concebe a ideia de letramentos (em sua forma pluralizada) assim como tratam alguns autores em estudos recentes como Kalantzis, Cope, Pinheiro (2020).
No excerto que segue, o documento enfatiza essas práticas de linguagem contemporâneas e acrescenta os gêneros e textos multissemióticos e multimidiáticos, evidenciando as possibilidades que essas novas práticas de linguagem trazem e ressaltando a influência das novas tecnologias no tocante às práticas linguageiras. Observemos:
Exemplo 4
As práticas de linguagem contemporâneas não só envolvem novos gêneros e textos cada vez mais multissemióticos e multimidiáticos, como também novas formas de produzir, de configurar, de disponibilizar, de replicar e de interagir. As novas ferramentas de edição de textos, áudios, fotos, vídeos tornam acessíveis a qualquer uma produção e disponibilização de textos multissemióticos nas redes sociais e outros ambientes da Web. Não só é possível acessar conteúdos variados em diferentes mídias, como também produzir e publicar fotos, vídeos diversos, podcasts, infográficos, enciclopédias colaborativas, revistas e livros digitais etc. Depois de ler um livro de literatura ou assistir a um filme, pode-se postar comentários em redes sociais específicas, seguir diretores, autores, escritores, acompanhar de perto seu trabalho; podemos produzir playlists, vlogs, vídeos-minuto, escrever fanfics, produzir e-zines, nos tornar um booktuber, dentre outras muitas possibilidades. Em tese, a Web é democrática: todos podem acessá-la e alimentá-la continuamente. (Brasil, 2018, p. 68).
A diversidade de gêneros (podcasts, infográficos, vlogs, fanfics, por exemplo) apresentadas na BNCC só reafirma a preocupação e a necessidade de se preparar estudantes para que participem efetivamente das interações sociais em que a comunicação tem se caracterizado cada vez mais multimodal. Esses gêneros refletem situações reais de comunicação, mediadas, agora mais do que nunca, pelas mídias contemporâneas. Esse aspecto é importante porque desperta nos estudantes o interesse em se engajar com textos que encontram também fora da sala de aula.
No excerto exemplificado a seguir, observamos, mais uma vez, as marcas das proposições do GNL. Analisemos:
Exemplo 5
Uma parte considerável das crianças e jovens que estão na escola hoje vai exercer profissões que ainda nem existem e se deparar com problemas de diferentes ordens e que podem requerer diferentes habilidades, um repertório de experiências e práticas e o domínio de ferramentas que a vivência dessa diversificação pode favorecer. O que pode parecer um gênero menor (no sentido de ser menos valorizado, relacionado a situações tidas como pouco sérias, que envolvem paródias, chistes, remixes ou condensações e narrativas paralelas), na verdade, pode favorecer o domínio de modos de significação nas diferentes linguagens, o que a análise ou produção de uma foto convencional, por exemplo, pode não propiciar (Brasil, 2018, p. 69).
O GNL parte dessas proposições e reflete acerca de como propor uma educação linguística consoante a nova linguagem produzida no mundo do trabalho, mas, ao mesmo tempo, preocupa-se com a formação de sujeitos críticos para atuar no mundo do trabalho moldado pelos ideais capitalistas. Dessa forma, embora o argumento da BNCC se assemelhe ao que o GNL propõe, é preciso um olhar cuidadoso no tocante ao que o documento traz no excerto exemplificado, justamente para que não seja reproduzido, no âmbito escolar, um discurso de ensino pautado num modelo de educação tecnicista. Inclusive, o GNL afirma que, enquanto professores, não podemos simplesmente ser tecnocratas, tampouco, produzir trabalhadores dóceis. “Os alunos precisam desenvolver a capacidade de falar abertamente, de negociar e se envolver criticamente com as condições de suas vidas profissionais.” (GNL, 2021, p. 111).
Outra marca da interferência dos pressupostos da Pedagogia dos Multiletramentos na BNCC, diz respeito a outra categoria organizadora do currículo de Língua Portuguesa: os campos de atuação. Observemos isso no exemplo 6 que segue:
Exemplo 6
Como já destacado, os eixos apresentados relacionam-se com práticas de linguagem situadas. Em função disso, outra categoria organizadora do currículo que se articula com as práticas são os campos de atuação em que essas práticas se realizam. Assim, na BNCC, a organização das práticas de linguagem (leitura de textos, produção de textos, oralidade e análise linguística/semiótica) por campos de atuação aponta para a importância da contextualização do conhecimento escolar, para a ideia de que essas práticas derivam de situações da vida social e, ao mesmo tempo, precisam ser situadas em contextos significativos para os estudantes (Brasil, 2018, p. 84).
Aqui, a BNCC ressalta o fato de que as práticas de linguagem se organizam por campos de atuação, que implica, segundo o próprio documento, numa contextualização entre a vida escolar e contextos significativos da vida dos estudantes. Os campos de atuação para os Anos Finais são quatro: artístico-literário, práticas de estudo e pesquisa, jornalístico-midiático e atuação na vida pública. Os campos de atuação relacionam-se à perspectiva da Pedagogia dos Multiletramentos à medida que contemplam tipos e gêneros textuais/discursivos e habilidades linguístico-discursivas relacionadas às dimensões da vida profissional, pública e privada. O campo jornalístico-midiático, por exemplo, corresponde às práticas de linguagem vinculadas à informação, cujo objetivo é estimular as crianças, os adolescentes e os jovens a terem interesse pelos fatos que acontecem cotidianamente e que afetam, consequentemente, toda a sociedade. Observemos como esse campo está descrito na BNCC, conforme o excerto apresentado no exemplo 7.
Exemplo 7
Trata-se, em relação a este Campo, de ampliar e qualificar a participação das crianças, adolescentes e jovens nas práticas relativas ao trato com a informação e opinião, que estão no centro da esfera jornalística/midiática. Para além de construir conhecimentos e desenvolver habilidades na escuta, leitura e produção de textos que circulam no campo, o que se pretende é propiciar experiências que permitam desenvolver nos adolescentes e jovens a sensibilidade para que se interessem pelos fatos que acontecem na sua comunidade, na sua cidade e no mundo e afetam as vidas das pessoas, incorporem em suas vidas a prática de escuta, leitura e produção de textos pertencentes a gêneros da esfera jornalística em diferentes fontes, veículos e mídias, e desenvolvam autonomia e pensamento crítico para se situar em relação a interesses e posicionamentos diversos e possam produzir textos noticiosos e opinativos e participar de discussões e debates de forma ética e respeitosa (Brasil, 2018, p. 140).
O campo jornalístico-midiático propõe uma prática de linguagem voltada ao estímulo do senso crítico dos estudantes por meio de experiências escolares que possibilitem o contato com gêneros jornalísticos pertencentes a diferentes fontes e mídias. Esse campo apresenta uma proposição de grande relevância, especialmente porque propõe um trabalho de língua pautado em questões que estão envoltas no nosso cotidiano e requerem de nós posicionamento crítico, uma vez que afetam direto e/ou indiretamente as nossas vidas. E nesse campo se enquadram os gêneros textuais/discursivos constituídos a partir de uma variedade de modos de significação (multimodalidade), a reportagem é um exemplo disso, onde se articulam escrita, imagem e efeitos gráficos, como o tamanho da letra, que vão demandar do aluno leitor um conjunto de estratégias de leitura e de compreensão.
Um outro campo presente na BNCC é o campo de atuação na vida pública, que compreende práticas sociais linguageiras relacionadas às questões políticas e sociais, vejamos o exemplo 8:
Exemplo 8
Trata-se, neste Campo, de ampliar e qualificar a participação dos jovens nas práticas relativas ao debate de ideias e à atuação política e social, por meio do(a):
- compreensão dos interesses que movem a esfera política em seus diferentes níveis e instâncias, das formas e canais de participação institucionalizados, incluindo os digitais, e das formas de participação não institucionalizadas, incluindo aqui manifestações artísticas e intervenções urbanas;
- reconhecimento da importância de se envolver com questões de interesse público e coletivo e compreensão do contexto de promulgação dos direitos humanos, das políticas afirmativas, e das leis de uma forma geral em um estado democrático, como forma de propiciar a vivência democrática em várias instâncias e uma atuação pautada pela ética da responsabilidade (o outro tem direito a uma vida digna tanto quanto eu tenho);
- desenvolvimento de habilidades e aprendizagem de procedimentos envolvidos na leitura/escuta e produção de textos pertencentes a gêneros relacionados à discussão e implementação de propostas, à defesa de direitos e a projetos culturais e de interesse público de diferentes naturezas.
Envolvem o domínio de gêneros legais e o conhecimento dos canais competentes para questionamentos, reclamação de direitos e denúncias de desrespeitos a legislações e regulamentações e a direitos; de discussão de propostas e programas de interesse público no contexto de agremiações, coletivos, movimentos e outras instâncias e fóruns de discussão da escola, da comunidade e da cidade (Brasil, 2018, p. 146).
Esse campo traz uma série de questões que perpassam as esferas políticas e sociais. Essas esferas compreendem, por sua vez, temas de interesse coletivo como a defesa de direitos, políticas afirmativas, leis, estado democrático, dentre tantas outras temáticas que constituem a esfera da vida pública. Nesse sentido, o campo propõe o desenvolvimento de habilidades de leitura/escuta e produção de textos a partir de gêneros textuais/discursivos que possibilitem o encontro dos alunos com tais temáticas.
Os campos jornalístico/midiático e o de atuação na vida pública remetem à dimensão da vida pública (letramentos para a cidadania), conforme a Pedagogia dos Multiletramentos, e se relacionam à interesses da coletividade, buscando desenvolver habilidades no aluno que possa torná-lo um leitor e produtor de textos atuante na sociedade, capaz, inclusive, de identificar uma fake News e agir criticamente sobre ela.
O terceiro campo de atuação — o campo das práticas de estudo e pesquisa — tem como finalidade ampliar a participação dos jovens nas práticas referentes ao estudo e à pesquisa. Para isso, nesse campo são sugeridas atividades que compreendam a esfera científica e escolar, por meio de gêneros que estejam relacionados à essas esferas, bem como atividades que estejam direcionadas ao domínio de práticas que compreendam o mundo físico e social visando o prosseguimento dos estudos e à formação para o trabalho. O exemplo, a seguir, confirma tal proposição da BNCC. Observemos:
Exemplo 9
Trata-se de ampliar e qualificar a participação dos jovens nas práticas relativas ao estudo e à pesquisa, por meio de:
- compreensão dos interesses, atividades e procedimentos que movem as esferas científica, de divulgação científica e escolar;
- reconhecimento da importância do domínio dessas práticas para a compreensão do mundo físico e da realidade social, para o prosseguimento dos estudos e para formação para o trabalho; e
- desenvolvimento de habilidades e aprendizagens de procedimentos envolvidos na leitura/escuta e produção de textos pertencentes a gêneros relacionados ao estudo, à pesquisa e à divulgação científica. (Brasil, 2018, p. 150).
O campo relativo às práticas de estudo e pesquisa, além de enfatizar práticas de linguagem voltadas à esfera científica, apresenta, mesmo que timidamente, um viés que se relaciona à dimensão do mundo do trabalho proposta pelo GNL no Manifesto da Pedagogia dos Multiletramentos. Essa relação pode ser identificada à proporção que esse campo tem como um dos objetivos ampliar e qualificar a participação dos jovens em práticas que vão além da esfera escolar e para isso, reconhece a relevância do domínio das práticas de estudo e pesquisa no tocante à compreensão da realidade social visando a formação para o trabalho. Além disso, os textos de divulgação científica se configuram, em geral, como textos multimodais, uma vez que utilizam gráficos, imagens e outros recursos imagéticos com a finalidade de organizar informações e dados de pesquisa. E, portanto, a multimodalidade se apresenta em grande parte dos gêneros que constituem esse e os demais campos aqui evidenciados.
O campo artístico-literário objetiva possibilitar às crianças, adolescentes e jovens o contato com as manifestações artísticas e culturais, analisemos como isso está explicitado no excerto do exemplo 10.
Exemplo 10
O que está em jogo neste campo é possibilitar às crianças, adolescentes e jovens dos Anos Finais do Ensino Fundamental o contato com as manifestações artísticas e produções culturais em geral, e com a arte literária em especial, e oferecer as condições para que eles possam compreendê-las e frui-las de maneira significativa e, gradativamente, crítica. Trata-se, assim, de ampliar e diversificar as práticas relativas à leitura, à compreensão, à fruição e ao compartilhamento das manifestações artístico-literárias, representativas da diversidade cultural, linguística e semiótica, por meio:
- da compreensão das finalidades, das práticas e dos interesses que movem a esfera artística e a esfera literária, bem como das linguagens e mídias que dão forma e sustentação às suas manifestações;
- da experimentação da arte e da literatura como expedientes que permitem (re)conhecer diferentes maneiras de ser, pensar, (re)agir, sentir e, pelo confronto com o que é diverso, desenvolver uma atitude de valorização e de respeito pela diversidade;
- do desenvolvimento de habilidades que garantam a compreensão, a apreciação, a produção e o compartilhamento de textos dos diversos gêneros, em diferentes mídias, que circulam nas esferas literária e artística.
Para que a experiência da literatura – e da arte em geral – possa alcançar seu potencial transformador e humanizador, é preciso promover a formação de um leitor que não apenas compreenda os sentidos dos textos, mas também que seja capaz de fruí-los. Um sujeito que desenvolve critérios de escolha e preferências (por autores, estilos, gêneros) e que compartilha impressões e críticas com outros leitores-fruidores (Brasil, 2018, p. 156).
Como é possível observar no exemplo 10, esse campo de atuação pode ser relacionado ao eixo da vida comunitária pensada pelo GNL, à medida em que visa possibilitar às crianças, adolescentes e jovens o contato com manifestações artísticas e culturais, bem como práticas de leitura, compreensão e fruição de manifestações artístico-literárias que contemplem e representem a diversidade cultural, linguística e semiótica. Nesse sentido, ao propor uma pedagogia voltada ao eixo da vida comunitária, o GNL focaliza discussões em torno da importância de se negociar a diversidade cultural e linguística presente nas interações sociais. Para que haja essa negociação faz-se necessário uma educação linguística que leve em consideração o multiculturalismo que compõe a nossa sociedade e que, inclusive, está presente nos espaços escolares.
Diante do quadro analítico aqui delineado, concluímos que a BNCC apresenta, em vários momentos, marcas de relação com as proposições cunhadas pelo GNL. O texto introdutório do componente curricular de Língua Portuguesa (p. 67-86), como também as práticas de linguagem — que estão organizadas em campos de atuação — descritas no texto referente ao componente de Língua Portuguesa especificamente para os Anos Finais do Ensino Fundamental (p. 136-191) apontam em direção de uma pedagogia pautada nos Multiletramentos. É possível observar que todos os campos de atuação convergem, em alguma medida, com as proposições do GNL, visto que orientam para uma proposição curricular de ensino de língua com foco nos letramentos. Desse modo, regida pelos objetos de conhecimento legitimados pela academia e pela escola, mas, sobretudo, pelos usos e sentidos atribuídos pelo mundo cultural, do trabalho e da vida comunitária na sociedade contemporânea.
REFLEXÕES FINAIS
À vista da pergunta investigativa anteriormente enunciada, podemos dizer que o estudo possibilitou identificar uma estreita relação entre a BNCC de Língua Portuguesa dos Anos Finais do Ensino Fundamental (BRASIL, 2018) e o Manifesto Programático da Pedagogia dos Multiletramentos (GNL).
Ao analisarmos o documento, observamos a apropriação de termos e conceitos já propostos pelo GNL (1996) quando publicaram o Manifesto, como o termo designer, mencionado no documento de forma associada à ideia de reescrita. Ao fazermos uma busca pela palavra “multiletramentos”, identificamos no texto introdutório referente ao componente Língua Portuguesa (BRASIL, 2018, p. 67-86) três registros. Esses registros correspondem às duas dimensões do significado de Multiletramentos atribuído pelo GNL. Isto é, dois desses registros estão postos no documento de modo a fazer referência às práticas de linguagem propiciadas pelas tecnologias digitais e um deles é utilizado para fazer referência à diversidade cultural.
O documento traz fundamentos que nos permitem percebê-lo de modo correlacionado às proposições advindas da Pedagogia dos Multiletramentos, quando, por exemplo, argumenta em prol de uma prática de ensino de língua que esteja em consonância com as práticas contemporâneas de linguagem das quais os sujeitos que chegam até escola são constituídos. Além disso, os campos de atuação também sinalizam uma semelhança com os pressupostos delineados pelo GNL, uma vez que esses campos estão relacionados às dimensões da vida profissional, pública e privada que regem todo o Manifesto.
Contudo, embora o documento apresente convergências no tocante à teoria da Pedagogia dos Multiletramentos, ainda há muito o que se discutir. Sabemos que a BNCC (Brasil, 2018) se configura como um documento, cujo papel é orientar os currículos das Redes de Ensino pública e privada do território brasileiro, sendo, portanto, uma referência obrigatória no que tange à formulação dos currículos. Mas isso não implica dizer que temos um modelo pedagógico definitivo — no sentido de que tudo o que está posto no documento é suficiente para atender às demandas da educação.
Dentro do campo da educação linguística, precisamos discutir essas proposições tomando o documento e sua fundamentação como possibilidades teóricas a serem aplicadas e avaliadas nos processos de ensino e aprendizagem de leitura e escrita. Inclusive, consideramos que o projeto de multiletramentos constitui-se justamente como uma possibilidade, isto é, um ponto de partida para se pensar os rumos da educação linguística em tempos atuais em diferentes contextos educacionais, cada um com sua particularidade. Como o próprio GNL sugere, trata-se de um manifesto programático, aberto e provisório, não se trata, necessariamente, de uma ideia ou um modelo pronto e, portanto, finalizado.
Por fim, embora haja críticas à BNCC, é perceptível que as proposições apresentadas no documento se configuram como contributos interessantes no que tange aos currículos do Ensino Fundamental, sobretudo, levando-se em consideração que a perspectiva de multiletramentos assumida no documento está correlacionada ao que propõe o GNL.
Certamente há questões que ainda merecem ser observadas com mais atenção, mas o documento está posto e é necessário que se discutam proposições e perspectivas a fim de que sua implementação aconteça da forma mais efetiva possível. O documento traz uma mudança paradigmática importante na forma de conceber a língua/linguagem e, logo, na forma como concebe o ensino de Língua Portuguesa, tendo como parâmetro uma concepção de ensino de linguagem integrada às práticas situadas de usos da língua. Ou seja, o documento focaliza no desenvolvimento de habilidades de práticas linguageiras que se articulam às práticas sociais em que os estudantes estão inseridos.