INTRODUÇÃO
Sob orientação do referencial teórico-metodológico da Psicologia Sócio-histórica, que tem fundamentalmente como base o Materialismo Histórico-dialético e a Pedagogia Histórico-crítica, as pesquisas desenvolvidas pelo GADS (Grupo Atividade Docente e Subjetividade) nas escolas têm como objetivo central a prospecção de informações e produção de conhecimento simultânea e imbricadamente à intencionalidade de operacionalizar processos formativos na perspectiva da transformação social, ou seja, a pretensão dos pesquisadores do GADS é desenvolver e provocar, a um só tempo, o terno dialético pesquisar-formar-transformar junto aos educadores e educadoras participantes.
Provocar, aqui, é mais do que instigar, atiçar, desafiar. A provocação, como princípio didático-pedagógico e teórico-metodológico da Pesquisa-Trans-Formação, traz em sua significação histórica o ato de evocar, um chamamento para o agir revolucionário em um movimento congruente ao pró-evocar.
A intenção de desenvolver pesquisas e formações, decisivamente nesta perspectiva crítica marxista da qual tratamos aqui, pode ser percebida nos trabalhos que se iniciaram junto ao Programa de Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) há décadas, desde os estudos de Sílvia Lane nos anos 1980, se intensificando nesta direção a partir de 2009. Essa trilha teórico-metodológica levou à constituição, em 2013, do GADS, Grupo Atividade Docente e Subjetividade, grupo coordenado pela Prof. Dra. Wanda M.J. de Aguiar e formado por pesquisadoras e pesquisadores consoantes com este pensamento. Desde então, o GADS vem se dedicando ao estudo e à prática desta forma de fazer pesquisa – ao movimento práxico científico da pesquisa – que tem como pedra angular a crítica, a necessidade de apreensão da realidade social para além de sua aparência. No caminho de uma pesquisa que considere o movimento histórico da realidade, nos pautamos em duas conhecidas Teses de Marx sobre Feuerbach (Marx; Engels, 1845/1979): a que enfatiza a relevância de buscarmos processos de transformação e não apenas de interpretação do mundo (Tese XI) e, nesse movimento de transformação das circunstâncias da realidade, também o educador deve ser educado (Tese III). Por esse fio condutor anda nossa pesquisa, tencionando manter a coerência teórico-metodológica na concepção dialética das interrelações teoria-prática-método-técnica-síntese, tudo isso rigorosa e explicitamente assumido desde a escolha do objeto, do objetivo, dos procedimentos e formas de análise e de interpretação.
Nesse caminho, dentre as muitas realizações dos últimos anos, destaca-se a experiência de participarmos e coordenarmos dois projetos PROCAD/CAPES (Projeto de Cooperação Acadêmica da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), sendo o último finalizado no final de 2020. Esse projeto, intitulado “Tecendo Redes de Colaboração”, realizado em parceria com a Universidade Federal do Piauí – UFPI, a Universidade Federal de Alagoas – UFAL e a Universidade Estadual do Rio Grande do Norte – UERN, se mostrou extremamente prolífico, trazendo novos questionamentos éticos e teórico-metodológicos, acordantes com os princípios e perspectivas perseguidos. Com efeito, foi um período em que os diálogos, as trocas, as leituras se mostraram essenciais para nosso avanço.
Nessa medida, essa experiência se constituiu em enriquecedor caminho para o desenvolvimento de uma forma de pesquisa por nós denominada Pesquisa-Trans-Formação, uma modalidade de pesquisa crítica, na perspectiva marxista autogestionária, que carrega consigo a intencionalidade de obter informações e produzir conhecimento e, necessariamente em um mesmo processo, promover atividades que tensionem o grupo de educadoras e educadores em direção à crítica da realidade na perspectiva da transformação social, na perspectiva da emancipação humana. Assim, cada um dos polos – pesquisa crítica e formação transformadora – não perde sua especificidade, e, em interrelação dialética, constituem-se mutuamente no espaço teórico-prático da totalidade.
UM PROJETO EM PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO E RESSIGNIFICAÇÕES
O projeto por nós denominado “A dimensão subjetiva dos processos educacionais em tempos de pandemia e seus desdobramentos: análise de um grupo de educadoras(es) participantes de uma Pesquisa-Trans-Formação” aprofunda a agnição da importância da categoria Dimensão Subjetiva da Realidade no processo educacional: como incontornável instrumento de prospecção e análise, possibilita ampliar a visibilidade às particularidades que caracterizam tal processo e, ao mesmo tempo, revela a realidade da sociedade em curso e suas diversificadas expressões no espaço escolar específico.
Importante enfatizar que a categoria dimensão subjetiva permite a superação da dicotomia, no sentido de que a separação entre objetividade e subjetividade é substituída por uma visão da relação dialética existente entre os dois âmbitos de uma totalidade e o sujeito visto como de natureza social e histórica, superando-se por completo, visões naturalizadoras e a-históricas do sujeito (Bock; Furtado, 2020, p. 17).
Ao nos referirmos à necessidade de criarmos zonas de inteligibilidade sobre as particularidades, intencionamos focar, em nossas análises, uma “dimensão constituída por elementos de natureza simbólicos ou psicológicos [...] que se encontram ancorados na subjetividade” (Bock; Aguiar, 2016, pag. 49). Assim, podemos afirmar que a dimensão subjetiva expressa a participação dos sujeitos na construção da realidade social, o que nos permite defender a não dicotomia entre estas duas dimensões.
Nesse sendeiro de ressignificações da práxis da pesquisa, a proposta de Pesquisa-Trans-Formação forma-se na articulação entre os processos de produção da formação e a constituição das mediações engendradas na perspectiva da transformação social. Assim sendo, o que sustenta a importância deste projeto de pesquisa é a consideração de que a postura pedagógica e política, fundante de todo ato educacional, deve ser mediada pelo conhecimento científico lastreado pelo compromisso social em prol da criação das condições necessárias para que transformações sociais radicais aconteçam e se reproduzam no interior mesmo da sociedade burguesa capitalista, no interior mesmo da escola pública e da universidade: emancipação política na perspectiva da emancipação humana.
As significações produzidas nos grupos não só expressam o modo como a realidade social, com todas suas contradições, os afetam e constituem, mas como estes sujeitos, a partir de sua ação criativa, são essenciais na construção da realidade social. Assim, a dicotomia objetividade- subjetividade está superada, nos permitindo o movimento analítico de apreensão dos elementos subjetivos presentes na realidade social, ou seja, as significações. Deste modo, criamos as condições de inteligibilidade de processos e fenômenos sociais, sem perder a singularidade das significações, mas focando sua dialética articulação como elemento síntese que configura o fenômeno em questão. Mas, não podemos esquecer de que não intencionamos só conhecer a realidade, buscamos sua transformação.
Temos nos aproximado de autores importantes para esta empreitada: Vigotski, que já nos acompanha metodologicamente desde o início, e vem nos surpreendendo com novas traduções e novas análises feitas por estudiosos e, também, Paulo Freire, referência em muitas de nossas pesquisas, e que tem sido reavivado nas formações realizadas pelo grupo.
Afinal, para alçar a crítica a princípio metodológico – como nos traz Mészáros (2010) – para não descansarmos em descrições superficiais e, sim, nos lançarmos à filosofia da práxis, buscamos a “outra face da lua” com Vigotski (1934/2001), para, com Freire (1988), denunciar as adversidades da realidade – indo além da aparência, anunciando possibilidades, muitas delas no escopo político do imediato, outras tantas no horizonte desenhado pela utopia concreta socialmente transformadora! A atualidade de Freire e Vigotski, incontornáveis sob suas perspectivas autogestionárias – marxista e luxemburguista – é percebida, altissonante, em cada movimento da Pesquisa-Trans-Formação em ação.
POSSIBILIDADES DE TRANSFORMAÇÃO
Reconhecendo a realidade, com a situação de pandemia surgida no início de 2020, nossas atividades in loco junto aos educadores e educadoras na escola onde realizávamos nossa pesquisa foram interrompidas. Com as novas necessidades surgidas, replanejamos nossas atividades produzindo novos objetivos e formas de alcançá-los. Sendo assim, nosso objetivo com esta pesquisa foi a apreensão da dimensão subjetiva dos processos educacionais em tempos de pandemia e os seus desdobramentos, num movimento de pesquisa que acontece em meio a um processo colaborativo e crítico, em que são constituídas estratégias didático-pedagógicas no campo metodológico que vieram a instigar o desenvolvimento de processos reflexivo-críticos na perspectiva da trans-formação. Tal intento se realizou por meio da organização de encontros (online) de reflexão/discussão sobre temas eleitos pelo coletivo, coordenados por membros do grupo de pesquisa GADS, alunos de mestrado, doutorado e egressos do doutorado. Nossa intencionalidade com esta proposta foi de, a partir do conhecimento científico, criar condições de implementação de processos formativos críticos e consistentes teórica e metodologicamente.
Dessa forma, durante o segundo semestre de 2020 e o primeiro de 2021, foram realizadas reuniões quinzenais com duas horas de duração, nas noites de segunda-feira. Com o objetivo de aumentar a participação e engajamento de cada membro participante ao coletivo, desde o início deixamos todos bem confortáveis quanto à participação, quanto aos horários (pois sabemos das intempéries cotidianas escolares, principalmente em tempos de pandemia). A apropriação prévia de alguns conteúdos sugeridos também não era cobrada de maneira individualizada e com inflexibilidades, de forma que a própria discussão no encontro era engendrada para que todos se apropriassem do conteúdo dos textos. Com isso, não nos retiramos do compromisso e rigorosidade metodológica e metódica, como nos ensina Paulo Freire (1996/2000, p. 28), ao contrário, criamos coletivamente estratégias encorajadoras à participação, com um ambiente mais propício à criatividade e à crítica dialética.
Assim, sob a ótica desse prisma, a assimetria de conhecimentos e funções nos encontros formativos da pesquisa eram encarados como benefícios, diferentes características que ressurtiam eram usadas em favor do aprofundamento das discussões. A formação acadêmica considerada superior na “hierarquia de saberes”, nesta pesquisa é considerada como um saber diferente, importante, mas não superior nem inferior aos saberes práxicos, experienciais e acadêmicos dos educadores e educadoras participantes. A quebra deste paradigma hierárquico tem de ser um renhido exercício diuturno, que se perfaz como uma técnica importante da Pesquisa-Trans-Formação.
Manter um clima de continuada intenção de participação requer uma necessária reflexão quanto ao meu papel como pesquisadora numa Pesquisa-Trans-Formação. A realização das formações obedece ao tênue equilíbrio entre os objetivos da pesquisa e os objetivos que vão se estabelecendo entre o grupo (Magalhães, 2021, p. 329).
Mas quem são, de fato, essas pessoas, esses educadores e essas educadoras? E por que tinham interesse em participar desta pesquisa, desta formação, desta pesquisa-formação na perspectiva da transformação? O que, aliás, entendiam por isso? Convidados a participar, vieram das escolas onde alguns dos pesquisadores/as atuavam; interessados em discutir assuntos gerais e do dia a dia da educação atravessados pelos impactos da pandemia. Infelizmente, alguns poucos participantes foram engolidos pelas atribulações escolares. Houve um caso de evasão que declarou desinteresse pelos assuntos tratados, declarando que “em minha escola não temos esses problemas”. Assim, mantivemos um grupo de, em média, quinze a vinte participantes, que oscilava, se alternava: os participantes entendiam que sua presença, mesmo que não constante fazia diferença em sua formação e nos possíveis desdobramentos que poderiam beneficiar a sua escola. Antes uma participação intermitente, mas interessada, do que nenhuma participação.
Os assuntos discutidos nas reuniões, ora versavam sobre temas de caráter geral da educação, da saúde, da gestão pública, situação do Brasil, do mundo, do capitalismo ultraneoliberal que, nesses meses, apertava mais e mais seus grilhões por toda parte do globo, ora versava sobre temas do momento: cotidiano e cotidianidade das escolas, vacinação, governo federal, novas cepas, desemprego, fome. Entre uma reunião e outra, por vezes, instigávamos o grupo a ler ou se inteirar de alguma questão específica, sendo que, em algumas oportunidades, eles próprios tomavam a iniciativa de fazer propostas de temas e/ou textos. Era uma forma de conduzir, ainda que brandamente, os debates, rumo às contradições mais agudas presentes na conjuntura e estrutura político-econômica-sociais que nos serviram de substrato para as reflexões críticas mais profundas na esteira das transformações sociais. “Dar essa abertura ao diálogo dialético não acontece ‘naturalmente’: a provocação é constante, com perguntas, convocações para trazerem exemplos” (Magalhães, 2021, p. 344-345).
Esta é uma das muitas e variegadas estratégias críticas que a Pesquisa-Trans-Formação se utiliza no movimento da pesquisa crítica marxista. Essas estratégias na perspectiva da transformação social profunda são elaboradas e operacionalizadas na práxis trans-formativa considerando a materialidade encontrada na realidade concreta para que, então, no curso das discussões, sejam construídas reflexões coletivas produtoras de conhecimento e reveladoras de informações que até aquele momento estavam embotadas. As estratégias crítico-marxistas provocam o coletivo e cada um de seus membros – pró-evocam – confrontando-os com as dimensões estruturais, conjunturais e da cotidianidade e cotidiano escolar, estas últimas sempre destacadas como importantes substratos da realidade concreta.
A Pesquisa-Trans-Formação desenvolveu esta metodologia crítica marxista com o propósito de consolidar uma práxis científica objetivando que todos os envolvidos – acadêmicos, docentes, coparticipantes, etc. – alcancem uma compreensão da importância do papel de cada um na práxis revolucionária e militante, criando possibilidades para pavimentar o caminho da alienação e da conscientização de classe em si rumo à conscientização crítica para si. Processos de reflexão crítica provocativos, ativos, empolgantes, que vão além do ordinário, do passivo, do condescendente face à realidade, mas são tomados pela necessidade de conhecê-la para transformá-la. A pesquisa e a formação docente passam a ser instrumento e resultado, entelhando dialeticamente teoria-prática-método-técnica-análise (Magalhães; Aguiar, 2021).
A realidade deve ser desvelada criticamente nesse processo de pesquisa e de formação na perspectiva da transformação, subsidiando permanentemente as ações. Não há espaços para idealismos: as contradições que movimentam a totalidade, que produzem as mediações ressurtidas de múltiplas determinações, brotam, dialeticamente, historicamente da materialidade. Os pesquisadores, aqui, assumem com rigorosidade científica um importante papel, um papel assimétrico diante do grupo: cuidar para que a dimensão revolucionária da pesquisa crítica marxista não sucumba, ainda que parcialmente, nas armadilhas da cotidianidade, da disciplina, do processo burocrático – armadilhas essas tão presentes nas formações docentes, transformando o crítico em ingênuo, o resistente em resiliente, o criativo em meritocrático, a perspectiva revolucionária em visões reformistas alienantes e eivadas de ideologia. Essa necessária assimetria de papéis não tira a também necessária horizontalidade antiautoritária que o coletivo trans-formador deve prezar. Essa postura autogestionária democrática deve ser mantida em todas as instâncias, inclusive na coletivização da própria elaboração das estratégias.
A discussão sobre forma e conteúdo era uma constante, sempre em busca de diferentes estratégias didático-pedagógicas para subsidiar os encontros. Relatos das vivências escolares dos participantes cumpriam o papel de estudos de caso, quando eram colocados em pauta muitos nós educacionais. Quando um nó afligia um de nós, um outro de nós, outros de nós acorriam numa práxis edificante. Exposições de conteúdos, slides, discussão sobre textos eram utilizados sempre agregados à intencionalidade de trazer à tona a tensão dialética da temática desejada. A intencionalidade perene nesta modalidade de pesquisa e pano de fundo de cada uma das inúmeras estratégias é a materialização da contradição da práxis educativa: a necessária crítica às zonas de conforto em que nos deixamos ficar, muitas vezes sem perceber... Daí a intencionalidade da provocação crítica, que no movimento da pesquisa vai se superando de muitas formas, extrapolando a própria evocação inicial e se desdobrando em compromissos sociais.
SITUAÇÃO ESTRUTURAL E CONJUNTURAL DA SOCIEDADE FACE À PANDEMIA
Os interesses que permeiam o setor educacional só podem ser compreendidos se enxergados como pertencentes à mesma esteira dos interesses de classe que fazem parte constituinte da sociedade burguesa formada pelo modo capitalista de produção, da classe burocrática que lhe dá suporte e do Estado, seu títere, que tem como principal missão garantir o status quo, a manutenção das relações de exploração e mais: desenvolvendo mecanismos para agudizar a expropriação da classe trabalhadora pela classe capitalista. Na contemporaneidade, este quadro de desigualdade em países fora do centro econômico-financeiro-militar do mundo é trágico e a pandemia provocada pelo vírus SARS-CoV-2, acabou por reforçar mais ainda esta situação. No Brasil, a grave crise socioeconômica e política que já experimentávamos desde 2013, mas mais aprofundada a partir de 2016 resultou no agravamento da situação de existência de dezenas de milhões de brasileiros. Na educação foi exigido de seus trabalhadores, notadamente dos professores e professoras, dedicação e criatividade acima do possível, do suportável, para lidar diariamente com o inesperado ou com problemas que costumavam ser, até então, efêmeros. Este foi o caso da educação onde vivemos, além das contradições já experienciadas nas últimas décadas, situações cada vez mais acirradas com a pandemia.
Assim, com a pandemia se alastrando e tornando o Brasil e o mundo uma experiência existencial totalmente diferente do convencional, muitos dos problemas que já tínhamos se agravaram sobremaneira
[...] na esteira das crises que se universalizaram historicamente sob o capitalismo: um deles é a precarização do trabalho do professor, sua exploração até os limites do inaceitável, a retirada da autonomia docente, o desrespeito escancarado advindo de várias instâncias governamentais e de parcelas específicas da sociedade, confusa pela miríade de falsas consciências que circulam naqueles espaços comunicacionais eivados de ideologia (Magalhães; Aguiar, 2021, p. 235).
Fundamental destacar que isso não foi uma especificidade do setor privado que, pela sua gênese, transforma em mercadoria contabilizável todo o espectro da atividade educacional – estudantes, docentes, materiais didáticos, etc., inclusive a própria educação – mas esse processo também ocorreu nas instituições públicas, nas mídias e nos mais diferentes segmentos da sociedade civil.
O professor, além de todas as dificuldades para exercer da melhor maneira possível, nas condições dadas, seu papel no processo de ensino-aprendizagem, ainda sofreu e sofre atualmente pressões materiais e psicológicas de toda ordem: como resultado disso, um número muito grande de docentes passou a ter problemas emocionais, de moderados a graves, nesse período (Magalhães; Aguiar, 2021, pp. 235,236).
Seres humanos fazem a sua história, mas não a fazem como querem, não a fazem à sua escolha, mas sob as condições sociais e históricas com que se defrontam, como nos ensinava Marx (1848-1852/2011); Paulo Freire falava da importância de reconhecermo-nos condicionados pelas mediações que a vida nos impõe, que “a construção de minha presença no mundo, [...] não se faz no isolamento, isenta da influência das forças sociais, [...] não se compreende fora da tensão entre o que herdo geneticamente e o que herdo social, cultural e historicamente...” (Freire, 1996/2000, p. 59); Nóvoa alerta que “uma das mais importantes fontes de stress é o sentimento de que não se dominam as situações e os contextos de intervenção profissional” (1995, p. 26), ou seja, a impotência em relação ao fazer, ao mudar, não deve ser vista como preponderante, mas está sempre presente, como importante determinação.
Como resultado dessa situação, Melo, Braga e Viana dizem que
[...] as consequências desse processo para o trabalhador são as mais nefastas possíveis. As chamadas doenças ocupacionais são apenas a face mais visível desse processo. Há uma forte expansão das doenças ocupacionais, mas além destas ocorrem dois fenômenos correlatos [...]: o desequilíbrio psíquico e as doenças psicossomáticas (Melo, Braga, Viana, 2011, s/p).
No Brasil e no mundo, não foram poucos os casos conhecidos de professores e professoras que adoeceram de muitas formas diferentes e graves. E se estes foram muitos, sabemos agora que os casos não divulgados e não externados foram muito mais numerosos e não foram repercutidos de forma honestamente merecida. Falamos de profissionais da educação que mobilizaram todas as forças e recursos (públicos e pessoais) para que seus alunos não sucumbissem ao período pandêmico (que, a partir de certo momento, não se sabia quando e se acabaria!), contando com pouca ou nenhuma contribuição institucional e da sociedade imediata. Profissionais que, ao contrário, foram culpabilizados pelo descaso governamental, boicotados em suas iniciativas, invisibilizados em seus esforços, tratados como estroinados ao tempo em que, conscienciosamente, se doavam muito além do que poderiam. Essa excelsa resistência teve um custo indesviável: a saúde física e, notadamente, a saúde mental das professoras e dos professores. Nessa toada aguda, a ciência já desvelou que o estresse ocupacional docente
[...] pode ser conceituado como um processo no decorrer do qual as exigências de trabalho são percebidas como variáveis estressoras, gerando situações que transpõem repertório de enfrentamento do indivíduo resultando em inúmeras implicações negativas (Weber et al, 2015, p. 41).
Para a compreensão dessa conjuntura, um dos aspectos que sempre deve ser destacado é o fato de conviverem lado a lado na escola segmentos progressistas e revolucionários, de um lado, e segmentos conservadores e ultraconservadores de outro. Esta convivência, em períodos de normalidade costuma ser pacífica em prol da mínima harmonia necessária aos processos de ensino-aprendizagem e de gestão escolar, mas na agudeza sociocultural ressurtida no período de pandemia muitas vezes os ânimos se acirraram. É fato que a educação, a escola e a prática docente convivem simultânea e contraditoriamente com a missão de reprodutoras do pensamento dominante, e, também, com a ação crítico-criativa para a mudança.
Ao mesmo tempo que educam para que a roda do capitalismo continue a girar da forma mais eficientemente possível para que se cumpram os seus desígnios, educam também para a construção de conscientizações em relação à realidade, em relação à contradição capital-trabalho, em relação à luta de classes (Magalhães; Aguiar, 2021, p. 237).
Cenários como esses destacados nesta sessão são sempre apresentados aos participantes das pesquisas críticas, segundo as questões de interesse, tratando tal e qual assunto de acordo com a realidade em que a pesquisa se propõe investigar. Panorama sempre trazido aos encontros da Pesquisa-Trans-Formação deste projeto para que as discussões, por mais que tratassem de temas específicos, por vezes singulares, tivessem um substrato de apoio estrutural e conjuntural ancorado na realidade.
REFLETINDO ACERCA DOS ENCONTROS
Após quinze encontros realizados foi possível fazer um apanhado histórico temático sobre os assuntos que mais repercutiram nos debates no período estudado. Aqui, destacaremos, em síntese, as principais discussões. Muitos foram os formatos temáticos dos encontros: houve assuntos que foram tratados quase todos os dias; houve casos em que, em um mesmo dia, vários assuntos foram abordados superficialmente, às pinceladas; outros dias praticamente apenas um tema foi tratado com mais profundidade. Dessa forma, optamos por expor o material resultante dos debates por assunto, dentro do que nos pareceu uma lógica mais coerente, fazendo um imbricamento do conteúdo das diferentes falas.
Uma questão sempre recorrente foi a de vivermos neste momento sob um capitalismo em crise, com conotação evidente de dependência e subordinação aos países centrais e ao mercado financeiro internacional. Nesse cenário, uma educação que nunca atingiu um nível de qualidade satisfatória, agora mal consegue atingir as metas mais pífias. Governos, partidos, empresas, todos conhecem o problema central – a falta de investimento nos professores, em tecnologia básica e em uma infraestrutura mínima para acolher decentemente estudantes e funcionários. Contudo, não têm interesse em investir em educação, pois esse tipo de investimento não dá o retorno que eles desejam: disciplina, votos e lucro, respectivamente.
Era muito forte entre os comentários do grupo as críticas a retóricas vazias, narrativas culpabilizantes de governos passados, de congresso ineficiente, do mercado mundial e suas crises, etc. Os detentores do poder, proprietários dos meios de produção, na verdade desejam manter tudo como está: uma mão de obra desqualificada, mas barata e obediente, que conhece pouco ou nada de seus direitos, que pode ser explorada e oprimida com facilidade. Sob o ponto de vista deles estão corretíssimos: a classe dominante formada por aqueles que detém o capital financeiro e/ou industrial, os políticos que ocupam os partidos constituintes da democracia burguesa e os governantes de plantão, estão cada vez mais ricos, enquanto a miserabilização da população cresce a olhos vistos. Uma alfabetização básica, precária da grande massa popular, principalmente a preta, pobre e periférica, parece ser o suficiente.
Os ataques e/ou desprezo e/ou invisibilização por parte de um governo anterior de extrema direita direcionado às escolas, aos professores, às universidades, às entidades culturais e artísticas, à ciência e sua produção nacional foram a comprovação de que governavam exclusivamente para satisfazer as orientações das classes dominantes e os seus próprios interesses por meio de uma malha de corrupção. Até o acesso à educação pública e gratuita foi um alvo constantemente atacado. Foi defendida, neste período, uma educação mercantilizada favorecendo seus compadres privatistas, bem como a exacerbação de um projeto explícito rumo à “nenhuma educação”, com a efetivação de mecanismos desestimuladores da inclusão educacional, tais como o fim das merendas, nenhum investimento em tecnologias, depósito de estudantes com deficiência em escolas especializadas, fechamento de escolas. Soma-se a isso o fato das escolas e universidades terem, em certa medida, comungado desta ideologia dominante excludente.
Com a pandemia, todos esses problemas se amplificaram, todo esse cenário de desmonte, de precarização, de desrespeito atingiu níveis extremos. Por qualquer ângulo que se olhe o abismo entre ricos e pobres aumentou enormemente em pouco tempo: bilionários se multiplicando, acumulando mais e mais, enquanto uma massa de dezenas de milhões atingiram a miséria mais extrema, a classe média ficando desempregada ou precarizada, a educação se esboroando com alta evasão escolar, ensino precário presencial e principalmente à distância, bolsas para pesquisa sendo cortadas, escolas e sua infraestrutura sem condições de receber os alunos com segurança sanitária adequada, especialmente pelo fato de não estarem vacinados.
Soluções paliativas como o ensino remoto abrem a porteira para propostas de ensino domiciliar e formas que mesclam o ensino presencial e à distância: formas ainda muito controversas, que necessitam de muita discussão. Uma reflexão frequente circulava entre o grupo nesse período: considerando a materialidade de um país com um nível de miserabilização como o Brasil, como serão criadas as condições necessárias para que a população mais empobrecida possa usufruir desta metodologia?
Com o fato dos índices de contaminação e mortes pela pandemia estarem em queda, mesmo com pessoas morrendo todos os dias, as enfermarias e UTIs mantendo-se sempre próximas da lotação, as equipes de saúde diminuídas pelas contaminações, óbitos e sequelas da COVID, mas, pelo fato dos índices de contaminação e mortes pela pandemia estarem em queda, os empresários da educação e as mídias que os apoiam, e os governos municipais, estaduais e federal, que atendem quase sempre seus interesses, faziam campanha para a volta às aulas, com todo o risco que isso significava para as crianças ainda não vacinadas e a maioria sem ter condições de se proteger por si só.
Na época em que ocorreram esses encontros, esse era o cenário constitutivo das falas e sentimentos dos educadores: em toda discussão os relatos sobre greves e de resistência às imposições dos governantes atravessava as temáticas, também a absurda pressão pela volta às aulas frente à precarização da estrutura física sanitária e de convívio não adaptada a uma situação de pandemia. Os educadores participantes do grupo tinham a clareza das profundas contradições a serem enfrentadas, inclusive da impossibilidade de superação de muitas delas, mas também reconheciam, e isto foi reforçado no grupo, a crítica radical e transformadora como algo a ser colocado como meta das suas práticas e como Devir.
O que fazer diante de tudo isso? Hoje, passados estes apuros da pandemia, no presente, podemos afirmar que temos o olhar do futuro para o que se passou. Podemos reafirmar com mais afinco que devemos continuar a luta histórica que educadores e educadoras promovem há mais de século, com muitas conquistas.
Essa questão teve presença constante e, especialmente nos encontros finais, tomou força e formatos revolucionários, originais, radicais na apreensão da gênese das dificuldades vividas na escola. Trata-se de lutar denunciando interesses espúrios de uma minoria hegemônica, de tentar conscientizar a população sobre quem realmente são essas pessoas que determinam essa parte de nossas vidas, de mostrar que há saídas, mas incontornavelmente a partir da participação de todos, inclusive utilizando a escola como espaço de reivindicações.
Aos capitalistas e aos governos que os atendem, não interessa essa educação de qualidade que queremos, mas temos que lutar, resistindo, impondo que nossas necessidades básicas sejam atendidas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como ensina Rosa Luxemburgo (1898/1970, pp. 96-97), o mundo em que vivemos está capitalista. E está capitalista em todos os seus meandros – governos, instituições, sociedade. Não há como lutar por uma sociedade mais justa fora do capitalismo. A luta tem que ser por dentro. Dentro dos espaços que nos são possibilitados lutar. Mas são espaços burgueses? Sim, são, porque a sociedade existente a partir do modo de produção capitalista é uma sociedade burguesa, que traz a episteme burguesa em sua gênese. Mas é aí mesmo, justamente nesse espaço estruturado e gerido pelo liberalismo (atualmente neoliberalismo e ultraneoliberalismo) onde devemos construir autogestionariamente a necessidade de pessoas se auto-organizarem politicamente para lutar por conscientização e conquista de direitos sociais para a busca por emancipação na dimensão política da luta.
Contudo, essas formações e essas conquistas não podem ser consideradas um fim em si mesmas, pois seria apenas reformismo (ou oportunismo) e só serviria para reforçar os algozes, o liberalismo, a ideologia burguesa, os mecanismos criados pelo capitalismo para manter tudo como está enraizando ainda mais na sociedade esse modo de produção explorador e opressor. Para que a luta política não seja reformista ou oportunista ela tem que acontecer sob um nível de conscientização tal que qualquer conquista na perspectiva da emancipação política seja entendida como um passo para a conquista da emancipação humana, para a criação das condições necessárias para que transformações sociais profundas ocorram corroendo as bases da atual sociedade e criando as estruturas que irão organizar a nova sociedade, uma sociedade autogestionária.
Vigotski (1929/2010) nos embasa com importantes princípios metodológicos, aos quais recorremos a todo momento em nossa pesquisa: apreender a realidade para além da aparência, analisar os fenômenos em seu processo, em seu movimento. Nossos esforços analíticos estão em andamento e as significações com que temos nos deparado nos apontam para a necessidade da continuidade de pesquisas críticas que contribuam na perspectiva da trans-formação, atentando-nos, como nos alerta ainda Vigotski, às armadilhas de comportamentos fossilizados.
Nessa medida, nós, educadores e educadoras, temos que seguir nos formando na perspectiva autogestionária para que nos tornemos cada vez mais potentes e auto-organizados, conscientes da classe a qual pertencemos, quem são nossos iguais, quem são nossos antagonistas sociais. Todos os educadores progressistas e/ou revolucionários, intelectualmente honestos, acreditam que a educação é, sim, um caminho fundamental para que nos fortaleçamos socioculturalmente e possamos conquistar transformações sociais profundas. E a escola, como ensina Paulo Freire em toda sua obra, mesmo sendo uma instituição aparelhada ideologicamente pela classe dominante, tem em sua gênese a classe subalternizada que deve se organizar para lutar por sua própria emancipação, uma emancipação que ultrapasse os limites do político, uma emancipação humana.