INTRODUÇÃO
Vivo em minha própria casa Jamais imitei algo de alguém E sempre ri de todo mestre Que nunca riu de si também.
A Gaia Ciência – 1882 (Friedrich Nietzsche)
Convidamos o leitor a entrar nessa casa escura, um pouco assustadora, mas com uma arquitetura bastante única. Nessa atmosfera densa, inebriante – talvez perturbadora? Cenário mórbido ou não, essa morada, a casa de Nietzsche, exala alguma alegre ciência, tornando evidente o mecanismo motriz para elaborar esteticamente a face trágica da existência que nos toma.
Havia ainda uma sensação de esperança – será? – no texto de A Gaia Ciência, algum vestígio de otimismo sobre como podemos superar as amarras metafísicas impostas pelos mestres da ética, mestres da finalidade da existência... No prólogo, escrito anos depois da obra em si, o filósofo fala dessa sua disposição:
todo este livro não é senão divertimento após demorada privação e impotência, o júbilo da força que retorna, da renascida fé num amanhã e no depois de amanhã, do repentino sentimento e pressentimento de um futuro, de aventuras próximas, de mares novamente abertos, de metas novamente admitidas, novamente acreditadas (Nietzsche 2012, p. 9).
E essa esperança se expressava num riso que era alegre – não bobo ou ingênuo – justamente por ser capaz de abraçar suas próprias lágrimas, e lhes dizer: de novo, de novo e de novo! O riso sobre si mesmo e que também é riso sobre os outros, sobre a vida, sobre toda verdade e conhecimento. O riso que produz medo em quem não é capaz de abraçar a tragédia. O riso que o petulante desconhece, com o qual o impostor se irrita e que o erudito recrimina – normalmente por ser petulante e um impostor. O riso da criança que cria – e não está nem aí para os sentimentos dos outros.
Neste artigo, propomos refletir sobre este riso, compreendendo-o como catalisador de uma experiência formativa em que se considera seu potencial de pôr em dúvida as certezas, as verdades e as normatividades, abrindo espaço ao devir, ao novo, ao desconhecido. Desejamos assim falar deste riso como uma força capaz de romper processos que tendem a nos solidificar ontologicamente, em nome de uma formação que nos eleve a capacidade de criação e transformação da realidade de que fazemos parte. Portanto, o texto se divide em três partes: primeiro, um aprofundamento nas especificidades do riso de Nietzsche; em seguida, sua capacidade de enfrentamento das ficções social e culturalmente criadas para solidificar a existência humana; por fim, como pensamos tal força enquanto produtora de experiências formativas. Estes escritos são um desdobramento de uma pesquisa3 de natureza teórica dentro da grande área da Educação, mais especificamente, Filosofia da Educação, e ainda mais pontualmente, enquanto um estudo sobre Formação Humana em Nietzsche.
O RISO DE NIETZSCHE
O riso de Nietzsche se encontra em quase toda sua escritura, entretanto preferimos focar nossos esforços, como escolha metodológica, na busca pelo seu rastro poderoso em A Gaia Ciência e em Assim Falou Zaratustra. Nesses dois lugares filosóficos o riso parece ser o mesmo, ainda que rido em intensidades diferentes, dada a natureza específica de cada obra. Duas obras zombeteiras, menos sombrias, menos pesadas. Diríamos que são duas intensas gargalhadas do pensador alemão. Duas explosões de riso interminável, mesmo que suas olheiras estejam lá, evidentes em seu olhar. Mas ele diz ser “acometido pela esperança” e nos agarramos a esse instante de sua história para dizer de uma esperança sobre o mundo, sobre as pessoas, sobre a humanidade4. É essa saúde que aqui filosofa. Mas ainda assim é uma esperança fundada na força necessária ao enfrentamento... Aliás, não basta esperança:
[...] temos de continuamente parir nosso pensamento em meio a nossa dor, dando-lhes maternalmente todo o sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento, consciência, destino e fatalidade que há em nós. Viver – isto significa, para nós, transformar continuamente em luz e flama tudo o que somos, e também tudo o que nos atinge; não podemos agir de outro modo (Nietzsche, 2012, p. 12).
Importante então declarar novamente que é o corpo que pensa. O corpo como um todo, com todas as suas nuances físicas, e evidentemente, com todos os recursos adquiridos ao longo de seu crescimento, com tudo que o interrompeu e o fez continuar, seus traumas, suas angústias, seus medos. Para Nietzsche (2011, p. 35), “o corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor”. Inclusive, “há mais razão em teu corpo do que em tua melhor sabedoria” (Nietzsche, 2011, p. 35) prediz Zaratustra. O corpo humano pensa a partir de sua própria condição de finitude. E é por isso que não propomos aqui uma solução final à educação, a formação de todos os sujeitos do mundo. Nem é uma solução contínua e definitiva para uma única pessoa. É sempre contingencial, é sempre uma escolha, e depende do presente temporal, do instante, e o que conseguimos fazer com isso. Ora, “Já não cremos que a verdade continue verdade, quando se lhe tira o véu... Hoje é, para nós, uma questão de decoro não querer ver tudo nu, estar presente a tudo, compreender e “saber” tudo” (Nietzsche, 2012, p. 14).
E se é o corpo que pensa, faz-se necessário compreender suas forças internas e como elas fabricam o produto que nos chega à consciência. Segundo a filosofia nietzscheana:
Non ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligere! [Não rir, não lamentar nem detestar, mas compreender!] disse Spinoza, da maneira simples e sublime que é sua. No entanto, que é intelligere, em última instância, senão a forma na qual justamente aquelas três coisas tornam-se de uma vez sensíveis para nós? Um resultado dos diferentes e contraditórios impulsos de querer zombar, lamentar, maldizer? Antes que seja possível um conhecer, cada um desses impulsos tem de apresentar sua visão unilateral da coisa ou evento; depois vem o combate entre essas unilateralidades, dele surgindo aqui e ali um meiotermo, uma tranquilização, uma justificação para os três lados, uma espécie de justiça e de contrato: pois é devido à justiça e ao contrato que esses três impulsos podem se afirmar na existência e conservar mutuamente sua razão. A nós nos chega à consciência apenas as últimas cenas de conciliação e ajuste de contas desse longo processo, e por isso achamos que intelligere é algo conciliatório, justo, bom, essencialmente contrário aos impulsos; enquanto é apenas uma certa relação dos impulsos entre si. Por longo período o pensamento consciente foi tido como o pensamento em absoluto: apenas agora começa a raiar para nós a verdade de que a atividade de nosso espírito ocorre, em sua maior parte, de maneira inconsciente e não sentida por nós; mas eu penso que tais impulsos que lutam entre si sabem muito bem fazer-se sentidos e fazer mal uns aos outros: – a violenta e súbita exaustão que atinge todos os pensadores talvez tenha aí sua origem (é a exaustão do campo de batalha) (Nietzsche 2012, p. 195-196).
Nietzsche está falando de um enfrentamento que é interno. Relações de poder entre as emoções humanas, que inscritas nas entranhas, são de ordem do fisiológico. E o riso será entendido como uma dessas forças que não só influenciam a maneira como vemos o mundo, mas são causadoras de nossos pontos de vista. A psicanálise posteriormente desenvolve essa argumentação primariamente filosófica, e temos pelo menos um século de teorias complexificando essa subjetividade própria a espécie humana. Não pretendemos aqui adentrar nesse poço sem fundo, mas apenas tomar essa perspectiva como norteadora: não somos seres exclusivamente racionais.
Antes que uma função esteja desenvolvida e madura, constitui um perigo para o organismo: é bom que durante esse tempo ela seja tiranizada! Assim a consciência é tiranizada – e em boa parte pelo orgulho que se tem dela! Pensam que nela está o âmago do ser humano, o que nele é duradouro, derradeiro, eterno, primordial! Tomam a consciência por uma firme grandeza dada! Negam seu crescimento, suas intermitências! Veem-na como ‘unidade do organismo’! (Nietzsche, 2012, p. 61).
Aliás, em Nietzsche (2012, p. 12), “um filósofo que percorreu muitas saúdes e sempre as torna a percorrer passou igualmente por outras tantas filosofias: ele não pode senão transpor seu estado, a cada vez, para a mais espiritual forma e distância – precisamente esta arte da transfiguração é filosofia”. Assim sendo, podemos pensar que o riso tenha um importante efeito na forma de compreendermos a vida, de fazermos escolhas, de enfrentarmos os limites concretos impostos pela existência. Um riso que não está separado da condição trágica da vida nem é uma cura para tal estado. Ele não resolve o trágico, o movimenta.
Mas que riso é esse? Tantas são as formas de se compreender o riso e o humor que o produz. Proposições de ordem especificamente fisiológica, de ordem filosófica, psicanalítica e até poética sobre o tema. O riso de Nietzsche, em especial, é um riso que perturba. Ele não confirma nada, não propõe qualquer manutenção de estados, situações, estruturas. Não é um riso comedido, não é mero sorriso amarelo. O riso de Nietzsche (2011, p. 41) tem asas, e quer te elevar: “quem sobe aos montes mais altos ri das tragédias do palco e da vida”. Está em jogo a condição atmosférica e espacial do cume da montanha... “O ar fino e puro, o perigo próximo e o espírito pleno de alegre maldade: essas coisas combinam” (Nietzsche, 2011, p. 40). Elas simplesmente ornam entre si, quando estamos falando de espíritos livres5.
É preciso, para Nietzsche, elevar-se, ver do alto, desse ponto de vista em que o sujeito busca sair de si mesmo, e, portanto, sair do que lhe compõe, das estruturas que lhe engajam no mundo, para poder absorver e atravessar o caráter trágico, pesado, grave que essa mesma vida expressa. Um distanciamento de si para o alto, e também distanciamento do que produz esse si. Um distanciamento crítico? Será preciso rir. Nietzsche clama aos homens superiores:
Então aprendei a rir indo além de vós mesmos! Erguei vossos corações, ó bons dançarinos! Mais alto! E não esqueçais o bom riso tampouco! Esta coroa do homem que ri, esta coroa de rosas: a vós, irmãos, arremesso esta coroa! Declarei santo o riso; ó homens superiores, aprendei a – rir! (Nietzsche, 2011, p. 281).
E assim, riso e liberdade andam de mãos dadas quando elevam o espírito.
Enquanto em Assim Falou Zaratustra percebemos um Nietzsche já entregue a autoformação – parece ter a ver com uma jornada pessoal, interna, mesmo que o profeta sempre volte à Cidade – em A Gaia Ciência temos resquícios de fé na ciência – enquanto instrumento coletivo – como lugar de criação, para além da morte de Deus, resultando na abertura para um niilismo ativo. Segundo Machado (2011), Nietzsche se opõe ao niilismo negativo, herança platônica e cristã que direciona o valor da vida fora da existência terrena, ao niilismo reativo, que mata Deus e põe e seu lugar a figura do humano racional, e a um niilismo passivo, que torna os sujeitos incapazes de se mover ativamente diante da falta de um telos norteador. Ainda assim, Nietzsche (2012) nos oferece o niilismo, porém em sua forma ativa: diante da incerteza do futuro, criemos, mesmo que isso signifique ir ao encontro de todo perigo! E para navegar na imensidão desse desconhecido, o riso se torna a força que nos impulsiona contra as ondas mais altas, durante qualquer tempestade.
Mas como furar uma onda monstruosa em alto mar, sem despedaçar sua própria couraça? Para isso, o riso de Nietzsche constrange. Dirá ele: “rir significa: ter alegria com o mal dos outros, mas com boa consciência” (Nietzsche, 2012, p. 156). Isso implica em assumir o acontecimento na sua impossibilidade de se desfazer. Em nota, os tradutores da versão em inglês de A Gaia Ciência consideram a expressão em alemão “ter alegria com o mal” como intraduzível, mas explicam: ela denota deleitar-se maldosamente com o desconforto de outra pessoa. (Nietzsche, 2012, p. 295). Esse deleite tende a ofender. Mas ele também pode mostrar ao outro justamente a insignificância que o acontecimento pode tomar, dado que nada pode se fazer a respeito. Como o riso sobre aquele que leva um tombo. Ele não pode voltar atrás no tempo e se precaver sobre o degrau a mais que ele não percebeu e que o levou ao chão. O acontecimento trágico está dado. Rir disso, da situação, da dor e de sua própria estupidez, despotencializa o dano da queda, na esfera dos sentidos e valores. Porque rir não vai curar um osso quebrado, mas pode ajudar o sujeito a atravessar essa dor dando-lhe sentidos libertadores. Um exemplo simplista para dizer que o riso desarma as circunstâncias na esfera do valor que elas recebem. É de bom tom rir de uma pessoa que acabou de cair da escada e quebrou a perna? Depende da moral regente, dos dispositivos e suas regras discursivas que operam nossa conduta uns com os outros. A questão é que tais limites são quebráveis, e o riso é uma das forças com envergadura suficiente para tanto.
Todavia, quem ri dos outros, nesse sentido, precisa antes de tudo estar apto a rir de si mesmo como participante da vida sobre a qual é capaz de gargalhar a cada drama, perigo e suspeita. Dirá Nietzsche (2012, p. 51):
rir de si mesmo, como se deveria rir para fazê-lo a partir da verdade inteira – para isso os melhores não tiveram bastante senso de verdade até hoje, e os mais talentosos tiveram pouco gênio! Talvez ainda haja um futuro também para o riso! Quando a tese de que ‘a espécie é tudo, o indivíduo, nada’ houver se incorporado à humanidade e a cada um, em cada instante, estiver livre o acesso a essa derradeira libertação e irresponsabilidade. Talvez então o riso tenha se aliado à sabedoria, talvez haja apenas ‘gaia ciência’. Por enquanto ainda é bem diferente, por enquanto a comédia da existência ainda não se ‘tornou consciente’ de si mesma, por enquanto este é ainda o tempo da tragédia, o tempo das morais e religiões.
O riso que constrange, destrutivo, enquanto um movimento que desloca sentido, como aponta Alberti (2002), pode nos levar a uma condição de nada, inexistência, vazio. E a partir dessa condição de nada provocada pelo ato de rir
pode-se distinguir dois movimentos. O primeiro o define em contraposição à ordem do sério. O riso e o risível remetem então ao não-sentido (nonsense), ao inconsciente, ao não-sério, que existem apesar do sentido, do consciente e do sério. Saber rir, saber colocar o boné do bufão, como diz Ritter, passa a ser situar-se no espaço do impensado, indispensável para apreender a totalidade da existência (Alberti, 2002, p. 24).
Ou seja, um riso que abre caminhos para novos sentidos, ainda não alcançados pela racionalidade humana.
Uma segunda possibilidade, diz Alberti (2002, p. 24) é a morte, o aniquilamento, a “[...] cessação de ser: o “nada” não é mais a “metade” não-séria ou inconsciente do ser, e sim a morte”. O riso que destrói qualquer sentido: “[...] ele não é um objeto do pensamento, mas um ato filosófico [...] (Alberti, 2002, p. 201). Essa segunda forma de riso permitiria aos sujeitos experienciar a existência fora de qualquer racionalidade ou produção de sentido. Um riso que nada produz, apenas gera o caos. Ele interrompe a produção de sentidos, não como produtor de um conteúdo oposto ao sério, mas apenas como um movimento de suspensão do sentido. Para a autora, contudo, esses dois movimentos de um riso que ela denomina moderno, não são contraditórios entre si, pois quando:
Nietzsche assinala a necessidade imperativa de sair dos limites do ser para tornar possível a “gaia ciência”, é também da oposição ao primado do sentido e da positivação do não-sentido que está falando. Para Bataille, não só a morte, mas também o desconhecido faz rir. Ou seja: não é por um autor se referir ao riso da morte que exclui de suas reflexões o riso do não-sério, do impensado, enfim, o riso que remete à necessidade (ou à impossibilidade) de se ultrapassar os limites do pensamento” (Alberti, 2002, p. 23).
Ainda que o riso em Nietzsche possa significar a morte de qualquer sentido, em contraposição ao conteúdo sério, ele abre caminhos para um devir de novas produções de sentido: “o riso torna-se necessário seja para ultrapassar os limites do pensamento sério e tornar positivo o não-sério banido como “nada”, seja para ultrapassar os limites do ser e fazer a experiência refletida do não-saber [...]” (Alberti, 2002, p. 23-24).
RISO COMO ENFRENTAMENTO DE FICÇÕES
Dar-se conta da complexidade da existência como nunca alcançável como um todo, explicável em cada detalhe e medida, pode ser desesperador considerando nossos desejos mais modernos de, pela razão, dominar o mundo e o universo. Não só admitir o mistério de certas engrenagens, mas desejar caminhar no escuro vez ou outra, parece algo completamente insensato, ainda mais quando estamos tratando de formação humana. Mas o que mais temos de resposta do mundo, da natureza, e das próprias relações humanas é o desconhecido, o inusitado, o imprevisto. Não dominamos o tempo porque usamos um relógio, mas gostamos da ideia de contar as horas e agir de acordo com elas. Isso resulta num controle da realidade que nos impede, tantas vezes, de cumprir com o horário? A resposta parece ser muito mais complexa que sim e não.
Nietzsche, em seu enfrentamento contra a verdade, nos dizia dessas ficções. Em Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extramoral,Nietzsche (2014, p. 63) evoca os nossos tratados sociais – nossa necessidade de ser rebanho, diz ele – para falar do surgimento da verdade: “[...] é fixado aquilo que doravante deve ser ‘verdade’, isto é, é descoberta uma designação uniformemente válida e obrigatória das coisas, e a legislação da linguagem dá também as primeiras leis da verdade [...]”. A relação entre mentira e verdade se institui. O filósofo alemão nos lembra, contudo, que o problema não é a ilusão em si, como oposição ao verdadeiro e essencial, mas o que ela pode acarretar como efeito. Assim, “[...] o que odeiam, mesmo nesse nível, no fundo não é a ilusão, mas as consequências nocivas, hostis, de certas ilusões” (Nietzsche, 2014, p. 63). O ser humano “[...] deseja as consequências da verdade que são agradáveis e conservam a vida; diante do conhecimento puro sem consequências, ele é indiferente; diante das verdades talvez perniciosas e destrutivas, ele tem disposição até mesmo hostil” (Nietzsche, 2014, p. 64). Quais são os efeitos de valor, e, portanto, de poder, que a verdade que contamos, que afirmamos, que desejamos, tem para nós, para cada sujeito, para cada coletivo? N ietzsche fala de conservação, a todo o momento. Então, o valor da verdade residiria na conservação da espécie, na conservação das relações socioculturais e políticas, já que é dessa substância que é feito o humano?
Não importa se contemplo os homens com olhar bom ou ruim, sempre os vejo ocupados numa só tarefa, todos e cada uma em particular: fazendo o que ajuda à conservação da espécie humana. E não por um sentimento de amor a tal espécie, mas simplesmente porque nada, neles, é mais antigo, mais forte, mais inexorável, mais insuperável do que esse instinto – porque ele é precisamente a essência da linguagem e rebanho que somos (Nietzsche, 2012, p. 50).
Ocupados estamos com a manutenção de nossos lugares de poder. De poder existir, de poder construir, de poder respirar. De poder se divertir, de poder comer, de poder caminhar em liberdade. De poder sobreviver. E daí advém à necessidade de elaborar a verdade e nela acreditar. A questão então transborda qualquer essência que desejemos estabelecer aos valores que acreditamos. Até o mal serve, assim, para a constituição de morais diversas – principalmente quando se instaura que vale a pena viver –, e, portanto, à conservação do humano, dirá Nietzsche.
Mas a manutenção dessa moral passa por autoridades. Algo que é da ordem da linguagem, pois sustenta a comunicação entre todos. É nessa esteira que Nietzsche (2012, p. 52) vai falar dos protagonistas dessas relações de poder-saber, vai falar do mestre da ética, do mestre da finalidade da existência:
para que tudo o que ocorre necessariamente e por si, sempre e sem nenhuma finalidade, apareça doravante como tendo sido feito para uma finalidade e seja plausível para o ser humano, enquanto razão e derradeiro mandamento – para isso entra em cena o mestre da ética, como mestre da finalidade da existência; para isso ele inventa uma segunda, uma outra existência, e com sua nova mecânica tira essa velha, ordinária existência de seus velhos, ordinários eixos.
O Filósofo, o Professor, o Cientista, o Pastor, o Guia Espiritual ou qualquer que seja a persona que anuncia a verdade, estabelece-a a partir de seus discursos as normatividades que nos regem. Em Assim falou Zaratustra,Nietzsche (2011, p. 108), por meio da voz do profeta, acusa os sábios: tudo deverá
[...] se adequar e se dobrar a vós! Assim quer vossa vontade. Liso deve se tornar, e submisso ao espírito, como seu espelho e reflexo. Esta é toda a vossa vontade, ó mais sábios entre todos, uma vontade de poder; e também quando falais de bem e mal e das valorações.
Sendo a mentira e a verdade produto da preocupação dos sujeitos com as consequências práticas de seus discursos, Nietzsche vê na necessidade dessas ilusões, o parâmetro de sua produção. E sobrevivendo através das relações coletivas, estabelecemos sentidos também coletivamente, sobre os quais concordamos, independente se são verdadeiros ou falsos de fato. Assim, estabelecer verdades sobre a vida, determinando discursos que lhes deem suporte para continuidade e dispersão, é de alguma maneira, a forma que encontramos até o momento de atender as nossas necessidades mais elementares. O certo e o errado, o bem e o mal, qualquer que sejam suas diretrizes, estabelecem uma normalidade que nos faz propagar, vencer o tempo e seus acontecimentos.
Em contrapartida, a própria moralidade, como “[...] o instinto de rebanho no indivíduo” (Nietzsche, 2012, p. 133), muda, transforma-se, está em movimento – mesmo que se afirme pela solidez. Isso porque as próprias relações de poder estão em movimento. Ora,
é inegável que a longo prazo cada um desses grandes mestres da finalidade foi até agora vencido pelo riso, a razão e a natureza: a breve tragédia sempre passou e retrocedeu afinal à eterna comédia do existir, e as “ondas de incontáveis risos” – nas palavras de Ésquilo – devem finalmente se abater sobre os maiores desses trágicos também. Mas, apesar de todo riso corretor, a natureza humana foi mudada por esse aparecimento sempre renovado dos mestres da finalidade da existência – ela passou a ter uma necessidade mais, a necessidade justamente da aparição sempre renovada de tais mestres e doutrinas da “finalidade”. O homem tronou-se gradualmente um animal fantástico, que mais que qualquer outro tem de preencher uma condição existencial: ele tem de acreditar saber, de quando em quando, por que existe, sua espécie não pode florescer sem uma periódica confiança na vida! Sem fé na razão da vida! E sempre de novo, de quando em quando, a estirpe humana decretará: “Existe algo de que não se pode mais rir em absoluto!” (Nietzsche, 2012, p. 52-53).
Essa ânsia por uma vida sólida, sem grandes curvas, voltas, transformações, sem percalços ou ilusões, na qual é possível finalmente definir imperativos categóricos e assim, garantir alguma universalidade existencial, toma força como produto da racionalidade. Para Nietzsche (2012) é justamente essa vontade de verdade que transfere a vida humana para um plano outro, seja num futuro determinado pelo progresso, seja para o mundo das ideias platônico, seja ao lado de Deus no Paraíso. Esse é o fundamento do niilismo de que falava Machado (2011), como processo de deslocamento de sentido para outra esfera que não a da vida em si, no presente, ou ainda, a própria falta completa de sentido de existência. Assim, ou o fundamento da existência se encontra em qualquer outro lugar que não na própria vida, ou ele simplesmente inexiste como substância, gerando crises existenciais em quem se perder por esse caminho desolador. Por isso, para Machado (2011), o niilismo de Nietzsche é ativo. Na falta de essência, temos a oportunidade derradeira de criar quantas ficções forem necessárias à vida na Terra. É dessa abertura que surge a possibilidade de escolhas, mesmo que nós estejamos entrelaçados, e até acorrentados, às estruturas que nos formam. Ora, podemos não matar as verdades como essências, mas isso não significa que não possamos fazê-las sangrar.
E quando falamos em sangrar, quero dizer suspeitar, duvidar, questionar, hesitar, desconfiar, ou seja, abrir, expandir, permitir o novo. Por que
[...] de tais abismos, de tal severa enfermidade, também da enfermidade da grave suspeita voltamos renascidos, de pele mudada, mais suscetíveis, mais maldosos, com gosto mais sutil para a alegria, com língua mais delicada para todas as coisas boas, com sentidos mais risonhos, com uma segunda, mais perigosa inocência na alegria, ao mesmo tempo mais infantis e cem vezes mais refinados do que jamais fôramos antes (Nietzsche, 2012, p. 13-14).
É depois da dor intensa e contínua, do desespero e do trágico vivido, que nos aprofundamos e começamos a ver a vida como um problema, no sentido em que nos permitimos exercitar a dúvida, a nos questionar mais, e isso não é amar menos a vida, diz Nietzsche (2012, p. 13), mas amar a vida de forma diferente. Uma alegria se instala em nós, quando a aflição pelo incerto se desfaz. Aliás, “não apenas o riso e a gaia sabedoria, mas também o trágico e sua sublime desrazão fazem parte dos meios e requisitos para a conservação da espécie!” (Nietzsche, 2012, p. 53). E é por isso que o riso não resolve o trágico. Eles mobilizam um ao outro.
Nisso, talvez, resida o mal que vociferam os moralistas. Esse mal que produz caos no mundo. E a ordem necessita a todo o momento de caos, para ser retomada outra ordem, e assim caminharmos inexoravelmente em direção ao futuro. No âmbito do subjetivo – nunca saímos realmente dele – Nietzsche (2012, p. 61) questiona: “e se prazer e desprazer forem de tal modo entrelaçados, que quem desejar o máximo de um tenha de ter igualmente o máximo do outro [...]”. Esses sentimentos conflitantes, desconfortáveis, indesejáveis tão próprios a existência humana, são produtivos, são necessários, são indispensáveis a própria trajetória dos sujeitos. Ao menos, naqueles que se destacaram em meio ao rebanho:
examinem a vida dos melhores e mais fecundos homens e povos e perguntem a si mesmos se uma árvore que deve crescer orgulhosamente no ar poderia dispensar o mau tempo e os temporais; se o desfavor e a resistência externa, se alguma espécie de ódio, ciúme, teimosia, suspeita, dureza, avareza e violência não faz parte das circunstâncias favoráveis sem as quais não é possível um grande crescimento, mesmo na virtude? (Nietzsche, 2012, p. 67).
Assumir a tragédia não somente como aspecto da existência, mas como a própria existência. E o que é a tragédia? O que significa viver o trágico? É atravessar tempestades, viver o que dá errado, sentir as dores que o corpo genuinamente nos oferece como aviso, alerta, suspeita, urgência. Lágrimas, angústia, grito, doença, fim. E o riso, o que tem a ver com isso? Será o que nos mantém respirando nessa condição trágica do viver. E ainda, como numa reviravolta, também produzirá esse mesmo caos que tanto tememos. Porque caos é lugar de criação. Zaratustra nos lembra: “criar – eis a grande libertação do sofrer, e o que torna a vida leve. Mas, para que haja criador, é necessário sofrimento, e muita transformação” (Nietzsche, 2011, p. 82).
Entretanto, para o mestre da ética, “[...] o novo é, em todas as circunstâncias, o mau, aquilo que deseja conquistar, lançar por terra as antigas marcas de fronteira e as velhas piedades; e somente o antigo é bom!” (Nietzsche, 2012, p. 56). Somente o seguro é bom, o que nos confere certeza, fé, realidade. O novo deturpa processos previamente maquinados, planejados pela infalível razão. Aliás, para o Nietzsche (2012, p. 69), em A Gaia Ciência,
a educação procede quase sempre assim: ela procura encaminhar o indivíduo, por uma série de estímulos e vantagens, para uma maneira de pensar e agir que, quando se torna hábito, impulso e paixão, vigora nele e acima dele, de encontro a sua derradeira vantagem, mas “para o bem de todos”.
Uma crítica pertinente aos processos civilizatórios6 que conferem ritmo e melodia à existência sociocultural humana. E será o gosto, para Nietzsche (2012, p. 80), que rege tais processos, mais que a opinião: “a mudança do gosto geral é mais importante que a das opiniões. Estas, com as provas, refutações e toda a mascarada intelectual, são apenas sintomas do gosto que mudou, e certamente não aquilo pelo qual frequentemente são tomadas, as causas dessa mudança”. Essas transformações ocorrem de acordo com as relações de poder que estabelecem tais definições: os mais fortes, em Nietzsche, estipulam o gosto, que, transformado em conduta para os demais, tornando-se necessidade.
De qualquer maneira, nosso proceder pode se expressar pela maneira como enxergamos o que nos acontece, enquanto pessoas que se dão ao luxo de refletir sobre a vida: “o pensador vê seus atos como tentativas e questões para obter explicação acerca de algo: sucesso e fracasso, para ele, são antes de tudo respostas” (Nietzsche, 2012, p. 81). Novamente, tem a ver com capacidade humana de abraçar o instante, seja ele satisfatório ou não às intenções pessoais. Mas mais que isso, é também sobre como respondemos ao acontecimento: ele nos paralisa ou nos move ao futuro? A isso podemos também relacionar sua crítica ao ceticismo. “Eu elogio todo ceticismo ao qual posso responder: ‘Tentemos!’. Mas já não quero ouvir falar de todas as coisas e questões que não permitem o experimento. Este é o limite do meu ’senso de verdade’; pois ali a coragem perdeu seu direito” (Nietzsche, 2012, p. 87). Os questionamentos, as dúvidas, a suspeita em relação a qualquer afirmação, imperativo e concordância deverá, para o pensador, nos mover para frente. É o que ele também defende quando fala de história – também de esquecimento.
Esta é a relação normal que uma época, uma cultura ou um povo devem manter com a história – relação provocada pela fome, regulada pelo grau das necessidades, dominada pela força plástica inerente à cada coletividade: é preciso que o conhecimento do passado seja sempre desejado somente para servir ao futuro e ao presente, não para enfraquecer o passado ou para cortar as raízes de um futuro vigoroso (Nietzsche, 2005, p. 98-99).
O que acumulamos como fatos, pertences, relíquias e construções, o que determinamos como valioso guardar, expor, criticar de nosso passado, e mesmo as trajetórias que desenhamos, como linhas em um quadro, reguladas por datas, por ações humanas que achamos merecem algum destaque, tudo isso para Nietzsche deve servir ao futuro, ao que temos de potência de transformação, de elevação, para o novo. Como bem aponta Marton (2016, p. 22), em Assim Falou Zaratustra, “[...] Nietzsche inscreve o conceito de vontade de potência no quadro de suas reflexões de ordem psicológica e social, encarando-o como a possibilidade de um povo superar-se a si mesmo ou de um indivíduo redimir a própria existência”. O esquecimento, então, será fundamental para Nietzsche, que não vê a História como mero acúmulo contemplativo (história tradicionalista), um obelisco para culto (história monumental), ou material para pura destruição (história crítica) (Nietzsche, 2005). Essas três vias de escrita do passado devem estar a serviço do instante, do presente, que se quer futuro em aberto.
Assim, o que nos ocorreu deve nos libertar para as possibilidades ali germinadas. Por vezes será necessário esquecer, então. E por vezes, será imprescindível lembrar, acessar o já realizado, demandando de nós “[...] momentaneamente rasgar o véu: é então que se percebe o quanto injusta é a existência de um objeto, de um privilégio, de uma casta, de uma dinastia, o quanto tudo isso merece desaparecer” (Nietzsche, 2005, p. 97). O riso rasga esse véu. Mas ele não possui qualquer compromisso em determinar uma nova ilusão. Ainda assim, ele está a serviço da vida quando vem, como um rompante, quebrar o silêncio, bagunçar nossas bugigangas tão valiosas, que guardamos como memórias importantes.
A história, para Nietzsche (2005), precisa servir à vida. Servir a superação de si, individual ou coletivamente. Olhar para o passado entendendo sua importância em nos mover para o futuro. E compreender que com a capacidade de lembrar, devemos aprender a faculdade do esquecer. Assim, agir no mundo, no presente, fortificado por uma visão de futuro que nos move, implica em fazer escolhas a respeito do que acreditamos ou sabemos sobre nosso próprio passado.
A serenidade, a boa-consciência, a atividade alegre, a confiança no futuro – tudo isso depende, num indivíduo, assim como num povo, da existência de uma linha de demarcação entre o que é claro e bem visível e o que é obscuro e impenetrável, da faculdade tanto de esquecer quando de lembrar no momento oportuno, da faculdade de sentir com um poderoso instinto quando é necessário ver as coisas sob o ângulo histórico, e quando não (Nietzsche, 2005, p. 74).
E tudo isso nos exige, de tempos em tempos, a capacidade de fazer escolhas. Liberdade de decidir, mas um tipo de decisão bem fundamentada, não em pacotes prontos de verdades, mas com uma reflexão suspeitosa, que permite a todo o momento um caminho em aberto. Esse “em aberto” se direciona ao viver no corpo, antes de tudo, e é disso que se trata também a capacidade de esquecimento: “[...] há sempre algo que faz com que a felicidade seja uma felicidade: a faculdade de esquecer, ou melhor, em palavras mais eruditas, a faculdade de sentir as coisas, durante todo o tempo em que dura a felicidade, fora de qualquer perspectiva histórica” (Nietzsche, 2005, p. 72). É disso que se trata viver no presente? Apreciar o instante? Partes do mesmo processo de existência. Há momento para pensar, e momento para sentir, desde que tais etapas estejam intimamente conectadas. E ainda, para isso, as ficções são ainda necessárias, de acordo com Nietzsche (2012, p. 88):
aparência é, para mim, aquilo mesmo que atua e vive, que na zombaria de si mesmo chega ao ponto de me fazer sentir que tudo aqui é aparência, fogofátuo, dança de espíritos e nada mais – que, entre todos esses sonhadores, também eu, o ‘homem do conhecimento’, danço a minha dança [...] (Nietzsche, 2012, p. 88).
É assim que o riso rasga o véu. Nos mostra o fogo-fátuo, sem com isso, negá-lo a ponto de buscar qualquer solidez por de trás de sua luz. Aliás, “que tolo acharia que basta apontar essa origem e esse nebuloso manto de ilusão para destruir o mundo tido por essencial, a chamada ‘realidade’?” pergunta Nietzsche (2012, p. 91). Não é suficiente a crítica, a suspeita, o questionamento. Nosso movimento deverá sempre estar atrelado à abertura criativa, pois, “somente enquanto criadores podemos destruir! – Mas não esqueçamos também isto: basta criar novos nomes, avaliações e probabilidades para, a longo prazo, criar novas ‘coisas’” (Nietzsche, 2012, p. 91). Reféns das palavras somos, nós humanos, criaturas híbridas que se metamorfoseiam, quimeras por escolha e razão. E é por isso que o riso não se justifica como risco à formação humana. A menos, é claro, que se deseje única e exclusivamente a conservação de um status quo, um arranjo específico de existência, com regras e legislaturas inalteráveis. Para aqueles que querem formar sempre o mesmo tipo de ser humano, o riso realmente pode ser um problema. Como é para o mestre da finalidade da existência: “sim, ele não quer absolutamente que riamos da existência, tampouco de nós – e tampouco dele; para ele o indivíduo é sempre o indivíduo, algo primordial, derradeiro e imenso, para ela não há espécie, não há somas, não há zeros” (Nietzsche, 2012, p. 52).
Em Assim Falou Zaratustra,Nietzsche (2011) dá continuidade à sua crítica aos detentores da verdade – se é que podemos classificá-los assim – falando do espírito de gravidade. Diz Zaratustra: “eu acreditaria somente num deus que soubesse dançar. Quando vi meu diabo, achei-o sério, meticuloso, profundo e solene: era o espírito de gravidade – ele faz todas as coisas caírem” (Nietzsche, 2011, p. 41). O espírito de gravidade, que deseja impor à vida esse tom grave, controlado, bem regrado, que de tão pesado impede a elevação de qualquer coisa. Puxa pra baixo, prende nossos pés ao seu chão, ao seu real, nos aprisionando naquilo que ele considera bom, bonito, benéfico. Mas Zaratustra branda: “vede os bons e justos! A quem odeiam mais? Àqueles que quebram suas tábuas de valores, ao quebrador, infrator: – mas esse é o que cria.” (Nietzsche, 2011, p. 23). E o espírito de gravidade, em seu peso e puxo, parece temer o que é possível criar para além de suas fronteiras. E é claro, para Nietzsche e seu alter ego Zaratustra, “não com a ira, mas com o riso é que se mata. Eia, vamos matar o espírito de gravidade!” (Nietzsche, 2011, p. 41). É o riso que quebra muros, abrindo assim horizontes de possibilidades. E mesmo que quebrar seja uma palavra um tanto radical, porque pressupõe devastar – sentimento difícil de experimentar – para Nietzsche, quem cria, precisa antes destruir.
Mas elevar-se, como uma metáfora mais etérea, sublime, é outra maneira de dizer desse distanciamento da solidez que se faz necessária estilhaçar. Zaratustra, como profeta, mestre e professor – títulos que não deseja incorporar enquanto exerce esses mesmos papéis – é exaltado por tal elevação, manifestada por esse riso constrangedor, que despedaça honrarias e promessas.
Pois há força no riso, e há leveza. Sim, “[...] juntos aprendemos a subir acima de nós, até nós mesmos, e a sorrir desanuviados:– sorrir desanuviados para baixo, de olhos luminosos e de imensa distância, quando abaixo de nós coação, finalidade e culpa embaciam como chuva” (Nietzsche, 2011, p. 156). E para subir, há que fazer força. Um paradoxo perturbador quando não se gosta de paradoxos. Quando se repudia com veemência contradições. Quando se nega a tragédia por medo de atravessar sua inevitabilidade. Quando ainda nos atrelamos a um tipo de humanidade:
até agora foi o homem, concebido enquanto criatura em relação a um Criador, quem avaliou e, como fruto de sua avaliação, estabeleceu valores que desvalorizaram a Terra, depreciaram a vida, desprezaram o corpo. É preciso, pois, combater esses valores, para que surjam outros. Tornando-se criatura e criador de si mesmo, o além-do-homem prezará os valores em consonância com a Terra, com a vida e com o corpo (Marton, 2016, p. 17).
Uma formação que assume como processo os paradoxos e as contradições próprias a Terra, à vida e ao corpo, é uma formação que não só admite esse fluxo caótico da existência, mas o deseja. Estamos falando daquela traquinagem nietzschiana clássica a que chamamos de Eterno Retorno do Mesmo. Essa fábula começa assim:
E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e ordem – e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente – e você com ela, partícula de poeira!”. – Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!”. Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?”, pesaria sobre os seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela? (Nietzsche, 2012, p. 205).
E se um dia fôssemos obrigados a responder a essa pergunta? Reagir a essa magia, que transformaria a vida num eterno looping? Uma pergunta filosófica e uma postura ética7 (Machado, 2011), o que implica na afirmação da vida: o caos sempre admitido pela vontade própria. Zaratustra prenuncia: “redimir o que passou e transmutar todo ‘Foi’ em ‘Assim eu quis!’ – apenas isto seria para mim redenção!” (Nietzsche, 2011, p. 133). Um querer-para-trás, fala Nietzsche (2011).
Para Marton (2016, p. 42), quando Nietzsche diz do eterno retorno do que nos acontece, sem desvios, sem descontinuidades, ela interpreta como sendo um processo que se dá pelo esquecimento dessa própria repetição: “para que o pensamento do eterno retorno do mesmo faça sentido, ele tem de admitir que dele já se esqueceu um número infinito de vezes, que já foi tomado por ele nos ciclos anteriores – e voltará a ser nos posteriores”. Essa percepção do conceito faz com que o Eterno Retorno quebre com qualquer possibilidade de telos, linearidade do tempo, ideia de evolução e constância:
enunciando o pensamento do eterno retorno do mesmo, [Nietzsche] insiste na necessidade de suprimir os dualismos. Essência versus aparência, imutabilidade versus transformação, eternidade versus mudança, em suma, todas as velhas dicotomias da metafísica devem cair por terra. Postulando a homogeneidade de todos os acontecimentos, recusa-se a conceder ao homem um lugar privilegiado e, pelo mesmo movimento, concebe-o como parte integrante de tudo o que ocorre (Marton, 2016, p. 44).
Quando Nietzsche diz do amor fati, dessa não só admissão, mas desejo do que já aconteceu, ele “[...] sustenta que o ser humano partilha o destino de todas as coisas” (Marton, 2016, p. 44). O que não significa um sentimento de conformidade, ou desistência sobre o agir humano. Antes de tudo, para Marton (2016, p. 44), em Nietzsche, “amar o destino é aceitar tudo o que há de mais terrível e mais doloroso, mas também tudo o que há de mais alegre e exuberante na vida; em suma, é afirmar de modo absoluto e incondicional tudo o que ocorre”. Essa afirmação envolve a suposição filosófica, ou antes, uma atitude filosófica diante da vida que diz sim, de novo, e de novo, e de novo. Assim, para Nietzsche (2012, p. 210) “faz considerável diferença que um pensador se coloque pessoalmente ante seus problemas, de modo a neles achar seu destino, sua miséria e também sua felicidade maior [...]”.
O amor fati, o amor ao destino, daquele que diz Sim! O afirmador da vida, entendendo vida como tudo que nos acontece. Atravessar e disso estabelecer novas direções, que mobilizem a vontade de potência, a capacidade de escolher, e antes de tudo, criar. Tem a ver com uma filosofia que preza pelo instante, pelo presente. O que eu faço com o que me acontece? Nisso, não há conformismo diante do mundo e suas extremas desigualdades e problemas sociais. Trata-se de uma filosofia que não te permite ser paralisado pela sua própria condição de existência. O que também não significa uma positividade inocente, superficial, que não se deixa perturbar pelo trágico. É preciso sentir a aflição, a tristeza, a angústia. Urrar de dor e a partir disso, tornar-se o que se é. Dirá Nietzsche (2019, p. 93) “[...] é preciso ter necessidade de ser forte: do contrário jamais assim se torna”.
RISO COMO EXPERIÊNCIA FORMATIVA
A questão que gira em torno da obra de Nietzsche, suas notas, gatilhos reflexivos instalados em seus aforismos, que como pulsões de seu próprio corpo nos faz ressoar, reagir e interromper nossos próprios processos mentais, certamente tem em suas nuances pistas filosóficas que podem contribuir em muito para construir novas percepções sobre como e para que formamos humanos. Antes de tudo, como nos autoformar, diante dos contextos de que participamos, as comunidades com quem interagimos e as condições de sobrevivência em que nascemos e prosperamos – ou não. O riso, como parte fundamental da perspectiva nietzschiana sobre a existência, uma força do corpo e uma força social, cultural, que tem efeitos sobre como fazemos escolhas e interagimos com o outro, precisa ser considerado, então, não apenas como mero instrumento pedagógico, mas como energia de mobilização.
Nesse sentido, podemos pensar, por exemplo, nos efeitos do riso em sala de aula. Um aluno que ri em sala interrompe o fluxo da aula, da fala do professor, constrange esse momento solene, e, portanto, é costumeiramente visto como um obstáculo, um personagem inconveniente que obstrui um processo que deveria fluir de maneira constante, em suas etapas pré-estabelecidas pela autoridade em sala. O aluno que ri, qualquer que seja o motivo, razão ou circunstância, está fadado a pagar por um crime grave: o de profanar a sacralidade do ensino. Isso porque, a Escola, dentre tantas outras coisas, também é lugar de controle E o lugar da verdade. Nele,
o corpo [...] tornou-se prisioneiro dos calabouços frios e escuros da educação constituída no viés cartesiano marcado pelo controle, pelas normas, pela disciplina, e justificado e validado pelos supostos benefícios do saber racional. No entanto, é impossível desassociar a aprendizagem das emoções, do desejo, do riso [...] (Medeiros; Laurentino, 2013, p. 80).
Portanto, a Escola também pode ser o lugar da dúvida, da incerteza, da pluralidade de pontos de vista? Certamente.
Mas ela não deixa de ser um lugar de controle, pois é onde o conhecimento a ser ensinado depende de certa sistematização, estrutura, formas pré-estabelecidas advindas de um consenso sobre o que é importante – e o que não é – ser ensinado. O currículo é expressão dessa necessidade (Silva, 1999), e também a relação de autoridade estabelecida entre professor e aluno, esse ser sem luz que precisará ser preenchido, esclarecido, iluminado, durante o processo de ensino-aprendizagem8. Nesse sentido, e nesse lugar, como podemos trabalhar com o caos do riso? Uma sugestão: o aluno que ri pode ser apenas um inconveniente ao professor sobrecarregado com 30 turmas em três escolas públicas diferentes, ou uma porta para uma nova reflexão sobre o conteúdo ministrado. Isso depende da disponibilidade do professor em considerar tais intervenções a partir do ponto de vista da coragem – e não do insulto. Larrosa (2006, p. 169) admite:
aos professores nos falta, talvez irremediavelmente, essa aristocracia de espírito, essa finura de espírito, essa leveza que ainda tinha o pensamento quando não era monopólio dos professores, quando ainda não se havia contaminado dessa austeridade pedagógica, moralizante, solene, dogmática e um tanto caspenta que é própria do tom professoral.
O “tom professoral”, diante do riso que irrompe como força tão humana no estudante que ainda não incorporou completamente a legislação comportamental da sala de aula, pode se tornar agressivo e repressor. Mas isso depende de que tipo de professor desejamos ser. E em confluência, implica no tipo de sujeitos que desejamos formar. Esse riso, descontrolado pode ressonar no professor como uma interrupção de sua normalidade, do enredo solidificado de sua aula, e certamente, se assim ele estiver disposto, do seu próprio ponto de vista sobre os conteúdos ali se propõe ministrar.
O riso expressa um ponto de vista humorístico, uma visão que brinca com o discurso, com o que consideramos real, verdadeiro. E essa visão se alia ao que o corpo por si só expressa na pulsão do riso, da gargalhada, ou mesmo, do mero insight sarcástico. E ela marca o sujeito, dado que é produto de uma subjetividade. Ora, se o aluno riu, o que foi dito em sala teve alguma importância. Se teve valor, não importando qual seja seu grau ou qualidade, que bela oportunidade de fazer uso, para o professor, dessa porta que se abre. Inclusive, utilizando-se do próprio riso e da linguagem humorística que o provoca, para responder a esse impulso. Conectar-se, a partir do riso, com esse sujeito em formação, com seu corpo que grava informações, produz reflexões, tem a capacidade de criar o novo, deveria ser no mínimo uma possibilidade da educação que deseja desenvolver mais que mão de obra barata ou autômatos bem treinados no modo rebanho...
Há, contudo, a necessidade de o professor dizer sim a esse caos. Admitir o riso como parte inesperada do que se projetou para o momento da aula, assumindo o ato como produtivo, mesmo que não se saiba exatamente do que. É comum, entretanto, que se evite esse tipo de acontecimento por medo – ou mesmo repulsa – do que o riso pode promover. Como no escárnio, por exemplo, essa forma brutal de mover as palavras como arma de ataque. Enquanto desprezo e zombaria de alguma sacralidade estabelecida, o escárnio pode ser um grande destruidor de almas. Mas não se trata aqui de promovê-lo a instrumento pedagógico, institucionalizando sua prática como linguagem corrente em sala de aula, e com isso, de promover bullying entre colegas ou alunos e professores. Mas o escárnio como fato, como acontecimento imprevisível que se dá ou não na vida dos sujeitos, pode ser elaborado como catalisador de reações em potência, que nos levem a superação de nossas próprias condições. Ora, uma piada que estimula violência, ou que promove a perpetuação de condições de opressão; como ela pode permitir o aprendizado, se seu fundamento reside justamente na incapacidade do sujeito de se colocar em movimento em meio ao contexto de relações socioculturais de que fazemos parte? Se sua base é a ausência de autocrítica, ou de suficiente interesse sobre si mesmo e a reflexão que disso resulta? Um riso que quer a manutenção das condições vigentes de existência, em detrimento do novo, do movimento, da criação, esse riso pode ser encarado pelo professor justamente como o fato trágico que permite o conhecimento, antes de ser apenas um acontecimento a ser repreendido ou meramente afirmado. Ele é gerador, assim como qualquer outra situação, de experiência formativa, desde que o professor esteja aberto a fazer uso do riso que, combativo, questionador, dá lugar à reflexão.
Nesse sentido, como pulsão, o riso, seja pelo escárnio, por piadas que promovem a manutenção de um contexto que paralisa o potencial humano ou qualquer outra motivação como simplesmente achar algo engraçado, pode contribuir para mobilizar potências, desde que aceitemos a vida a partir de seu presente, de seus acontecimentos, e os caminhos que o inesperado pode abrir à frente. Como um fato trágico pode me mobilizar nas relações de que participo? O caminho do ressentimento é paralisante. Entretanto, para justamente evitar a imobilidade, sendo o riso como um parâmetro possível de entendimento do conteúdo, por exemplo, há que ser capaz de rir de si mesmo, de estar disposto a quebrar com suas próprias compreensões de si, do que é importante preservar moralmente, para então se tornar não apenas imune ao escárnio alheio, mas com ele ser capaz de criar coisas novas, para si e para os outros. Ora, o riso só se combate com mais riso: “uma perda não demora muito sendo uma perda: de algum modo nos chegou, juntamente com ela, uma prenda do céu – uma nova força, por exemplo: ainda que seja apenas uma nova oportunidade para ter força!” (Nietzsche, 2012, p. 192).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O constrangimento implicado no riso de Nietzsche tem a ver com um rompimento com as regras morais, mas que busca pelo novo, e não pela conservação da normatividade – o que o riso também é capaz de fazer. O riso nietzschiano é o primeiro passo para tornar o caos positivo. Mas também não se trata de um contentamento radical com a vida – essa postura expressaria conformação, antes de vontade de potência. A questão, para Nietzsche (2011), está em saber dizer “Eu”, “Sim” e “Não”. É sobre essa força individual de decidir sobre como reagir ao que lhe acontece, sendo o riso uma das maneiras de se movimentar nessas escolhas.
Tentamos mostrar, ao longo deste artigo que, ao escolher o riso como forma de voar sobre o que nos acomete, e portanto, como gatilho para interrupções necessárias à reflexão, como forma que o corpo encontra para duvidar, questionar, estabelecer uma relação de distanciamento com o cotidiano imposto, o sujeito se propõe um tipo de cuidado de si que é permeado por esse dizer-a-verdade de seu corpo – aquilo que lhe é espontâneo –, que segundo Michel Foucault (2011) é uma forma de estabelecer uma relação com a vida que é criadora, e, portanto, algo da dimensão artística. Artística porque a forma como se vive precisa estar alinhada ao seu conteúdo, no sentido de fazer da vida uma obra de arte (Foucault, 2013), criando, a partir dos acontecimentos, uma maneira de ser e fazer, de se mostrar ao mundo, e partilhar de sua produção de maneira livre. É tornar o que nos acontece, algo nosso. Nesse sentido, apresentamos o riso de Nietzsche como produtor de experiência formativa, que pode nos ajudar a transformar o que é sólido em nós – ao menos o que tem sido sólido –, em massa de modelar para um novo sujeito que daí surge. E isso implica em levar em consideração tudo que envolve o corpo: a existência com seus erros, suas dúvidas, suas tragédias, suas alegrias e prazeres.
A importância da aparência, do aspecto apolíneo da vida, da arte que torna o mundo, por meio de suas figuras, palavras e pinceladas, em algo possível de se viver, está completamente conectada ao que produzimos de realidade concreta. Aliás, como Nietzsche (2007) bem elabora em O Nascimento da Tragédia, é a arte que tem poder de tornar sublime àquilo que nos dá náusea, o horror trágico que nos acomete. Ele se refere a tempos gregos anteriores à filosofia clássica, em que tanto o caos dionisíaco quanto a harmonia apolínea se completavam na dança da existência. Não só é preciso dar sentido à vida com palavras, essas ficções reguladoras, mas antes, que esses sentidos nos pertençam em alguma medida, com o singelo objetivo de nos tocar enquanto seres potentes, que podem escolher e mais: desejam criar. Nesse sentido, o erro como interrupção, obstáculo, desajuste que nos leva a possibilidades não desbravadas, pode ser ressignificado no sobrevoo do riso, para que essa astúcia não nos destrua – levandonos a um niilismo negativo.
Talvez a grande lição do riso nietzschiano, pensando nele como produtor de experiência que forma sujeitos para o futuro a ser construído, não resida no radicalismo de suas afirmações, quando ele nos vocifera do passado que precisamos quebrar as tábuas, rir de todos os mestres, elevarmo-nos a despeito de qualquer gravidade, mas do quanto esse radicalismo pode reverberar de fato em nossa existência, o que se dá, senão, em doses homeopáticas, como uma necessidade de descanso de nós mesmos, como Nietzsche (2012) diz em A Gaia Ciência.
Há que se destruir morais, mas essa destruição, por mais agressiva que a palavra possa transparecer, pode se expressar simplesmente em uma atitude crítica, que assumindo sua liberdade, faz escolhas. Criação que sempre se dará a partir de relações de poder das quais participamos, e que expressam regras, normas, condutas de um tempo, como afirma Foucault (2011). A formação humana, em sua pluralidade de sugestões, técnicas, argumentos e finalidades pode receber, em suas nuances mais sutis, a inspiração desse caráter, que se coloca no mundo como sujeito que no mínimo, duvida. Essa dúvida tem aqui, entretanto, como fundamento e combustível, a intransigência absoluta de Zaratustra (Nietzsche, 2011), quando ele se interpõe à presunção dos homens que dizem saber o que é bom e o que é mau. Ele nos pede para derrubar tais presunções, para rir delas e de todos os mestres. E antes de tudo, nesse movimento, jamais deixar de rir de si mesmo. Um riso que fala da verdade de si, porque expressão unívoca do corpo e de sua existência no mundo.