INTRODUÇÃO
A educação e a construção de futuros
Para além do caráter propedêutico, frequentemente recrutado em noções a respeito da educação escolar como impulso para o alcance de determinados padrões de “sucesso” individual, a relação entre a educação e o futuro vem sendo atravessada também no contexto contemporâneo pela demanda por formação para a construção de cenários mundiais mais satisfatórios (Ioannidou; Erduran, 2022; ONU, 2015). Essa demanda se apresenta no contexto educacional diante das crises ambientais e da busca pela construção de futuros planetários comprometidos com a sustentabilidade (Pacis; Van Wynsberghe, 2020; Xiang; Meadows, 2020).
Essa tendência pode ser evidenciada pelo menos desde a virada do século XX para o século XXI, quando já se menciona a ideia de planejar uma educação capaz de suplantar a participação dos países na “criação do futuro” (UNESCO, 1996, p. 96). É nesse contexto que um campo de estudos voltado especificamente a pensar os modos de lidar com a incerteza, os chamados “Estudos de Futuro”, passam a enfatizar, sob influência da globalização neoliberal, o compromisso com os trabalhos de prospecção, projetando futuros possíveis e prováveis, bem como os caminhos para o alcance de cada cenário elaborado (Son, 2015).
Esse modo particular de lidar com a incerteza se apresenta no contexto educacional já no século XXI, por sua vez, envolvido com atribuições frequentemente recrutadas por perspectivas educacionais voltadas à formação para a cidadania, sobretudo no que diz respeito à tomada de decisões em nível individual e coletivo. Nesse sentido, uma formação que valoriza a agência dos sujeitos diante do mundo tem se apoiado também na admissão de que a não inexorabilidade do futuro representa uma demanda e uma oportunidade para a ação (Hodson, 2003). É nesse contexto que emerge o que vem sendo denominado “futures literacy” ou “letramento em futuros”, um conceito recrutado no contexto da educação em ciências por uma abordagem particular que reúne referenciais da Educação STEM e seus acrônimos correlatos3 e dos Estudos de Futuro: a Educação em Ciências Orientada para o Futuro4 (Levrini et.al., 2019).
O letramento em futuros é uma expressão difundida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), que remete a uma modificação na ‘governança humana’ diante da necessidade de “usar o futuro de forma mais eficaz e eficiente” (UNESCO, 2019). De acordo com a Unesco, esse ‘uso do futuro’, deve levar não somente ao atendimento das metas da Agenda 2030 (ONU, 2015), mas também deve ser capaz de permitir aos sujeitos irem "além da dependência da ilusão de certeza e das fragilidades que isso cria”. Nesse sentido, o letramento em futuros é admitido como base para uma ação consciente no presente munida de reflexividade (Mangnus et. al., 2021), servindo à demanda de formação de sujeitos ativos, críticos e empoderados para agir sobre problemas de ordem global (Ioannidou; Erduran, 2022).
A respeito disso, é válido ressaltar que a relação entre o letramento e o futuro nos discursos da Unesco não está restrita à conceituação de um letramento em futuros, mostrando-se até mesmo no Slogan do Dia Internacional do Letramento/Alfabetização: “Reading the past, writing the future” (Santos, 2017). Sob essa tarefa de “escrever o futuro” em termos de projeção e de agência capazes de influenciar a ocorrência de um “depois” mais satisfatório, a relação entre a educação e a construção de futuros é expressa no campo curricular, entre outras atribuições, na ênfase a questões específicas da contemporaneidade, notadamente aquelas de natureza socioambiental, sobre as quais se espera impulsionar a atuação dos sujeitos.
Porém, a ideia de se debruçar sobre os futuros de modo ativo e construtivo nos discursos alinhados aos Organismos Multilaterais não se distancia de uma perspectiva marcadamente utilitária diante da natureza, a qual é frequentemente referenciada sob a nomeação de “recurso”. Esse utilitarismo é reforçado por expressões como “usar o futuro” mobilizadas sob uma lógica pragmática de eficiência e eficácia. Além disso, a própria ideia de cidadania global, com a qual se relaciona a defesa pela construção de futuros compartilhados (UNESCO, 2022), é historicamente associada ao liberalismo clássico e encontra proeminência na contemporaneidade sob a égide de discursos neoliberais (Bastos, 2019).
Diante disso, apesar dos declarados compromissos com a justiça social e ambiental assumidos nos enunciados favoráveis a uma formação para a construção de futuros (ONU, 2015), é importante que os discursos a respeito dessa formação, presumida como adequada para os desafios deste século, sejam encarados sob apreciação cautelosa. Essa apreciação cautelosa, por sua vez, não prescinde de um olhar territorializado para o modo como a formação para a construção de futuros vem sendo tratado em diferentes contextos locais, munidos de circunstâncias sociais, ambientais e históricas particulares.
No que se relaciona ao Brasil, tendo como base a polissemia que envolve as menções ao futuro no contexto educacional (Silva; Martins, 2023) e a histórica influência das preocupações com o futuro ambiental sobre a área de ciências da Natureza (Levrini et. al., 2019), é de grande relevância o alinhamento declarado pela BNCC à Agenda Ambiental 2030 e às metas específicas para a Educação tida como de qualidade (IPEA, 2019). Tendo isso em vista, buscamos nesta investigação analisar possíveis marcas de aproximação entre (i) retóricas sobre o Futuro presente na BNCC e; (ii) noções de educação de qualidade atravessadas por demandas neoliberais que marcam a educação contemporânea. A análise se debruçou sobre as indicações gerais para o Ensino Médio, que alicerçam as indicações específicas de cada área do conhecimento nessa etapa de formação.
Nesse sentido, e de forma coerente com os princípios e procedimentos da Análise Crítica do Discurso (Chouliaraki; Fairclough, 1999), apresentamos uma análise da conjuntura da construção da BNCC, que incluem problematizações acerca de aspectos político-ideológicos do documento e do contexto global que atribui demandas aos currículos locais para uma formação alinhada à construção de futuros. Tais considerações são mobilizadas nas análises subsequentes de excertos específicos do documento curricular, que mobilizam e constroem sentidos para o futuro.
Aspectos conjunturais da construção de uma Base Nacional Comum Curricular para o Brasil
Problematizar os sentidos atribuídos ao futuro no documento que se estabelece como base para uma educação brasileira adaptada às necessidades contemporâneas abre caminho para a investigação de sentidos associados ao que vem a ser sociedade, qualidade educacional e cidadania oficialmente autorizados. Nesse âmbito, a investigação permite pensar sentidos presentes e ausentes para uma cidadania intimamente vinculada à tomada de decisões, assim como para o que se concebe como um futuro desejável e possível.
Na história curricular brasileira, a defesa por um currículo comum já pode ser identificada em meados da década de 1960, com a primeira versão da Lei de Diretrizes e Bases - LDB (Krasilchik, 2000). Modificada na década seguinte sob a lei de número 5.692 (Rodrigues; Mhor, 2021), já se estabelecia que os currículos da educação básica deveriam se organizar a partir de um “núcleo comum, obrigatório e em âmbito nacional, e uma parte diversificada para atender, conforme às necessidades e possibilidades concretas, às peculiaridades locais, aos planos dos estabelecimentos e às diferenças individuais dos alunos” (Brasil, 1971, Art 4º). Nesse mesmo documento, já se menciona no Art.1º a formação para o desenvolvimento pessoal, a cidadania e o ingresso no mercado de trabalho (Brasil, 1971) como objetivos gerais da educação básica.
Outro marco importante no histórico de construção de um currículo comum para o Brasil é a Constituição de 1988 - ou Constituição Cidadã (Brasil, 1988), que declara, como parte da garantia de direito educacional, a necessidade de uma formação básica comum para todos os brasileiros. Na década seguinte, ocorre a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBEN (Brasil, 1996), que menciona, nas disposições gerais, a necessidade de assegurar aos estudantes brasileiros “formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhes meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores” (Brasil, 1996, Art 22). A partir de atualização dada pela Lei nº 12.796, de 2013, esse documento discorre a respeito da construção de uma Base Nacional Comum. Segundo o Artigo 26 (Brasil, 1996, Art. 26),
Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos (Redação dada pela Lei nº 12.796, de 2013)
É válido ressaltar que, mediante a Lei no 13.415, de 2017, a LDBEN passa a admitir que os direitos e objetivos de aprendizagem referentes ao ensino médio deverão seguir a divisão em áreas do conhecimento, a saber: linguagens e suas tecnologias, matemática e sua tecnologias, ciências da natureza e suas tecnologias e ciências humanas e sociais aplicadas. Essa modificação no texto da LDBEN se dá após a medida provisória (MP) de número 746, que propunha a divisão das 13 disciplinas do Ensino Médio (EM) em cinco itinerários formativos, os quais marcam as indicações posteriores presentes na Etapa de EM na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Esta, por outro lado, apresenta uma diferença marcante: não há especificações para o que deve ser trabalhado por cada disciplina dentro das grandes áreas do conhecimento.
Além da LDB, a década de 1990 e a virada para os anos 2000 foram marcadas pela promulgação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), que admitem um caráter norteador para as atividades docentes. Em 1998, foram homologados os PCN do Ensino Fundamental, e em 2000, os PCN do Ensino Médio. Nesse documento norteador, defendese, em especial no ensino fundamental, um compromisso com uma educação ‘para além dos muros da escola’, além de modificações no ensino médio que fizessem jus às demandas da globalização e do desenvolvimento tecnológico em curso (Larroyd; Duso, 2022). Mais particularmente no Ensino Médio, são valorizadas a interdisciplinaridade e a contextualização dos assuntos trabalhados, além da apresentação, ainda incipiente, de uma proposta curricular alinhada ao desenvolvimento de habilidades e competências (Larroyd; Duso, 2022; Santos; Moreira, 2020).
Nesse sentido, de acordo com Rodrigues e Mohr (2021), os PCN demonstram um alinhamento significativo ao Relatório Delors, que apresenta demandas para a educação global na virada entre os séculos XX e XXI. Esse relatório, além da defesa pelo desenvolvimento de habilidades e competências, propõe que os sistemas educacionais forneçam respostas “para os múltiplos desafios da sociedade da informação, na perspectiva de um enriquecimento contínuo dos saberes e do exercício de uma cidadania adaptada às exigências do nosso tempo” (UNESCO, 1996, p. 28).
Nesse contexto, é importante salientar que os PCN publicados em 1998, referentes ao Ensino Fundamental, são contrários à ideia de formação para um futuro distante no que se refere à área das Ciências Naturais. Segundo o documento,
Considerando a obrigatoriedade do ensino fundamental no Brasil, não se pode pensar no ensino de Ciências Naturais como propedêutico ou preparatório, voltado apenas para o futuro distante. O estudante não é só cidadão do futuro, mas já é cidadão hoje, e, nesse sentido, conhecer Ciência é ampliar a sua possibilidade presente de participação social e desenvolvimento mental, para assim viabilizar sua capacidade plena de exercício da cidadania (Brasil, 1998, p. 23).
Já na segunda década do século XX, foram promulgadas, em 2013, as Diretrizes Curriculares Nacionais - DCN (Brasil, 2013), com a reafirmação da recusa a uma formação limitada aos conteúdos e o incentivo a abordagens interdisciplinares e à integração das disciplinas em áreas do conhecimento (Pissara; Ferrari, 2020). No ano seguinte, é lançado o Plano Nacional de Educação - PNE (Brasil, 2014), um plano decenal cuja discussão tem início na Conferência Nacional de Educação em 2010 - CONAE 2010. O PNE constitui-se de 20 metas e 254 estratégias voltadas ao compromisso com o alcance amplo de educação de qualidade no Brasil. Esse documento, junto à Constituição de 1988, à LDB e às DCN, é utilizado como fundamento legal para a construção da Base Nacional Comum Curricular - BNCC (Diógenes; Valoyes; Euzebio, 2020).
A construção da BNCC perpassou, inicialmente, três versões, sendo a primeira divulgada no ano de 2015, a segunda em 2016, e a terceira em 2017. Essa construção se deu em um período marcado por turbulências políticas no território nacional, o que, segundo Aguiar (2018, 2019), afetou o compromisso com o caráter democrático na formulação da Base. Nesse cenário, houve um rompimento com a ideia de integralidade da educação básica diante da separação da BNCC em duas partes, uma voltada para a Educação Infantil e para os anos iniciais e finais do Ensino Fundamental e outra para o Ensino Médio (Aguiar, 2018). Desse modo, a versão homologada em 2017 referia-se somente às duas primeiras etapas, que foram complementadas no ano de 2018 por indicações específicas para os três anos do Ensino Médio.
A BNCC vigente atualmente admite a continuidade de algumas das características presentes em documentos curriculares anteriores, como é o caso da divisão em áreas do conhecimento e do alinhamento à lógica das habilidades e competências, que também marcam os Parâmetros Curriculares Nacionais. No que tange à divisão em áreas do conhecimento, porém, os PCNs admitem somente três áreas, enquanto a BNCC assume a separação entre a área de Ciências da Matemática e suas tecnologias e a área de Ciências da Natureza e suas tecnologias. Além disso, como já citado, a Base não separa as áreas do conhecimento em disciplinas, como era feito nos PCN (Vieira; Nicolodi; Darroz, 2021).
Apesar dessas diferenças, pode-se perceber que a construção de um currículo comum para o Brasil não se inicia com a BNCC, mas apresenta fundamentação legal a partir de Legislações que datam desde a segunda metade do século XX. Os imperativos que alicerçam esse amparo legal voltam-se, por sua vez, à defesa pela garantia geral de direito à educação, atravessada pela busca por justiça social e formação para a cidadania. Essa busca é declarada sem, por outro lado, haver o distanciamento do compromisso com a economia e as demandas do mundo globalizado, marcado por modificações tecnológicas e laborais, além dos crescentes desafios ambientais. Desta forma, marca uma ambivalência no que diz respeito à formação para a cidadania e à formação para o mercado de trabalho como necessárias, sem que sejam problematizados os compromissos com bases ideológicas envolvidos na conceituação destas demandas ou seus condicionantes sociais, históricos e políticos.
A BNCC diante da homogeneização de modos de ser, estar e pensar o mundo
Para além das impossibilidades dos currículos prescritos de fazer jus às nuances do que ocorre nas experiências escolares, experiências que não cabem no entendimento do “nacional como homogêneo e do comum como único” (ANPED, 2015, p. 2), as Normas Comuns abrem caminho para uma maior influência das corporações sobre as políticas educacionais. Tudo isso a despeito do que dizem as vozes silenciadas dos reais atores do campo educacional: professores, pais, alunos (Süssekind; Maske; Oliveira, 2022).
Nesse sentido, o que se observa nas políticas recentes de formulação de um currículo comum para o Brasil é um fortalecimento da proeminência de redes do setor privado com domínio sobre a construção de noções de qualidade, como é o caso da Fundação Lemann. Esta, que, de acordo com Süssekind, Merladet e D’avignon (2022), produziu uma influência sobre a BNCC aos moldes daquela exercida pela Fundação Gates sobre o Common Core nos EUA. Esse movimento marca, assim, uma hegemonia do modo de funcionamento neoliberal sobre o campo educacional que transpassa as barreiras nacionais e se constitui como uma tendência em âmbito global.
Desse modo, a BNCC, além de ser atravessada por um tipo de ‘tsunami neoliberal’ (Oliveira; Süssekind, 2019), enquanto currículo prescrito (Goodson, 2007) é, de acordo com Süssekind (2014), uma impossibilidade, uma vez que ofusca, ignora, e busca calar o que é singular das conversas complicadas em que o currículo se faz. É válido ressaltar, porém, que, de acordo com a autora, esse currículo prescrito e 'escriturístico' (Certeau, 1994; apudSüssekind, 2014) busca calar, mas não cala, uma vez que, se constitui como uma impossibilidade “plena de possibilidades de burla, desobediência e pluralidade, mesmo que permanentemente invisibilizadas e desautorizadas” (Süssekind, 2014, p.13). É nesse sentido que Süssekind (2014, p. 1521) defende que
[...] em sua ordinariedade, em sua comum-nidade, vivendo em comunidade (onde o homogêneo é epistemologicamente inviável e politicamente indesejável) os homens comuns inventam ideias, interpretações, significados e currículos diferentes todo tempo, em movimentos de bricolagem, negociação e acordo mas não de unificação/homogeneização.
Esse potencial criativo, inventivo e desobediente em que se dão essas conversas complicadas (Süssekind, 2014), por sua vez, frente ao constante desmantelamento do público em meio a processos de mercantilização da educação, precisa ser fortalecido junto de um compromisso político de combate à proeminência do capital (Süssekind; Merladet; D’avignon, 2022) a despeito do que é direito dos cidadãos. Esse direito, por outro lado, necessita ser concebido, significado e constantemente reforçado como próprio de cidadãos sujeitos, não cidadãos objetos, como frequentemente são tratados os estudantes a quem a escola dita de qualidade é posta para atender (Süssekind; Maske; Oliveira, 2022).
Demandas para a educação atravessadas pela perspectiva de futuro incerto
Em nossas pesquisas, situamos a análise da BNCC apoiando-nos em autores como Bennett e Lemoine (2014), que cunharam o acrônimo “VUCA”5 para caracterizar a realidade contemporânea como volátil, incerta, complexa e ambígua. Uma realidade que se modifica a todo momento, que é incontrolável e que, por isso, demanda um tipo de adaptação a tudo o que pode vir a acontecer. Essa perspectiva aproxima-se de modo singular ao contexto de incerteza que atravessa os Estudos de Futuro no início do século XXI (Monda, 2018), abrindo caminho para demandas, também no campo educacional, para o desenvolvimento de estratégias capazes de enfrentamento desse caráter imprevisível do mundo.
Nesse contexto, a relação que Organismos Multilaterais defendem ser esperada por parte dos sujeitos formados pela ‘educação do século XXI’ está atrelada, em primeiro lugar, a uma noção de aceleração das mudanças sociais por influência da aceleração das transformações tecnológicas (Rosa, 2013). Porém, representa também um modo específico de relação com as irregularidades dos eventos diante dos perigos carregados pela relação predatória dos humanos com a natureza. A não inexorabilidade do futuro é tratada, desse modo, como indício de que é possível forjar um mundo desejado.
Nesse âmbito, a formação para a construção de futuros associa-se ao estímulo a uma cidadania caracteristicamente situada entre as preocupações ambientais e o reconhecimento do caráter global das crises que permeiam o Antropoceno, centralizando um modo particular de lidar com as imprevisibilidades inerentes a um contexto de crise. Nesse cenário, como indicado por Serrano Castañeda, Morales e Álvarez (2024), mostra-se imprescindível pensar uma educação que valorize as experiências particulares dos sujeitos participantes dos processos educacionais no que tange às suas relações com a natureza. No contexto da educação básica, por sua vez, a agência impulsionada pela escola, em meio a uma formação comprometida com a construção de futuros, é frequentemente tratada, especialmente no campo da educação em ciências, como atrelada ao estímulo ao ativismo e à cidadania ambiental.
Para Reis (2021), esse estímulo deve partir, entre outras instâncias, de uma educação comprometida com um desenvolvimento holístico, não restringindo o que pode ser concebido como ‘sucesso escolar’ ao âmbito acadêmico, mas assumindo-o como imerso em uma mobilização dos estudantes diante dos problemas das comunidades e dos ecossistemas com os quais convivem. A respeito disso, para além de lidar com questões sociocientíficas, o autor advoga a favor de um tipo de ‘empoderamento’ dos jovens, que deve servir de alicerce para uma participação política engajada visando ao enfrentamento de regimes não democráticos.
No entanto, é também sob a égide da construção de futuros que a flexibilidade e a resiliência passam a ocupar o espaço de características demandadas para todo e qualquer indivíduo a quem, por um lado, é direcionada a possibilidade de sucesso e, por outro, a fuga do fracasso.
É nesse mesmo cenário que emerge uma significativa valorização do aprimoramento constante de si, de quem tudo depende para que os anseios pessoais sejam alcançados, mas que requer um tipo de aprendizado para toda a vida. Associa-se a isso o que Chauí (2020) vem denominando como lógica do “empresário de si mesmo”, decorrente de uma ‘expansão imperialista do neoliberalismo’, na qual a responsabilização individual é aumentada frente à desresponsabilização social do Estado.
ELEMENTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS PARA UMA ANÁLISE CRÍTICA DOS DISCURSOS SOBRE FUTURO NA BNCC
Nossa investigação se configura como uma pesquisa documental, de caráter qualitativo, pautada no arcabouço teórico-metodológico da Análise Crítica do Discurso - ACD (Chouliaraki; Fairclough, 1999; Fairclough, 2012, 2016). Esta perspectiva concebe o discurso como ação e representação. Consonante com as bases epistemológicas do Realismo Crítico (Bhaskar, 1979), assume que o discurso é influenciado pela realidade, mas também é capaz de influenciá-la. Dessa maneira, constitui-se como uma prática não limitada à representação do mundo, mas capaz de gerar também sua significação, o que implica no que Fairclough (2016, p. 95) denomina como ‘construção do mundo em significado’.
Nos processos de construção do mundo a partir das significações e ressignificações, o discurso usado de modo retórico é compreendido por Fairclough (2006) como propenso à projeção de visões particulares da globalização, que operam com o potencial de justificar e/ou legitimar ações que sustentam relações assimétricas de poder. Nesse sentido, de acordo com o autor, os estudos que se debruçam sobre as retóricas, uma vez considerando o discurso como uma das facetas da globalização, preocupam-se com o modo como “representações da globalização são usadas para alicerçar ou legitimar ações e políticas dentro de argumentos particulares” (p. 14).
Nesse âmbito, investigar as retóricas a respeito do futuro presentes em discursos que afirmam o que vem a ser uma educação adequada considerando as necessidades da contemporaneidade em um cenário de crise ambiental global exige atentar a possíveis estratégias discursivas que, valorativamente, sustentam noções particulares de falhas passadas e de possibilidades futuras (Fairclough, 2006). Nesse cenário, Fairclough (2006, p. 18) argumenta que grupos de agências e agentes “desenvolvem alternativas e, frequentemente, estratégias competitivas, especialmente em tempos de instabilidade ou crise, para uma mudança estrutural”.
Assim, considerando os espaços enunciativos de onde partem os discursos que, com maior ou menor grau, contribuem para legitimar determinadas noções do que vem a ser adequado de ser buscado pela e/ou para a ‘educação do século XXI’, é válido ressaltar que as relações assimétricas de poder estão abertas ao sustento e também ao desmantelamento. A esse respeito, tomando como base a ideia de que os discursos, como “atos performativos” são capazes de “produzir aquilo que nomeiam” (Butler, 2003, p. 48), é possível enxergar as retóricas da globalização como alicerces não somente para o fortalecimento de assimetrias já existentes, mas também para a criação de novas relações de poder ou a uma resistência às hegemonias vigentes.
Nesse sentido, admitindo o discurso como um modo particular de representar as experiências no mundo e também como um dos momentos das práticas sociais que se relaciona dialeticamente com as identidades sociais, os valores culturais, a consciência, as atividades produtivas e os meios de produção (Queiroz; Freire, 2014), às mudanças simbólicas atravessadas pelas semioses são capazes de afetar o todo social por processos simultâneos de reflexão e refração. A esse respeito, Fairclough (2006, p. 16) afirma que narrativas particulares podem assumir efeitos causais sobre os acontecimentos concretos, uma vez que
Narrativas que são plausíveis para um número suficiente de pessoas e nas quais elas podem acreditar levam-nas a investir (seu tempo, energia, dinheiro e outros recursos) nos futuros imaginários que essas narrativas projetam [...].
Sob esse modo de operação das semioses (como elementos ou momentos das práticas sociais), na presença de hegemonia de discursos neoliberais no campo educacional e de demandas por um ensino de ciências capaz de fazer frente à crise ambiental em curso, o questionamento da lógica de proeminência da economia nas decisões globais encontra como empecilho o que pode ser identificado como ‘ideologia do crescimento’ (Fairclough, 2006). Uma ideologia que se forma com base na presunção de que a medida do desenvolvimento humano é a mesma do crescimento econômico. Nessa perspectiva, os sentidos associados ao que ocupa o universo semântico do futuro em textos curriculares locais que se comprometam com demandas globais de formação para a sustentabilidade, mais particularmente, do futuro desejável, devem ser compreendidas como influenciadas por noções particulares do que é preciso sustentar enquanto projeto de sociedade. Palavras presentes nesse universo semântico, como é o caso dos termos “progresso”, “avanço”, “desenvolvimento”, “melhora”, assim como o futuro tanto enquanto objeto (aquilo para o que se prepara ou o que se quer preparar) como enquanto qualificador (que especifica de que geração, anseio, desejo ou mesmo medo se fala) são preenchidos por sentidos atravessados por tendências neoliberais também sustentadas discursivamente, como a competitividade, a flexibilização e a resiliência.
Do ponto de vista educacional contemporâneo, essas tendências devem ser observadas não somente diante da busca por uma educação que dê suporte à sustentabilidade, mas levando em conta a influência da lógica da ‘economia baseada no conhecimento’, da performatividade, bem como da ideia de formação para o empreendedorismo. Nesse sentido, é necessário atentar ao modo como são recapitulados aspectos da lógica de uma “sociedade da informação”, na qual, de acordo com Bondía (2022, p.22), “as velhas metáforas organicistas do social” são substituídas por “metáforas cognitivistas, seguramente também totalitárias, ainda que revestidas agora de um look liberal democrático [...]”.
A investigação sobre as retóricas a respeito do futuro no cenário curricular sob as lentes teóricas da ACD problematiza as relações de poder envolvidas nas decisões que modulam os sentidos atrelados à ideia de qualidade educacional. No contexto do ensino de ciências, a ACD potencializa um estudo atento à multiplicidade de sentidos atrelados à educação científica e às questões de caráter social e socioambiental, uma vez sensível ao contexto político e social em que as práticas educacionais estão inseridas. Ainda, ao assumir que tanto as ordens sociais como sua dimensão semiótica são mutáveis, a ACD admite como compromisso a elucidação de possibilidades de desmantelamento do que sustenta discursivamente os problemas investigados, posicionando-se como uma abordagem orientada para a transformação social (Fairclough, 2012).
Com base nos princípios e procedimentos da ACD, após a análise da conjuntura na qual se constrói a formulação de futuro na BNCC, procedemos à análise textual de três excertos deste documento nos quais o futuro é diretamente mencionado com referência direta às finalidades do Ensino Médio no mundo contemporâneo, dada a ênfase admitida nesta etapa de formação ao alinhamento às necessidades do século XXI. O texto presente no terceiro excerto menciona diretamente essas finalidades, enquanto os textos dos excertos 1 e 2 foram extraídos da subseção intitulada “As finalidades do Ensino Médio na Contemporaneidade”.
Os excertos destacados foram analisados com base nas categorias discursivas de representação de eventos e atores sociais, presunção e avaliação, de forma a explorar possíveis articulações entre aspectos valorativos sobre o futuro implicados na proposta dos ODS para o alcance de educação de qualidade e pressupostos que caracterizam ideologias neoliberais.
Seguindo essa perspectiva teórico-metodológica, a análise textual é situada na análise da conjuntura específica que sustenta problemas sociais dos quais o texto se estabelece como representação semiótica. Neste caso, é posta em questão a polissemia atrelada ao futuro quando recrutada em imperativos de formação voltados ao desenvolvimento da agência dos sujeitos sob a perspectiva de não inexorabilidade dos eventos, sendo a BNCC uma representação semiótica desse problema situado no contexto brasileiro.
Os aspectos discursivos ou textuais dos excertos destacados foram analisados com base nas perguntas dispostas no quadro 1 a seguir, adaptado de Vieira e Resende (2016):
Quadro 1 Relação entre aspectos discursivos/textuais e perguntas que direcionam a análise dos excertos destacados
Aspectos discursivos/ textuais | Perguntas sobre o texto em análise |
---|---|
Presunção | Que presunções valorativas são feitas? É o caso de se ver algumas presunções como ideológicas? |
Representação de eventos / atores sociais | Que elementos dos eventos sociais representados são incluídos ou excluídos? Que elementos incluídos são mais salientes? Como os processos são representados? Como atores sociais são representados |
(ativado/passivado, pessoal/impessoal, nomeado/classificado, específico/genérico)? | |
Avaliação | Com que valores (em termos do que é desejável ou indesejável) o/a autor/a compromete? Como valores são realizados - como afirmações avaliativas, afirmações com modalidades deônticas, afirmações com processos mentais afetivos, valores presumidos? |
Fonte:Vieira e Resende (2016, p. 116 - 118)
ANÁLISES E RESULTADOS
Tendo como base a perspectiva teórico-metodológica da Análise Crítica do Discurso, e admitindo que as retóricas a respeito de uma educação assumida como de qualidade não estão isentas de potenciais investimentos ideológicos, os excertos selecionados foram analisados com base nas categorias indicadas na tabela 1. Foram enfatizadas a presunção, a avaliação e a representação de atores sociais.
Abaixo, são descritas as análises realizadas sobre os excertos extraídos da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) homologada no ano de 2018. Abaixo de cada excerto, foram indicadas as páginas nas quais é possível encontrá-los no documento original.
Excerto 1:
[A escola que acolhe as juventudes precisa se estruturar de maneira a] proporcionar uma cultura favorável ao desenvolvimento de atitudes, capacidades e valores que promovam o empreendedorismo (criatividade, inovação, organização, planejamento, responsabilidade, liderança, colaboração, visão de futuro, assunção de riscos, resiliência e curiosidade científica, entre outros), entendido como competência essencial ao desenvolvimento pessoal, à cidadania ativa, à inclusão social e à empregabilidade [...]. (BNCC, 2018, p. 466) (ênfases adicionadas)
Nesse excerto, as juventudes são representadas de modo passivado, enquanto a escola é representada de modo ativado e especificada como aquela que acolhe as juventudes. Além disso, o uso da expressão "precisa se estruturar" marca uma avaliação com modalidade deôntica que reforça a noção de que o acolhimento das juventudes depende do impulso ao seu desenvolvimento empreendedor e que esse impulso deve ser feito pela escola. A perspectiva de necessidade desse desenvolvimento empreendedor é marcada ainda por uma presunção valorativa mobilizada pelo uso do termo “essencial” ao se referir à relação entre o empreendedorismo e o desenvolvimento pessoal, a cidadania ativa, a inclusão social e a empregabilidade.
Também são identificadas marcas de presunção valorativa com base em escolhas lexicais particulares e em aproximações de termos a princípio não pertencentes a um mesmo campo semântico no que tange às práticas a que se referem. Em primeiro lugar, são utilizados termos típicos de práticas organizacionais como características de uma capacidade tida como básica na formação das juventudes: organização, planejamento, liderança e visão de futuro. Nesse caso, a curiosidade científica, quando posta como uma das atribuições do empreendedorismo, passa a ser significada como pertencente ao campo semântico dessas práticas organizacionais ou empresariais e, em última instância, ao exercício dessas mesmas práticas.
Além disso, é possível identificar uma marca de presunção valorativa na supressão do sujeito referente ao verbo “entender” no trecho “entendido como competência essencial”. Nesse caso, não é declarado quem entende que o desenvolvimento empreendedor é essencial para o desenvolvimento pessoal, a cidadania ativa, a inclusão social e a empregabilidade. A supressão desse sujeito corrobora com a assunção de que essa relação é inquestionável ou tida como dada.
Excerto 2:
[A escola que acolhe as juventudes precisa se estruturar de maneira a] prever o suporte aos jovens para que reconheçam suas potencialidades e vocações, identifiquem perspectivas e possibilidades, construam aspirações e metas de formação e inserção profissional presentes e/ou futuras, e desenvolvam uma postura empreendedora, ética e responsável para transitar no mundo do trabalho e na sociedade em geral. [...]. (BNCC, 2018, p. 466) (ênfases adicionadas)
Partindo do mesmo modo de representação da escola e das juventudes, neste excerto, pode-se identificar uma afirmação avaliativa na qual se admite como verdade prévia a ideia de que o desenvolvimento empreendedor, ético e responsável é necessário para a educação aqui defendida como de qualidade. Esse desenvolvimento é citado junto de processos tipicamente organizacionais, de construção de metas de formação e inserção profissional, que podem remeter tanto a uma entrada imediata no mercado de trabalho (inserção profissional presente), como à construção de caminhos para uma entrada futura (inserção profissional futura). Nesse trecho, a aproximação dos termos “ética” e “responsável” ao termo “empreendedora” na especificação do tipo de postura que se espera ser desenvolvida pelos estudantes abre caminho, ainda, para um modo de significar o empreendedorismo como imerso no mesmo campo semântico da ética e da responsabilidade.
Além disso, identificamos uma presunção valorativa marcada pela escolha léxica do verbo “transitar”, no lugar de outras possibilidades verbais como “atuar” ou “interferir”. Tal escolha implica que os estudantes podem passar pelo mundo do trabalho e pela sociedade sem, necessariamente, agir sobre esses espaços. Assim, enquanto o futuro é mencionado como qualificador para a meta de inserção profissional, como descrito acima, observa-se a ausência de menções, neste excerto, a um futuro social, o que é reforçado pela significação da sociedade, assim como o mundo do trabalho, como espaço para se “transitar”, não uma estrutura na qual interferir.
Excerto 3:
O conjunto dessas aprendizagens (formação geral básica e itinerário formativo) deve atender às finalidades do Ensino Médio e às demandas de qualidade de formação na contemporaneidade, bem como às expectativas presentes e futuras das juventudes. Além disso, deve garantir um diálogo constante com as realidades locais - que são diversas no imenso território brasileiro e estão em permanente transformação social, cultural, política, econômica e tecnológica -, como também com os cenários nacional e internacional. Portanto, essas aprendizagens devem assegurar aos estudantes a capacidade de acompanhar e participar dos debates que a cidadania exige, entendendo e questionando os argumentos que apoiam as diferentes posições. (BNCC, 2018, p. 479, ênfases adicionadas).
Neste excerto, são representados como atores sociais, de modo genérico e passivado, as juventudes e os estudantes que, como nos fragmentos analisados anteriormente, referem-se aos mesmos sujeitos. Sobre esses atores, recai uma formação aqui presumida valorativamente como adequada às demandas de qualidade da contemporaneidade. Essas demandas são posicionadas ao lado das expectativas presentes e futuras dos estudantes e das demandas do Ensino Médio. Pode-se depreender desse modo de apresentação das informações a presunção de que esses três tipos de demanda (do ensino médio, da qualidade educacional contemporânea e das expectativas dos estudantes) não são necessariamente coincidentes. O trabalho formativo, desse modo, envolve, como já apresentado nos excertos anteriores, um tipo de negociação ou articulação, que pode ser associada a uma atividade tipicamente administrativa.
Atribuições feitas a esse processo formativo são apresentadas por afirmações com modalidade deôntica, mobilizadas pelo uso da flexão do verbo dever no presente do indicativo (“deve”) ao se referir ao atendimento a essas diferentes demandas e também à garantia de diálogo tanto com as realidades locais como com os cenários nacional e internacional. O futuro, por outro lado, não qualifica as demandas de nenhum desses cenários, local, nacional ou internacional, restringindo-se à vida individual dos estudantes.
Além disso, é feito uso de presunção valorativa a respeito das exigências da cidadania, representadas como o entendimento e o questionamento de “argumentos que apoiam diferentes posições”. O acompanhamento e a participação de debates associados às exigências da cidadania, por sua vez, são apresentados admitindo uma demanda de menor passividade aos estudantes diante do cenário social, se comparado ao que foi evidenciado nos excertos anteriores. Essa capacidade é atribuída, por afirmação avaliativa mobilizada pela conjunção “portanto”, diretamente às aprendizagens (em conjunto, formação geral básica e itinerário formativo).
DISCUSSÃO
Com a análise desenvolvida, pode-se depreender que, nas indicações específicas para o Ensino Médio na BNCC aqui analisadas, particularmente as que se comprometem com as supostas necessidades contemporâneas, o modo como o futuro é tratado recapitula mais marcadamente a meta 4.4. do ODS 4. Essa meta define a necessidade de “Até 2030, aumentar substancialmente o número de jovens e adultos que tenham as competências necessárias, sobretudo técnicas e profissionais, para o emprego, trabalho decente e empreendedorismo” (IPEA, 2019). Desse modo, a educação do século XXI é assumida como aquela em que os estudantes são formados como capacitados para se responsabilizar pelos próprios projetos de futuro, cuja definição é tratada como necessariamente alinhada à formação de um perfil empreendedor.
Diante disso, é possível identificar um alinhamento à lógica de um futuro como promessa, com ênfase para o âmbito laboral, a despeito do futuro social e ambiental. Nesse contexto, o aprofundamento da desresponsabilização estatal, marcante na perspectiva neoliberal de promoção do empresário de si mesmo (Chauí, 2020), insere-se em uma conjuntura na qual a redução das responsabilidades públicas do Estado coaduna com a busca por competitividade nacional em meio a uma economia cada vez mais globalizada (Fairclough, 2006, p.17).
Além disso, são apresentadas concepções de futuro nas quais, apesar da ênfase sobre as demandas particulares dos estudantes, há marcas de um investimento ideológico de legitimação por universalização, em que interesses específicos são apresentados como interesses gerais. De acordo com Vieira e Resende (2016), esse modo de operação ideológica, tendo como base a perspectiva de ideologia de Thompson (2002), potencialmente reforça a representação de relações de dominação como legítimas ou inquestionáveis. Isso é reforçado por nominalizações como a presente no excerto 1 a respeito do entendimento do desenvolvimento empreendedor como "competência essencial" para "o desenvolvimento pessoal, a cidadania ativa, a inclusão social e a empregabilidade".
Nesse caso, a ausência de sujeito oferece pouca abertura para o questionamento da ideia de que a construção de uma cidadania ativa e a inserção social necessitam da incorporação de uma cultura empreendedora. Além disso, o "empreendedorismo" é declarado como competência, apesar da presença de referências a um desenvolvimento próprio do modo de ser e de pensar o mundo (pela cultura e pelos valores). Isso pode indicar uma marca de comodificação na qual, segundo Fairclough (2016), um processo subjetivo (de desenvolvimento pessoal) é tratado de modo objetivo (sob a lógica de treinamento).
Em uma conjuntura de democracia frágil, de hegemonia das corporações e setores privados sobre as políticas educacionais e de emergência de um currículo nacional que ataca a autonomia docente, pensar a educação no Brasil passa por compreender que tipo de projeto de sociedade está sendo sustentado pelas retóricas em voga nos textos curriculares. Essas retóricas não ditam o que irá ocorrer na prática, mas a influenciam significativamente uma vez que autorizam modos específicos de ser, a despeito de outros. Diante desse sustento, uma resistência possível é identificar quais vozes são negligenciadas, evidenciar os vazios em uma cacofonia sobre a qual a maior violência possível é o apelo ao uníssono, em especial diante da defesa de que há apenas um modo de ser, de estar e de pensar o mundo.
Nesse cenário de silenciamento, as demandas críticas por justiça social são atropeladas pelas demandas por accountability, apesar de nem sempre esses dois tipos de demandas existirem em desacordo (Macedo, 2017). Isso é fortalecido por um tipo de instrumentalização do conhecimento que toma como base a projeção de um sujeito abstrato (Süssekind, Merladet e D’avignon, 2022), que, na BNCC, pode ser evidenciado pela referência frequentemente homogeneizante do que vêm a ser os estudantes, os professores, a escola, e o próprio futuro que se espera ser pensado e projetado pelas (ou para as) juventudes.
No entanto, Vilanova e Martins (2017, p. 836) destacam que o ‘ecossistema neoliberal’ é imerso em ambivalências nas quais também é possível identificar, construir e fortalecer espaços de resistência, nos quais se façam emergir “práticas orientadas para a mudança social e para a melhoria das democracias em andamento”. O desafio passa a ser então, além da identificação dos investimentos ideológicos nos modos de representação e autorrepresentação expressos nos diferentes campos de produção de sentido para a qualidade educacional (Fairclough, 2016), identificar também possíveis “horizontes, espaços e tempos para a mudança” (Vilanova; Martins, 2017, p. 837).
CONCLUSÕES
Diante do que foi encontrado, pode-se identificar que, apesar de um dos eixos de preocupação com uma formação com orientação para o futuro ser a necessidade de promover os cuidados ambientais, em especial no que se refere ao ensino de ciências da natureza, as indicações gerais da BNCC do ensino médio no que concerne a uma formação para a contemporaneidade tratam o futuro mais particularmente a partir do empreendedorismo e da inserção laboral. Essa lógica de qualidade educacional, com pouca ênfase sobre um futuro como bem-comum ou sob a perspectiva de valorização da diferença, expressa, por sua vez, substanciais limitações na BNCC no que tange ao compromisso, historicamente assumido pela Educação em Ciências, de se debruçar com centralidade sobre as discussões ambientais em voga.
No contexto específico de uma educação em ciências atrelada à formação para a cidadania em um cenário de crise global, por sua vez, a busca por ‘horizontes, espaços e tempos para a mudança’ (Vilanova; Martins, 2017, p. 837) perpassa tensionar os limites que cerceiam a agência individual diante do mundo e da própria vida. Nesse sentido, é fundamental levar em conta que, apesar de a lógica de responsabilização individual excessiva ser aprofundada pelos discursos neoliberais, o discurso admite também o potencial de “projetar novos mundos possíveis” (Martins; Pinhão; Vilanova, 2017, p. 868). Dentre esses muitos mundos possíveis, intensifica-se a relevância de pensar projetos de futuro nos quais se desmantele a lógica de proeminência do mercado a despeito da garantia de justiça social e socioambiental.