1 Introdução
A educação superior brasileira emerge de conflitos marcados pelo elitismo e pela segregação, diretamente relacionados aos contextos sociais, políticos, econômicos e culturais que marcaram cada período histórico. Nos anos pós ditatura militar houve um acirramento dos movimentos e mobilizações sociais, e a democracia brasileira foi retomada por meio da promulgação Constituição Federal (CF) de 1988, estabelecendo as garantias dos direitos sociais, incluindo o direito à educação (BRASIL, 1988).
A partir da garantia do direito à educação em todos os níveis, as Instituições de Educação Superior - IES1, assumiram papel essencial para o desenvolvimento econômico, científico e social, pela difusão dos conhecimentos, saberes, culturas em espaços democráticos de diálogo. Chauí (2003, p. 6), entende que “a universidade como instituição social diferenciada e autônoma só é possível em um estado republicano e democrático”, e que “a universidade é uma instituição social e como tal exprime de maneira determinada a estrutura e o modo de funcionamento da sociedade como um todo” (p. 5).
Ainda para Chauí (2003) a partir da reforma do Estado nos anos de 1990, sob a lógica do pensamento liberal, a universidade passou a ser vista na concepção de uma organização social. Uma organização social se diferencia de uma instituição por definirse por uma prática social determinada de acordo com um conjunto de meios (administrativos) particulares para obtenção de um objetivo particular, ou seja, a instituição social aspira à universalidade, já a organização sabe que sua eficácia e seu sucesso dependem de sua particularidade.
A universidade, no contexto social, possui como desafio o enfrentamento dos problemas nacionais, incluindo o combate às questões sociais excludentes e às concepções enraizadas de preconceito e intolerância, na construção de uma sociedade crítica e no fortalecimento do exercício da cidadania por meio do ensino, pesquisa e extensão.
A discussão sobre igualdade de oportunidades no acesso à educação superior, considerando a educação um direito de todos, se caracteriza no contexto de exames de seleção elitistas, que se opõem à função da universidade como instituição social, à medida que utilizam de critérios classificatórios e excludentes como formas de seleção.
De acordo com Silva e Veloso (2013) tratar a categoria “acesso” implica discutir articuladamente as dimensões: ingresso, permanência e formação qualificada, e, somente quando se considera todas estas variáveis e dimensões é possível superar uma visão fragmentada e imediatista do acesso à educação superior pública.
Segundo os autores, a dimensão “ingresso” possui como indicadores: o quantitativo de vagas, as matrículas de ingressantes e o formato do processo seletivo. A segunda dimensão “permanência”, implica nas matrículas, taxa de diplomação, programas de fixação do estudante e a terceira “formação qualificada”, consiste na organização acadêmica, titulação e dedicação do corpo docente, avaliação institucional, gestão, produções e autonomia universitária.
Nesta investigação, abordaremos a temática acesso sob a perspectiva da dimensão “ingresso”, seus mecanismos de seleção para entrada na educação superior, a partir das políticas em vigor pós anos de 1990, coma criação do Enem, da Lei 12.711/2012 (Lei de Cotas) e a sua aplicabilidade na UFG.
O Enem surgiu em 1998, como instrumento avaliativo, cujo principal objetivo era avaliar as competências e habilidades dos estudantes ao final da educação básica permitindo sua autoavaliação (SOUSA, 2011).
Embora seja considerada uma política recente, o Enem está bastante consolidado na cultura nacional e tornou-se parte do sistema de avaliação da Educação brasileira com objetivo de fornecer parâmetros para análise da qualidade do processo educativo oferecido pelas instituições. No entanto, desde 2009, o exame passou a ser utilizado como mecanismo de acesso à educação superior. O governo Lula (2003-2010) implementou um conjunto de programas, projetos e ações sob o viés da democratização do acesso de modo a promover mais justiça social, dando um novo rumo às políticas de acesso voltadas à educação superior.
Especialmente entre os anos de 2004 a 2011, o Enem foi vinculado a políticas criadas com objetivo de democratizar o acesso e a permanência ao nível superior, dentre os quais a criação do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni); a criação do Programa Universidade para Todos (ProUni), a expansão do Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) e a criação do Sistema de Seleção Unificada (SiSU).
Nesse contexto, as políticas de ações afirmativas foram conduzidas com o objetivo de minimizar as assimetrias regionais e sociais que caracterizam o Brasil. A Lei n. 12.711/2012 conhecida como Lei de cotas, foi implementada com o objetivo de democratizar o acesso das pessoas historicamente excluídas da sociedade, com reserva de 50% das vagas nas Universidades e Institutos Federais, para estudantes que tenham realizado todo o ensino médio em escolas públicas, além de outros critérios como renda e aos declarados pretos, pardos e indígenas.
No ano de 2016, a Lei n. 13.409, de 28 de dezembro de 2016 (BRASIL, 2016), ampliou a reserva de vagas ofertadas pelas Instituições Federais de Ensino (IFES) para pessoas com deficiência. As vagas reservadas, 50% do total de vagas da instituição, serão subdivididas, sendo metade para estudantes de escolas públicas com renda familiar bruta igual ou inferior a um salário mínimo e meio per capita e metade para estudantes de escolas públicas com renda familiar superior a um salário mínimo e meio. Em ambos os casos, também será levado em conta o percentual mínimo correspondente ao da soma de candidatos autodeclarados pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência no estado, de acordo com o último censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Em que pesem as reiteradas e pertinentes críticas aos exames padronizados e em larga escala que foram implementados no Brasil desde a década de 1990 (AFONSO, 2000; APLLE, 2003; DIAS SOBRINHO, 2003; RAVITCH, 2011; CASASSUS, 2013; GATTI, 2013), dentre outros, o Enem se constituiu em uma política que contribuiu para aglutinar várias outras políticas de acesso às universidades públicas, sobretudo tendo em vista que o Brasil possui uma das piores distribuições de renda no mundo e o acesso à educação superior está estreitamente relacionado à questões socioeconômicas.
2 Referencial teórico
2.1 Enem: de instrumento avaliativo à principal mecanismo de acesso à Educação superior no Brasil.
De acordo com Afonso (2000) os sistemas de avaliação, desde os anos de 1990, principalmente em países como os Estados Unidos, possuíam como principais funções aquelas que remetem para a seleção de indivíduos para “gestão produtivista” do sistema educativo. No Brasil, a avaliação em larga escala surge e se caracteriza como uma atividade afetada por forças políticas com fortes influências de países centrais e desenvolvidos do ponto de vista geopolítico e econômico, nos quais prevalece a hegemonia do ideário neoliberal, cujo papel do Estado é mínimo quanto à garantia de políticas sociais, devendo estimular e garantir o livre mercado.
Ainda segundo o autor, os exames eram utilizados pela burguesia para substituírem o discurso de privilégios pela retórica de competência por meio do estudo e ação. Em meio ao avanço do modo de produção capitalista, os exames serviam como instrumentos de verificação das qualificações requeridas pelo sistema produtivo (AFONSO, 2000).
No Brasil, a educação superior é marcada pela presença majoritária de alunos pertencentes a elite econômica. Foram intensos os movimentos populares no sentido de tensionar os poderes públicos para promover a mudanças concretas em favor das classes populares e esse movimento se deu em duas nuances: a defesa da ampliação das vagas no setor público, incluindo os pertencentes a grupos historicamente excluídos da sociedade, e, por outro lado, a defesa da privatização da educação superior, sob o argumento de que o financiamento do governo federal deveria ser direcionado para custear a educação Básica, direcionando o custo do nível superior às instituições privadas (SOUSA, 2011).
O Brasil nos anos de 1990, sob os governos de Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso formulou políticas públicas influenciadas pelo ideário neoliberal, propondo uma reforma econômica caracterizada pela privatização e pela redução do papel do Estado na garantia de políticas sociais, o chamado Estado Mínimo. Foi nesse contexto que teve início as primeiras experiências avaliativas vinculadas às estratégias de poder, utilizadas como instrumento indispensável dessas reformas.
Neste contexto a avaliação ganha centralidade para justificar alocação de recursos, que se tornavam cada vez mais escassos, sob o argumento da economia para o enxugamento da máquina pública, uma forma de prestação de contas para sociedade. Neste caso os recursos necessitavam de critérios para serem mais bem distribuídos, e, além disso, com a abertura para o setor privado e a diversificação das IES, a avaliação passou a ser um instrumento para o controle de qualidade e vigilância dos resultados (DIAS SOBRINHO, 2003).
O modelo de expansão por meio da diversificação institucional, sobretudo por aquelas não universitárias, está presente no receituário do Banco Mundial por representar menores custos e maiores lucros, o que interessa ao setor privadomercantil, o qual possui historicamente, no Brasil, presença marcante na Educação superior, em especial, a partir da ditadura militar de 1964. Esta tendência evidencia, mais uma vez, que esse nível de ensino é concebido como mercadoria que visa a garantia de lucro ao capitalismo; e para tanto, torna-se necessário rebaixar as exigências de acesso e de formação, priorizando o ensino em detrimento da pesquisa. (CHAVES; AMARAL, 2016).
O governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC, 1995-2003) sob discursos neoliberais, pautava metas e objetivos por meio da adoção de uma governança no modelo gerencial. Em meio ao contexto de redemocratização, em 1995, foi aprovada a Lei n. 9.131 que recriou o Conselho Nacional de Educação (CNE), que favoreceu o processo de expansão da Educação superior, principalmente do setor privado, a partir da flexibilização dos processos de autorização de cursos e instituições, dentre outros. No processo de reestruturação da Educação superior nos anos 1990 o discurso da lógica de mercado introduzia o desafio de tornar as universidades mais eficientes, promovendo a ampliação do acesso, tendo como centralidade a iniciativa privada. (BERNARDES; OLIVEIRA, 2021).
Com base no ordenamento constitucional da CF/88, a Lei n. 9394/1996 que instituiu a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), estabeleceu que a graduação é aberta a todos que tenham concluído o ensino médio ou programa de estudo equivalente e tenham sido classificados em processo seletivo (BRASIL, 1996), dando autonomia às universidades acerca dos critérios e normas de seleção de seus estudantes. Segundo Catani e Oliveira (2003) a LDB constituiu-se como referência na reestruturação da educação superior no Brasil, no entanto, por sua flexibilidade ou omissão permitiu que o governo de FHC e a sua reforma proposta para esse nível de ensino, introduzisse mudanças no processo de avaliação, financiamento, currículo, produção acadêmica nos moldes do mercado.
No ano de 1998 foi criado o Enem, na perspectiva do Estado “avaliador”, expressão cunhada por Guy Neave, a partir da importância da avaliação nas agendas governamentais nos anos de 1960 em países como Estados Unidos, Grã-Bretanha e outros industrializados, surgindo a necessidade do Estado acompanhar rigorosamente as políticas, controlar os gastos e medir a eficiência das instituições públicas (DIAS SOBRINHO, 2003).
O Enem surgiu em um contexto internacional de valorização das avaliações padronizadas entrelaçadas às políticas de accountability, que em uma tradução livre significa avaliação, prestação de contas e responsabilização dos atores envolvidos no processo. Dentre os objetivos iniciais do Enem estão: autoavaliação por parte do estudante; modelo para seleção no mercado de trabalho e avaliação para acesso à educação superior, essa última se tornou cada vez mais requisitada entre os participantes do exame. Outras políticas passaram a ser integradas ao Enem, dentre elas o Fundo de Financiamento Estudantil - FIES2, que, a partir de 2011 passou a incluir a nota do exame como critério de seleção (BRASIL 2020).
Nos dois mandatos de Luiz Inácio da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016)3 implementou-se um conjunto de programas, projetos e ações visando a expansão de vagas e a democratização do acesso à educação superior pública. Conforme estudo de Ristoff (2013), em 2003 havia, no Brasil, 45 universidades federais, 148 campi/unidades e 114 municípios atendidos. Em 2014, tínhamos 63 universidades, 321 campus e 275 municípios atendidos pela rede federal de educação superior.
Outra ação governamental que contribuiu para mudanças no acesso à educação superior brasileira foi o Programa Universidade para Todos (ProUni), criado pela Lei n. 11.096, de 13 de janeiro de 2005, o Programa tem como objetivo conceder bolsas de estudos integrais e parciais para estudantes de baixa renda em cursos de graduação e sequenciais de formação específica nas instituições privadas participantes, sendo que a seleção é realizada por meio da nota obtida no ENEM (BRASIL, 2020).
O governo Dilma Rousseff (2011-2016), que sucedeu os dois mandatos do presidente Lula, deu continuidade a essa proposta de expansão e ampliação do acesso conciliando-os com políticas de democratização do acesso (BERNARDES; OLIVEIRA, 2021). A evolução dos números das matrículas referentes à educação superior, no período de 2010 a 2020, apresentam diferentes níveis de crescimento percentual, embora as matrículas no setor privado ainda se sobressaiam em detrimento das matrículas no setor público, conforme apresentado no Gráfico 1.
Conforme dados acima, desde 2010 o quantitativo de matrículas em cursos de graduação nas IES privadas é bem superior ao número das IES públicas, alcançando em 2020 o percentual de 77,5%, enquanto nas IES públicas alcançam 22,5% do total no Brasil, que está em torno de 8 milhões e 600 mil. Estes dados refletem o conjunto de programas e políticas dos últimos governos, principalmente após a criação do Enem como mecanismo de acesso à educação superior.
A tabela 01 mostra que desde sua criação em 1998 o Enem vem contribuindo para a seleção de candidatos para ingressar nas universidades brasileiras, sejam elas públicas ou privadas. Em 2004, já era utilizado em 21% dos processos seletivos das IES brasileiras. Das 2.084 instituições, 436 se mostraram interessadas pela utilização do Enem como critério de seleção, totalizando 382 privadas e 54 públicas, o que mostra o rápido crescimento da adesão ao Enem, principalmente na edição do ano de 2005, quando houve um crescimento no número de inscritos chegando a 2,2 milhões. Esse aumento se deve à criação do Prouni, que selecionava candidatos para concorrer a bolsas parciais e integrais em IES particulares (SANTOS; SILVA; MELO, 2013).
Ano | Eventos |
---|---|
1998 | Criação do ENEM |
2000 | ENEM como critério de seleção na educação superior |
2004 | Criação do PROUNI |
2009 | Criação do SiSU |
2011 | ENEM obrigatório para FIES. |
Fonte: Elaborado pelas autoras (2021); Travitzki (2013); Brasil (2020).
O salto foi ainda maior na edição do ano de 2010, quando mais de 4,6 milhões de candidatos se inscreveram, principalmente após a criação do SiSU, que oportunizou vagas nas IES públicas em todo país.
Neste contexto, a Lei n. 12.711/2012, a Lei de cotas, foi sancionada com o objetivo de democratizar o acesso das pessoas historicamente excluídas da sociedade e consequentemente desse nível de ensino, por meio da reserva de 50% das vagas nas Universidades e Institutos Federais, destinada aos estudantes que tenham cursado todo o ensino médio em escolas públicas, além de outros critérios como baixa renda e para aqueles que se autodeclarassem pretos, pardos e indígenas (BRASIL, 2012).
Em 2016, a Lei n. 12.711/2012 passou a incluir a reserva de vagas para pessoas com deficiência nos cursos técnicos de nível médio e superior das instituições federais de ensino, com a aprovação da Lei n. 13.409, de 28 de dezembro daquele ano.
Marques, Rosa e Oliveira (2019) salienta como o Estado brasileiro foi ineficiente e conivente com as desigualdades raciais que marcaram a sociedade brasileira e negaram à população negra o direito de acesso à educação superior, pois foi somente nos anos de 2000 que, efetivamente, a discussão sobre as ações afirmativas ressoaram na sociedade brasileira e nas universidades, impulsionadas por uma série de eventos que, posteriormente, tensionaram a agenda oficial do Governo Federal com a criação de órgãos, secretarias e programas visando à promoção da igualdade racial.
De acordo com Moraes (2019) ao analisar as políticas governamentais, percebese que o governo FHC iniciou o processo de transição do sistema de elite para o sistema de massa, na perspectiva da Teoria de Trow, nesse modelo a massificação da educação superior ocorre quando a percentagem de atendimento da faixa etária de 18 a 24 anos fica entre 16% a 50%, até 15% é considerado um sistema de elite e mais de 50% um sistema de acesso universal (MORAES, 2019). Esse movimento teve continuidade nos governos Lula/Dilma, em face ao conjunto de políticas que contribuíram para a construção do sistema de massa, quando a taxa líquida de matrícula alcançou 16,6% no ano de 2013.
Após um balanço das principais políticas e direcionamentos governamentais, este estudo buscou identificar como se desenvolve o acesso dos estudantes cotistas na Universidade Federal de Goiás-UFG, buscando abordar as ações institucionais para ingresso por meio do Enem/SiSU.
2.2 O Enem e o ingresso de cotistas por meio do Sistema de seleção Unificada (SiSU) na Universidade Federal de Goiás (UFG).
A UFG realizava ações de inclusão social anteriores a publicação da Lei n. 12.711/2012, e uma delas é o Programa UFGInclui, aprovado pela Resolução Consuni n. 29/2008 (UFG, 2008), que se propunha a reservar vagas para candidatos indígenas e negros quilombolas que tenham cursado integralmente o ensino médio em escola pública. O programa foi alterado pela Resolução Consuni n. 20/2010, ao incluir, além de uma vaga em cada curso de graduação destinada a indígenas e uma a quilombolas, o curso de Letras Libras incluiu a oferta de 15 vagas para candidatos surdos, utilizando a nota do Enem para cálculo da nota final dos candidatos convocados para 2ª etapa do processo seletivo (UFG, 2010).
Em 2013, ao iniciar a aplicação da “Lei de Cotas”, a UFG reservou 20% das vagas, em 2014, 30%, em 2015, 40% e, em 2016, alcançou a meta de reservar 50% das vagas para cotistas. Em 2014, o Conselho de Ensino, Pesquisa, Extensão e Cultura (Cepec) da UFG decidiu pela adesão integral da instituição ao SiSU como forma de ingresso na graduação. O sistema, que utiliza a nota do Enem, passou a ser adotado integralmente a partir da seleção para o primeiro semestre de 2015, substituindo o então vestibular (UFG, 2014).
Para concorrer a uma das vagas nos cursos ofertados pela UFG, o candidato deve se inscrever no SiSU, nos períodos estabelecidos pelo MEC, desde que tenha realizado o Enem e escolher duas opções de curso. Os inscritos no SiSU podem escolher qualquer curso em uma das instituições cadastradas em todo território nacional. Ao inscreverse no SiSU o candidato tem a opção de se candidatar utilizando uma das modalidades de ação afirmativa.
A aplicabilidade da Lei na UFG, após alteração no ano de 2016 que incluiu as pessoas com deficiência, ocorreu pela primeira vez no Processo Seletivo SiSU no primeiro semestre de 2018, alcançando a maioria dos cursos de graduação presenciais da UFG.
O candidato que se inscrever dentro da opção indicada como cotista, obrigatoriamente, no ato da matrícula, deverá comprovar sua condição. Para conferência dessa comprovação documental, uma comissão é designada para avaliação dos documentos de cada candidato, conforme legislação vigente. Caso o postulante não comprove a referida condição, poderá perder a vaga. Ressalta-se que tais procedimentos de averiguação documental, embora com suas especificidades, são comuns para todos os processos seletivos da UFG. Os critérios para ocupação das vagas reservadas são: renda, cor/raça, escolaridade e condição de pessoa com deficiência.
No processo seletivo SiSU, há a possibilidade de remanejamento das vagas não ocupadas pelos candidatos nas opções de participação da sua inscrição, conforme mostra a tabela 2.
Vagas não preenchidas na opção de participação | Em, 1º lugar, serão convocados candidatos classificados na opção de participação | Em 2º lugar, serão convocados candidatos classificados na opção de participação | Em 3º lugar, serão convocados candidatos classificados na opção de participação | Em 4º lugar, serão convocados candidatos classificados na opção de participação | Em 5º lugar, serão convocados candidatos classificados na opção de participação | Em 6º lugar, serão convocados candidatos classificados na opção de participação | Em 7º lugar, serão convocados candidatos classificados na opção de participação | Em 8º lugar, serão convocados candidatos classificados na opção de participação |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
RI-PPI-cD | RI-cD | RI-PPI | RI | RS-PPI-cD | RS-cD | RS-PPI | RS | AC |
RI-cD | RI-PPI-cD | RI-PPI | RI | RS-PPI-cD | RS-cD | RS-PPI | RS | AC |
RI-PPI | RI-PPI-cD | RI-cD | RI | RS-PPI-cD | RS-cD | RS-PPI | RS | AC |
RI | RI-PPI-cD | RI-cD | RI-PPI | RS-PPI-cD | RS-cD | RS-PPI | RS | AC |
RS-PPI-cD | RS-cD | RS-PPI | RS | RI-PPI-cD | RI-cD | RI-PPI | RI | AC |
RS-cD | RS-PPI-cD | RS-PPI | RS | RI-PPI-cD | RI-cD | RI-PPI | RI | AC |
RS-PPI | RS-PPI-cD | RS-cD | RS | RI-PPI-cD | RI-cD | RI-PPI | RI | AC |
RS | RS-PPI-cD | RS-cD | RS-PPI | RI-PPI-cD | RI-cD | RI-PPI | RI | AC |
AC | RI-PPI-cD | RI-cD | RI-PPI | RI | RS-PPI-cD | RS-cD | RS-PPI | RS |
Legenda: AC: Ampla Concorrência; RI: Renda Inferior; PPI: Preto, Pardo ou Indígena; cD: Pessoa com Deficiência; RS: Renda Superior. Conforme o Edital, as nomenclaturas podem mudar.
Caso não haja candidato para ocupar a vaga disponível em alguma das opções de participação, serão remanejados os candidatos das outras opções, conforme fluxo expresso no Quadro 02. Nesse sentido, os candidatos inscritos em vagas para pessoas com deficiência, por exemplo, podem ocupar vagas que não são direcionadas a essa condição, bem como pessoas que se inscreveram em outras opções poderão ocupar vagas destinadas à pessoa com deficiência, caso não haja candidato, nessa condição, apto a preenchê-la (UFG, 2019).
Ao analisar os dados administrativos de ingressantes, em um dos cursos de alta demanda como o curso de Medicina na UFG, Pacheco (2022) nos mostra a evolução no perfil dos discentes a partir da aplicabilidade da Lei de cotas. Nos resultados da pesquisa constam que apenas a partir de 2013 foram registrados matriculados no curso de Medicina oriundos de instituições de dependência administrativa pública, totalizando 33 estudantes. Houve um aumento no ano de 2016 com 60 matriculados provenientes de escolas públicas.
Antes da aplicação da Lei de cotas não havia ingressantes oriundos de escola pública no curso de Medicina na UFG, o que revela o papel desta Lei na inclusão de estudantes pobres na educação superior, principalmente em cursos de alta demanda.
Quanto ao critério raça/cor, Pacheco (2022) apresenta dados que mostram a diferença no perfil da ocupação das vagas no período de 2010 a 2017 em que a maioria dos matriculados se declarou de cor branca e do sexo masculino. A partir de 2013, inicia-se uma mudança neste sentido, em que, das 110 vagas ofertadas, 48 foram preenchidas por pessoas brancas, 34 pardas e 8 pretas, enquanto 17 não assinalaram cor. Apenas no ano de 2017, o quantitativo de ingressantes que se autodeclararam pardos ultrapassou o de brancos, sendo contabilizados 52 matriculados pardos, 50 brancos, 4 pretos e 4 não se autodeclararam.
Ao analisarmos o cenário atual de 2021, a nota do Enem foi utilizada como critério de seleção na maioria dos processos seletivos da UFG, conforme apresentado na Tabela 03:
Processo seletivo | Critério de seleção |
---|---|
SiSU | Enem vigente |
Preenchimento de vagas remanescentes: Mudança de Curso (Transferência interna), Reingresso e Transferência Facultativa (Transferência externa). | Enem dos anos de 2009 a 2019. |
Licenciatura em Educação no Campo/Regional Goiás | Enem dos anos de 2009 a 2020. |
UFGINCLUI (Indígenas e Negros Quilombolas) | Enem dos anos de 2009 a 2020. |
Música (Canto, Composição, Educação Musical, Ensino do Canto, Ensino do Instrumento Musical, Instrumento Musical e Regência. | A pontuação final dos candidatos para classificação será a soma dos pontos obtidos na VHCE e da média nas provas do Enem. |
Portador de diploma | Prova de Conhecimentos ou desempenho na Prova do Enem. |
Libras (vagas exclusivas para candidatos surdos - UFGInclui) | Prova Objetiva e de uma Prova de Redação |
Licenciatura Intercultural | 3 (três) etapas: Análise de Currículo, Entrevista e Prova de Redação. |
Fonte: Elaborado pelas autoras. Centro de seleção UFG (2022).
Nota-se que, em 2021, dentre os processos seletivos ofertados pela UFG, apenas dois não utilizaram a nota do Enem como critério de seleção. Vale ressaltar que nestes processos seletivos o quantitativo de vagas ofertado é inferior aos ofertados nos demais processos. Portanto, verifica-se que em 2022 o Enem se constituiu como o mecanismo com maior amplitude para ingresso nos cursos de graduação da UFG.
Para contribuição no entendimento de como se desenha o cenário do Enem como principal mecanismo de acesso à educação superior, sobretudo com enfoque no ingresso dos cotistas na UFG, o presente estudo se apoiou nos estudos com recorte temporal de 2012 a 2022, pós Lei de cotas. Realizou-se o mapeamento disponível no Banco de dados dos periódicos da Capes, selecionados pelos descritores: “educação superior” AND Avaliação AND Enem AND Cotas e, após aplicação de filtros e utilização de critérios de exclusão, foram selecionados 21 artigos para análise.
Quanto aos temas abordados, as publicações seguem diversas linhas de estudo, dentre elas destacamos as que mais se alinham ao objeto de estudo desta pesquisa, como: estudo da ausência de informação racial no Enem, bem como no preenchimento do Censo da Educação superior o que dificulta o acompanhamento e monitoramento das políticas de cotas; as implicações da adesão do Enem como critério de seleção em instituições de ensino superior brasileiras, em estudos de casos específicos, bem como o monitoramento e avaliação do perfil discente pós Lei de Cotas de 2012.
Vale ressaltar que, de acordo Karruz (2018) as ações afirmativas no acesso à educação superior brasileira possuem relevantes produções científicas, no entanto, se constitui como um processo dinâmico. No que concerne a Lei de cotas, há espaços para aprofundamento nas avaliações, principalmente nos estudos do acesso das pessoas com deficiência, contempladas na última e recente alteração da Lei. Além disso, segundo a autora, faltam estudos que façam interconexões entre reserva de vagas e assistência estudantil, o que geraria esforços para visibilidade e evidência para reforço da importância da Lei.
3 Considerações finais
O sistema capitalista visa a promoção da desigualdade e exclusão social, o neoliberalismo reforça a lógica meritocrática, valoriza os sujeitos pelos seus méritos, sem levar em consideração os fatores condicionantes historicamente construídos, e, neste contexto, as políticas de acesso à Educação superior permanecem elitizadas. A partir do estudo realizado, nota-se que até a década de 1990 as políticas públicas educacionais eram menos democratizantes, e, a partir dos anos 2000, com as políticas de ações afirmativas e mudanças nos formatos de seleção, o panorama começou a mudar. O Enem/SiSU e a Lei de cotas promoveram uma maior inclusão e democratização do acesso à educação superior de pessoas negras e de baixa renda
Dias Sobrinho (2003) salienta como a perspectiva tecnológica ainda se constitui como a mais utilizada no mundo, por meio dos métodos quantitativos e provas de medição. Se dividindo entre experimental, métodos científicos, dados, fatos, objetividade transacional, flexível, situações diversas e plural. O predomínio entre um enfoque sobre o outro é questão de poder. A avaliação não é neutra, ela emite juízo de valor, reflete as funções requeridas por um setor.
Assis, Carvalho e Costa (2019) destacam a necessidade da luta pela resistência na tentativa de retirada dos direitos e de retrocessos dos governos, dentre elas a proteção das minorias historicamente excluídas da sociedade. Conclui-se que o Enem continua com o mesmo caráter excludente do primeiro vestibular implementado em 1911 no Brasil. No entanto, a Lei de cotas tenta minimizar as desigualdades historicamente causados pela falta de políticas de que promovam uma democratização do acesso. Sendo assim, a política de cotas possui embasamento para continuar com sua implementação na luta contra a exclusão enfrentada pelos menos favorecidos, em uma sociedade marcada pela desigualdade que caracteriza o sistema de base ideológica liberal, capitalista e concorrencial.
Neste sistema, a educação é vista como campo estratégico para se promover uma maior inclusão social e as ações afirmativas surgem como mecanismo de justiça distributiva, além da diversidade e da representatividade de grupos menos favorecidos e discriminados. Além disso, se mostra como uma ação capaz de auxiliar no enfrentamento dos obstáculos que se erguem para impedir, no seio de sociedades ditas democráticas, que os negros, pardos, indígenas, pessoas com deficiência e estudantes de escolas públicas consigam ocupar vagas requisitadas nas universidades públicas.
Cabe ressaltar que a igualdade, conceitualmente, se distingue da inclusão, pois as políticas de inclusão não se propõem a efetivar a igualdade e sim amenizar as desigualdades no acesso aos direitos. A Lei de cotas atua como processo de democratização na ocupação das vagas em um processo seletivo que por si só já se configura como excludente. A pesar das tentativas inclusivas, o Enem avalia pelo mérito, sem considerar as condições de estudos dos candidatos avaliados. Além disso, não rompe com o caráter seletivo e meritocrático, mas a Lei de cotas contribui para que se vislumbre um novo horizonte aos sujeitos que sonham em ingressar na universidade pública por meio da inclusão social.
O Enem se configura como importante mecanismo de acesso à educação superior, conforme resultados das pesquisas, isso vem sendo concretizado na UFG, por meio da mudança no perfil de ingressantes em cursos de alta demanda oportunizando a busca pelo equilíbrio no perfil do discente na Universidade.
O processo de redemocratização no acesso ainda é recheado de desigualdades e discriminação. “Contudo, no campo prático, são várias as controvérsias acerca de quais seriam as melhores soluções, já que essa situação se tem mostrado inalterada por décadas” (MOEHLECKE, 2002, p. 198).
Com características desenvolvimentista, os governos Lula/Dilma implementaram projetos que permitiram o acesso da população tradicionalmente excluída da educação superior, pois o processo de inclusão e democratização depende de políticas sociais de caráter universal que garantam a redução das desigualdades sociais.
Além do estudo aprofundado sobre o acesso pela dimensão do ingresso na UFG e demais IES, devem ser associados estudos sobre permanência e o êxito dos estudantes no processo educativo, para isso ações institucionais são extremamente relevantes, na busca pela valorização das diferenças.
Incluir é sobretudo valorizar as diferenças individuais de cada estudante. Conquistadas as políticas de acesso, principalmente com o destaque para o Enem como processo seletivo que ainda versa sob os ideais neoliberais, a Lei de cotas conforme dados administrativos da UFG, se configurou como mecanismo de justiça social, na busca pela equidade no perfil de matriculados nos cursos de graduação, o que ainda se mostra como um desafio político, social, cultural e institucional com um longo caminho a ser percorrido.