Introdução
O Acordo entre a República Federativa do Brasil e o Estado da Cidade do Vaticano,2 relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, celebrado inicialmente em 13 de novembro de 2008, tem aspectos jurídicos, históricos e conceituais e que necessitam de alguma aproximação explicativa para sua melhor compreensão, análise e crítica. Pretende-se, aqui, um pequeno estudo exploratório em que se busca averiguar se há antinomia entre os termos desse Acordo e as disposições legais, constantes da Constituição, e em relação à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, especialmente no caso do ensino religioso. Além das bases legais de Acordos Internacionais, procurar-se-á trazer elementos históricos que, sendo antecedentes, são importantes para a compreensão e análise crítica desse Acordo.
Dentro desse quadro importa registrar que a relação Igreja/Estado tem antecedentes remotos e próximo.
Antecedentes
A relação Estado-Igreja nasce, no Brasil, junto com o colonialismo, com a catequização dos indígenas e, depois, com a escravatura. Aqui, desde a entrada de Portugal no Brasil, dentro do pacto colonial, importa registrar que a Metrópole já tinha a Igreja Católica como religião oficial do Estado. À época da chegada de Portugal no Brasil, na dinâmica da colonização, a Monarquia Portuguesa era um dos esteios da Contra-Reforma que se processava na Europa. No âmbito desse registro, Portugal já formalizara vários acordos com o Papado, entre os quais, o instituto denominado Padroado. Por meio desse instituto, os papas davam autorização para que os reis de Portugal tivessem um certo grau de ingerência nos assuntos religiosos. Especificamente, o Padroado vinculava a organização religiosa e o financiamento dos serviços da religião aos reis, notadamente, nos domínios colonizados. Assim, nomeação de bispos e a manutenção dos padres não ligados a ordens e congregações religiosas por meio da chamada côngrua, uma espécie de salário que tornava os padres das paróquias verdadeiros funcionários do aparato burocrático do Estado.
Dentro desse enquadramento, a catequese e a instrução religiosa eram meios pelos quais se confirmava a religião oficial entre os colonizadores e seus filhos e se buscava converter os povos indígenas a esse credo.
A separação de Brasil de Portugal não alterou significativamente esse quadro. O Padroado foi confirmado na Constituição Imperial de 1824 e, com isso, o catolicismo permaneceu religião oficial do novo Estado e permitiu o culto das outras religiões no âmbito apenas doméstico. O registro da vida e da morte se fazia no âmbito das paróquias, bem como muitos registros das terras. A primeira lei geral da educação, a de 15 de outubro de 1827, estabelecia, no art. 6º. o seguinte:
Os professores ensinarão a ler, escrever, as quatro operações de aritmética, prática de quebrados, decimais e proporções, as noções mais gerais de geometria, gramática de língua nacional, e os princípios de moral cristã e da doutrina da religião católica e apostólica romana, proporcionados à compreensão dos meninos; preferindo para as leituras a Constituição do Império e a História do Brasil. (BRASIL, 1827) (grifos nossos)
Esse dispositivo foi mantido ao longo do Império e está registrado na Reforma Couto Ferraz, Decreto n. 1331-A de 1854, conforme o art. 47.
O Decreto n. 7247, de 1879, denominado Reforma Leôncio de Carvalho, conforme o art. 4º, mantinha a instrução religiosa, mas em seu § 1º dispunha: “§ 1º Os alunos acatólicos não são obrigados a frequentar a aula de instrução religiosa que por isso deverá efetuar-se em dias determinados da semana e sempre antes ou depois das horas destinadas ao ensino das outras disciplinas.” (BRASIL, 1879). Por sua vez, o art. 25 (BRASIL, 1879) trazia outra diferença importante:
Art. 25. O juramento dos graus acadêmicos, dos Diretores, dos Lentes e dos empregados das Escolas e Faculdades, assim como o dos Professores do ensino primário e secundário, será prestado conforme a religião de cada um, e substituído pela promessa de bem cumprir os deveres inerentes aos mesmos graus e funções, no caso de pertencer o indivíduo a alguma seita que o proíba.
Essas pequenas flexibilidades já eram um prenúncio do que viria a se formalizar com a República. Um dos primeiros decretos do Governo Provisório foi o Decreto n. 119-A de 7 de janeiro de 1890. Por meio dele, é extinto o Padroado, se consagra a plena liberdade de culto e se funda a separação da Igreja e do Estado. Esse Decreto, próprio da laicidade do Estado, foi confirmado pela Constituição Republicana de 1891. O Preâmbulo dessa Constituição Nacional é o único em que o nome de Deus não aparece. Ademais, o art. 72 contém a única regra nacional quanto ao ensino público, no seu §6º: “será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos”. (BRASIL, 1891) (grifo nosso)
Também o §7o do art. 72 dispõe: “§ 7º Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União, ou o dos Estados.” (BRASIL, 1891)
A Revisão Constitucional de 1925-1926 não alterou o teor do §6º do art. 72 de 1891, mas acrescentou, no corpo constitucional (como se verá mais adiante), o caráter oficial da representação diplomática do Brasil junto ao Vaticano. Esse acréscimo foi uma espécie de acerto entre os constituintes revisores por conta da não inclusão do ensino religioso (facultativo) nas escolas públicas.
Com a Revolução de Trinta, uma vez consolidada a Igreja Católica como instituição organizada da sociedade civil, as pressões pela volta do ensino religioso se avolumam e, por meio do Decreto n. 19941 de 30 de abril de 1931, tal ensino (de religião) retorna às escolas públicas, sendo de oferta obrigatória pelas instituições escolares e de matrícula facultativa para os estudantes. Essa formulação, com algumas diferenças, prevalecerá em todas as outras Cartas Constitucionais, excetuada a Carta Ditatorial de 1937 que impõe a oferta também facultativa. Assim dispunha a Carta proclamada de 1934, no art. 153:
O ensino religioso será de frequência facultativa e ministrado de acordo com os princípios da confissão religiosa do aluno manifestada pelos pais ou responsáveis e constituirá matéria dos horários nas escolas públicas, primárias, secundárias, profissionais e normais. (BRASIL, 1934)
A Constituição de 1946, por sua vez, estabelecia:
Art. 168: A legislação do ensino adotará os seguintes princípios: (...) V - O ensino religioso constitui disciplina dos horários das escolas oficiais, é de matrícula facultativa e será ministrado de acordo com a confissão religiosa do aluno, manifestada por ele, se for capaz ou pelo seu representante legal ou responsável. (BRASIL, 1946)
Veja-se que aqui altera-se a redação da Carta de 1934. Ao invés de discriminar as etapas, aponta-se o gênero de escolas oficiais.
Sob a Constituição de 1946 é sancionada a lei no 4.024/1961, que assim se expressa sobre o ensino religioso nas Disposições Gerais e Transitórias:
Art. 97. O ensino religioso constitui disciplina dos horários das escolas oficiais, é de matrícula facultativa, e será ministrado sem ônus para os poderes públicos, de acordo com a confissão religiosa do aluno, manifestada por ele, se for capaz, ou pelo seu representante legal ou responsável.
§ 1º A formação de classe para o ensino religioso independe de número mínimo de alunos.
§ 2º O registro dos professores de ensino religioso será realizado perante a autoridade religiosa respectiva. (BRASIL, 1961)
Observe-se aqui o “sem ônus para os poderes públicos” e, diferentemente do Decreto supracitado de 1931, não terá número mínimo de alunos e há a responsabilidade da autoridade religiosa quando do registro desses professores.
A Carta semioutorgada de 1967, estabelecida por conta do Ato Institucional n. 4, no art. 168 dispunha: “IV - o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas oficiais de grau primário e médio.” (BRASIL, 1967)
Note-se que o ensino religioso, aqui, não contém a confessionalidade e fica restrito ao primário e secundário.
A Carta de 1967 foi bastante alterada pela Emenda da Junta Militar de 1969 e, no art.176 continha no inciso V a mesma redação de 1967.
Sob essa Emenda, a lei n. 4.024/61 com a redação dada pela lei n. 5692/71, o ensino religioso foi assim formulado, no parágrafo único do art. 7º: “Parágrafo único. O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais dos estabelecimentos oficiais de 1º e 2º graus.” (BRASIL, 1971)
Entrementes, no art. 97, voltava ao assunto, com uma assinalação importante, por conta da revogação do art. 97 da redação original da lei n. 4.024/61, o que, então passava a deixar por conta dos entes federativos o assumir ou não a subvenção financeira dos professores dessa disciplina. A atual Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 dispõe:
Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.
§ 1º O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental. (BRASIL, 1988)
Observe-se que há uma restrição desse ensino à etapa do ensino fundamental da educação básica.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, sancionado em 1996 sob o n. 9394/96, volta ao assunto, tendo como redação original do art. 33 a seguinte redação:
O ensino religioso, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas do ensino fundamental, sendo oferecido, sem ônus para os cofres públicos, de acordo com as preferências manifestadas pelos alunos ou por seus representantes, em caráter:
I - confessional, de acordo com a opção religiosa do aluno ou de seu responsável, ministrado por professores ou orientadores religiosos preparados e credenciados pelas respectivas igrejas ou entidades religiosas; ou
II - interconfessional, resultante de acordo entre as diversas entidades religiosas, que se responsabilizarão pela elaboração do respectivo programa. (BRASIL, 1996)
Saltam à vista as múltiplas e novas diferenças em relação a outras redações: comparece o sem ônus para os cofres públicos, abre a possibilidade do ensino confessional ou interconfessional (esse último, provavelmente de inspiração ecumênica) por meio de um acordo. Contudo, essa redação teve vida e curta e, em 1997, mediante a redação dada pela lei n. 9.475, a LDB sofrerá sua primeira alteração, exatamente por conta do ensino religioso.
Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.
§ 1º Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores.
§ 2º Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso. (BRASIL, 1997)
Essa redação põe o ensino religioso como integrante da educação básica junto com a facultatividade, no ensino fundamental. Explicita o respeito à diversidade e veda todo e qualquer proselitismo. Deixa por conta dos entes federativos tanto os conteúdos, quanto as normas de habilitação e admissão dos professores dessa disciplina. E traz uma novidade maior: os conteúdos deverão resultar de um acordo mediado por uma sociedade civil multirreligiosa.
Vê-se, pois, que o ir e vir dessa disciplina, sempre acompanhada de intensas polêmicas, terá um novo capítulo com a Concordata.
Ao lado disso, as Cartas invocam, no seus Preâmbulos, o nome de Deus, excetuando as de 1891 e de 1937, ao mesmo tempo que estabelecem a separação da Igreja e do Estado, com a laicidade do Estado e a liberdade de culto, de consciência e de religião junto com a possibilidade de formas de colaboração em vista do interesse público, na forma da lei.3
É nesse quadro de um tensionamento nas relações entre Igreja Católica e Estado que se dá o Acordo entre a República Federativa do Brasil e o Estado da Cidade do Vaticano em 2008.
Brasil e Acordos Internacionais: bases legais
Os considerandos introdutórios do Acordo afirmam que ambos os Estados se baseiam em seus documentos formais e, no caso do Brasil, se diz que ele se baseia em seu ordenamento jurídico. Com efeito, consoante o art. 84 da Constituição da República de 1988, inciso VIII, é competência privativa do Presidente da República: “Celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional.” (BRASIL, 1988)
Essa sujeição a um referendo congressual está disposta no art. 49 da mesma Constituição e diz ser competência exclusiva do Congresso Nacional: “I - Resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional.” (BRASIL, 1988)
Portanto, ao assinar tal Acordo, pelo art. 20 do mesmo, os termos celebrados só entram em vigor na data da troca dos instrumentos de ratificação o que só pode ser feito após a resolução definitiva do Congresso. Assim, a assinatura do Acordo só se completa se houver ratificação final, atribuição do Congresso Nacional.
O processo dessa ratificação é o seguinte: após a mensagem presidencial encaminhando ao Congresso o teor completo do Acordo, com exposição de motivos, o Acordo é discutido e votado, separadamente, primeiro na Câmara e, caso os termos sejam aprovados nessa Casa, segue para o Senado.
É praxe envolver na discussão do Acordo tanto a Comissão de Relações Exteriores quanto a de Constituição e Justiça para o devido encaminhamento. Se houver aprovação nas duas casas, a formalização do Acordo é finalizada por meio de um decreto legislativo promulgado pelo presidente do Senado, entrando em vigor e em vigência, tão logo publicado no Diário Oficial.4
Esse processo ocorreu com o Acordo e que se consumou com o Decreto Legislativo n. 689 de 7 de outubro de 2009, publicado no dia seguinte no Diário Oficial da União: “Art. 1º Fica aprovado o texto do Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, assinado na Cidade - Estado do Vaticano, em 13 de novembro de 2008.”
No Brasil, por praxe antiga, os acordos que tenham ganho a promulgação do Congresso, se promulgam também por decreto do Presidente da República. Trata-se do Decreto do Executivo Federal n. 7107, de 11 fevereiro 2010. Uma vez publicado esse no DOU, o texto do acordo passa a fazer parte do acervo normativo nacional.
Esse Acordo foi objeto de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4439, encaminhada pela Procuradoria Geral da República em julho de 2010, ao Supremo Tribunal Federal (STF).5
A respeito desse encaminhamento, o site do STF (www.stf.org.br) registra o seguinte despacho do Ministro Ayres Britto:
Em 30/06/2011: “(...) 2. Do exame dos autos, enxergo a relevância da matéria veiculada na presente ação direta de inconstitucionalidade, bem como o seu especial significado para a ordem social e a segurança jurídica. Tudo a recomendar um posicionamento definitivo deste Supremo Tribunal Federal acerca da impugnação que lhe é dirigida.” (STF, 2011)
O posicionamento do STF revela um processo longo, prudente, com pedidos de participação de vários sujeitos interessados no assunto sem desconsiderar a manifestação da Presidência da República.
Nessa sessão do Tribunal Pleno, de 29/07/2017, a demanda foi tipificada como improcedente por maioria dos Ministros. E há os vários votos dos Ministros do Supremo, quando da sessão de 20/10/2017, em cuja pauta estava a ADI n. 4439. E isto ocorreu por conta da Procuradoria Geral da República em julho de 2010, na pessoa da então Procuradora Raquel Dodge, sendo a intimidada a Presidência da República. Importa descrever alguns pontos desse posicionamento.6
O primeiro ponto, explicitado no voto do Ministro Celso de Mello, referido aos termos do Acordo sobre o ensino religioso, no Supremo Tribunal Federal, diz:
A Constituição qualifica-se como o estatuto fundamental da República. Nessa condição, todas as leis domésticas e tratados celebrados pelo Brasil estão subordinados à autoridade hierárquico-normativa desse instrumento básico que é a nossa Carta Política. Portanto, nenhum valor jurídico terá o ato de direito internacional público que, incorporado ao nosso sistema normativo interno, transgredir, formal ou materialmente, o texto da Constituição da República, considerada a posição de eminência da Lei Fundamental... (grifos do autor) (STF, 2017a)
Resulta, então, segundo o mesmo Ministro:
Não há dúvida, portanto, de que se revela possível impugnar “in abstracto”, perante o Supremo Tribunal Federal, a legitimidade constitucional de atos normativos de direito internacional público, desde que - reitere-se - já incorporados ao plano do direito positivo interno brasileiro. (STF, 2017a) (grifos do autor)7
Portanto, consoante este pronunciamento, este Acordo poderia ser impugnado in abstracto, uma vez que já foi incorporado ao direito positivo nacional, pelos Decretos tanto do Legislativo como do Executivo.
O Relator da ADI foi o Ministro Roberto Barroso e o Relator do Acórdão foi o Ministro Alexandre de Moraes, sendo que esse último assim consignou o acórdão:
Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Plenário, sob a Presidência da Senhora Ministra CÁRMEN LÚCIA, em conformidade com a ata de julgamento e as notas taquigráficas, por maioria de votos, acordam em julgar improcedente a ação direta de inconstitucionalidade, vencidos os Ministros Roberto Barroso (Relator), Rosa Weber, Luiz Fux, Marco Aurélio e Celso de Mello. A Constituição Federal garante aos alunos, que expressa e voluntariamente se matriculem, o pleno exercício de seu direito subjetivo ao ensino religioso como disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, ministrada de acordo com os princípios de sua confissão religiosa e baseada nos dogmas da fé, inconfundível com outros ramos do conhecimento científico, como história, filosofia ou ciência das religiões. 6. O binômio Laicidade do Estado/Consagração da Liberdade religiosa está presente na medida em que o texto constitucional (a) expressamente garante a voluntariedade da matrícula para o ensino religioso, consagrando, inclusive o dever do Estado de absoluto respeito aos agnósticos e ateus; (b) implicitamente impede que o Poder Público crie de modo artificial seu próprio ensino religioso, com um determinado conteúdo estatal para a disciplina; bem como proíbe o favorecimento ou hierarquização de interpretações bíblicas e religiosas de um ou mais grupos em detrimento dos demais. 7. Ação direta julgada improcedente, declarando-se a constitucionalidade dos artigos 33, caput e §§ 1º e 2º, da Lei 9.394/1996, e do art. 11, § 1º, do Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé, relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, e afirmando-se a constitucionalidade do ensino religioso confessional como disciplina facultativa dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental. (STF, 2017b) (grifos nossos)
A C Ó R D Ã O Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Plenário, sob a Presidência da Senhora Ministra CÁRMEN LÚCIA, em conformidade com a ata de julgamento e as notas taquigráficas, por maioria de votos, acordam em julgar improcedente a ação direta de inconstitucionalidade, vencidos os Ministros DF Barroso (Relator), Rosa Weber, Luiz Fux, Marco Aurélio e Celso de Mello. Ausente, justificadamente, o Ministro Dias Toffoli, que proferiu voto em assentada anterior. Redator para o acórdão o Ministro Alexandre de Moraes.8 (STF, 2017b)
Vê-se que houve aprovação (apertada) da improcedência da ADI 4439 por maioria do STF de 6 x 5. O segundo ponto se remete ao parágrafo 4º do art. 5º de nossa Constituição. Ele diz que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. E o inciso LXXI desse mesmo artigo diz que “conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.” (BRASIL, 1988)
Estes direitos, segundo o art. 60 da Constituição, não podem ser objeto de emenda constitucional e a própria Constituição prevê, entre as funções do Ministério Público, a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. (art. 127).
Até a aprovação da Emenda Constitucional n. 45/2004, os tratados internacionais eram incorporados ao ordenamento jurídico do país no âmbito da legislação infraconstitucional. Contudo, após essa emenda, o art. 5º da Constituição de 1988 ganhou um parágrafo assim redigido: “§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre os direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros serão equivalentes às emendas constitucionais.” (BRASIL, 1988)
Assim, os tratados e convenções posteriores a dezembro de 2004 versando sobre os direitos humanos terão o caráter de constitucionalidade e dotados de eficácia constitucional.9
Já os tratados e convenções anteriores, quando aprovados e ratificados, deverão continuar com a natureza infraconstitucional. E os que não versarem sobre os direitos humanos devem continuar com a sistemática anterior já assinalada. 10
É esse último caso o que deve ser observado para o Acordo em tela. A própria sistemática nos votos relativos ao Acordo assim o indica.
Evidentemente, o caso desse Acordo, no que ele tange sobre direitos humanos em geral, o art. 5º da Constituição já cobre, especificamente, o inciso VI incidente sobre a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença. Quanto aos aspectos específicos e, no caso de aspectos peculiares que o Acordo abrange, referidos à Igreja Católica, eles não são universais, já que se dirigem a um segmento religioso focalizado.
De todo modo, o ensino religioso, em escolas públicas de ensino fundamental, é, em qualquer hipótese, um ensino de matrícula facultativa consoante o §1º do art. 210 da Constituição. Desse modo, a facultatividade (a voluntariedade da matrícula, nos termos do Acórdão) pressupõe a capacidade de agir ou de não agir, como característica de um direito. Logo, a facultatividade implica que não se trata de um dispositivo erga omnes e que carregue consigo um efeito vinculante para todos. Trata-se, pois, de uma capacidade que pode ou não ser acionada perante as unidades escolares nas quais os adolescentes estão matriculados.11
Por outro lado, o art. 19 do mesmo acordo, diz que eventuais divergências “na aplicação ou interpretação do acordo serão resolvidas por negociações diplomáticas diretas, respeitada” a interpretação do Supremo em relação a eventual transgressão formal ou material da Constituição.
Feita essa introdução quanto aos aspectos legais iniciais, poder-se-ia precisar alguns conceitos em torno do termo Acordo.
Concordata e Acordo
Embora se fale em Concordata, dada ser uma expressão comum às relações do Vaticano com outros Estados, trata-se de um Acordo. Consoante Rezek (2000, p.15):
as expressões acordo e compromisso são alternativas - ou, para quem prefira dizê-lo, são juridicamente sinônimos - da expressão tratado, e se prestam, como esta última, à livre designação de qualquer avença formal, concluída entre sujeitos de direito das gentes e destinada a produzir efeitos jurídicos.
E o autor assevera que, antes da ratificação formal prevista na legislação: “[...] não existe um tratado internacional, senão um projeto concluído, e sujeito a uma variedade de incidentes que o poderão lançar, dentro do arquivo histórico das relações internacionais, na vasta galeria dos projetos que não vingaram.” (RESEK, 2000, p.17)
Termos, como acordo, ato, convenção, pacto e protocolo, são variantes da mesma espécie que, para serem como tais, devem contar com o “animus contrahendi, ou seja, da vontade de criar autênticos vínculos obrigacionais entre as partes” (RESEK, 2000, p.18). Entrementes, esse mesmo autor faz uma ressalva quanto à peculiaridade do termo Concordata:
Apenas o termo concordata12 possui, em direito das gentes, significação singular: esse nome é estritamente reservado ao tratado bilateral em que uma das partes é a Santa Sé, e que tem por objeto a organização do culto, a disciplina eclesiástica, missões apostólicas, relações entre a Igreja católica local e o Estado co-pactuante. (RESEK, 2000, p.16)13
Esta definição se aproxima da de Jasonni (1986, p.215):
Concordata é o termo com que habitualmente se define, em linguagem técnico-jurídica, a convenção bilateral entre a Santa Sé e os Estados, com vistas à regulamentação das atividades eclesiásticas neles realizadas e à solução dos conflitos eventualmente surgidos entre o poder eclesiástico e o poder civil.
Este mesmo autor, ao fazer uma retomada histórica das Concordatas, assevera: “[...] que só nos fins do século XVIII, com a atuação do Estado moderno no Ocidente europeu, é que a Concordata assume realmente a forma jurídica de ‘convenção bilateral’ ou de ‘negócio transacional’.” (JASONNI, 1986, p. 216)
Do ponto de vista de uma sequência cronológica, a primeira Concordata foi celebrada entre o Papa Calisto II e Henrique V da Germânia, em Worms; em 1753, celebrada com a Espanha; em 1801, acertada entre o Papa Pio VII e Napoleão I da França; nova Concordata entre o Papado e a Espanha em 1851; em 1855 foi com a Áustria entre Pio IX e Francisco José; em 1925 a Concordata recaiu sobre a Polônia e a Santa Sé; em 1929, o citado Tratado de Latrão entre a Itália e Sé Romana; em 1933, houve a Concordata com a Alemanha; entre Portugal e a Santa Sé se deu em 1940; em 1953, outra com a Espanha e, em 2004, também, com Portugal. E, assim chega-se ao Brasil em 2008.
Só Estados soberanos - pessoas jurídicas de direito internacional pública - e organizações internacionais reconhecidas como tais como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) ou a Organização Internacional do Trabalho (OIT), por exemplo, podem celebrar tais atos.
E um acordo formal entre Estados, consoante Resek (2000, p.18), “é um ato jurídico que produz a norma, e que, justamente por produzi-lo, desencadeia efeitos de direito, gera obrigações e prerrogativas”. Diz Resek (2000, p.18-19) que, aos Estados soberanos, “se equipara a Santa Sé”.
A Santa Sé (como diz o nome) é a sede episcopal da religião católica da cidade de Roma na dimensão espiritual. Mas a Cidade do Vaticano é também a sede do governo do Estado do Vaticano, com 0,44 km2. Ela possui personalidade internacional. É reconhecida como Cidade-Estado soberano tendo direito, assim, a legações, embaixadas, passaporte comum e diplomático e outras características da soberania internacional. Contudo, à personalidade jurídica internacional do Vaticano não corresponde uma personalidade civil já que os fins de tal Estado não se harmonizam com os de outros Estados soberanos. O Vaticano não possui cidadãos nacionais e nem se pode dizer que ele seja um país. É uma Cidade-Estado, mas não um país.14 Trata-se, afirma Rezek (2000), de personalidade internacional anômala.
Tal anomalia não provém de certas características desse Estado como um território pequeno, uma população exígua ou de uma singular independência de governo. Há outros Estados Nacionais cujo tamanho territorial é pequeno como Mônaco, San Marino, Luxemburgo, entre outros.
A anomalia deriva da ausência de características comuns aos Estados e da inexistência de nacionais, ou seja, de um povo e da presença de uma teleologia única. Como diz Resek (2000, p.234):
Os fins para os quais se orienta a Santa Sé, enquanto governo da Igreja não são do molde dos objetivos padronizados de todo o Estado Soberano. Além disso, é importante lembrar que a Santa Sé não possui uma dimensão pessoal, não possui nacionais... Quando se entenda de afirmar, à luz do elemento teleológico e da falta de nacionais, que a Santa Sé não é um Estado, cumprirá concluir... que ali temos um caso único de personalidade internacional anômala.
Essa análise de Resek (2000) encontra similaridade na de Jasonni (1986, p.216):
É, pois, já em época recente que a autoridade civil e a Santa Sé conciliam as respectivas competências e se põem de acordo sobre os respectivos campos de ação; ambas são iguais em soberania, iguais na condição dos ordenamentos jurídicos primários, ambas foram dotadas originariamente de independência e autonomia. Veio assim a criar-se uma situação que remete aos esquemas do direito internacional, mas que conserva, entretanto, particularidades tão essenciais que numerosos mestres se sentiram autorizados a falar de um “ordenamento especial concordatário”.
Entretanto, vale considerar posições que contrastam como a de Resek, como é o caso de Ranieri (2018, p.144) para quem não se pode considerar o Vaticano como um Estado:
O reconhecimento da soberania da Santa Sé sobre o território da Cidade do Vaticano, pelos Acordos de Latrão de 1929, deu causa à elaboração de teses estadualistas e não estadualistas acerca da natureza do que se convencionou chamar “Estado do Vaticano”.
Entre as estadualistas, uma linha de argumentação afirma que a Santa Sé seria a entidade soberana sobre a Cidade do Vaticano; em outras, pretende-se que a Santa Sé seja um Estado e a Cidade do Vaticano, seu território. No direito internacional, contudo, não prevalece nenhuma delas porquanto não se identificam, quer no que concerne à Santa Sé, quer no que concerne à Cidade do Vaticano, nem povo, nem nacionalidade, a despeito de seu território.
Além disso, a Santa Sé só existe com a finalidade de propagar a fé católica, e não representar ou governar o “povo do Vaticano”.
Em face do elemento “finalidade”, não há como se considerar o Vaticano um Estado.
O posicionamento de Ranieri faz jus ao Decreto n. 1570, de 13 de abril de 1937, pelo qual o Brasil assina o Tratado de Montevidéu que assim se posiciona, junto com muitos outros países, no seu art. 1º:
O Estado como pessoa de Direito Internacional deve reunir os seguintes requisitos.
I. População permanente.
II. Território determinado.
III. Governo.
IV. Capacidade de entrar em relações com os demais Estados. (BRASIL, 1937b)
Postas essas posições, o Estado da Cidade do Vaticano tem uma Lei Fundamental15, espécie de Constituição de um Estado monárquico - teocrático - religioso e tem sentido para as relações religiosas com as suas hierarquias espalhadas pelo mundo (cardeais, arcebispos, bispos, religiosos) e com seus fiéis. O Código do Direito Canônico é uma espécie de Constituição da Igreja Católica.16
Segundo Souza (2005), o Acordo de Latrão contém 3 documentos, a saber: um Tratado, uma Concordata e uma Convenção financeira:
Através do Tratado, o Estado italiano reconhecia a independência e a soberania da Santa Sé no território, ainda que minúsculo, denominado Estado da Cidade do Vaticano. A soberania do novo Estado era, contudo, tão completa que lhe era reconhecida até a faculdade de ter representantes dos Estados mesmo no caso que esses estivessem em guerra com o Estado italiano. A Santa Sé, por sua vez dava por completamente encerrada a Questão Romana e reconhecia o Estado italiano regido pela dinastia dos Savóia e nos limites territoriais existentes. Uma troca dos respectivos diplomatas deveria sancionar tais acordos. (SOUZA, 2005, p.305-306)
o Tratado de Latrão, que, no seu Proêmio, reconhece o Estado da Cidade do Vaticano como sendo aquele determinado território sobre o qual a Santa Sé goza de independência política absoluta interna e sobretudo no campo internacional, necessária para a realização de sua missão de evangelização no mundo. (SOUZA, 2005, p.306)
Esse Estado possui reconhecimento de mais de 170 países, e é um Estado neutro. Em relação à Organização das Nações Unidas possui o status de observador. Seu conjunto, artístico e arquitetônico, é patrimônio cultural da humanidade, atribuído pela UNESCO.”
O Acordo tem um passado no Brasil
A Concordata assinada pelo Brasil e a Santa Sé (nome alternativo e habitual para designar a Cidade do Vaticano), em 2008, expressa, em nossa história tanto uma relação significativa entre Igreja e Estado, quanto a própria ambiguidade desta relação.
A ambiguidade se dá já que tal acordo diplomático ocorre entre uma potência nacional de um Estado laico (no caso: Brasil) e um Estado teocrático (Vaticano/Santa Sé), a fim de estabelecer princípios norteadores do exercício do culto em o nosso país, cabíveis à ordem jurídica17 própria da Santa Sé como sede de um poder espiritual concentrado. Mas, é também um acordo entre as relações de uma potência nacional (Brasil) e a Cidade do Vaticano como sede de um Estado soberano. O Papa é uma autoridade estatal (Cidade do Vaticano) e chefe de um poder espiritual (Santa Sé), ao mesmo tempo.
Exatamente por conta dessa ambivalência, esse Estado (anômalo, nos termos de Rezek), sede de um poder soberano e sede de um poder religioso altamente institucionalizado, que ele pode assinar tais atos. Resulta daí uma distinção marcante e uma diferença com relação a outros polos de poder religioso não católico (que não são um Estado) e suas ordens jurídicas internas com relação aos Estados Nacionais.
Contudo, essa ambivalência, em nosso país, possui raízes históricas mais profundas seja na história ocidental, seja na evolução histórica dos países colonizados pelas potências da península ibérica como o Brasil.
O Brasil, enquanto Colônia, foi dominado por uma potência metropolitana da época (Portugal), como também foi catequizado (vide atuação da Companhia de Jesus, entre outras, durante a Colônia) por um país contrarreformista em que o rei deveria ser católico e ter laços estreitos com a Igreja Católica então detentora de Estados Pontifícios. Além disso, havia a instituição do Padroado que garantia direitos e privilégios trocados entre a Altar e Trono. 18
Por ocasião da Independência, quando da Constituição outorgada de 1824, o texto desta dispunha, em seu Preâmbulo, que Dom Pedro I era imperador constitucional do Brasil “por graça de Deus e unânime aclamação dos povos” (BRASIL, 1824). E a Constituição era aberta “em nome da Santíssima Trindade”. O art. 5º dizia que “A religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do Império” (BRASIL, 1824). O art. 102 da Constituição estabelecia o Imperador com poderes para “nomear bispos e prover benefícios eclesiásticos” (BRASIL, 1824) entre muitas outras prerrogativas próprias do Padroado. O art. 102 determinava também que o Imperador, ao ser aclamado como tal, deveria fazer o juramento de fidelidade à Igreja Católica. Além disso, o artigo 5º afirma: “Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de Templo” (BRASIL, 1824).
Além do culto doméstico de religiões não - católicas, somente em 1881, por interferência direta de Dom Pedro II, é que os seguidores de outros cultos, nacionais ou naturalizados, puderam se fazer representar nas votações e nas assembleias legislativas, consoante o Decreto n.3029 de 9 de janeiro de 1881.
Diferentemente dos clérigos pertencentes às ordens e congregações religiosas, os sacerdotes do clero secular, atuantes nas paróquias, pertenciam à burocracia do aparelho estatal e recebiam, como proventos, a chamada côngrua.19 Prorrogada por um ano, após a República, ela também caiu com o Decreto n. 119-A de 1890.
Se os laços entre o Império e a Igreja Católica eram muito fortes, o regime do Padroado trouxe consigo vários problemas como a pertença à maçonaria, ao liberalismo, ao protestantismo, acarretando a célebre “questão religiosa” no ocaso do Império inclusive com prisão de bispos.20
Após a proclamação da República, o Decreto n. 119-A de 7 de janeiro de 1890, conhecido como decreto da laicidade ou da separação da Igreja e do Estado, estabelecia, em seu art. 1º, que
é proibido à autoridade federal, assim como à dos Estados federados, expedir leis, regulamentos, ou atos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e criar diferenças entre os habitantes do país, ou nos serviços sustentados à custa do orçamento, por motivo de crenças, ou opiniões filosóficas ou religiosas. (BRASIL, 1890)
Os art. 2º e 3º estabeleciam a plena liberdade de cultos, o art. 4º extinguia o Padroado, o art. 6º reconhecia a personalidade jurídica a todas as igrejas e confissões religiosas para adquirirem e administrarem bens. Já pelo art. 7º o governo federal continuaria a subvencionar, por 1 ano, a côngrua, podendo ela se dar com os agora Estados.21
Esperava-se uma reação mais enfática por parte da hierarquia católica, já que por esse Decreto se consumava a separação oficial da Igreja e do Estado, antiga aspiração de partidos, organizações e correntes de pensamento, como o positivismo, o liberalismo e correntes de opinião. Tanto é assim que uma das justificativas manifestas, quando da criação da Secretaria de Estado da Instrução Pública, Correios e Telégrafos, criada pelo Decreto n. 346, de 19 de abril de 1890, era exatamente os problemas que a laicidade no ensino poderia acarretar.
Mas a reação da hierarquia católica não foi tão contundente como se poderia esperar. O Decreto, em seu art. 6º, permitia aos Estados continuar a prover a côngrua que, no âmbito federal, continuaria apenas por 1 ano e porque a Igreja pretendia recuperar alguns espaços, agora livre das amarras do Padroado.22
Nesse sentido, a Pastoral dos Bispos de 1890 pede que haja uma união entre os dois poderes por meio de acordos e entendimentos. Uma das razões apontadas pela Pastoral para tal era de que a maioria dos cidadãos brasileiros era católica.
Por sua vez, as igrejas evangélicas depositaram muita expectativa positiva quanto às possibilidades que a laicidade traria ao país e ao desenvolvimento dos cultos, sob a liberdade religiosa.
Contudo, se Governo Provisório estabeleceu e manteve a secularização dos cemitérios, o casamento civil, o novo perfil dos feriados, os registros civis e a laicidade no ensino, mantidos na Constituição de 1891, a Igreja Católica passou a usufruir, pelo Decreto n. 119-A, uma soma de liberdades como ela nunca teve na era imperial.23
A Constituinte, dotada de poder originário, trabalhou muito a questão da laicidade, sobretudo no art. 72 em cujo teor se lê em seu §3º que “todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum.” (BRASIL, 1891) Já o §6º é claro: “será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos” (BRASIL, 1891). Enfim, o §7º dispõe: “nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o governo da União ou o dos Estados.” (BRASIL, 1891)
A temática da laicidade perpassará toda a Velha República. A primeira grande tentativa de mudança nesse estatuto se deu quando da Revisão Constitucional de 1925-1926.24 Havia uma emenda de plenário que propunha o reconhecimento da religião católica como sendo a da maioria da população brasileira. Essa emenda foi rejeitada bem como a que propunha o ensino religioso facultativo nas escolas públicas.25 Contudo, foi aprovada a emenda substitutiva referida à redação original do § 7º do art. 72 e que ficou assim com o acréscimo: “Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União, ou o dos Estados. A representação diplomática do Brasil junto à Santa Sé não implica violação deste princípio.”26 (BRASIL, 1926)
A referência à Santa Sé, em 1926, representava, para os autores da proposta, uma espécie de reconhecimento explícito de um Estado Soberano que (ainda) se encontrava em situação conflituosa com o Estado Italiano para ser reconhecido como um Estado.
O Tratado de Latrão só se consumou em 1929 entre a Itália e o Vaticano. Este Tratado reconheceu o Vaticano como Estado Soberano e neutro, assegurando indenização pela Itália em razão da perda dos territórios pontifícios. O Tratado reconheceu o catolicismo como religião oficial da Itália, estabeleceu o ensino religioso obrigatório nas escolas públicas, conferiu efeitos civis ao casamento religioso e aboliu o divórcio. Este Tratado foi incorporado à Constituição Italiana em 1947.
Uma primeira reforma deste Tratado, em 1978, retirou da Constituição da Itália, o catolicismo como religião oficial e o Estado italiano tornou-se laico. A lei italiana, por sua vez, reintroduziu o divórcio a partir de 1970. Em 1978, a lei n. 194 da Itália descriminalizou o aborto o que gerou forte reação do Vaticano. Em 1984, caiu a obrigatoriedade do ensino religioso nas escolas públicas, tornando esse facultativo, mediante solicitação dos pais.
Estas referências à Itália são significativas inclusive para se entender as reiteradas demandas da Igreja Católica no Brasil e sua afirmação de que nosso país era de maioria católica e que tal realidade não poderia ser ignorada pela legislação.
Após a Revolução de Trinta, a Igreja Católica no Brasil, agora muito organizada, de início pressionará por uma Concordata. Abandonada essa tese, em vista de um certo irrealismo da mesma, ela optou por pressões junto ao Executivo, de cuja pressão resultou o Decreto n. 19.941, de 30 de abril de 1931, o qual tornou “facultativo, nos estabelecimentos de instrução primária, secundária e normal, o ensino da religião” (BRASIL, 1931). Com relação às suas demandas frente ao futuro Congresso Constituinte, a Igreja, a partir de suas bases na sociedade civil, organizou, por exemplo, a Liga Eleitoral Católica (LEC).27
A Constituição de 1934, quanto aos pontos de relações internacionais, diz em seu art. 40, que é da competência exclusiva do poder legislativo “resolver definitivamente sobre os tratados e convenções com as nações estrangeiras, celebrados pelo Presidente da República, inclusive os relativos à paz.” (BRASIL, 1934). Por sua vez, o art. 176 dispõe: “É mantida a representação diplomática junto à Santa Sé” (BRASIL, 1934), tal como fora registrado na Revisão Constitucional.
Da mobilização trazida pela LEC, várias emendas (chamadas de religiosas) foram aprovadas entre as quais o nome de Deus na Constituição, a proibição do divórcio e o ensino religioso. O ensino religioso em escolas públicas foi permitido sob condição de ser de matrícula facultativa.28
Essa relação entre o Brasil e o Vaticano, ganharia um valor simbólico quando da visita do Cardeal Eugênio Pacelli, futuro papa Pio XII, ao Brasil em 20 de outubro de 1934. Na oportunidade, Getúlio Vargas (1938), agora presidente constitucional, eleito pela Constituinte, em discurso de saudação ao emissário papal, após chamar o Papa Pio XI de maior força moral do mundo contemporâneo, assim se expressou:
As relações de inalterável amizade entre o Brasil e a Santa Sé constituem uma das tradições mais caras da nossa diplomacia.
[...]
A República, na sua primeira Constituição de 1891, proclamou a separação, no intuito dos que elaboraram a Magna Carta, na prática sensata dos que a executaram, não foi um divórcio nem se baseou em sentimentos ímpios.
[...]
É dessa ação imprescindível continua sempre o Brasil a esperar o concurso (da Igreja) inestimável para a construção do seu porvir. É sobre a sólida formação cristã das consciências, é sobre a conservação e defesa dos mais altos valores espirituais de um povo que repousam as garantias mais seguras de sua estrutura social... (VARGAS, 1938, p.305-306)29
A Constituição de 1937, outorgada pela ditadura do Estado Novo, declarava, em seu art. 15, I ser competência privativa da União “manter relações com os Estados Estrangeiros, nomear os membros do Corpo Diplomático e Consular, celebrar tratados e convenções internacionais” (BRASIL, 1937a). O art. 37, letra b, vedava aos poderes públicos “estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos” (BRASIL, 1937a)30. Por sua vez, o art. 74, letras “c” e “d”, dizia que era competência privativa do Presidente da República manter “relações com Estados estrangeiros e celebrar convenções e tratados internacionais ad referendum do poder legislativo” (BRASIL, 1937a). Finalmente, cumpre citar o art. 122, inciso 4, verbis: “Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum, as exigências da ordem pública e dos bons costumes.” (BRASIL, 1937a)31
Nessa Constituição, não há referência à representação diplomática do Brasil junto à Santa Sé. Jair dos Santos (2022) demonstra que houve interação diplomática entre o Brasil e o Vaticano, especificamente no caso de refugiados judeus. O núncio apostólico no Brasil era o Cardeal Benedetto Aloisi Masella. E, em 1944 até 1948, o embaixador do Brasil junto ao Vaticano era Maurício Nabuco de Araújo.
A Constituição de 1946 veda aos poderes públicos “estabelecer, subvencionar cultos religiosos, ou embaraçar-lhes o exercício, proíbe relação de aliança ou dependência com qualquer culto ou igreja, sem prejuízo da colaboração recíproca em prol do interesse coletivo” (BRASIL, 1946), de acordo com o art. 31. O art. 196 repete, ipsis litteris, os termos do art. 176 da de 1934, face à relação com a Santa Sé.32 O art. 87 diz que compete privativamente ao Presidente da República “celebrar tratados e convenções internacionais ad referendum do Congresso Nacional.” (BRASIL, 1946)
A Constituição de 1967, convocada pelo Ato Institucional n. 4 da ditadura civil-militar de 1964, não faz mais menção à Santa Sé, e dispõe:
Art. 8º - Compete à União:
I - Manter relações com Estados estrangeiros e com eles celebrar tratados e convenções; participar de organizações internacionais; (BRASIL, 1967)
Ao mesmo tempo, essa Constituição, no seu art. 9º II, dispõe sobre a vedação em:
Estabelecer cultos religiosos ou igrejas; subvencioná-los; embaraçar-lhes o exercício; ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada a colaboração de interesse público, notadamente nos setores educacional, assistencial e hospitalar.33 (BRASIL, 1967)
Será durante o regime militar, sob um presidente luterano, que o divórcio será estabelecido no Brasil a partir da Lei 6.515, de 26 de dezembro de 1977, nascida com o advento da Emenda Constitucional n.º 9, de 28 de junho de 1977 alterando o § 1º do art. 175 da Emenda Constitucional de 1969.
Exceto a Constituição de 1891, em que aparece o termo leigo (no sentido de laico, como bem explica Luiz Antônio Cunha em sua produção sobre o assunto), esse termo desaparecerá em todas as outras. Por outro lado, comparece nessas outras, no Preâmbulo das mesmas, excetuando-se a outorgada em 1937, a invocação ao nome de Deus como na atual (1988) que a põe sob a proteção de Deus. Fica sempre a pergunta: como conciliar a temática da laicidade, posta no art. 19, e essa entronização preambular?34 Ao mesmo tempo, a atual Constituição, impõe, no seu art. 5º VI e VIII que
É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias,
[...]
Ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei. (BRASIL, 1988)
Quanto à laicidade do Estado35, não resta dúvida quando se lê o art. 19 da Constituição:
É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - Estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; (BRASIL, 1988)
Contudo, em 1991, pelo Decreto n. 11 de 18 de janeiro, assinado por Fernando Collor, no seu Anexo IV, o Decreto n. 119.A de 1890 foi revogado. E, pelo Decreto n. 4.496 de 4 de dezembro de 2002, o Decreto n. 119.A ficou excluído do Anexo IV do Decreto n. 11/91. Com isto, houve o revigoramento do Decreto 119-A pelo Decreto de 2002, da anterior revogação de 1991. Isto quer dizer que, entre 1991 e 2002, houve um vácuo na regulamentação no previsto pelo Decreto n. 119-A da laicidade.36
Mesmo durante o tempo do vácuo, não houve a revogação da laicidade já que esta continuava a fazer parte do estatuto constitucional de 1988. Certamente que nesta regulamentação do início da República já não cabia retornar ao ensino religioso, também tornado facultativo nas escolas públicas de ensino fundamental. E muito menos se justificaria o pagamento de côngruas uma vez que tal dispositivo já prescrevera um ano após a edição do Decreto de 1890. É que este Decreto se punha como referência legal existente para eventual negociação entre as partes para outras dimensões como patrimônio cultural, arquitetônico e terras ou para assinalar e para deixar claro que, segundo sua ementa, é interdita a intervenção federal e dos Estados em matéria religiosa, consagra a plena liberdade de cultos, extingue o padroado e dá outras providências.
Autoridades eclesiásticas reclamavam de aspectos obscuros de um decreto já centenário. Por isso reivindicavam uma atualização do mesmo como uma maior clareza com relação ao termo personalidade jurídica.
Do Acordo
Enquanto Estados, o Brasil pode estabelecer relações diplomáticas com o Vaticano. Como expressa Silva (1989, p.223), “porque aí ocorre relação de direito internacional entre dois Estados soberanos, não de dependência ou de aliança, que não pode ser feita.”
O atual Acordo visa uma nova feitura do Decreto n. 119.A/1890 de modo a regular um conjunto de situações surgidas ao longo dos anos.37 O Acordo seria um ersatz do na forma da lei do art. 19, que ainda não foi elaborada (até 2022)? Ao mesmo tempo, uma identificação de interesses com outras igrejas e cultos pode ser uma forma de se autolegitimar. Mas também não deixa de apresentar uma clivagem hierárquica com relação a outras confissões.
O que se observa no texto do Acordo é a reiteração de que há respeito à legislação nacional e, para tanto, há a reprodução de artigos nela já postos. É o caso do princípio da liberdade religiosa. O documento do relator da matéria no Senado, Collor de Mello (BRASIL, 2009), em sua tramitação pelo Senado, resume os pontos principais do Acordo:
O presente Acordo entre a Santa Sé e a República Federativa do Brasil traz os seguintes pontos principais:
Reafirma a personalidade jurídica da Igreja Católica e de suas instituições • (Conferência Episcopal, Dioceses, Paróquias, institutos religiosos etc.);
Reconhece às instituições assistenciais religiosas igual tratamento • tributário e previdenciário fruído por entidades civis congêneres;
Estabelece colaboração da Igreja com o Estado na tutela do patrimônio • cultural do País, preservando a finalidade precípua de templos e objetos de culto;
Reafirma o compromisso da Igreja com a assistência religiosa a pessoas • que a requeiram, e estejam em situações extraordinárias, no âmbito familiar, em hospitais ou presídios;
Cuida do ensino religioso católico em instituições públicas de ensino • fundamental e também assegura o ensino de outras confissões religiosas nesses estabelecimentos;
Confirma a atribuição de efeitos civis ao casamento religioso e, simétrica • e coerentemente, dispõe sobre a eficácia de sentenças eclesiásticas nesse setor;38
Estabelece o princípio do respeito ao espaço religioso nos instrumentos • de planejamento urbano;
Codifica a jurisprudência pacificada no Brasil sobre a inexistência • de vínculo empregatício dos ministros ordenados e fiéis consagrados mediante votos com as dioceses e os institutos religiosos equiparados;
Assenta o direito de os bispos solicitarem visto de entrada aos religiosos • e leigos estrangeiros que convidarem para atuar no Brasil; e
Enseja que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) • possa, autorizada pela Santa Sé em cada caso, pactuar os direitos e obrigações versados no Acordo.
No mesmo documento, o então embaixador do Brasil junto ao Vaticano, Samuel Pinheiro Guimarães Neto, justificando os termos do Acordo, descreve a tramitação das idas e vindas do texto e resume o Acordo em termos jurídicos:
Art. 1º dispõe sobre a representação diplomática do Brasil e da Santa Sé, nos termos da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas;
Art. 2º o Brasil reconhece à Igreja Católica o direito de desempenhar sua missão apostólica;
Art. 3º o Brasil reconhece a personalidade jurídica das Instituições Eclesiásticas mediante inscrição no registro pertinente do ato de criação, nos termos da legislação brasileira;
Art. 4º a Santa Sé garante que a sede dos Bispados estará sempre em território brasileiro;
Art. 5º dispõe que os direitos, imunidades, isenções e benefícios das pessoas jurídicas eclesiásticas que prestam também assistência social serão iguais aos das entidades com fins semelhantes, conforme previstos no ordenamento jurídico brasileiro;
Art. 6º e 7º dispõem sobre o patrimônio histórico e cultural da Igreja Católica no Brasil, assegurando a proteção dos lugares de culto e a cooperação entre Igreja e Estado com vistas a salvaguardar e valorizar esse patrimônio (incluindo documentos em arquivos e bibliotecas), bem como facilitar o acesso a todos que queiram conhecê-lo e estudá-lo;
Art. 8º o Brasil assegura a prestação de assistência espiritual pela Igreja a fiéis internados em estabelecimentos de saúde ou prisional que a solicitarem, observadas as normas das respectivas instituições;
Art. 9º ,10 e 11 dispõem sobre temas relacionados à educação: garante à Igreja o direito de constituir e administrar seminários e outros Institutos eclesiásticos; estipula que o reconhecimento recíproco de títulos e qualificações em nível de graduação e pós-graduação estará sujeito às respectivas legislações e normas; e dispõe sobre o ensino religioso de matrícula facultativa nas escolas públicas de ensino fundamental, sem discriminar as diferentes confissões religiosas praticadas no Brasil;
Art. 12. estabelece que a homologação de sentenças eclesiásticas em matéria matrimonial será efetuada nos termos da legislação brasileira sobre a matéria;
Art. 13. é garantido aos bispos da Igreja Católica manter o segredo do ofício sacerdotal;
Art. 14. o Brasil declara seu empenho em destinar espaços para fins religiosos no planejamento urbano no contexto do plano diretor das cidades;
Art. 15. dispõe sobre o reconhecimento pelo Brasil da imunidade tributária referente aos impostos das pessoas jurídicas eclesiásticas e garante às pessoas jurídicas da Igreja que exercem atividades sociais e educacionais sem fins lucrativos os mesmos benefícios;
Art. 16. trata do caráter religioso das relações entre os ministros ordenados e fiéis consagrados e as dioceses ou institutos religiosos as quais, observado o disposto na legislação trabalhista brasileira, não geram vínculo empregatício, a não ser que comprovado o desvirtuamento da função religiosa da instituição;
Art. 17. trata da concessão de visto permanente ou temporário para sacerdotes, membros de institutos religiosos e leigos, que venham exercer atividade pastoral no Brasil, nos termos da legislação brasileira sobre a matéria. (BRASIL, 2009)
Mas o que se destaca ainda é que, no interior dos artigos, há a assinalação da distinção posta na singularidade da presença da Igreja Católica no Brasil, na sua relação com o Estado e na sua presença na sociedade.
Essa distinção, como a evolução histórica demonstra, sempre foi buscada pela Igreja com certa tenacidade e com alto grau de organização.
A distinção, como nos alerta o sociólogo Pierre Bourdieu (1979), não tem interesse na eliminação da diversidade. Ao contrário, a visibilidade da diversidade e o reconhecimento de seu valor são condições para o aparecimento da visibilidade e do gosto pela distinção. A distinção, porém, segundo esse autor, confere um toque de diferença peculiar, atribuindo superioridade simbólica àquele que a propõe como um valor, ao sujeito que assim a enuncia. Em outras palavras, a diversidade de uns é uma referência a contrario para pôr em destaque a condição de dominância consagrada da distinção em apreço. Tal distinção, então, legitimaria o acesso a uma posição de destaque dada por uma história cultural pregressa, entre outros fatores.39
O que há no Acordo, então, é uma distinção diferenciada e positiva da Igreja Católica face aos outros credos. É o caso dos artigos 11, 16, e 18.
Mas antes de ver mais de perto o art. 11, vale ter ciência de como o Relator da matéria no Senado, Senador Fernando Collor, no documento já citado, explica, por meio de perguntas e respostas, alguns pontos do Acordo cujas respostas pretendem justificar os termos dele. Um deles, e é o mais estendido, é o art. 11:
12. A PREVISÃO DO DIREITO AO ENSINO RELIGIOSO NO ACORDO ATENTA CONTRA A CONSTITUIÇÃO FEDERAL?
A resposta é seguramente negativa. O ensino religioso já está previsto na Constituição brasileira, no seu art. 210. Ali se determina que “o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental”. A Constituição, portanto, prevê que as escolas públicas deverão oferecer ensino religioso. Determina que isso deve acontecer onde o Estado provê o ensino fundamental. A disciplina, no entanto, não deve ser imposta ao aluno, que a escolherá, por vontade própria ou pela manifestação de seu representante legal (no caso dos menores). A matrícula na disciplina é facultativa, mas o seu oferecimento é dever do Estado.
13. DE QUE ESPÉCIE DE ENSINO RELIGIOSO A ORDEM CONSTITUCIONAL COGITA?
O Estado se compromete, por meio da sua Constituição, a ensinar os fundamentos da religião do fiel que a solicita. A Constituição não fala em um direito a receber aulas sobre sociologia das religiões nem de um direito a ser instruído em teoria comparada das religiões. A promessa do constituinte é no sentido de que será ministrado ensino religioso - e não ensino comparativo crítico das religiões. Não existe uma religião genérica, a-confessional. O ensino religioso há de ser, necessariamente, o ensino de uma dada religião, dos seus dogmas e preceitos - da religião adotada pelo aluno, que pede a instrução nas suas minúcias e fundamentos.
14. O ACORDO, AO TRATAR DO ENSINO RELIGIOSO BENEFICIA A RELIGIÃO CATÓLICA EM DETRIMENTO DE OUTRAS DENOMINAÇÕES RELIGIOSAS?
Não. O Acordo se concilia com a visão do direito ao ensino religioso adotado pelo constituinte brasileiro em 1988. Toma o ensino religioso como magistério de uma religião. O Acordo, no entanto, não cogita de reduzir o ensino religioso apenas ao ministério da religião católica. De modo consentâneo com a vocação da Igreja Católica de máximo respeito à liberdade religiosa de todo o ser humano, o Acordo assegura direitos também para outras religiões no Brasil. O Acordo privilegia um modelo de “ensino religioso pluriconfessional”. Por isso, o seu art. 11 reitera o ideal do constituinte brasileiro de “respeito à importância do ensino religioso em vista da formação integral da pessoa”. O Acordo garante que os adeptos de outras religiões também possam requerer e receber do Estado brasileiro a instrução religiosa da sua confissão. A norma não poderia ser mais afinada com ideais de igualdade jurídica entre as religiões e menos avessa a privilégios particulares.
15. A PREVISÃO DO ENSINO RELIGIOSO FERE A LIBERDADE DOS NÃO CRENTES OU AGNÓSTICOS?
Não, porque o ensino religioso não é imposto, mas apenas facultado aos que por ele se interessem. (BRASIL, 2009)
O §1º do art. 11 merece uma consideração própria. Diz ele:
O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação. (BRASIL, 2010)
Por sua vez, como o artigo se refere à Constituição Brasileira, ela em seu §1º do art. 210 dispõe “o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental” (BRASIL, 1988). Esse dispositivo reaparece na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, no seu art. 33 alterado40 pela lei n. 9.475/97: (BRASIL, 1997)
Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.
§ 1º Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores.
§ 2º Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso.
A diferença é nítida. O art. 11, § 1º do Acordo não repete nem os termos da Constituição e nem os da Lei das Diretrizes e Bases, já que há um acréscimo específico na medida em que o ensino religioso passou a ser adjetivado por uma confessionalidade acrescido das outras confissões religiosas.
Pode-se até aventar a hipótese se tal acréscimo - católico e de outras confissões religiosas - não seria uma pretensa neutralidade justamente para encobrir a distinção assinalada. Esta primeira mudança em artigo da LDB pela pressão exercida pela CNBB, gerando o alterado art. 33, não nomina nenhum credo, culto ou religião, isto é, não carrega consigo uma distinção do tipo confessional. Pelo contrário, a LDB põe na lei uma entidade civil cuja existência foi um dos maiores focos de recusa pela Igreja Católica em 1905 na França especialmente quanto à polêmica do ensino religioso e do Estado laico.
Não é o caso do § 1º do art. 11 do Acordo que adjetiva o ensino religioso - católico e de outras confissões religiosas - o que faz retornar, de modo específico, o inciso I do art. 33 (original) da LDB, supracitado, e modificado por pressão da Igreja Católica.41
Ora, criada uma insegurança jurídica na interpretação da Constituição, desfeita formalmente pela decisão do Supremo Tribunal Federal ao acolher a constitucionalidade do ensino confessional na Lei Maior, resta o confronto desta decisão com o artigo (emendado) 33 da lei de 1997 e o decreto legislativo de 2009.42 Tudo indica que tal decisão do STF, não há outra interpretação possível senão a da não obrigatoriedade do confessional como única alternativa para o ensino religioso. Nesse sentido, parece haver uma possibilidade de composição entre a redação original do art. 33 com a interpretação do STF que não abole as alternativas da redação de 1997. Como assinala Ranieri (2022, p.100):
Na decisão do STF, não há menção à BNCC, e a Resolução CNE 02/2017 não faz referência à decisão do STF, embora a decisão do julgamento lhe seja anterior (publicada no Diário da Justiça em 29/09/2017 e no Diário Oficial da União em 02/10/2017). Desde então, o CNE não se pronunciou sobre o conteúdo do ensino religioso nem sobre a BNCC, neste particular. Não há dúvidas de que a decisão do STF na ADI 4439 deve ser cumprida pelos sistemas de ensino. O ensino religioso é disciplina singular, não integra o currículo e não está sujeita à BNCC. A decisão do STF, porém, não proíbe nem impede outras abordagens do ensino das religiões, inclusive a partir dos parâmetros previstos na Base Nacional Comum.
E, não será de somenos considerar a perda de fiéis por parte da Igreja Católica e sua relação com esse Acordo. Afinal, se em 1950, declaravam-se católicos mais de 90% dos brasileiros recenseados, em 2010, esta proporção, em nível nacional, era de 65%. Daí um Acordo que abrange bastante mais áreas do que o ensino religioso.
Afinal, ainda voltando ao sociólogo Pierre Bourdieu, também a religiosidade é um campo de disputa entre as instituições religiosas. Usufruir de uma distinção, dentro desse campo de disputa não é pouco, especialmente quanto um dos polos do Acordo é o Estado.
Aos não católicos que, no Acordo não mereceram a especificidade dessa distinção, pode resultar uma marca discriminatória de crença inferior. Não por outra razão Jasonni (1986, p.218) conclui o verbete Concordata Eclesiástica, após analisar mudanças na própria Igreja Católica advindas do Concílio Vaticano II: “No futuro, este velho instituto moderador dos encontros e desencontros do poder temporal e espiritual só poderá continuar a existir, pensamos, se sofrer uma total e completa reestruturação.”
Contudo, para além dessa busca pela distinção, calcada em um velho instituto, inclusive oposto a documentos oficiais da Igreja Católica, cabe ressaltar o caráter sigiloso de que se revestiram as negociações prévias à tramitação congressual e à assinatura entre os chefes de Estado. Não há, no caso, uma razão de Estado a determinar tal procedimento. A publicidade dos atos de governo é um princípio constitucional posto no art. 37 da Constituição da República.
Conclusão
Diziam os filósofos da política no Século XVII que a força do tirano está no segredo. Deter uma informação sobre o outro, e só alguém detê-la, torna esse alguém capaz de transformar essa informação contra o outro, a favor do outro, de todo o modo algo com relação ao outro. Neste sentido, detê-la sigilosamente é ter o outro, no caso a sociedade, sob o meu controle. Seria isso republicano? e teríamos nós, brasileiros, que passar pelo vexame de saber dessas negociações a mando de deputados e senadores ou ter uma ou outra informação pela via de jornais estrangeiros? A marca do público é a transparência e sua característica é o de dar publicidade. Dá-la apenas ex post, ainda que o Acordo tenha passado pelo Congresso, não seria colocar o bem de uma ordem jurídica particular acima da discussão sobre se seu conteúdo está de acordo com o bem comum? Como leciona Bobbio (2015, p.74-75):
Naturalmente, o que vale nos assuntos públicos de um regime democrático em que a publicidade é a regra e o segredo é a exceção, não vale nos assuntos privados, ou seja, quando está em jogo um interesse privado. De resto, nas relações privadas vale exatamente o contrário: o segredo é a regra, contra a invasão do público no privado, e a publicidade é a exceção. Precisamente porque a democracia pressupõe a máxima liberdade dos indivíduos singularmente considerados, estes devem ser protegidos de um excessivo controle por parte dos poderes públicos sobre sua esfera privada, e precisamente porque a democracia é o regime que prevê o máximo controle dos poderes públicos por parte dos indivíduos, este controle é possível somente se os poderes públicos atuam com o máximo de transparência.
Neste sentido, causa estranheza a decisão do Supremo Tribunal Federal, em 27 de setembro de 2017, por maioria de 6 votos a 5, sobre a liceidade constitucional da presença do ensino confessional interpretando o art. 210 da Constituição.
A ambivalência, pois, se constata em várias dimensões: o Vaticano como Estado e Sede Institucional de uma Confissão Religiosa, as duas redações do art. 33 da LDB, as orientações com sentidos opostos em relação ao mesmo assunto em tela no Supremo Tribunal Federal com um placar empatado e decidido pelo voto da Presidente do Colegiado.
Outro ponto que demonstra a ambivalência são as idas e vindas da presença desta disciplina nos debates sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), inclusive nas versões oficiais que circulam entre o Ministério da Educação (MEC) e o Conselho Nacional de Educação (CNE). De acordo com a BNCC (2017), ela: “[...] define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da educação básica [...]” (p. 7). De acordo com Valle (2022, p.54), lê-se:
No caso do Ensino Religioso, esses objetivos do conhecimento foram organizados em três unidades temáticas. A primeira, Identidades e Alteridades, ficou estipulada apenas para os Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Basicamente, essa unidade se ocupou de buscar fortalecer o respeito ao outro, levando em consideração suas especificidades e semelhanças. A segunda unidade, Manifestações Religiosas, ficou caracterizada, essencialmente, pela busca do reconhecimento, da valorização e do respeito às diversas manifestações e experiências religiosas. Por fim, a última unidade temática, Crenças Religiosas e Filosofias de Vida, versou sobre aspectos estruturantes presentes nas diversas tradições/movimentos religiosos e nas filosofias de vida, o que levou em consideração especialmente, mitos, ideia(s) de divindade(s), crenças e doutrinas religiosas, tradições orais e escritas, ideias de imortalidade, princípios e valores éticos (BNCC, 2017).
Outro sinal são os vaivéns no alistamento de professores, sua formação e autorização. A interpretação do Conselho Nacional de Educação, por meio de Pareceres do Conselho Pleno, interdita para o sistema federal tal disciplina como objeto de uma licenciatura, mas deixa em aberto para as instituições públicas estaduais de ensino superior. Isto sem contar o caráter facultativo da disciplina.
O que se pode retirar deste processo todo é que a disciplina ensino religioso, seja por sua trajetória na educação nacional, seja pelos fenômenos mais recentes como este Acordo, contém em si um potencial que tensiona sua presença dentro da estrutura curricular da educação pública. Esta tensão deriva de matrizes opostas, cujas raízes se encontram no (des)encontro de valores e interesses que advém dos sujeitos sociais implicados no assunto e no jogo mais amplo de uma sociedade que se complexificou, se pluralizou no seu processo de secularização junto com a laicidade do Estado.
Neste quadro amplo, próprio da Modernidade, a religião foi cedendo espaço para que o Estado assumisse a condição de autoridade e lugar de exercício do poder e ela, sob tensões e contradições, foi se deslocando para o campo das liberdades civis e do privado. O Estado, no exercício do poder, se tornou laico, vale dizer foi se constituindo, lentamente, neutro e equidistante dos cultos religiosos, respeitando-os em sua liberdade de expressão, de culto e de consciência nos espaços próprios da sociedade civil.