Introdução
Os cursos de formação inicial para professores são identificados tal como esfera formativa, visto que visam aproximar o futuro graduando à identificação existente ou não com a área, antes do ingresso, de modo que ocorra o desenvolvimento desse reconhecimento, por intermédio das disciplinas, dos currículos, dos saberes e competências (KRONBAUER; KRUG, 2014). Sendo assim, optar por um curso de graduação se mostra como um processo de fácil seleção, pois o candidato pouco conhece a seu respeito, ocasionando, eventualmente, algumas dificuldades ao longo dessa trajetória (SPITTLE; JACKSON; CASEY, 2009).
De acordo com Borges e Beneli (2012), ao realizar uma escolha o indivíduo também tem em mente alguns aspectos decisórios – tais como gosto, desejos, condições, dos quais não se atenta – de modo que juntos, originam seus motivos para determinada ação. Os autores acrescentam que o período de optar por alguma das habilitações de um curso superior de Educação Física se apresenta para o ingresso tal como um mistério de grande complexidade, posto que, por ser influenciado por fatores sociais, bem como amigos, familiares e mídia não dispõe de conhecimentos, referentes às modificações contemporâneas da futura área de trabalho.
Somado a isso, o desenvolvimento da identidade profissional docente se assenta na identificação de vivências a determinados ambientes, amigos e professores (KRONBAUER; KRUG, 2014). Desse modo, os processos de socialização para ser professor de Educação Física irão influenciar a percepção dos ingressos, a respeito do que consideram relevante nesse campo epistemológico (SPITTLE; SPITTLE, 2016).
As teorias sociais macrossociológicas de Pierre Bourdieu (1998) e microssociológicas de Bernard Lahire (2004) emergem de modo substancial para a compreensão da trajetória de escolha do curso superior. Esses quadros teóricos propiciam assimilar o modo pelo qual as estruturas sociais influenciam as escolhas e comportamentos dos ingressos aos cursos de Educação Física e, também, a partir da singularidade dos mesmos, uma vez que ao interagirem com essas estruturas, incorporam disposições individuais de escolher, se comportar, crer e agir, tendo em vista uma situação. Sendo assim, para além de identificados, os motivos de ingressarem ao referido curso podem ser compreendidos por meio desses dois quadros.
A literatura de Krug et al. (2017a), garante que a trajetória escolar na Educação Básica influencia significativamente a opção pelo curso de Licenciatura em Educação Física como carreira, prevalecendo uma escolha involuntária, pois os ingressantes não se informam minimamente a respeito dessa formação inicial, ocasionando em uma representação simbolizada pelo esporte. Nesse ponto de vista, antes de ingressarem ao curso de Educação Física o compreendem de modo generalista como uma área mais relacionada à saúde do que ao âmbito escolar (MASCHIO et al., 2009). Portanto, desconhecem a diferença entre o Bacharelado e Licenciatura, bem como suas correspondentes áreas de atuação (LUGUETTI et al., 2005).
Este ensaio se torna relevante, posto que, ao compreender as necessidades dos estudantes ingressos ao ensino superior, modificações podem ser efetivadas nos projetos políticos pedagógicos, objetivando contribuir para o processo de formação profissional do professor de Educação Física (RAZEIRA et al., 2014). Tendo em vista o introito, buscou-se ao longo deste artigo de revisão de literatura de cariz ensaístico contextualizar e discutir a partir da literatura revisada os fatores que influenciaram os ingressos a optarem pelo curso de Educação Física, sobretudo a Licenciatura, à luz do quadro teórico de Bourdieu (1997; 1998; 2004) e Lahire (2004).
Metodologia
Este ensaio se identifica como uma revisão de literatura narrativa, de natureza exploratória e descritiva, o qual tem como objetivo efetuar uma revisão crítica, no que tange às perspectivas de escolha de entrada no curso de Educação Física. Esse tipo de revisão visa formar, mediante a organização teórica, procedimentos ordenados, dos quais a leitura e a avaliação dos materiais empíricos qualitativos são sua técnica elementar (LIMA; MIOTO, 2007).
A fim de alcançar os resultados supracitados, nos respaldamos em dois estágios propostos por Lima e Mioto (2007): o primeiro, caracterizado pela seleção do objetivo/temática do estudo, seus descritores e organização da metodologia investigativa; e o segundo, identificado pela pesquisa e avaliação dos materiais, o qual se fraciona em três circunstâncias: I) busca nas bases de dados elencadas; II) investigação prévia dos materiais (título, resumo, objetivo, métodos e conclusão/considerações finais) e por fim, III) leitura final dos materiais e efetuação dos resumos finais, dos quais poderão voltar à primeira circunstância, caso haja necessidade.
No que se refere ao primeiro estágio supramencionado, após delinearmos o objetivo, realizamos a busca bibliográfica empregando os descritores “Razão de Escolha”, “Motivo de Escolha”, “Estudante Ingresso”, “Entrada no Ensino Superior” e “Educação Física”. Sendo assim, o processo de organização metodológica foi selecionar materiais nos idiomas português, inglês e espanhol, subdivididos em três momentos de busca e, posteriormente, inseri-los em um quadro estruturado (v. Quadro 1), o qual abordasse informações substanciais, como autores, ano de publicação, periódico, objetivo, método – natureza do estudo e instrumentos – e conclusão.
No que corresponde ao segundo estágio, utilizamos a base de dados Google Scholar1, a fim de recolher os materiais, atentando para os objetivos, métodos e as considerações finais ou conclusão em três momentos. No primeiro, selecionamos 15 artigos em português e efetuamos a leitura final, bem como os resumos finais. No segundo, traduzimos os descritores supracitados e inserimos na base de dados, de modo que foram selecionados cinco artigos em Inglês. Posteriormente, traduzimos os aspectos presentes na circunstância “b” do segundo estágio e realizamos os resumos finais. Por fim, no terceiro momento, seguimos os mesmos procedimentos do anterior, os quais nos permitiram selecionar quatro artigos em Espanhol.
Somado a isso, foram incluídos neste ensaio artigos completos na íntegra; nos idiomas português, inglês e espanhol; e excluídos os que não se enquadravam no arco temporal de 15 anos, isto é, de 2005 a 2020. Assim sendo, os 24 artigos foram expostos no Quadro 1 a diante e também, considerando a necessidade de descrever todo o contexto do estudo.
Quadro 1 – Fatores que influenciam os ingressos a optarem por Educação Física
*EF – Educação Física.
Fonte: autores (2021)
É relevante frisar que nos reportamos a outros artigos, dissertações e livros, os quais não estão no quadro nem nos descritores citados anteriormente, uma vez que foram utilizados para respaldar teoricamente o estudo e contemplar o objetivo em questão. O presente manuscrito utilizou como respaldo teórico os conceitos de capital e habitus desenvolvidos por de Pierre Bourdieu (1997; 1998; 2004) e de disposições; transferibilidade, competência e apetência, cunhados por Bernard Lahire (2004).
Optou-se por esses dois autores da sociologia francesa, porque as suas teorias permitem uma análise em escalas do ponto de vista estrutural e individual, nas quais é possível identificar a relação entre o viver e os aspectos sociais que permeiam essa ação. Logo, os autores mobilizados contribuirão no sentido de compreender e deslindar as especificidades que circundam o ingresso no curso de formação de professores de Educação Física.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
Tendo em vista o objetivo deste artigo e a análise de conteúdo provenientes da leitura e revisão dos 24 artigos apresentados no Quadro 1, organizamos o corpus textual em três temáticas de discussão: I) Da sociologia de Pierre Bourdieu e Bernard Lahire a sua Relação com os Fatores que Influenciam na Escolha do Curso de Educação Física; II) Caracterização do Perfil do Discente Ingresso no Curso de Educação Física; e III) Aspectos que Influenciam na Seleção do Curso de Educação Física. Portanto, a primeira temática se refere à forma como a família, escola, amigos e ambiente podem influenciar o processo de escolha, a segunda, diz respeito ao modo como os ingressos compreendem o curso e por fim, a terceira, remete-se aos principais aspectos, dos quais motivam a ingressarem na graduação em Educação Física.
Da sociologia de Pierre Bourdieu e Bernard Lahire a sua Relação com os Fatores que Influenciam a Escolha do Curso de Educação Física
A formação dos professores de Educação Física inicia-se previamente ao seu ingresso na universidade (VALENCIA et al., 2011). Ao realizar uma escolha, o indivíduo também tem em mente alguns aspectos decisórios – tais como gosto, desejos, condições, dos quais não se atenta – de modo que juntos, originam seus motivos para determinada ação (BORGES; BENELI, 2012).
Nessa ótica, compreender a escolha de um curso superior pelo estudante é plausível, mas deve-se transpor tal fato de modo a assimilar sua trajetória de tomada de decisão. Desse modo, uma análise macrossociológica, à escala estrutural (BOURDIEU, 1998) e uma microssociológica, à escala individual (LAHIRE, 2004) emerge como possibilidade de entendimento das trajetórias escolar e de vida dos discentes ingressos até a escolha pelo curso de Educação Física.
Pierre Bourdieu (1998) compreende o indivíduo a partir de uma ideologia macrossociológica. Em seus estudos, o mesmo aborda o conceito de habitus, conjunto de disposições duráveis, cuja internalização das estruturas sociais – condições sociais, econômicas, simbólicas e culturais – advém a datar da infância, isto é, os gostos e aspirações de futuro de um indivíduo se constroem mediante as influências sociais exploradas no decorrer de seu percurso de vida. Dessa forma, as escolhas são consequência do habitus, visto que, comumente, não emergem de uma decisão consciente, resultando em um constructo social, o qual contribui para ajustar as preferências ao que é admissível (PEREIRA, 2016).
Nesse entendimento, a opção por um curso superior não é uma ação simples, uma vez que necessita cautela e os efeitos desse processo irão acompanhar os sujeitos ao longo de toda trajetória de vida (RAZEIRA et al., 2014). Sendo assim, o período de optar por alguma das habilitações de um curso superior de Educação Física apresenta-se para o ingresso tal como um mistério de grande complexidade, uma vez que por ser influenciado por fatores sociais, bem como amigos, familiares e mídia não dispõe de conhecimentos referentes às modificações contemporâneas na Educação Física e assim, sua escolha possivelmente será equivocada (BORGES; BENELI, 2012).
Baseado na análise macrossociológica, elencam-se três aspectos que, ao se inter-relacionarem convergem ao habitus: o capital econômico, social e cultural (BOURDIEU, 1998). De acordo com o autor precedente, o capital econômico identifica-se pelo fato de facilitar a aproximação a bens e serviços. No que se refere ao capital social, o sociólogo o caracteriza mediante os vínculos sociais obtidos pelo sujeito.
Nesse prisma, os processos de socialização para ser professor de Educação Física irão influenciar na percepção dos ingressos, a respeito do que consideram substancial na Educação Física (SPITTLE; SPITTLE, 2016). Assim sendo, a trajetória escolar na Educação Básica influencia significativamente a opção pelo curso de Licenciatura em Educação Física tal como carreira, prevalecendo uma escolha involuntária, visto que os ingressantes parecem não se informar minimamente a respeito dessa formação inicial, ocasionando em uma representação simbolizada pelo esporte (KRUG et al., 2017a).
Em conformidade com Bourdieu (1998), o capital cultural simboliza o aspecto de herança cultural familiar e de escolarização dos sujeitos. Esse capital se desmembra em três: incorporado, o qual se manifesta no núcleo familiar, retratando as atitudes e os gostos; objetivado, concebido na configuração de bens culturais, isto é, livros e quadros; e por fim, o institucionalizado, referente aos títulos escolares. Somado a isso, ingressar a um curso universitário, pode desencadear dois cenários: I) ser proveitoso e ir ao encontro das expectativas, tornando-se prazeroso; II) ser simplesmente uma formação, com o único intuito de adquirir o diploma (RAZEIRA et al., 2014). Sendo assim, embora esses títulos sejam objeto de distinção social, quanto mais os indivíduos alcançam determinada formação, menos prestígio passam a ter.
O percurso da seleção de um curso de nível superior pode ser assimilado ainda, por meio da observação microssociológica. O sociólogo Bernard Lahire compreende o indivíduo como ser singular, dotado de disposições individuais no meio. Desse modo, para analisar o conjunto social é indispensável compreender as partes que compõem o todo, no que se refere à sua singularidade (LAHIRE, 2004).
Conforme o autor em questão, o sujeito, no decorrer de sua trajetória de vida perpassa por diferentes Dimensões de Socialização (Família, Amigos, Escola e Ambiente), das quais permitem incorporar disposições individuais mais ou menos heterogêneas, comparadas a outros indivíduos. O conceito de disposições refere-se à incorporação de algo no passado, por meio do percurso de socialização, o qual, hipoteticamente, tende a guiar os indivíduos em suas ações futuras, tais como seus comportamentos, opiniões, escolhas, modo de crer e agir (LAHIRE, 2004).
Nesse entendimento, o desenvolvimento da identidade profissional docente se assenta, por ventura, na identificação de vivências a determinados ambientes, amigos e professores (KRONBAUER; KRUG, 2014). Ao encontro da literatura de Turra, Costa e Rossi (2019), em sua pesquisa com 20 graduandos do curso de Licenciatura em Educação Física, identificaram que no período de escolher por uma carreira, aspectos relacionados à família e à trajetória escolar são essenciais.
Dessa forma, compreendemos que o conjunto de disposições individuais não deve ser assimilado de modo unificado por completo e presente em todos os domínios das ações dos sujeitos. Além disso, não se deve caracterizar uma disposição individual em casos isolados, isto é, faz-se necessário analisar a recorrência da mesma nas Dimensões de Socialização.
O sociólogo ainda emprega em seus estudos alguns conceitos, dos quais propiciam assimilar a trajetória de vida de um indivíduo com maior detalhamento, são esses: transferibilidade, competência e apetência (LAHIRE, 2004). Em conformidade com o autor, transferibilidade se refere ao indivíduo possuir determinada disposição em Dimensões de Socialização distintas; competência se relaciona ao saber fazer, melhor dizendo, a uma habilidade individual específica; e por fim, apetência diz respeito às relações afetivas, cujos indivíduos estabelecem em suas ações intrínsecas, isto é, uma paixão.
Em concordância com Al-Rawahi e Al-Yarabi (2013) quando um aluno experimenta situações positivas nas aulas de Educação Física Escolar, eventualmente, escolherá esta área como carreira profissional. Portanto, mediante a essa escala microssociológica, compreendemos que esse sujeito incorpora uma disposição individual a crer que o referido curso será sua opção, posto que nesse momento decisório, houve a transferibildade dessa disposição incorporada no passado, tendo em vista que encontrou agora no presente uma situação similar à época, entretanto, em uma Dimensão de Socialização diferente, em que vivenciou circunstâncias positivas nas aulas de Educação Física.
Caracterização do Perfil do Discente Ingresso no Curso de Educação Física
Os cursos de formação inicial para professores, eventualmente, são um instrumento de modificação da qualidade da Educação Básica. A partir de espaços para discussões e considerações a respeito de sua identidade docente, os estudantes pertencentes a esses cursos devem se sentir reconhecidos e autoconfiantes em relação a seu cargo de professor quando formado (KRONBAUER; KRUG, 2014). Contudo, de modo geral, os acadêmicos ingressantes não compreendem a área da Educação Física, bem como sua separação entre bacharelado e Licenciatura e suas respectivas áreas de atuação (KRUG et al., 2017b; LUGUETTI et al., 2005).
Em concordância com Spittle, Jackson e Casey (2009), optar por um curso de graduação, se mostra como um processo de fácil seleção, uma vez que o candidato pouco conhece a seu respeito, ocasionando em algumas dificuldades ao longo dessa trajetória. Consequentemente, quando a escolha de uma profissão não é consciente e de acordo com os próprios interesses, ela tenderá a ser realizada com baixa motivação e durante o percurso profissional podem emergir casos de desconforto e frustração, os quais poderão inabilitar e deprimir o futuro docente, acarretando em variadas consequências individuais e sociais (KRUG et al., 2017a).
Antes de ingressarem ao curso de Licenciatura em Educação Física, os estudantes não se reconhecem como futuros professores, realizando a escolha por essa graduação baseados em vivências do período em que eram atletas ou por relacionarem-no com seu gosto particular por esportes (KRONBAUER; KRUG, 2014). Sendo assim, de acordo com Krug e Krug (2017), o fato de gostar de esportes ser o motivo substancial para o ingresso ao curso de Educação Física, tanto Bacharelado quanto Licenciatura, deve-se ao desconhecimento da realidade dessa profissão e sua divisão no que se refere aos seus respectivos campos de atuação.
A pesquisa de Luguetti et al. (2005) com 222 alunos do primeiro período dos cursos de Bacharelado e Licenciatura evidenciou que 52,70% desses demostraram interesse em atuar em clubes e academias. Acrescido a isso, no estudo de Fernandes, Nascimento e Folle (2020), os 119 estudantes ao ingressarem ao curso de Licenciatura em Educação Física objetivavam intervir em espaços informais, tais como a atividade física e saúde (22,7%) e o treinamento esportivo (14,3%). Desse modo, os autores esclarecem esse fato ratificando que ao longo da trajetória de vida escolar desses acadêmicos a esportivização ocorreu de maneira acentuada.
Nesse prisma, os graduandos antes de ingressarem ao curso de Educação Física o compreendiam de modo generalista, tal como uma área mais relacionada à saúde do que ao âmbito escolar (MASCHIO et al., 2009). De acordo com Junior et al. (2014), eles o percepcionam tal como uma continuidade de práticas esportivas, isto é, almejam trabalhar com a modalidade esportiva, a qual praticavam anteriormente à entrada na instituição de ensino superior. Complementando o debate Baptista (2015; 2019), destaca em seus estudos uma evidente presença do passado esportivo e da vivência desses postulantes ao curso de Educação Física, sobretudo, em competições amadoras e/ou de alto rendimento, pois houve épocas em que atletas de nível Olímpico dividiam seus horários entre a formação e os treinos.
Ademais, outro fator relevante no momento de escolha do curso é o apoio ou orientação da família, porque a perspectiva de futuro que determinada carreira “projeta” é algo frequentemente debatido no convívio familiar. No que diz respeito a esse assunto, Silva (2018) identificou em sua pesquisa que alguns professores de Educação Física relataram terem sofrido resistência de seus familiares quando mencionaram a escolha do curso, já que a seleção da Educação Física não tinha o valor social de outras carreiras e, a priori, não teria o retorno financeiro esperado.
Entende-se, assim, o conceito de habitus como estruturado e estruturante, ou seja, ao mesmo tempo em que o sujeito recebe influências e contribuições do campo social e isso contribui para a sua estrutura, as influências variam com o passar do tempo e se modificam, atuando de forma contínua e estruturante (BOURDIEU, 2004). Desse modo, as estruturas sociais relacionam a Educação Física ao treinamento de força, ginástica em academia impactando no modo pelo qual os ingressos a compreendem. Contudo, uma concepção mais abrangente, no que se refere às crenças e percepções dos ingressos a respeito do curso de Educação Física, possibilitaria prepará-los de forma mais efetiva para o papel do professor de Educação Física (RONSPIES, 2011).
As influências familiares destacam aspectos relacionados ao futuro e, principalmente, ao valor social que o curso de Educação Física possui quando comparado a outros com mais legitimidade tal como Medicina, Direito ou Engenharia, uma vez que hierarquicamente não seria possível ter o retorno financeiro esperado quando comparado a esses cursos. Embora Pierre Bourdieu tenha lapidado e extrapolado o conceito de capital para além de sua conotação financeira (BOURDIEU, 1997), analisar a ideia de capital econômico como aspecto sine qua non da escolha do curso reforça o sentido que o sociólogo francês pretendia dar ao referido conceito, pois a ideia de escolher uma carreira financeiramente atrativa está diretamente imbricada a mecanismos de trocas simbólicas dentro de um determinado contexto social (IDEM).
Aspectos que Influenciam na Seleção do Curso de Educação Física
Assim como destacado anteriormente, os ingressos ao curso de Educação Física o escolhem tendo em vista as experiências esportivas (COLOMBO, 2018), opiniões familiares e influência de professores de Educação Física da Educação Básica (AL-RAWAHI; AL-YARABI, 2013). Sendo assim, o esporte se apresenta em um domínio sociocultural, em consequência do que o professor de Educação Física da Educação Básica fazia e ensinava (VALENCIA et al., 2011).
No estudo de Fernandes, Nascimento e Folle (2020), com 119 estudantes de Licenciatura em Educação Física, a principal razão para o ingresso ao curso superior relacionava-se ao interesse pelo esporte (37,8%). Nesse entendimento, uma análise realizada por Krug et al. (2017c) com 80 acadêmicos do curso de Licenciatura em Educação Física evidenciou que 27 desses escolhem essa profissão tendo em vista o gosto pela prática de atividades físicas/esporte, do mesmo modo na pesquisa de Krug e Krug (2017), a qual comprovou que, dos 44 ingressantes tanto do curso de Licenciatura quanto do Bacharelado, 27 optaram por esse curso de graduação pelo gosto ao esporte.
A literatura de Krug et al. (2017b) abarcando uma amostra de 40 acadêmicos (20 concluintes e 20 ingressantes) apontou que esses últimos, em sua maioria, optaram pelo curso de Licenciatura por gostarem de esportes. Resultados similares foram encontrados na pesquisa de Spittle e Spittle (2016) com 188 graduandos do primeiro ao quarto período de Bacharelado em Educação Física, cuja principal motivação para ingressarem ao curso foram os esportes e atividades físicas e também no estudo de Razeira et al. (2014) com 122 acadêmicos identificou que 85 desses ingressaram motivados pelo gosto ao esporte.
A pesquisa realizada por Junior et al. (2014), com graduandos do curso de Licenciatura em Educação Física verificou que a escolha do mesmo se baseava no gosto pelo esporte, competição e treinamento. Na pesquisa de Valencia et al. (2011), com 79 acadêmicos do primeiro período de Educação Física verificou que 64,57% optaram pelo curso por gostarem do esporte, da mesma forma no estudo de Krug (2010), com 24 acadêmicos do curso de Licenciatura em Educação Física, dos quais 14 desses afirmaram que sua trajetória na Educação Básica foi embasada na prática esportiva, ocasionando na seleção desse curso tendo em vista o gosto pelo esporte.
Ao encontro dos estudos supracitados, a pesquisa de Spittle, Jackson e Casey (2009), com 324 acadêmicos do curso de Bacharelado em Educação Física, constataram que o gosto por esportes/atividades físicas está entre um dos principais motivos de ingresso. Nesse prisma, o estudo de Maschio et al. (2009) com 20 acadêmicos do curso de Licenciatura em Educação Física evidenciou que o principal motivo de ingresso ao curso foi em consequência do gosto por atividades físicas e esportivas e também o de Krug e Krug (2008) com 38 acadêmicos do curso de Licenciatura verificou que 20 desses o escolheram pelo gosto por esportes e/ou atividades físicas.
Em concordância com Razeira et al. (2014), o esporte é e será implementado de modo intenso na instituição escolar, sobretudo, em virtude da bagagem cultural, das vivências dos ingressos previamente à entrada ao curso e por manterem essa atitude ao longo da formação inicial. Entretanto, no estudo longitudinal de Alcalá, Calvo e Pueyo (2020) com dez acadêmicos do curso de Educação Física verificou que no primeiro período a concepção do curso se baseava em esportes e no quarto e oitavo período a abordagens de cunho social. Dessa forma, no momento em que o estudante se introduz na universidade e interage com a mesma, sua maneira de pensar, no que se refere a seu contexto de intervenção, se modifica, acarretando em perspectivas relacionadas à área escolar (FERNANDES; NASCIMENTO; FOLLE, 2020).
Nessa compreensão, a partir do conceito de habitus (BOURDIEU, 1998), percepcionamos que as estruturas sociais relacionam a Educação Física ao aspecto esportivista e os discentes ingressos optam por este curso, tendo em vista a internalização dessa crença ao longo de suas trajetórias de vida. Outro tópico significativo é o capital social, visto que se associa aos vínculos, cujos ingressos obtiveram ao longo desse percurso, com um treinador ou o professor de Educação Física da Educação Básica.
Somado a isso, o quadro teórico do sociólogo Lahire também pode ser empregado para o entendimento do motivo pelo qual o gosto pelos esportes/atividades físicas é uma das razões para o ingresso ao curso de Educação Física (LAHIRE, 2004). O conceito de disposições individuais oportuniza assimilar o processo de seleção pelo estudante ingresso, dado que ao transpor as quatro Dimensões de Socialização em sua trajetória de vida, sobretudo a escola, incorporou no passado uma disposição a crer que o curso se relacionaria a práticas esportivas similares às aulas da Educação Básica.
Ainda em concordância com a literatura supramencionada, podemos citar o conceito de apetência, a fim de compreender a influência dos esportes/atividades físicas no processo de decisão pelo curso de Educação Física. Entendemos que essa concepção ocorreu devido às relações afetivas/positivas estabelecidas em suas ações próprias (práticas esportivas/atividades físicas), isto é, sentia prazer/paixão ao executá-las, em uma determinada Dimensão de Socialização ao longo de sua trajetória de vida, nesse caso, na escola. O último conceito é o de competência, visto que o discente ingresso desfrutava de habilidades para práticas esportivas e era um atleta de determinada modalidade. Sendo assim, a análise individual propicia identificar em qual das Dimensões de Socialização emergiu tal competência, assim como a apetência do estudante ingresso.
Em conformidade com Krug (2010), uma trajetória escolar alicerçada em práticas esportivas somada ao encorajamento do professor de Educação Física a elas, incita os estudantes ao gosto pelos esportes. Assim sendo, escolhem o curso de Educação Física em razão do esporte, visto que esse motivo se relaciona ao destaque às modalidades esportivas na Educação Física Escolar (RAZEIRA et al., 2014).
O estudo de Krug (2019) com uma amostra de 18 manuscritos constatou a existência de dez motivos intrínsecos, próprios do sujeito, e extrínsecos, induzidos por terceiros, dos quais influenciam os ingressos a escolherem o curso de Educação Física. Referente aos intrínsecos, o motivo elementar foi o gosto por atividades físicas e/ou esporte. Já em relação aos extrínsecos, o principal foi a influência de professores de Educação Física da Educação Básica. A pesquisa de Krug et al. (2017a) com 20 ingressantes do curso de Licenciatura em Educação Física apontou que o gosto por atividade física/esporte foi a principal razão de escolherem o curso, seguida da influência do professor da Educação Básica.
Nesse ponto de vista, uma amostra com 18 acadêmicos do curso de Licenciatura em Educação Física evidenciou que as experiências positivas com a disciplina e o gosto por atividades físicas e esportivas colaboraram para se identificarem como futuros professores (KRONBAUER; KRUG, 2014). Ao encontro do estudo anterior, a investigação de Krug et al. (2014) com 20 acadêmicos do curso de Licenciatura identificou que os principais fatores influenciadores para o ingresso foi o gosto pela atividade física e/ou esporte, sendo citado por 12 desses, seguido da influência do professor de Educação Física da Educação Básica abarcando sete acadêmicos.
A pesquisa de Padilla-Carmona e Martínez-García (2013) com 18 aspirantes a professores de Educação Física da Educação Básica demonstrou que optaram por essa profissão, tendo em vista a influência de seus professores nessa fase escolar. Diante disso, evidencia-se a presença do capital social, no que corresponde à influência da Educação Física na instituição escolar, sob a perspectiva da escala estrutural (BOURDIEU, 1998). Dessa forma, entendemos que, a partir das relações sociais estabelecidas pelos discentes ingressos, enquanto estudantes da Educação Básica com o professor de Educação Física e consequentemente com a disciplina, e essas associações caracterizaram-se como relevantes, os mesmos visam, eventualmente, a optar por tal curso a nível superior.
À luz da escala microssociológica também é possível compreender o modo pelo qual os discentes ingressos são influenciados na Educação Básica por seus professores de Educação Física (LAHIRE, 2004). Dentre as quatro Dimensões de Socialização, compreendemos que a escola impacta significativamente no processo decisório do curso superior, cujo ingresso incorpora uma disposição individual ao longo dessa trajetória. À vista disso, se as experiências, no que se refere à disciplina Educação Física foram positivas, mediadas consequentemente pelo professor, deduzimos que ocorre a transferibilidade dessa disposição a crer que essas experiências permaneceram ao se introduzirem na graduação em Educação Física. Entretanto, não se pode deixar de considerar o papel do curso de formação de professores na conversão dessa transferibilidade ou até mesmo na reestruturação de um habitus estruturado anteriormente.
Nesse entendimento, a análise sociológica de Bourdieu e Lahire, contribui para o entendimento do motivo relacionado ao gosto pelo esporte e/ou atividades físicas e do professor de Educação Física da Educação Básica serem os aspectos de maior magnitude, no que diz respeito à escolha pela graduação em Educação Física. Contudo, ressaltamos que a utilização das teorias macrossociológicas e microssociológicas são pressupostos a partir da análise desses quadros teóricos pelos autores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proposição inicial deste artigo de revisão de literatura de cariz ensaístico foi contextualizar e discutir a partir da literatura revisada os fatores que influenciaram os ingressos a optarem pelo curso de Educação Física, sobretudo a Licenciatura, à luz do quadro teórico de Pierre Bourdieu e Bernard Lahire. Sendo assim, os resultados constataram que esses fatores se referem ao gosto por esportes e/ou atividades físicas seguido da influência do professor de Educação Física da Educação Básica.
Nessa perspectiva, os quadros teóricos supramencionados proporcionaram compreender a forma cujas estruturas sociais influenciam nas escolhas, comportamentos, modos de crer e agir, isto é, nas disposições individuais dos ingressos aos cursos de Educação Física. Com base em Bourdieu, entendemos que o gosto pelo esporte e/ou atividades físicas ocorreu em consequência da internalização do aspecto esportivista recebido pela Educação Física através das estruturas sociais e também por meio dos vínculos sociais desses acadêmicos ao longo de trajetória de vida com um treinador ou o professor de Educação Física.
Alicerçados em Lahire, percebemos esse fator supramencionado tendo em vista a incorporação da apetência pelos ingressos, uma vez que foram estabelecidas relações positivas com o componente curricular e assim, sentiam prazer/paixão ao executá-las em uma Determinada Dimensão de Socialização, nesse caso, na escola. Somado a isso, eles possuíam competências individuais relacionadas a habilidades para a prática de uma determinada modalidade esportiva, isto é, eram atletas.
No que tange à influência do professor de Educação Física, a partir da teoria macrossociológica, compreendemos que os ingressos, enquanto estudantes da Educação Básica estabeleceram relações sociais relevantes com esse profissional, de modo que, no momento de optar por um curso de graduação esse aspecto foi substancial. Com base na teoria microssociológica, a escola propicia variadas experiências aos estudantes, sobretudo nas aulas de Educação Física, os quais incorporam disposições individuais positivas, de modo que, no momento de optar por um curso superior, ocorre sua transferibildade, uma vez que creem que essas experiências positivas se manterão.
Nesse ponto de vista, entendemos que o perfil do acadêmico ingresso ao curso de Educação Física, sobretudo à Licenciatura, caracteriza-se como um indivíduo que o percepciona de modo generalista, isto é, desconhece a diferença entre suas duas habilitações. Sendo assim, embora presente em um curso de formação para professores, sua expectativa profissional se encontra no âmbito informal, em consequência da crença de que o retorno financeiro será mais significativo.
Por fim, sugere-se a ampliação de estudos longitudinais, no que tange ao perfil do ingresso de discentes no curso de Educação Física, sobretudo à Licenciatura, acompanhando-os ao longo de sua formação inicial, por uma perspectiva microssociológica, objetivando compreender suas expectativas pessoais e profissionais. A cada semestre iniciado, novos estudantes se introduzem ao curso propagando uma ideologia reduzida do mesmo. Consequentemente, impactará sua essência multifacetada, no interior da instituição universitária – no que se refere à maneira que outros cursos o percebem –, dentro da Educação Básica – na visão dos alunos – e, especialmente, na sociedade.