Introdução
Este texto nasce da experiência de uma escritora de um livro de literatura infantil e de uma professora, aproximadas por uma aluna em um encontro ocorrido durante as atividades da disciplina de Didática, ministrada no curso de Pedagogia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Essa união vai ao encontro do que afirma Gilles Deleuze1 (2002), para quem os bons encontros produzem a potência para agir. Além disso, Tomaz Tadeu da Silva2 sugere-nos que currículo e educação “[…] podem ser concebidos como uma arte do encontro e da composição, na qual o que importa não é a forma e a substância, o sujeito ou o objeto, mas o que se passa entre os diferentes corpos que habitam um currículo” (2002, p. 47). Dessa forma, as três mulheres - a escritora, a professora e a aluna - foram aproximadas pela disciplina Didática, pela Educação para as Relações Étnico-Raciais (Erer) e pela literatura.
Organizamos o texto da seguinte forma: na primeira parte, a autora do livro infantil problematiza o campo da Erer e as contribuições da literatura. Em seguida, a professora de Didática narra os percursos de formação que resultaram na organização dos trabalhos dessa disciplina, que incluía, em sua ementa, o tema: Didática e Relações Étnico-Raciais. Posteriormente, a aluna de Pedagogia relata seu percurso na realização das práticas acadêmicas propostas na disciplina em questão, as quais resultaram em escolhas para a atividade avaliativa aqui problematizada: a elaboração e a execução de um plano de aula. Por fim, apresentamos considerações sobre o trabalho para a Erer na formação inicial das professoras e dos professores.
As aulas de Didática ministradas no curso de Pedagogia da UFPR no ano de 2018 foram compostas e recompostas a partir dos diálogos proporcionados pelos encontros com docentes que trabalham com as relações étnico-raciais e estudantes, com quem tivemos a oportunidade de aprender. A experiência com discentes em situação de fracasso escolar mostra que as discussões sobre os processos de ensino-aprendizagem precisam vir acompanhadas da problematização dos marcadores sociais “raça”, “gênero”, “classe” e “sexualidade”, que produzem o acúmulo de vantagens e, em seu duplo, desvantagens materializadas nas desigualdades da trajetória escolar. Por isso, cada aula de Didática objetivava trabalhar um desses marcadores. Particularmente, este relato de experiência problematiza a “raça”.
A pretensão deste texto é produzir uma colcha teórica que possa ser usada como uma manta reflexiva no campo da formação inicial. Foram seis mãos que deram início à tessitura e costuraram tais considerações no sentido de estimular outras pessoas a relatarem as suas vivências formativas, assim como cada uma das protagonistas dessas experiências apresenta, a seguir, o seu retalho. Esperamos que, ao final, forme-se uma colcha apenas iniciada, para que mais retalhos sejam inseridos nela. Sendo assim, o “tom” do texto é autobiográfico, como bem demarca Elizeu Clementino de Souza, ao afirmar que “Trabalhar com a memória, seja a memória institucional ou a do sujeito, faz emergir a necessidade de se construir um olhar retrospectivo e prospectivo no tempo e sobre o tempo reconstituído como possibilidade de investigação e de formação de professores” (2007, p. 63) que se conectam, como acontece nos bons encontros.
A Escritora
A descrição da experiência vivenciada com a Erer na formação inicial em uma disciplina de Didática inicia-se por mim, não porque sou a pessoa mais importante dela, mas porque me coube explicar o conceito de Erer, que é a linha fundamental desta costura formativa. Desde 2003, foram incluídos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), n.º 9.394/96 (BRASIL, 1996), os Artigos 26-A e 79-B (BRASIL, 2003), que estabelecem a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileiras e africanas, bem como determinam que a data 20 de novembro esteja no calendário escolar, a fim de tratar do Dia da Consciência Negra. Os sistemas de ensino municipais e estaduais são acionados, então, para acatar essa determinação.
Em 2004, essa demanda ganhou reforço com a aprovação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (DCN-Erer). Essas determinações passam a implicar também o sistema de Ensino Superior na formação de professoras e professores para o trabalho com a Erer. Embora a inclusão de disciplinas específicas para tratar do tema esteja presente no currículo de algumas universidades, especialmente em cursos de licenciatura, diferentes disciplinas podem incluir o tema em seus programas e ementas para possibilitar a inserção desse componente curricular, o que ocorre, às vezes, de forma bem lenta.
Um exemplo do quão demorada é a resposta das instituições de ensino superior em relação ao seu compromisso com o cumprimento dessa norma está na própria UFPR (onde ocorreu a experiência a ser relatada), instituição que, somente em 2019, alterou a organização do currículo do curso de Pedagogia, prevendo uma disciplina obrigatória que aborda o tema em questão, motivada pela exigência das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial em Nível Superior (as quais englobam cursos de licenciatura, de formação pedagógica para graduados e de segunda licenciatura) e para a Formação Continuada, que prevê, nos princípios da Formação de Profissionais do Magistério da Educação Básica, no inciso II,
[...] a formação dos profissionais do magistério (formadores e estudantes) como compromisso com projeto social, político e ético que contribua para a consolidação de uma nação soberana, democrática, justa, inclusiva e que promova a emancipação dos indivíduos e grupos sociais, atenta ao reconhecimento e à valorização da diversidade e, portanto, contrária a toda forma de discriminação (BRASIL, 2015, p. 4).
Essa determinação reaparece na Base Nacional Comum Curricular3, quando esta explicita, em seu texto, que um dos compromissos da educação integral é o fortalecimento de uma escola democrática e inclusiva, que deve “[...] se fortalecer na prática coercitiva de não discriminação, não preconceito e respeito às diferenças e diversidades [...]” (BRASIL, 2017, p. 14), assim também quando apresenta as Competências Gerais da Educação Básica, destacando que a educação deve
[...] Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza (BRASIL, 2017, p. 10).
Como se pode constatar, os documentos orientadores do currículo da educação brasileira preveem o trato da diversidade de modo amplo e, por consequência, da diversidade étnico-racial ou, como preferimos chamar, da Erer - conceito que aparece no parecer das DCN-Erer cunhado pela sua relatora, professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva. De fato, no texto em questão, essa autora chama a atenção para a necessidade de uma re(educação) para essa temática, pois, há muito tempo, o Brasil tem educado suas alunas e seus alunos para relações étnico-raciais pautadas na perspectiva racista, hierarquizadora, que valoriza o repertório cultural originado na Europa ou nos Estados Unidos da América e desqualifica os conhecimentos de origem africana e indígena.
Essa forma de racismo produz barreiras nos processos de ensino-aprendizagem, como a sensação de não pertencimento ao espaço escolar e a invisibilização do conhecimento produzido pela população não branca, a qual não obtém reconhecimento pela sua capacidade intelectual e pela sua produção acadêmico-cultural. São elementos, portanto, que colaboram para a produção do fracasso escolar.
Nesse sentido, a Erer é uma virada na perspectiva curricular brasileira, pois objetiva inserir na educação básica e no ensino superior ferramentas teóricas e metodológicas que possibilitem às pessoas construírem aportes reflexivos para questionar em e desnaturalizar a hierarquização social, a qual privilegia a estética branca, o corpo branco e o conhecimento advindo das pessoas caracterizadas por esses aspectos.
É nesse contexto que surge a escritora em mim. Sou professora universitária, pesquisadora de infâncias e relações étnico-raciais e atuo no curso de Pedagogia desde 2009. Também sou ativista do movimento negro e fui professora da educação básica por 21 anos. Essas múltiplas experiências que vivi e vivo me impulsionaram a escrever um livro, cujo título é Cada um com seu jeito, cada jeito é de um! O enredo dessa obra apresenta uma menina que ama tudo nela, além de destacar outros personagens e enfatizar os modos particulares de ser de cada um. Trata-se do dizer das subjetividades e de como se pode compreender a diferença como um valor não apenas individual, mas também social. Foi essa a motivação para escrever o livro, cujo texto, antes de se tornar uma obra editada, foi experimentado em vários cursos de formação de professoras e professores. A ideia era colocar tais profissionais em contato com uma literatura que continha, no seu cerne, uma perspectiva de ruptura com a reiteração do lugar de privilégio da população branca como a única com direito a ser representada positivamente.
Para mim, os processos formativos que ocorrem na graduação ou aqueles realizados pelas redes de ensino precisam estar conectados com uma perspectiva de educação emancipatória, pois, como nos alerta Nilma Lino Gomes (2003, p. 170), “A escola é vista, aqui, como uma instituição em que aprendemos e compartilhamos não só conteúdos e saberes escolares, mas também, valores, crenças e hábitos, assim como preconceitos raciais, de gênero, de classe e de idade”. A escola, portanto, não é um espaço emancipatório a priori, nem é antirracista por essência. É um local de contradição, e, por isso, se nós, professoras e professores, não problematizarmos com os/as futuros/as docentes os valores que orientam os processos educacionais, assumiremos que o racismo, por exemplo, é uma concepção possível na organização do trabalho pedagógico, pois, “[…] quando se tem a oportunidade de refletir sobre os diferentes posicionamentos acerca deste termos, os conceitos são problematizados e há a reafirmação do compromisso político com uma educação antirracista” (SILVA; DIAS, 2019, p. 27).
Nesse sentido, meu livro é um retalho na colcha que compõe o discurso contra a continuidade de uma escola e de uma educação racistas. O que me motivou a escrevê-lo foi a necessidade de costurar meu pedaço de tecido e, seguramente, compor uma história mais ampla de luta contra o racismo e de instituição de uma educação antirracista. Sendo assim, a partir desse lugar de escritora, foi possível colaborar com um fio que tece esta narrativa, à qual dei início e cujo alinhavo recebe, no próximo tópico, mais uma parte.
A Professora de Didática
Como organizar a disciplina de Didática problematizando o fracasso escolar4 em populações que historicamente têm sido mais afetadas por ele? Essa pergunta regulou a escolha das temáticas e das bibliografias selecionadas para o trabalho com essa disciplina nas licenciaturas da UFPR.
A genealogia da anormalidade e a produção dos/das incorrigíveis (FOUCAULT, 2001) produzem algumas problematizações que nos permitem compreender como as instituições educativas empreendem técnicas para corrigir quem opera fora da norma. Se estas resultam infrutíferas, encarregam-se de expulsá-los/as. Com a proibição de fazê-lo oficialmente imposta pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)5 e pela LDBEN6, as tecnologias utilizadas para que determinadas populações deixem de frequentar a escola passam a ser finas, sutis, sorrateira, operadas por práticas de micro-punições (FOUCAULT, 2009), que tornam a permanência insustentável. Uma dessas práticas é o racismo institucional7.
Maria Aparecida Moysés e Cecília Collares (1996) apontam como o preconceito direcionado a certos populações regula o investimento pedagógico em seu ensino. As autoras chamaram de tirocínio diagnóstico as profecias feitas no início do ano letivo por professoras sobre a aprovação ou a reprovação de suas alunas e seus alunos. As pesquisadoras constataram que essas profecias eram autorrealizadoras, alimentadas pelas crenças das/os profissionais da área da Educação e da Saúde que afirmavam a incapacidade de aprender de alguns grupos. Essa crença faz com que o investimento cotidiano na aprendizagem dessas populações seja menor, resultando na reprovação.
Pesquisas realizadas por Fúlvia Rosemberg (2005), Rosemeire Brito (2009, 2017), Marília Carvalho (2005) e Célia Ratusniak (2019) ampliam as problematizações sobre o fracasso escolar, utilizando a análise interseccional dos marcadores sociais raça, gênero e classe social. Essas discussões apontam para um processo denominado “expulsão compulsória” (OLIVEIRA JÚNIOR; MAIO, 2016) ou “expulsão branda” (BRITO, 2009), que empurra a população negra para fora da escola, mascarando essa expulsão ao tratá-la como evasão escolar (RATUSNIAK, 2019). Essa prática é produzida pelo racismo institucional, operado pelas discriminações que vão destruindo o sentimento de pertencimento.
Marília de Carvalho (2005) mostra-nos que essa sensação foi produzida pelas práticas e pelos discursos de profissionais da educação que participaram da pesquisa empreendida por ela e que atribuem menor potencial intelectual às alunas negras e aos alunos negros. A autora também aponta para o embranquecimento feito pelas professoras entrevistadas de estudantes com bom desempenho escolar e que se autodeclaram negras ou negros. Já para quem tinha problemas de aprendizagem e/ou de comportamento, as docentes enegreceram as/os discentes que se autodeclararam brancas, brancos, pardas ou pardos. Diante dessa realidade, a pesquisadora chama a atenção para o silenciamento acadêmico dos efeitos do racismo cruzado com o gênero e a pobreza como determinantes do desempenho acadêmico. Um dos efeitos desse contexto é fazer com que duvidem de sua potência em aprender, tornando a saída da escola um caminho para acabar com o sofrimento, a sensação de impotência e a revolta produzida os por essa situação de exclusão. Por isso, são expulsos/as do espaço de aprendizagem, e não evadidas/os.
Os dados de distorção idade/ano8, produzidos pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) (2015), nos dão a dimensão do fracasso escolar na população negra. Nos anos iniciais do ensino fundamental, o percentual de distorção de alunas brancas e alunos brancos é de 8,1%; e de negras e negros, 14,8%. Nos anos finais, temos, respectivamente, os valores de 17,7% e 28,3%. No Ensino Médio, a diferença entre os índices continua expressiva, com os respectivos valores de 8% e 29%, de acordo com cada grupo étnico.
Considerando a problemática do fracasso escolar e o racismo como um elemento estruturante na sua produção, compreendemos a Didática como um espaço potente para a produção de subjetividades. Rosimeri de Oliveira Dias (2014, p. 416) alerta-nos que é “[...] na fronteira da constituição da existência, na zona de indeterminação que emerge dela, é possível tratar o tema da formação como produção de subjetividade”. A partir de uma análise fundamentada no conceito de subjetividade foucaultiano e nas noções de vida e resistência, a autora aponta-nos que formação não é apenas dar forma, mas é uma experiência modificadora de si, que possibilita deslocar-se, transformar-se nas relações consigo e com as outras pessoas, uma formação inventiva, que “[...] possibilita deslocamentos quando força o pensamento a se derivar daquilo que já estava colocado como verdade”. Ela permite que a formação possa acontecer como “[...] um esforço para liberar a vida lá onde ela é aprisionada” (DIAS, 2014, p. 416).
Essas questões me fizeram problematizar a relação entre o fracasso escolar, o racismo e a Erer na disciplina de Didática. Como estratégia, planejei atividades que mostrassem uma prática racista: o apagamento de negras e negros na produção intelectual e nas artes. Também trabalhei com Lei n.º 10.639/03 (BRASIL, 2003), chamando a atenção para a necessidade de sua operacionalização nas escolas e nas universidades. Por fim, abrimos uma discussão para que as alunas e os alunos pudessem relatar e problematizar situações de racismo sofrido ou presenciado por elas e eles.
A forma como o racismo opera é muito eficiente. Um dos argumentos de quem prática, por vezes, vem acompanhado de expressões: “não é bem assim!”, questionando a percepção de pessoas negras sobre aquilo que age sobre elas. Por isso, é importante discutir raça, racismo e discriminação nas escolas e nas universidades, para desnaturalizá-lo, torná-lo evidente, consciente. Para saber como acionar as instâncias para denúncia e punição; e para pensar em estratégias para combatê-lo. Isso permite que não o reproduzamos.
Os relatos trazidos pelas estudantes de Pedagogia mostraram como o racismo age. Uma aluna narrou que era seguida por seguranças quando ia ao shopping. Outra, que trabalhava na secretaria de uma escola, contou que o professor havia pedido para imprimir imagens para a aula sobre o dia 13 de maio, as quais exibiam somente a população negra e pobre em posições subalternizadas. Outras estudantes contaram que alisavam o cabelo desde muito novas para se alinhar a um ideal de estética. O “não é bem assim!” passou a ser problematizado e substituído pelo é “assim que acontece!”. Seus efeitos foram debatidos e ganharam reflexividade. Foi possível perceber coletivamente como dos privilégios da branquitude, das práticas e dos efeitos do racismo era recorrente.
Essas problematizações desnaturalizaram práticas, fizeram com que, nas aulas, percebêssemos nossos racismos cotidianos. Também tensionaram as relações estabelecidas nos espaços sociais, educativos e familiares. Uma experiência modificadora de si, que transformou nossas relações conosco e com as outras e os outros, como já nos apontou Rosimeri Dias (2014). Entendemos que os deslocamentos podem produzir rachaduras nas estruturas. Nessas rachaduras, abrem- se espaços por onde correm os fluxos. A aula de Didática e Relações Étnico-Raciais transbordou a sala de aula, chegou ao cotidiano, chamou a literatura e quebrou a cadeia de repetição que naturalizava o racismo. Além disso, ganhou espaços de divulgação científica e deslocou os sujeitos dos seus lugares de saber e poder. Por isso, o diálogo estabelecido com a aluna do curso de Pedagogia foi tão produtivo e compõe mais um retalho da tessitura dessa colcha teórica, apresentado a seguir.
A Aluna de Pedagogia
A disciplina obrigatória de Didática é ofertada na grade do curso de Pedagogia da UFPR. Segundo a sua ementa, devem ser abordados, entre outros pontos, a relação pedagógica entre docentes, alunas e alunos; conhecimentos e os diferentes aspectos do ensinar e do aprender; os sujeitos da educação; e a formação docente e suas especificidades no mundo contemporâneo.
É importante ressaltar que a organização do trabalho pedagógico das aulas de Didática está em consonância com a Resolução n.º 2, de 1º de julho de 2015 (BRASIL, 2015), que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial em Nível Superior (nos cursos de licenciatura, de formação pedagógica para graduados ou de segunda licenciatura) e na Formação Continuada. Em seu capítulo que versa sobre a formação inicial do magistério da educação básica em nível superior, sua estrutura e seu currículo, no parágrafo 2º, a resolução define que
Os cursos de formação deverão garantir nos currículos [...] direitos humanos, diversidades étnico-racial, de gênero, sexual, religiosa, de faixa geracional, Língua Brasileira de Sinais (Libras), educação especial e direitos educacionais de adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas (BRASIL, 2015).
A disciplina de Didática cumpriu, de forma efetiva, as diretrizes da Resolução, que, em seu Capítulo III, Art. 8º, Inciso VII, determina que os egressos da formação inicial e continuada devem estar aptos a
Identificar questões e problemas socioculturais e educacionais, com postura investigativa, integrativa e propositiva em face de realidades complexas a fim de contribuir para a superação de exclusões sociais, étnicos-raciais, econômicas, culturais, religiosas, políticas, de gênero, sexuais e outras (BRASIL, 2015).
Por fim, as aulas atenderam ao Princípio II da Formação de Profissionais do Magistério da Educação Básica, explícito no Capítulo I da Resolução. A disciplina também cumpre com o que está proposto no parágrafo 5º, que estabelece o compromisso com a formação de profissionais atentas/os à valorização da diversidade e, portanto, contrárias/os a qualquer forma de discriminação. Nesse contexto, as problematizações e as discussões decorrentes desses encontros produziram situação favorável ao desenvolvimento da Erer e a realização de uma educação antirracista.
Considerando esses aspectos, uma das atividades propostas pela professora responsável pela disciplina de Didática foi a elaboração e a aplicação de um plano de aula por nós, graduandas e graduandos, que articulasse os temas apresentados na disciplina, a ação pedagógica e as discussões realizadas em sala de aula, como os debates sobre currículo e diversidade, em conexão com a perspectiva apresentada por Nilma Lino Gomes (2016, p. 23):
O currículo não está envolvido em um simples processo de transmissão de conhecimentos e conteúdos. Possui um caráter político e histórico e também constitui uma relação social, no sentido de que a produção de conhecimento nele envolvida se realiza por meio de uma relação entre pessoas.
Interesso-me pelas questões das relações étnicos raciais desde algumas experiências anteriores ao ensino superior. O descobrir-me negra no meio acadêmico gerou em mim uma necessidade de aprofundar meus estudos nessa área. Nesse sentido, o curso de Pedagogia possibilitou o contato com a pesquisa científica e a educação antirracista. Uma das temáticas que muito me inquietou foi como a raça é um marcador social determinante na produção do fracasso escolar. Quem é negra ou negro tem muito mais chances de ser reprovado, evadir ou desistir, pois a crença no potencial intelectual desses sujeitos é afetada pelas diversas formas de racismo.
Compreendo que as práticas discriminatórias se manifestam cotidianamente, as vezes velada, às vezes bastante evidente como relatado pelos e pelas estudantes, produzindo efeitos nefastos nos indivíduos para os quais são endereçadas, e se realizam por meio de práticas como ausência de personagens negras e negros como protagonistas nos livros. Por isso, o tema escolhido por mim e uma colega para o plano de aula foi a literatura de temática africana e afro-brasileira, optando por explorar a obra Cada um é de um jeito, cada jeito é de um! A aula teve como objetivo abordar a Erer, desconstruir estereótipos relacionados às posições sociais de pessoas negras e levantar uma discussão sobre as contribuições desse tipo de literatura para a produção de uma educação antirracista.
O plano de aula foi apresentado para a professora durante a etapa de planejamento. Foram discutidos os objetivos da aula, bem como a utilização de estratégias metodológicas que favorecessem a aprendizagem daquilo que estava previsto para ser ensinado. A elaboração permitiu que refletíssemos sobre a concepção de educação que as alunas e os alunos estão construindo ao longo da graduação, bem como o papel da/do profissional do magistério face aos desafios da sociedade contemporânea.
Nossa aula foi iniciada com a leitura do livro Cada um é de um jeito, cada jeito é de um!, que narra a história da personagem Luanda e sua família. Nessa etapa, não houve a apresentação das imagens. Em seguida, foi proposto que as/os estudantes desenhassem as personagens da família. Em um segundo momento, a história da protagonista foi novamente contada. Dessa vez, com o apoio das imagens. As alunas e os alunos foram, então, estimulados a comparar o desenho que fizeram e as ilustrações do livro. Foi muito marcante quando todos constataram que nenhum dos desenhos realizados pela turma de Pedagogia retratou uma família ou algum personagem negro. Eram todos brancos.
Após este momento alguns questionamentos foram feitos para fomentar o debate: por que ninguém havia imaginado uma família negra? Por que nem as alunas negras e nem os alunos negros desenharam personagens do seu grupo racial? Qual o impacto para a construção do imaginário das pessoas ao serem expostas a personagens exclusivamente brancos na literatura? Qual a importância da identificação com as personagens na construção da identidade das crianças? A qual repertório de literatura africana e afro-brasileira professoras, professores e estudantes têm acesso?
As alunas e os alunos relataram surpresa ao perceberem que não tinham pensado que as personagens poderiam ser negras. Houve uma discussão sobre possíveis lembranças de outras protagonistas negras, do direito da criança de ser exposta a histórias com variedade étnico-racial, a qualidade da ilustração de personagens negros e negras nas histórias infantis, a importância de encontrarem sujeitos que sejam parecidos fisicamente com cada um para construir, assim, relações de identificação. Foi abordada, ainda, a questão da formação inicial das/os profissionais da educação para a educação antirracista. Também se discutiu sobre a forte presença da falácia do racismo como fenômeno já superado na sociedade brasileira, resultado do mito da democracia racial, e que negar o racismo nos ambientes educativos é fortalecer a sua manifestação institucional.
Após o debate, as alunas e os alunos tiveram acesso a uma variedade de livros com protagonistas negras, negros e indígenas, para que conhecessem e pudessem utilizar as obras em suas atividades educativas. A proposta cumpriu o objetivo de ampliar o repertório dos sujeitos no que diz respeito à temática étnico-racial, pois várias alunas e alunos relataram se sentirem mais preparadas e preparados para abordar o racismo e as diferenças em sua prática e realizar ações pedagógicas que prezam pela diversidade étnico-racial com seus alunos e suas alunas. Alguns disseram, inclusive, que, após a aula, levaram livros com personagens negras e negros valorizados para as escolas onde atuam como estagiárias e estagiários.
A produtividade do debate suscitado provocou a professora da disciplina a convidar a autora do livro trabalhado para uma conversa sobre a construção da obra em questão, apresentando a importância da literatura africana e afro-brasileira no combate ao racismo e na promoção de uma educação antirracista. Essa prática reafirmou a Resolução n.° 2, de 1 julho de 2015, que define que os egressos da formação inicial sejam capazes de demonstrar consciência das diversidades étnico-racial, de gênero, sexual, de faixa geracional, entre outras.
A ação ultrapassou os limites da sala de aula e foi apresentada como relato de experiência na Semana de Ensino, Pesquisa e Extensão (Sepe) do Setor de Educação da UFPR, em maio de 2019. Foi comunicada, ainda, na V Mostra de Ensino, Extensão, Pesquisa e Inovação do Campus Colombo da mesma universidade, em setembro do mesmo ano, para alunas e alunos de pós-médio do curso de Administração. Também foi exposta no III Dia da Consciência Negra do Setor de Educação da UFPR e agora está sendo publicada numa revista internacional.
Promover um debate como esse em diferentes instituições e espaços educativos revelou-se de suma importância para a efetivação de uma educação antirracista, visto que ainda são muitos os estereótipos raciais presentes e reforçados no ambiente escolar e acadêmico. Essa experiência pedagógica mostrou que a formação inicial é um espaço essencial na construção de profissionais da educação para atuarem de modo a constituir ambientes livres do racismo.
Ações que promovam a discussão sobre a importância da história e da cultura afro-brasileiras e africanas na gênese da sociedade brasileira e estimulem a valorização da diversidade étnico-racial por meio de variados recursos pedagógicos usados em sala de aula são necessárias e são um direito de todas as alunas e todos os alunos. Trata-se de estratégias e táticas que produzem resistências contra o racismo institucional e produzem experiências modificadoras de si, como as que relatei aqui e que teceram uma proposta de efetivação da Erer.
Considerações Finais
Nossas vivências foram entrelaçadas para compor este texto. Usando como metáfora o ato de tecer, juntamos vários fios e tecidos que compuseram a produção teórica que fundamentou este nosso relato de experiência. Assim como a colcha de retalhos, que, tecido a tecido, ganha forma, o encontro da escritora, da professora e da aluna produz ferramentas teóricas para enriquecer o campo da Erer.
A Didática tem muito a dizer sobre a produção do fracasso escolar e a educação para a igualdade. Para além de problematizar os processos de ensino-aprendizagem, é preciso ampliar as discussões sobre os determinantes das desigualdades, como o racismo. Desse modo, é preciso alinhavar os conteúdos programáticos, previstos nos programas de ensino, pelas determinações das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial em Nível Superior e a Formação Continuada, pelas DCN-Erer e pelo ensino de história e cultura afro-brasileiras e africanas. Sob essa perspectiva, a Didática constitui-se, portanto, como um retalho que vai auxiliar na composição da Erer.
Este relato de experiências contém contribuições que podem somar, impulsionar e potencializar outras vivências pedagógicas no campo da formação de professoras e professores. Ainda temos muito a avançar na implementação das diretrizes aqui apresentadas, almejando que todas adentrem o currículo dos cursos de licenciatura. Sabemos que existem muitas barreiras materializadas na morosidade da inclusão da Erer nas ementas, nas disputas e nas hierarquizações das áreas, que delegam apenas a disciplinas específicas essas discussões, negando a importância em trabalhar tais questões em todas as áreas de conhecimento e até mesmo questionando a legitimidade das orientações dessas diretrizes. Todas essas condições são produzidas pelo racismo institucional. Por isso, reafirmamos que a formação inicial é um espaço de constituição de subjetividades, e a não efetivação do que propõem essas diretrizes é trabalhar para a produção de uma subjetividade racista. Por isso, trouxemos uma possibilidade didático-pedagógica que aponta a diversidade e a literatura como estratégias de resistência, que permitem a produção de subjetividades livres dessa conformação.
Ao costurarmos nossas vivências formativas, primeiramente naquele encontro de 2018 e, depois, na escrita deste texto, a escritora, a professora e a aluna deixam materializado este relato de experiência. Já não são mais tecidos separados, que cada uma carregava. É uma colcha teórica, que aquece a quem a lê e possibilita a seguinte reflexão: mesmo em um contexto em que o conservadorismo tenta incessantemente nos conformar, a defesa de uma educação que se paute pela problematização sobre a diversidade étnico-racial e a diferença produz bons encontros e apresenta-se potente na constituição de espaços de resistência, que produzem chaves teóricas para uma educação antirracista e uma experiência transformadora de si.