[...] eu pensava mais modestamente no meu livro, e seria inexato dizer que pensava nos que o leriam, em meus leitores. Porque, a meu ver, eles não seriam meus leitores, mas leitores de si mesmos, não sendo meu livro senão uma espécie de lente de aumento, daquelas que o oculista de Combray propunha a um comprador; o meu livro, graças ao qual eu lhes forneceria uma maneira de lerem-se a si mesmos1 (Marcel Proust).
Apresentação do Problema
No prefácio de sua mais importante coletânea de ensaios - Entre o passado e o futuro -, Arendt enuncia assumir como pressuposto a tese de que o pensamento político emerge dos incidentes da experiência viva e a eles deve permanecer ligado , já que são os únicos marcos por onde pode-se obter orientação (Arendt, 2006, p. 14). Trata-se, em primeiro lugar, de tornar patente uma convicção que orientou a elaboração de todas as suas obras: as categorias do pensamento político herdadas da tradição se mostraram inadequadas para compreender os fenômenos que emergiram com a ascensão dos regimes totalitários e cujos elementos, a despeito da derrocada do fascismo e do nazismo, permanecem a nos ameaçar, ainda que sob novas formas (como a mentira deliberada e organizada, uma forma de ação política criada pelo nazismo e que hoje se apresenta no fenômeno das fake news). Assim, em face da ineficácia dessas categorias, restou-nos recorrer à capacidade de reflexão como forma de enfrentar o desafio de buscar um sentido para os acontecimentos políticos que abalaram nossas convicções e práticas. Mas, para além dessa constatação, sua afirmação representa também uma tomada de posição em relação à natureza da tarefa que Arendt atribui à reflexão filosófica: pensar o presente, procurando decifrar o significado de nossas experiências mais recentes (Arendt, 2011, p. 6). A reflexão sobre as condições do presente implica, em sua perspectiva, um esforço intelectual que visa compreender tanto aquilo de que padecemos - que, portanto, sobre nós se abate, como uma pandemia - quanto a forma pela qual respondemos ao desafio de viver uns junto aos outros em um mundo comum sujeito à contínua transformação. Por essa razão, mais do que um mero esforço intelectual, o exercício de buscar compreender os fenômenos políticos é uma forma de se reconciliar com a realidade e de tentar, a despeito de tudo, sentir-se em casa no mundo (Arendt, 2008, p. 330).
Que desafios, pois, a experiência de viver uma pandemia global coloca à reflexão daqueles que abraçaram a educação - concebida em seu sentido lato como a transmissão intergeracional de um legado de experiências e realizações simbólicas e materiais - como sua profissão e modo de habitar o mundo comum? Essa interrogação, que servirá como fio condutor deste exercício de pensamento, não terá como seu objeto central as radicais transformações que se impuseram às práticas docentes - como as aulas remotas - nem seus supostos efeitos nos processos de aprendizagem ou nas novas relações pedagógicas e institucionais que engendra. Não que estes aspectos sejam de menor importância. Eles são cruciais e podem mesmo representar a dissolução da forma escolar, tal como ela se configurou a partir do século XVI enquanto uma alternativa crítica à educação doméstica (Lahire, 2008). Mas, a despeito do reconhecimento da importância dessas questões, o que aqui nos interessa tomar como objeto de reflexão são questões vinculadas ao próprio sentido da experiência escolar nesse novo contexto: que recursos simbólicos pode a escola oferecer a esses jovens que, subitamente, foram impelidos a enfrentar uma situação que nem eles nem aqueles que se encarregam de sua educação poderiam vislumbrar? Como poderiam as gerações mais velhas tomar para si a responsabilidade de pensar a pandemia e, com esse gesto, convidar os mais jovens a fazê-lo em diálogo com suas próprias experiências e expectativas?
É evidente que essas interrogações supõem que não se trata simplesmente de encontrar novas maneiras de se fazer precisamente o mesmo que se fazia antes de a epidemia se impor como um acontecimento que inviabilizou as formas prévias de convívio intra e intergeracional. A ruptura no cotidiano da educação forçou professores e alunos a enfrentarem uma situação que não hesitaríamos em classificar como uma crise, desde que a acepção conferida a esse termo não se reduza a seus usos mais correntes que o identificam de forma imediata às noções de declínio, decadência ou ocaso. Uma crise, nos lembra Arendt, dilacera fachadas, oblitera preconceitos e põe a nu o fato de que perdemos as respostas em que de ordinário nos apoiávamos, sem que sequer soubéssemos que eram repostas a problemas básicos da convivência humana (Arendt, 2006, p. 117). Nesse sentido, enunciar a existência de uma crise ética, por exemplo, não representa afirmar uma decadência nos padrões de conduta moral, mas simplesmente constatar que os critérios aos quais as gerações anteriores recorriam para discernir entre o certo e o errado; entre o nobre e o vil já não dão conta das experiências e desafios do presente.
Por essa razão, a emergência de uma crise nos compele a voltar às questões mesmas. Ela nos impele a examinar, por exemplo, os critérios por meio dos quais julgamos o valor ético de atos e palavras, sem poder contar com o apoio de uma tradição, ou seja, de uma referência estável que seleciona e nomeia parâmetros de julgamento e de ação, que, portanto, lega, preserva e indica onde se encontram os tesouros do passado (Arendt, 2006, p. 5) que poderiam ser tomados como referências para compreender o presente. É nesse sentido que poderíamos interpretar o aforisma de René Char, segundo o qual, nossa herança nos foi legada sem testamento (Arendt, 2006, p. 9): uma ruptura da tradição sempre implica um desafio no que concerne à relação que estabelecemos entre um legado de realizações do passado, os horizontes de expectativas em relação ao futuro e a ação que se desenrola no presente. Um desafio que comporta tanto riscos como oportunidades:
A inegável perda da tradição no mundo moderno não implica, em absoluto, a perda do passado, pois tradição e passado não são o mesmo. [...] Com a perda da tradição, perdemos o fio que nos guiou com segurança através dos vastos domínios do passado; esse fio, porém, foi também a cadeia que acorrentou cada sucessiva geração a um aspecto pré-determinado do passado. Poderia ocorrer que somente agora o passado se abrisse a nós com inesperada novidade e nos dissesse coisas que ninguém teve ainda ouvidos para ouvir. Mas não se pode negar que, sem uma tradição firmemente ancorada [...] toda dimensão do passado foi também posta em perigo. Estamos ameaçados de esquecimento, e um tal olvido significaria que, humanamente falando, nós nos despojaríamos de uma dimensão: a dimensão da profundidade na existência humana. Pois memória e profundidade são o mesmo, ou antes, a profundidade não pode ser alcançada pelo homem a não ser através da recordação (Arendt, 2006, p. 93-94).
O que significa, pois, educar em um mundo despojado da tradição e incerto quanto a seus horizontes de expectativas? Em primeiro lugar, implica reconhecer que o presente se torna problemático não só porque perdemos as certezas das sociedades tradicionais como também porque “[...] algumas das esperanças que a modernidade nos havia legado parecem hoje se esvanecer” (Fabre, 2011, p. 7). Mas, se há perdas de referências e de critérios compartilhados, há também novas oportunidades para o pensamento e a ação. A ruptura da tradição nos permite experimentar outras formas de habitar os vastos domínios do passado, conferindo novas significações ao que ocorreu ou trazendo à luz o que havia sido condenado à escuridão do esquecimento. É porque a tradição se rompeu e o mundo tornou-se tão problemático que, enfim, podemos escovar a história a contrapelo, para recorrer à bela imagem de Benjamin (1994, p. 225). Podemos, por exemplo, trazer à luz, nas práticas escolares, a grandeza de uma figura até então ocultada pela história, como poeta e abolicionista Luiz Gama, salvando da ruína do tempo não só suas obras, mas sobretudo a relevância política de suas palavras e de seus atos por meio do ensino. Nesse sentido, uma crise - uma cisão entre as respostas que herdamos do passado e os problemas e questões que emergem no presente - pode representar um convite ao pensamento e à ação. O que a seguir proponho é, pois, um exercício de pensamento acerca das circunstâncias do presente que tomará como seu elemento desencadeador a narrativa da reação de uma jovem adolescente à forma como sua escola tem lidado com a pandemia.
A Narrativa do Incidente e a Busca de um Sentido
É na configuração da trama ou do enredo (intrigue) de uma narrativa, nos esclarece Ricoeur (2010a), que operamos a síntese capaz de organizar e dar sentido ao aparente caos de acontecimentos aleatórios, encadeando-os não como mera sucessão (um após o outro), mas como elementos interconectados (um em razão do outro) capazes de veicular o sentido que atribuímos a uma experiência. A configuração de uma trama narrativa tem, segundo Ricoeur,
[...] a capacidade de extrair uma história de múltiplos incidentes ou de transformar os múltiplos incidentes em uma história [...] a história narrada é sempre mais do que a enumeração, numa ordem simplesmente serial ou sucessiva, dos incidentes que ela organiza em um todo inteligível (Ricoeur, 2010b, p. 198).
Narrar implica, pois, configurar, na forma de uma história ou relato, a experiência viva dos incidentes e acontecimentos a que estamos sujeitos no transcurso de nossa existência. Assim, a narrativa nos faculta compartilhar intersubjetivamente um saber acerca do “[...] modo como alguém vai respondendo ao que vai lhe acontecendo ao longo da vida e do modo como vamos dando sentido ao acontecer do que nos acontece. [...] Não se trata [de expor] a verdade do que são as coisas, mas o sentido ou o sem-sentido do que nos acontece” (Larrosa, 2002, p. 27). Assim, a despeito de sua natureza pessoal e contingencial, a experiência objetivada em uma narrativa compartilhável adquire a potencialidade de trazer à tona aspectos fundamentais da condição humana, engendrando “[...] uma espécie de inteligência que se pode chamar de inteligência narrativa, e que está muito mais próxima da sabedoria prática e do juízo moral do que da ciência e do uso teórico da razão” (Ricoeur, 2010b, p. 200). Nesse sentido, compreender e interpretar uma narrativa implica captar e traduzir a inteligibilidade prática nela configurada, conferindo à história narrada uma dimensão discursiva conceitual a partir de seus elementos centrais e da forma como nela estão encadeados.
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Embora sua aula remota já houvesse terminado há mais de meia-hora, Maya permanecia em seu quarto, ignorando que chegara a hora do almoço. Bati a sua porta e ela a abriu com uma expressão que revelava mais tédio do que contrariedade. Respondeu a minha pergunta de forma tão automática quanto à que recorri em minha indagação. Sim, tudo havia corrido normalmente na aula, me assegurou. Rompi com o automatismo das frases feitas e lhe indaguei acerca de seu desânimo, desta feita com meus olhos cravados nos seus, como quem interroga a alma. Não tinha sido uma aula regular, ela me explicou, mas um debate, como sempre acontece no horário que denominam ‘espaço de debate’. O tema? Como os alunos se sentiam em face da pandemia que já durava meses. Tal como na semana anterior, e nas que a antecederam, os professores retomavam a mesma pergunta e os alunos repetiam as mesmas respostas, reproduzindo clichês midiáticos. Procurei lhe explicar que esse gesto revelava uma preocupação sincera da escola com o bem-estar de seus alunos; que eles sabiam que a situação era excepcional e exigia cuidados. Ela riu, não sem sarcasmo, e pôs um ponto final contundente ao meu esforço pedagógico: ‘Pai, tem um monte de gente morrendo, a gente fica olhando uma tela, fazendo exercícios de matemática e de inglês. Depois eles perguntam como estamos nos sentindo! Ah, faz favor...vamos almoçar’.
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De forma breve e singela, a experiência de Maya - aqui reificada em uma narrativa - toca em alguns dos mais significativos desafios e dilemas que somos obrigados a enfrentar nesta crise: a impotência que acomete a quase todos nós, professores, ao tentarmos transpor para o plano bidimensional da tela (que, significativamente, omite o da profundidade) a experiência que acumulamos ao lidar com a presencialidade dos corpos de nossos alunos. Já não mais podemos, por exemplo, recorrer a capacidade de ler em seus gestos e rostos (agora obliterados por uma foto ou uma letra) o grau de êxito ou de fracasso de uma estratégia de ensino. O isolamento de cada aluno em seu espaço privado já não mais permite que uma sala de aula se configure como uma totalidade dotada de características próprias e não redutíveis aos indivíduos que a compõem. Já não nos dirigimos mais a uma turma específica, mas a uma somatória de indivíduos que, a partir da privatividade de suas casas, compartilham um mesmo espaço virtual. E, a despeito de tudo isso, faz-se necessário que a escola continue sendo uma escola, que os professores e professoras ensinem e que creiam que seus alunos poderão aprender algo.
Mas as transformações no que concerne à dimensão da presencialidade na experiência escolar não se limitam ao seu aspecto espacial. Elas também se fazem sentir em um âmbito que condensa o próprio sentido do processo educativo: o vínculo temporal que se tece entre as gerações. Habitar o presente sempre significa situar-se entre um espaço de experiências do passado e um horizonte de expectativas em relação ao futuro (Koselleck, 2006), cabendo aos educadores tanto a responsabilidade pela durabilidade de um legado de realizações simbólicas como sua ressignificação e renovação no presente. Educar implica, pois, transmitir às novas gerações experiências simbólicas que nos chegam dos vastos domínios do passado e que são apresentadas e ressignificadas, criando as bases para sua durabilidade e renovação no futuro. Assim procede um professor de filosofia que compartilha com seus alunos uma reflexão tecida há 2.500 anos; um professor de literatura que lê um poema de Drummond ou trabalha uma canção dos Racionais MC’s, um alfabetizador que inicia crianças na prática milenar da escrita alfabética. Por meio do ensino de uma disciplina, área do saber ou prática social específica, um professor atualiza e ressignifica não só seus conteúdos peculiares, mas, sobretudo, a natureza do vínculo afetivo e histórico que estabelece com essas áreas de saber, conhecimento e compreensão que caracterizam um certo legado histórico que a cultura escolar escolheu preservar da ruína do tempo por meio do ensino.
Assim, a noção de uma transmissão simbólica intergeracional, aqui evocada como sentido da ação educativa, não se confunde com a mera capacidade de comunicação sincrônica entre indivíduos; essa faculdade que os humanos compartilham com várias outras espécies animais e que lhes permite abolir a distância entre os corpos a fim de comunicar informações a seus semelhantes. Diferentemente dessa comunicação que opera transcendendo e abolindo distâncias espaciais - como a aula remota ou a dança das abelhas -, a transmissão temporal de uma cultura é um fenômeno eminentemente humano, que opera no tempo, vinculando as gerações entre si e com a dimensão histórica do mundo simbólico e material que habitam. Assim, por exemplo, os humanos transmitem a seus filhos não somente uma carga genética, mas um nome que ao mesmo tempo identifica e vincula simbolicamente aquele que o recebe a seus ancestrais. E o mesmo se passa em relação à transmissão - e, claro, à recepção, como sua contrapartida necessária - de saberes, práticas, princípios e conhecimentos que configuram a dimensão histórica da existência humana em sua complexa dialética de conservação e renovação de um legado intersubjetivo comum.
A própria noção de geração (cuja aplicabilidade a outras espécies é mais metafórica do que descritiva) se assenta precisamente sobre esse vínculo temporal que marca tanto continuidade como ruptura. Mesmo nos casos em que a ruptura geracional parece ser bastante radical - como a da década de sessenta do século passado - é somente por oposição ao passado, que permanece e nos afeta, que se pode falar da eclosão de algo novo, inaudito e até então imprevisível nas relações entre gerações. É, pois, nesse entrecruzamento entre o espaço de experiências simbólicas do passado e o horizonte de expectativas do futuro que se tece a presencialidade temporal do processo formativo daqueles que acabam de chegar a um mundo simbólico compartilhável. Mas como operar essa transmissão simbólica em um contexto no qual a transmissibilidade da experiência é colocada em xeque (Benjamin, 1994, p. 1142) - e no qual o horizonte de expectativas se encontra reduzido aos temores mais imediatos, comportando mais incertezas do que apostas?
Nesse sentido, é como se a divisa punk que se espalhou pelos muros da década de oitenta - No Future! - abandonasse seu papel de protesto contra a crença na noção de progresso como significado do devir histórico para se inscrever como expressão de uma resignação em face do caráter sombrio do presente. Vivemos a experiência de um tempo que já não mais crê, como o fazia Políbio, que educamos os jovens para que sejam dignos de seus antepassados. Mas que tampouco crê, como os modernos, que a educação seria um instrumento necessário e suficiente para a construção de uma nova ordem no mundo (seja ela a sociedade sem classes, a era científica e tecnológica ou qualquer outra crença teleológica acerca do sentido da história).
É bem verdade que esse diagnóstico antecede a emergência da pandemia. Mas aquilo que era até então apenas uma categoria teórica a mobilizar um número restrito de intelectuais - como a noção de presentismo em Hartog (2013) - tomou uma nova dimensão à medida que passou a habitar o cotidiano da experiência docente. Como educar em uma sociedade na qual a ânsia pelo gozo do presente tende a conceber o legado simbólico do passado como obsoleto e na qual o horizonte de expectativas parece se circunscrever ao tempo das vidas individuais que nela hoje habitam? Somos, pois, testemunhas de uma transformação radical na relação que as novas gerações estabelecem com sua experiência temporal, cujos efeitos atingem o próprio significado que atribuímos à ação educativa e não simplesmente os meios aos quais recorremos para sua efetivação. Trata-se de uma experiência existencial que transcende a pandemia, mas que com ela tomou uma visibilidade até então inusitada.
Isso porque, para além de exigir novos meios para atingir finalidades historicamente associadas à formação escolar, a pandemia fez vir à tona um problema bem mais radical que, em alguma medida, pode ser entrevisto nos comentários finais de Maya. Sua crítica acerca da ausência de significado das atividades que lhe haviam sido propostas, mais do que uma queixa individual, pode ser interpretada como uma interrogação que condensa a perplexidade de toda uma geração: afinal, em face das condições concretas que vivemos, a experiência escolar ainda tem algum sentido?
Um Sentido para a Experiência Escolar em Tempos de Pandemia
A interrogação acerca do sentido da experiência escolar sob as condições do presente exige, contudo, a elucidação de dois pressupostos nela implícitos. O primeiro diz respeito à própria natureza do empreendimento: buscar um sentido para a experiência viva do presente não se confunde com procurar a verdade de um fato. Se esta última é a ideia diretriz - embora jamais plenamente lograda - das investigações científicas, a busca pelo sentido é, antes, uma tarefa do pensamento; um desafio que se dirige, pois, à reflexão e toma como seu objeto a experiência. Em segundo lugar, nos termos em que foi formulada, ela requer uma breve distinção analítica entre os usos das noções de sentido e finalidade.
A noção de finalidade, por oposição à de sentido, opera sempre a partir de uma lógica instrumental e oriunda da experiência humana da fabricação, na qual algo é produzido como um meio cujo fim é preestabelecido e exterior ao próprio processo de sua produção. Assim, produz-se uma mesa cuja finalidade reside em um objetivo que lhe é exterior (expresso pela questão: para que isto serve?): apoiar o computador que se está a utilizar, por exemplo. Por outro lado, o uso do computador é um novo meio para um fim que lhe é igualmente exterior, como escrever um artigo. Cria-se, assim, uma cadeia infinita de meios e fins, despojados de qualquer sentido ou significado intrínseco, já que o artigo, também ele, se constituirá como um meio para outro fim previamente estabelecido (Carvalho, 2018). Já a noção de sentido faz referência aos significados intrínsecos que podemos atribuir a uma prática ou mesmo a um objeto. Uma relação de amizade, por exemplo, não se pauta por qualquer finalidade extrínseca a seu próprio cultivo. Conceber a amizade como um meio para obter um outro fim qualquer - o empréstimo de um automóvel, por exemplo - implica em ignorar ou degradar o significado da própria noção de amizade. É evidente que um amigo pode eventualmente nos emprestar um automóvel, mas a razão de ser de uma relação de amizade não pode ser equacionada ou compreendida a partir de finalidades instrumentais preestabelecidas. Nesse sentido, a amizade não tem uma finalidade instrumental, embora possa ter um profundo significado ou sentido em nossa existência. E o mesmo pode ocorrer até mesmo em nossa relação com certos objetos com os quais nos vinculamos não a partir de qualquer finalidade instrumental, mas a partir do significado pessoal que lhe atribuímos. Podemos, por exemplo, guardar e cuidar de um objeto - como a embalagem de um bombom - por conta de sentido afetivo que lhe atribuímos, a despeito de ele já não mais possuir qualquer valor de uso ou tampouco de troca.
Esse exemplo, embora trivial, é importante porque ressalta que tanto a finalidade como o sentido não são propriedades imanentes aos objetos ou às práticas sociais, mas antes indicam diferentes formas pelas quais com eles nos relacionamos. Vale ainda ressaltar que essas modalidades de relacionamento não são mutuamente exclusivas, pois comportam diversos graus e matizes de intersecção. Assim, podemos nos relacionar com a poesia de uma forma instrumental - se a estudamos por seus eventuais efeitos na aprovação no exame vestibular - ou nela vislumbrando um sentido existencial intrínseco, impossível de ser estimado por qualquer parâmetro exterior à própria experiência estética que nos proporciona. Assim, não só é possível que uma mesma pessoa alterne essas duas modalidades de relação com um único objeto, como a partir de uma delas, passe a cultivar a outra (como ocorre quando o vínculo com a literatura, por exemplo, deixa de ser uma exigência da vida escolar para se constituir em uma atividade que cultivamos independentemente de qualquer exigência ou finalidade extrínseca à própria experiência que nos proporciona).
Esse exemplo de intersecção entre possíveis modalidades de relação com a literatura é particularmente importante para refletirmos acerca de sua presença no âmbito da experiência escolar. É evidente que um processo educacional pode ter diversas finalidades e comportar uma variedade de sentidos para os agentes nele envolvidos. Mas é igualmente evidente que temos experienciado um aparente paradoxo nesse campo: à medida em que se multiplicam as finalidades atribuídas à escola - que vão do domínio de certas competências à preparação do cidadão democrático ou do empreendedor social - seu potencial sentido parece se esvair, abrindo espaço para toda sorte de niilismos. Dentre as múltiplas razões para esse fenômeno, uma parece merecer especial atenção no contexto em que vivemos: a crença pedagógica no protagonismo dos alunos como “[...] forma de realização em escala coletiva do ideal cartesiano de rejeitar todos os saberes transmitidos pelos seus mestres a fim de edificar suas certezas a partir do cógito” (Blais; Gauchet; Ottavi, 2016, p. 51). Não se trata, é evidente, de postular a existência de uma pedagogia cartesiana, mas de trazer à tona os efeitos nas práticas e nos discursos pedagógicos contemporâneos da recepção dessa imagem cartesiana de um sujeito soberano e autossuficiente (Carvalho, 2001), que de si mesmo retiraria a autocompreensão da existência.
Tomemos como exemplo a atividade proposta aos alunos no episódio narrado por Maya. Podemos considerar que seu objetivo é louvável: fornecer aos alunos a oportunidade de significar a própria experiência. Não obstante, ela toma como pressuposto que esse significado será alcançado pelo exame imediato de si e das condições em que se vive, como se o sujeito a ele chegasse em uma operação análoga ao cógito cartesiano, cuja consciência de si advém do afastamento do mundo em que se insere e que o precedeu. Ocorre contudo, que a intuição desse cógito soberano - que deriva a certeza de sua existência do próprio pensamento - é uma verdade vã e vazia, posto que “[...] a reflexão só poderia ser uma apropriação de nosso ato de existir quando efetuada por meio de uma crítica voltada às obras e atos que são signos desse ato de existir”, conforme nos alerta Ricoeur (2013, p. 41. Tradução nossa). Noutras palavras, a compreensão da experiência - que sempre é um ato de autocompreensão - só ocorre pela apropriação - e posterior ressignificação à luz do presente - das obras da cultura (sejam elas literárias, artísticas, historiográficas, musicais, científicas etc.) que se oferecem a nossa interpretação:
A existência só vem à palavra, ao sentido e à reflexão como resultante de uma contínua exegese de todas as significações que se manifestam no mundo da cultura. A existência não se torna um ‘si’ - humano e adulto - senão apropriando-se desse sentido que reside inicialmente ‘fora’, em obras, instituições, monumentos de cultura onde a vida do espírito é objetivada (Ricoeur, 2013, p. 46. Tradução e grifos nossos).
Assim, a operação por meio da qual um sujeito atribui sentido à experiência vivida decorre não do isolamento e do exame de si, mas de um encontro entre o mundo da obra e o mundo do leitor (Ricoeur, 2010a). Ora, uma obra - seja ela um texto, uma imagem, uma canção, uma investigação historiográfica... - condensa uma experiência em uma totalidade (o mundo da obra). Mas é só a partir de sua leitura, de sua recepção, de sua apropriação e de seus efeitos no mundo do leitor que ela supera seu caráter formal de um objeto do passado para ganhar vida e sentido no presente. É, pois, interpretando signos que se encontram fora de nós mesmos, reificados em obras que reconfiguram a experiência nas mais diversas linguagens, que alguém se constitui como sujeito ou acede a si mesmo, nas palavras de Ricoeur (2013). O processo educativo é, nesse sentido, concebido como uma espécie de hermenêutica, tendo por desafio a interpretação e a reinterpretação de símbolos cujos significados jamais são dados de forma definitiva, mas estão constantemente sujeitos a novas apropriações por parte daqueles que com eles dialogam em cada momento histórico. É, pois, ao habitar esse universo de símbolos de uma cultura que nos capacitamos a interpretar o mundo, a nós mesmos e aos demais e, assim, atribuir sentido e significado às nossas experiências (Bárcena; Mèlich, 2000, p. 104. Tradução nossa).
Nesse sentido, mais profícuo do que interrogar os alunos acerca de seus sentimentos em relação à experiência pessoal na pandemia seria lhes convidar a examinar como aqueles que os precederam no mundo reconfiguraram simbolicamente suas experiências em uma situação análoga. Nos romances de Garcia Márquez ou de Camus; nos quadros de Egon Schiele ou de Munch, nas obras de Shakespeare ou de Ingmar Bergman encontramos diferentes formas de refiguração artística das dores, dos temores e do isolamento enfrentados em face das ameaças de uma epidemia; assim como travamos contato com a grandeza e a coragem de homens e mulheres - reais ou fictícios - que fazem desse incidente uma oportunidade para a afirmação da dignidade da ação humana (como Dr. Rieux, o protagonista da obra de Camus, A Peste). A essas obras literárias, teatrais, artísticas, cinematográficas, podemos adicionar as inúmeras obras historiográficas que tomam como objeto a emergência de tragédias sanitárias que ceifaram milhões de vidas humanas e as formas pelas quais as diferentes sociedades as enfrentaram.
Disponibilizar esses monumentos da cultura onde a vida do espírito é objetivada para as novas gerações significa oferecer-lhes uma sólida oportunidade de elaborar o vivido, pensar o presente e lhe atribuir um sentido a partir de um diálogo com produções culturais que reificaram - de forma ficcional ou historiográfica - experiências análogas. É, pois, com os pés fincados no presente, mas em diálogo com obras que nos chegam do passado, que tecemos, aqui e agora, certos horizontes de expectativas para o futuro. Talvez não seja por mero acaso que, ao longo de mais de seis meses de isolamento, a única tarefa que Maya quis comigo compartilhar foi um documentário sobre a Peste Negra que havia assistido a pedido de seu professor de história. Ao terminar de revê-lo pela terceira vez, indagou a mim e a sua mãe: Vocês acham que vivemos uma nova idade média? Essa pandemia também vai durar séculos?
Por mais difícil que tenha sido para um pai ouvir essas perguntas de uma filha ainda adolescente, finalmente senti que ela, com os pés no presente, interpretava os signos e símbolos que lhe chegavam do passado e, a partir deles, tecia suas expectativas e seus temores quanto ao futuro. E ao assim fazer conferia à sua experiência escolar um sentido.
Uma Breve Palavra Final
As reflexões aqui tecidas, provocadas por um acontecimento específico do presente, não têm a pretensão de figurarem como uma resposta geral ao niilismo que ameaça o mundo moderno e suas instituições, como a escola pública. Não obstante, creio que a eventual fecundidade de alguns dos princípios aqui enunciados pode se estender para além da especificidade deste contexto e de seus efeitos mais imediatos nos processos de escolarização. Dentre esses princípios está a crença, compartilhada com Ricoeur, de que “[...] a prática da narrativa consiste numa experiência de pensamento mediante a qual nos exercitamos a habitar mundos estranhos a nós” (Ricoeur, 2010a, p. 422). E a convicção, dela derivada, de que a tarefa da educação - mais do que a conformação dos educandos às supostas exigências práticas do mundo contemporâneo - é a de lhes facultar habitar outros mundos. Nisso reside, a meu ver, a razão de ser da escola; seu mais profundo sentido e sua dignidade. É por meio dessa possibilidade eminentemente humana - a de habitar mundos que são estranhos ao tempo e ao espaço que nos foi dado viver - que a experiência e a imaginação humanas podem atualizar em cada jovem aluno a capacidade, ontologicamente radicada em todos os seres humanos, de romper com toda sorte de determinações e começar algo novo. Uma capacidade que, como nos lembra Arendt, opera como “[...] um lembrete sempre presente de que os homens, embora tenham de morrer, não nasceram para morrer, mas para iniciar algo novo” (Arendt, 2005, p. 194).