No início dos anos noventa, muito antes da invenção da soropositividade crônica e da terapia antiretorviral (TARV1), Herbert Daniel (1990) exigia um deslocamento: não mais pensar o hiv como uma sentença de morte, mas criar discursos e subjetividades a partir da vida. É dessa assunção da vida e de outros modos de existir - cuja genealogia diz respeito às lutas engendradas há mais de trinta anos - que parte Ramon Nunes Mello ao organizar Tente entender o que tento dizer - poesia + hiv/aids, coletânea de poemas que coloca no centro da cena pública a vida soropositiva e suas novas possibilidades de autocriação, no interior de dispositivos de controle biomédicos mas, ainda assim, no esforço de resistir e inaugurar outras narrativas.
Se a temática do hiv-aids2 já não causa o mesmo impacto de outrora, é justamente de outra modalidade de visibilização que partem os poemas, publicados em 2018 pela Bazar do Tempo. Eduardo Jardim (apud Ramon MELLO, 2018), apresenta o livro e já deslinda esse jogo de memórias: os poemas tangenciam um tempo híbrido, que recobre tanto aquilo que Néstor Perlongher (1987) descreveu como o dispositivo da aids como a atualização das práticas corporais e de si mesmo que tomam lugar no dispositivo crônico da aids/hiv (Atilio BUTTURI JUNIOR, 2016; Arthur NUNES, 2018). Assim como os inúmeros deslocamentos que ocorreram na história da epidemia, os textos selecionados acompanham essas mudanças mostrando como a experiência com o vírus foi se modificando na vida dos sujeitos soropositivos.
O organizador de Tente Entender... tem uma trajetória já relevante de produção sobre a doença, a sexualidade e o gênero. Nunes Mello é poeta, escritor, jornalista e ativista dos direitos humanos. Estudou jornalismo e possui mestrado em literatura brasileira pela UFRJ e, de sua lavra, são outros livros de poemas, produzidos na mesma forma de intersecção temporal: Vinis Mofados (Língua Geral, 2009), Poemas tirados de notícias de jornal (Móbile, 2011) e Há um mar no fundo de cada sonho (Verso Brasil, 2016). Em 2015, ganhou reconhecimento político-identitário ao assumir publicamente a sorologia positiva para hiv, num texto intitulado “O sentido da urgência: a necessidade de se conversar sobre o hiv” (MELLO, 2015).
Ora, é na esteira de sua produção literária e daquela que traz à tona que Mello oferece outras formas de falar sobre a aids. Particularmente, Tente entender o que tento dizer revela não apenas novos modos de se discursivizar a experiência com o vírus e seus deslocamentos, mas também registra as novas possibilidades de produção subjetiva que ocorrem no Brasil de hoje. Não obstante sua força criativa, essa nova subjetividade aparece numa agonística biopolítica, no tensionamento entre discursos de exclusão e estigmatização materializados nos textos que compõem o livro. O próprio Mello (2018, p. 17) aponta:
Nesta “era pós-coquetel”, em que a resposta brasileira à epidemia de hiv/ aids, antes exemplo mundial, se enfraquece ante o retrocesso conservador e a persistência do preconceito, do estigma e do moralismo, como a literatura, sobretudo poética, tem registrado as formas de apreensão da infecção? [...] Como o próprio corpo do soropositivo, marcado pela terapia de antirretrovirais e seus efeitos, é assimilado pela linguagem poética, e como essa contribui para narrar a própria história da perspectiva, não da pesquisa biomédica e da saúde pública, mas dos “pacientes”?
Talvez a marca axial do livro, destarte, seja a possibilidade de reverberar as vozes das pessoas que vivem com hiv. Trata-se, no limite, de um conjunto de testemunhos-poema, daqueles e daquelas que podem experimentar, por um lado, o impacto da bioidentidade (BUTTURI JUNIOR, 2016) e, por outro, requerem para si mesmo uma nova estética da existência, corporal e escritural, que se deixa entrever em cada um dos poemas.
Mello justifica o título do livro recorrendo a Caio Fernando Abreu (2006). No seu “Carta para além dos muros” - sequência de crônicas em forma epistolar publicadas no jornal Estado de S. Paulo, no ano de 1994 -, como se sabe, Abreu comete o enunciado “Tente entender o que tento dizer” (ABREU, 2006), no momento em que sua narrativa e sua função-autor inscrevem-se em outra ordem: a do dizer-se soropositivo, num regime de confissão pública de sua sorologia. Desse impacto de uma cisão na vida de Caio é que a antologia faz proliferar não mais o trauma ou a finitude, mas as diversas soropositividades - pensáveis e ainda em construção:
[...] uma produção inédita feita por convite a gerações, gêneros e sorologias distintas. Um espaço onde poetas - brancos e/ou negros, cis e/ou trans, héteros, bi e/ou homossexuais, soronegativos, sorointerrogativos e/ou soropositivos - foram convidados, em sua maioria, a escrever poemas tendo o hiv/ aids como temática, de forma direta ou indireta. (MELLO, 2018, p. 20)
Tente entender o que tento dizer, da perspectiva da invenção, é - como sustenta seu organizador - um ato político de escritura, relacionado diretamente ao gendramento e à hetero-cis-normatividade, naquilo que ela impõe, na história do hiv-aids como silenciamento e produção de abjeção. Além disso, é - como os memoriais já muito discutidos do The NAMES Project (Judith BUTLER, 2016), uma tática de “amplificar vozes, para além dos dados médicos e estatísticos” (MELLO, 2018, p. 23).
A coletânea é aberta a partir de uma relação interdiscursiva-afetiva: entre o livro e os Morangos Mofados de Abreu, entre os morangos de Abreu e os de Clarice Lispector. Escrito por Silvano Santiago, o poema “SIM”, em maiúsculas, como um grito antes suspenso, já inaugura a virtude de um novo pacto de crença na vida: “Não há por que esquecê-la, / embora sua chegada seja iminente. / Cata-se a Vida a cada dia. / Ela é a cada dia. / [...] Pergunto à Vida se ainda faz / sentido lhe emprestar sentido. / Responde-me que sim.” (MELLO, 2018, p. 27). No texto, não se nomeia a aids ou o hiv, de maneira a suspender seus efeitos objetivos. Se o enfrentamento do hiv parte de uma epidemia discursiva (Paula TREICHLER, 1987; Cindy PATTON, 1991), é mister inverter o jogo. Assim, a perspectiva de Santiago é marcada pela temporalidade - como era a de Caio Fernando Abreu - e pelo tensionamento da vida em relação à finitude, a “chegada iminente” e seus efeitos. O tempo, ainda, é o de uma nova forma de ascese, cotidiana e medicalizada, e não da radicalidade da morte: “Ela é a cada dia”, que marca na impessoalidade pronominal a presença (in)desejada do regime de existência, naquilo que carrega - como o tempo - de ambiguidades.
O posicionamento político-privado também aparece, na interseção sobretudo com os discursos de gênero. Assim é que figura o poema de Letícia Brito: “Tente entender: / [...] Eu tenho 333 amigos LGBTTIQ+ / [...] Eu tenho 4 amigos vivendo com HIV / [...] Eu tenho 89 amigos comunistas / Alguns amigos reúnem mais do que uma das qualidades descritas / [...] PS: Nenhum desses amigos gosta do Bolsonaro” (MELLO, 2018, p. 95). Como se numa série discursiva, os números aqui criam efeitos de objetividade, como na pronominalização de Santiago. O hiv aparece entre outros embates, antinomizando com as políticas de Bolsonaro. Mais do que isso, a amizade é repetida e traz os efeitos de outras formas de socialização - que não a família heteronormativa. O poema materializa o momento histórico do Brasil, quando os discursos da ultradireita faziam ecoar uma rede de sentidos negativa que relacionava enunciados sobre o comunismo, enunciados feministas e enunciados de ativismo LGBTTIQ+. Ora, mais uma vez o que está na ordem do dia é menos o hiv como ponto de viragem e mais sua condição constitutiva de subjetividades - como a posição política ou a identidade de gênero.
O poema seguinte é escrito pelo próprio organizador, Ramon Nunes Mello e coloca em pauta, mais uma vez, a injúria e os enquadramentos de morte (BUTLER, 2016) que produzem vértices de exceção entre o gênero e o hiv:
ACTO DE FÉ
22 de fevereiro de 2006
na cidade do porto
gisberta salce júnior
45 anos mulher transexual
soropositiva
torturada por três dias
pedradas pauladas chutes
sexualmente torturada
corpo dilacerado queimado
com cigarros
e jogada
em 15 metros de agonia
afogou-se na violência e no preconceito
em nome do pai do filho e do espírito santo
de 14 jovens católicos
no poço
fundo
sem fim
amém (MELLO, 2018, p. 201)
Como já dissemos, a coletânea demanda que se problematize a memória. Dessa perspectiva, “Acto de Fé” - desde a grafia no português europeu (“acto”) - aponta outro deslocamento, desta feita em relação às práticas e aos discursos sobre uma mulher trans soropositiva. Diante do assassinato brutal e espetacularizado da brasileira Gisberta Salce, em 2006, o que Mello faz é retomar a tradição católica, de modo paródico - seus assassinos foram jovens cristãos frequentadores da igreja O “acto de fé” é, aqui, o regime de calvário e de morte com que se deparam os corpos trans. O poema de tom narrativo é uma reinscrição da vida de Gisberta: depois de desenvolver problemas relacionados ao hiv e de não conseguir mais se sustentar na cidade do Porto, em Portugal, onde morava - por não ser mais possível viver da prostituição, diante de um corpo cada vez mais marcado pela doença -, passou à situação de rua. O caso, noticiado pela imprensa3, colocou em xeque a formação cristã dos assassinos: Gisberta foi torturada e violentada por cerca de três dias. Seu corpo e seus órgãos genitais foram apedrejados e queimados com cigarro. Os jovens, depois de dias seguidos de violência, ao encontrarem o corpo da brasileira sem reação a estímulos, a jogaram num poço com medo de serem descobertos. De modo incisivo, a temporalidade é a de um atávico dispositivo da aids e de um dispositivo trans que se produz e na exceção e na morte.
É nesses hifens que se estendem os poemas de Tente entender o que tento dizer. Interessante notar que essa agonística entre viver a vida e as políticas de morte, materializadas no livro, aparecem num momento histórico de perda de direitos de minorias e de suspeição relativas ao enfrentamento do hiv-aids no Brasil. Se há modificações importantes em curso, desde a cisão causada pela TARV, sobejam hoje as ambiguidades num dispositivo que, no Brasil, agora inclui discursos de cunho religioso, pânicos morais e estratégias de invisibilização e estigmatização de certas modalidades de vida4.
É nesse regime discursivo que o livro organizado por Ramon Mello cria efeitos de resistência efetivos, nas urgências históricas que deixa entrever. Como no início dos anos 2000, quando Marcelo Bessa (2002) inventariava a literatura e a abordagem do hiv-aids, o texto permite perscrutar não só um funcionamento discursivo, mas deixa entrever a polivalência tática de positivação da vida soropositiva. Diferente de Bessa, porém, a coletânea possibilita ir além, ao permitir que as pessoas que vivem com hiv (e não apenas elas) se agenciem e digam sobre si mesmas. São essas vozes, na rede de memórias discursivas, que causam o impacto e solicitam uma escuta atenta. São elas que, na exceção biopolítica, podem trazer à tona a força dos discursos de luta e de exceção - como gostaria Philippe Artières (2004) - que escreveram a história do hiv-aids e da soropositividade