Introdução
Mesmo diante das inovações tecnológicas, o livro didático é o material mais presente no processo de ensino e aprendizagem nas escolas. Romanatto (2004) e Molina (1988) enfatizam que o livro didático tem uma presença marcante em sala de aula, que pode ser comparada à presença do docente ou até mesmo substituí-lo. Silva (1996, p. 11) ressalta que, para muitos educadores brasileiros, com suas formações falhas e truncadas pelo ingrato cotidiano escolar, acabam reproduzindo a ideia de que, sem o livro didático, torna-se inviável orientar a aprendizagem, de que o livro é “uma insubstituível muleta. Na sua falta ou ausência, não se caminha cognitivamente na medida em que não há substância para ensinar”.
Mas é preciso perceber o livro didático como um instrumento auxiliar do processo pedagógico, permanecendo o educador como agente principal para mediar o conhecimento e manter a postura de sujeito crítico e analítico. De acordo com Casagrande e Carvalho (2009), temos que nos alertar para a necessidade de manter um olhar crítico e questionar as representações que transmitem preconceito e podem gerar discriminações.
Além de auxiliar na prática docente, o livro didático é um artefato cultural, pois traz significados culturais devido à sua historicidade (ARAÚJO; SANTOS, 2014). Dornelles (2010) defende que os “[...] artefatos culturais não têm significados únicos, fixos e intocáveis, seu significado depende do que eles significam em determinado contexto”. Ferreira (2006, p. 65) afirma que
A escola produz e reproduz conteúdos e identidades culturais. Reproduz porque faz parte da sociedade, participa das representações que, nela, circulam. A escola também é produtora de cultura, por ser um microcosmo com capacidade de elaboração de práticas particulares, conforme as circunstâncias e os indivíduos que nela convivem.
Considerando as representações de gênero e sexualidade nos livros didáticos, não podemos desconsiderar que esses artefatos são resultantes da cultura e dos valores vigentes. Saviani relata no prefácio da obra As belas mentiras, de Nozella (1981), que o livro didático veicula a ideologia dominante nas escolas.
Na pesquisa realizada por Rocha e Teixeira (2008) sobre construções de gênero em livros didáticos das décadas de 1920 a 1950, observou-se que desde a década de 1920 o sexismo está presente no livro didático, sendo que os dados encontrados revelam que o material perpetua ideais de masculinidade e de feminilidade.
O debate e a visibilização das questões de gênero e sexualidade na educação são primordiais para a promoção da cidadania e do respeito à diversidade. Dizima-se, dessa maneira, a responsabilidade da escola em manter o sexismo e o machismo na sociedade. A abordagem histórica e cultural das relações de gênero e sexualidade não pode ficar silenciada no livro didático, artefato cultural que pode contribuir com a superação da naturalização dessas relações, a fim de desvelar os preconceitos baseados no sexismo, androcentrismo e na heteronormatividade. Por influências políticas e ideológicas, essas perspectivas acabam sendo mutiladas, afastando cada vez mais o educando de seu cotidiano social. A análise realizada neste artigo se alicerça nos princípios da pesquisa teórica que, conforme Demo (1994) dedica-se ao exame de teorias, conceitos ideias, ideologias com o objetivo de buscar seu aprimoramento.
Livro didático: entre a crítica e a apologia
Romanatto (2004) julga que muitos livros didáticos apresentam conceitos como verdades indiscutíveis e não permitem aos educandos e educadores um debate crítico e criativo do processo educacional. Tonini (2002) alerta que os livros chegam às escolas como um produto acabado e são submetidos a regras, restrições, convenções e regulamentos das políticas educacionais e editoriais.
Destarte, o livro didático é um instrumento de construção de identidade, reconhecido como um símbolo de poder, assumindo um importante papel político. Essa função pode se “exercer de maneira explícita, sistemática, ostensiva, ou dissimulada, sub-reptícia, implícita, mas não menos eficaz” (CHOPPIN, 2004, p. 553).
Muitos são os interesses envolvidos na política nacional do livro didático, dos quais se incluem os aspectos econômicos, ideológicos, pedagógicos, etc., sendo os dois primeiros de maior relevância, pois há controle ideológico exercido tanto pelos conteúdos, quanto pelos lucros que o programa proporciona às editoras (BORATO et al., 2004). Pfromm Netto, Dib e Rosamilha (1974, p. 14) sugerem:
A finalidade última da leitura dos livros é contribuir para uma compreensão melhor e maior das pessoas e do mundo. A leitura deve fazer com que os leitores se tornem mais humanos, menos ignorantes [...]. Devemos eliminar, ou pelo menos reduzir a possibilidade de o livro ser mero instrumento de massificação desumana e fazer deste um instrumento de diversificação, de individualização cultural, de atualização de cada ser humano, de acordo com as potencialidades e necessidades que este apresenta.
O livro didático pode ser um eficiente recurso didático, contudo, Romanatto (2004) cita que essa eficiência depende da utilização do material. Alvares (1991) complementa que cabe ao educador aguçar seu espírito crítico diante do livro didático, pois é a ele que compete o processo de seleção do material, devendo, portanto, estar suficientemente informado para realizar satisfatoriamente essa tarefa3. O autor complementa que o livro didático tem sua importância condicionada ao uso que o educador dele faça, sabendo explorá-lo em função dos objetivos a alcançar, enfatizando seus pontos fortes e anulando seus pontos fracos.
A partir de 1997, o MEC criou o processo de avaliação pedagógica dos livros pelo Plano Nacional do Livro Didático (PNLD)4, o qual publica seu resultado em Guias do Livro Didático (GLD) destinados para as escolas onde os educadores fazem suas escolhas. O PNLD subsidia o trabalho pedagógico dos educadores por meio das coleções de livros didáticos. O programa é executado até o momento em ciclos trienais5.
Na década de 1940, as avaliações partiam de um órgão centralizado, composto por técnicos e assessores do governo, sujeitos pouco familiarizados com a educação e desqualificados para gerenciar a questão do livro didático (FREITAG; COSTA; MOTTA, 1993). Em 2016, a Coordenação Geral de Materiais Didáticos (COGEAM) informou, por endereço eletrônico, quem são os profissionais que compõem a referida equipe, sendo eles: profissionais que têm formação em diversas áreas, alguns com pós-graduação lato e stricto sensu, e colaboradores com experiência em sala de aula na Educação Básica.
Em meados de 2017, o presidente do Brasil e o ministro da Educação assinaram um decreto que traz alterações significativas para o PNLD, válidas a partir de 2019. Uma das alterações foi a recriação da comissão de avaliação formada por integrantes das universidades públicas. A pretensão do Ministério da Educação é formar uma equipe composta por especialistas das diferentes áreas do conhecimento, professores da Educação Básica e do Ensino Superior de instituições públicas e privadas. Com a atual mudança, de acordo Matuoka (2017), a universidade pública passa a exercer um papel secundário no PNLD, e essas mudanças podem ocasionar a ausência de transparência desse processo, velando uma discussão clara e pública.
Höfling (2006) destaca que o PNLD é politicamente usado para referendar o “sucesso” da política nacional brasileira, pois é um programa de proporções e implementações gigantescas. A distribuição de milhões6 de exemplares todos os anos coloca o PNLD como um dos programas mais amplos em termos mundiais (MOTA, 2018). Munakata (1997) menciona que o MEC é o maior comprador de livros do mundo.
Desse modo, podemos concordar com Fracalanza, Amaral e Gouveia (1986), os quais acreditam que o livro didático é uma mercadoria, cuja comercialização é interessante, e podemos dizer também que é de interesse, não só didático, mas político e ideológico. É necessário ressaltar que, segundo Delizoicov e Angotti (1994), o ensino de Ciências também sempre foi resultado do poder político e ideológico. Tonini (2002) nos alerta que, quando os livros chegam às escola como um produto acabado, são submetidos a regras, restrições, convenções e regulamentos das políticas educacionais e editoriais.
Frente a essas questões, é necessário utilizar os livros didáticos com coerência. Pfromm Netto, Dib e Rosamilha (1974, p. 14) alertam que o “reconhecimento do valor do livro como instrumento de formação educacional e cultural não implica a afirmativa de que qualquer livro é bom”. Desse modo, por mais que haja todo o processo de avaliação pelo PNLD, não significa que todos os livros estejam livres de limitações ou equívocos.
O livro didático talvez represente o único texto com que muitos brasileiros interagem durante suas vidas. Essas considerações levam a uma questão séria: a escolha adequada do livro didático (FRACALANZA; AMARAL; GOUVEIA, 1986). Segundo Alvares (1991), a escolha do livro é uma das poucas autonomias que o educador ainda tem no exercício de sua profissão, porém, as condições precárias de trabalho, o número demasiado de coleções a serem analisadas e a falta de orientação nos cursos de Licenciatura resultam na escolha do livro didático de maneira aleatória, em lugar de ser uma opção consciente.
Diante do exposto, podemos afirmar que o livro didático é alvo de exaltação e críticas, e um instrumento que pode negligenciar ou dar visibilidade para as questões sociais. De acordo com Faria (1994, p. 6, grifo do autor), “o livro didático atua como difusor de preconceitos. O índio é visto como selvagem, [...] a mulher é valorizada enquanto mãe, doméstica [...] o caboclo desvalorizado, qualificado como ‘caipira’ pejorativamente”.
Para Gomes (2007), o conhecimento escolar pode contribuir para o pleno desenvolvimento humano, com foco nos sujeitos. Por isso, temos que olhar de forma crítica para o livro didático e contribuir para o enfrentamento dos impactos e consequências discriminatórias, desvelar os preconceitos e dar voz a todos, lembrando que o referido material não se limita somente à questão pedagógica.
Relações de gênero e sexualidade: perspectivas no ensino de Ciências e nos livros didáticos
As questões de gênero e sexualidade têm importante sentido na vida dos educandos, como podemos observar no relato a seguir: Durante uma das primeiras aulas de Ciências para uma turma de 7.º ano7, em 2016, na qual eu havia acabado de apresentar a relação de conteúdos do currículo para aquele ano, ouço, repentinamente, um educando perguntar: “Professora! Nós vamos estudar isso?” Simultânea à pergunta, ele apontava uma página do conteúdo do Sistema Genital e Reprodutor que se apresentava ao final do livro didático de Ciências. Mas esse conteúdo não estava incluído na proposta curricular para o 7.º ano8. Porém, respondi: “Claro que sim, e será um dos primeiros conteúdos que vamos estudar e discutir!” Ele e os demais educandos sorriram.
Percebi a grande curiosidade dos educandos frente a esse conteúdo e, mais uma vez, devido à minha trajetória como educadora, constatei que não basta a enxurrada de informações que as mídias disponibilizam sobre as relações do corpo e as várias faces do sexo expostas, cotidianamente, em sites de internet. Nossos educandos sentem necessidade de um diálogo direto e que oportunize sanar seus anseios e dúvidas em relação ao seu próprio corpo, à sexualidade e todas as relações que abarcam essa discussão.
Para o educando que vive a transformação de seu corpo é ainda mais significante o estudo do corpo humano, o qual é, muitas vezes, representado como sinônimo de imperfeição, de fetiche ou de beleza entre outros significados atribuídos pelos adolescentes. O corpo humano não pode se limitar à visão biologizante. Devemos ir além do ensino da anatomia e fisiologia do corpo humano. Segundo Amaral, Domingues e Silva (2008), o corpo é espaço de expressão e constituição de identidades, é nele que são inscritos os principais signos de cada sociedade. O corpo tem uma história, é constituído de linguagem, fala e exprime seus anseios de forma significativa.
O corpo ainda é visto como objeto para comprovar as diferenças de comportamentos sociais entre gêneros. Não é raro encontrarmos textos dissertando sobre as diferenças comportamentais e cognitivas masculinas e femininas. Precisamos abordar esses aspectos na escola, a fim de enfrentar a dicotomia de papéis de gêneros, em que muitas vezes a mulher é submetida à inferioridade.
Nos livros de Ciências notamos o sentido de superioridade nas representações masculinas, de modo que as mulheres cientistas são ocultadas pelas referências de cientistas homens, impedindo-as de serem reconhecidas por seus trabalhos científicos. Foram poucas as mulheres que tiveram seus feitos reconhecidos pela ciência e tenham sido consideradas merecedoras de prêmios. Porém, esses poucos nomes não têm destaque nos livros didáticos, promovendo silenciosamente o sexismo, representado na história da Ciência.
É essencial discutir e refletir sobre as questões culturais e sociais que permeiam o corpo humano. As relações de gênero e sexualidade são uma dessas questões, e o livro didático é um aliado no processo de mediação para esse fim. Louro (1997) cita que é possível supor, pelos livros didáticos e pelas indagações de educadores, que as formas como são conduzidas as aulas ou atividades ligadas à educação sexual nas escolas, ainda revelam cautela e receio, onde a regra é buscar refúgio no científico, traduzido pelo biologismo, evitando, assim, a contextualização social e cultural das questões.
Santana e Waldhelm (2009) afirmam que a maior parte dos livros didáticos existentes no mercado editorial solidifica a organização biologizante do currículo de Ciências. E complementam que a tarefa de abordar a sexualidade humana nos livros didáticos é desafiadora.
De acordo com Diniz e Santos (2011), as relações de gênero e sexualidade exercem influências na construção do sujeito. O processo educativo escolar é significativo na construção dessas relações, sendo que o livro didático de Ciências produz, veicula e normatiza formas de ser homem e mulher. Louro (1997, p. 61) esclarece que o gênero é construído nas instituições sociais, como a escola, onde “[...] gestos, movimentos e sentidos são produzidos no espaço escolar e incorporados por meninas e meninos e tornam-se parte de seus corpos”.
De acordo com Bordini e Soares (2008), os livros didáticos de Ciências produzem significados e sentidos e, assim, nomeiam, hierarquizam e moldam os sujeitos; são máquinas históricas de saberes que produzem, fazem circular e consolidam significados sobre o gênero e a sexualidade.
Bandeira, Stange e Santos (2008) constataram em uma pesquisa que os livros didáticos de Ciências apresentavam a figura masculina em 80% das representações imagéticas. Em outra pesquisa, mais recente, foi averiguado que há coleções de livros didáticos de Ciências que silenciam totalmente as mulheres cientistas, tanto na linguagem imagética como na textual (BANDEIRA, 2016a). De acordo com Chassot (2011, p. 109), a desigualdade ainda está evidente na “ocupação de diferentes postos pelas mulheres em todas as áreas”.
Em outra pesquisa sobre uma coleção didática de apostilas direcionadas à educação infantil, foi possível observar que ainda há uma discriminação sexista em relação às profissões, na qual os cargos de chefia são representados pelos homens (BANDEIRA; VELOZO, 2016).
Moro (2001) ressalta que, com a análise crítica, os preconceitos presentes no livro didático podem se tornar fonte de alerta diante dos recursos ideológicos utilizados para a reprodução social. O cuidado na sua utilização é imprescindível, mesmo que aparentemente possa parecer inofensivo. Como afirma Louro (2016), a pedagogia é muitas vezes sutil e discreta, mas quase sempre, eficiente e duradoura.
Louro (1997, p. 22) cita que:
[...] as justificativas para as desigualdades precisariam ser buscadas não nas diferenças biológicas (se é que mesmo essas podem ser compreendidas fora de sua constituição social), mas sim nos arranjos sociais, na história, nas condições de acesso aos recursos da sociedade, nas formas de representação.
Ferreira e Luz (2009) admitem que a escola é um espaço relevante e pode reproduzir as relações de gênero e sexualidade que oprimem, mas também é capaz de construir relações que libertem. Guacira Louro destaca também a relação da escola com esses desdobramentos de representações:
Escolas experimentam continuidades e descontinuidades, realizam deslocamentos e, eventualmente, rupturas. As denúncias, as questões e as críticas feministas, bem como aquelas vindas dos Estudos Culturais, dos Estudos Negros, dos Estudos Gays e Lésbicos também estão produzindo efeitos. Assim sendo, ainda que de forma talvez tímida, vemos hoje em escolas brasileiras experiências e iniciativas que buscam subverter as situações desiguais - de classe, raça, gênero, etnia - vividas pelos sujeitos. (LOURO, 1997, p. 120).
A legislação brasileira prevê a igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres e promove o bem de todas as pessoas, sem preconceitos ou qualquer outra forma de discriminação. Além da Constituição Federal Brasileira de 1988, assim como o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, destacamos também o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o qual evidencia que a criança e o adolescente têm direito ao respeito e à dignidade, que consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral, abrangendo a preservação da imagem e da identidade, ficando a salvo de constrangimentos. Assim, todas as pessoas devem ser respeitadas, independentemente da identidade e da orientação de gênero, e dos papéis sociais exercidos. Entretanto, sabemos que, por questões históricas, culturais e políticas, os princípios de igualdade encontram muita resistência para serem implementados na realidade brasileira.
Ferreira e Luz (2009) declaram que o conhecimento reproduzido e construído pela escola é essencial, pois o rompimento com os determinismos, padrões e modelos hegemônicos abre espaço para a igualdade de direitos e da diversidade. De acordo com as autoras, essa proposição é condição sine qua non para a consolidação de propostas pedagógicas que visem à construção de uma sociedade humana e justa.
Conforme Moreira e Candau (2007, p. 18), podemos entender o currículo como:
[...] as experiências escolares que se desdobram em torno do conhecimento, em meio a relações sociais, e que contribuem para a construção das identidades de nossos/as estudantes. Currículo associa-se, assim, ao conjunto de esforços pedagógicos desenvolvidos com intenções educativas [...], a palavra currículo tem sido também utilizada para indicar efeitos alcançados na escola, que não estão explicitados nos planos e nas propostas, não sendo sempre, por isso, claramente percebidos pela comunidade escolar.
O currículo envolve também as atitudes e os valores transmitidos pelas relações sociais e pelas rotinas do cotidiano escolar como: práticas, relações hierárquicas, regras e procedimentos, modos de organizar o espaço e o tempo na escola, distribuir os alunos por turmas, as mensagens implícitas nas falas dos educadores e nos livros didáticos. Assim, o currículo se torna intermediador das ações na escola (MOREIRA; CANDAU, 2007).
Fica evidente a relação intrínseca entre o currículo e a cultura. Um grupo social, como a escola, compartilha uma cultura, ou seja, um conjunto de significados construídos nas práticas de utilização da linguagem. Gonzáles Arroyo (2007) diz que os educandos nunca foram esquecidos nas propostas curriculares, a questão é com que olhar foram e são vistos. De acordo com Louro (1997), a presença das mulheres nas salas de aulas, a visibilidade dos sujeitos homossexuais, a imposição das discussões sobre sexualidade com a expansão da AIDS, o aumento das relações sexuais fora do casamento formal são algumas das questões que estão atravessando a escola. Esses processos rompem barreiras sociais, promovem saberes, comportamentos e valores que precisam ser debatidos.
Os PCN de Ciências para o 1.º e 2.º ciclos dos anos iniciais (BRASIL, 1998) ressaltam que os aspectos biológicos, culturais, sociais e afetivos refletem na arquitetura do corpo. Assim, o corpo humano não é uma máquina e cada ser humano é único. O ensino de Ciências pode contribuir para “[...] a formação da integridade pessoal e da autoestima, da postura de respeito ao próprio corpo e ao dos outros, para o entendimento da saúde como um valor pessoal e social, e para a compreensão da sexualidade humana sem preconceitos” (BRASIL, 1998, p. 22).
Os PCN 3.º e 4.º ciclos (anos finais) explicam que a reprodução é “elemento de realização humana em suas dimensões afetivas, sociais e psíquicas que incluem mas não se restringem à dimensão biológica” (BRASIL, 1998, p. 47).
Assim, se os livros didáticos de Ciências apresentassem esses aspectos, facilitariam muito o trabalho dos educadores. As duas últimas edições do Guia do Programa Nacional do Livros Didático (GLD)9 de Ciências apresentam um critério que orienta os educadores a observarem se os livros didáticos promovem o respeito “à diversidade social, regional, étnico-racial, de gênero, religiosa, de idade, orientação sexual, de linguagem, assim como não apresenta quaisquer formas de discriminação ou de violação de direitos” (BRASIL, 2013b, p. 125).
As Diretrizes Curriculares Estaduais (DCE) de Ciências (PARANÁ, 2008) apontam, de forma não evidente, a abordagem da sexualidade, explanando o tema como um desafio socioeducacional contemporâneo, o que deve se articular com as concepções e os valores voltados para a democracia e cidadania. As DCE propõem que as relações de sexualidade sejam abordadas pelas disciplinas que lhes são afins, de forma contextualizada, articuladas com “os respectivos objetos de estudo dessas disciplinas e sob o rigor de seus referenciais teórico-conceituais” (PARANÁ, 2008, p. 28).
Segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação (DCN) (BRASIL, 2013a), a educação consiste no processo de socialização da cultura, no qual se constroem, mantêm-se e se transformam conhecimentos e valores, assim, exige-se problematizar a organização escolar, que não tem conseguido responder às singularidades dos sujeitos que a compõem.
Outro destaque é a terceira e última versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) concluída em 2017, na qual foram retiradas todas as expressões orientação sexual e identidade de gênero presentes nas versões anteriores. Maria Helena Castro, então secretária do MEC, justifica que esses temas relacionados ao gênero não estão inclusos na versão final da BNCC porque é a favor da pluralidade, da abertura, da transparência e da lei, e não é contra nem a favor (CARVALHO, 2017). O discurso vago e confuso da secretária não fundamenta o porquê da não indicação de trabalhar com o conceito de gênero e da exclusão dos termos orientação sexual e identidade de gênero. Assim, podemos aproveitar, criticamente, essa ideia de neutralidade para refletir sobre a educação sexual nas escolas. Nas competências gerais da BNCC 2018 (BRASIL, 2018) percebemos notavelmente a invisibilização do termo, além de outros (origem, etnia, etc.). Visualizamos esse aspecto na comparação entre a versão 2017 (segunda versão preliminar do documento) e a de 2018:
Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de origem, etnia, gênero, idade, habilidade/necessidade, convicção religiosa ou de qualquer outra natureza. (BRASIL, 2017, p. 18).
Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza. (BRASIL, 2018, p. 8).
A BNCC indicava, na versão de 2017, que no ensino de Ciências, o educando do 8.º ano deveria:
Selecionar argumentos que evidenciem as múltiplas dimensões da sexualidade humana (biológica, sociocultural, afetiva e ética) e a necessidade de respeitar, valorizar e acolher a diversidade de indivíduos, sem preconceitos baseados nas diferenças de gênero. (BRASIL, 2017, p. 301).
Na versão de 2018, a BNCC retira os termos sexualidade, direitos humanos e gênero:
Construir argumentos com base em dados, evidências e informações confiáveis e negociar e defender ideias e pontos de vista que promovam a consciência socioambiental e o respeito a si próprio e ao outro, acolhendo e valorizando a diversidade de indivíduos e de grupos sociais, sem preconceitos de qualquer natureza. (BRASIL, 2018, p. 322).
A BNCC, o mais novo documento orientador da educação escolar brasileira apresenta a conivência com a pauta conservadora, na qual percebemos a tentativa de silenciar as questões sociais relacionadas retirando os termos “orientação sexual” e “identidade de gênero”, conforme os interesses políticos e religiosos. Shaw (2017) diz que o movimento Escola Sem Partido teve grande influência sobre as mudanças da BNCC, podendo levar a uma visão redutora do assunto com a ausência dessas expressões.
O movimento Escola sem Partido traz a ideologia de gênero como estopim para manobras de convencimento da sociedade contra a discussão de gênero nas escolas. A recente versão do Projeto de Lei Escola Sem Partido (PL 246/2019), afirma no Artigo 2: “O Poder Público não se imiscuirá no processo de amadurecimento sexual dos alunos nem permitirá qualquer forma de dogmatismo ou proselitismo na abordagem das questões de gênero” (BRASIL, 2019), o que só vem a consolidar os textos anteriores tramitados desde 2015 (PL 867/2015), em que se proíbe a veiculação de temas relacionados à ideologia de gênero em políticas públicas educacionais, currículos e disciplinas obrigatórias, facultativas e complementares.
Dessa maneira, tenta-se configurar os livros didáticos como ameaças sobre a questão de gênero e sexualidade, transformando-se em “sinônimo de violação da moral e das tradições, torna-se um tabu que precisa ser ocultado” (MOURA; SALLES, 2018, p. 140). Sendo que, para Brandão e Lopes (2018, p. 100) a discriminação e violência à desigualdade de gênero persistem nos espaços escolares, assim, abordar as relações de gênero ajudaria no “processo educativo de convivência com a diversidade sexual”. Assim, segundo Bandeira (2016b, p. 36), a ideologia de gênero entendida pelo movimento Escola Sem Partido é uma falácia debatida pelas categorias heteronormativas alicerçadas pelo fundamentalismo religioso, a qual rejeita uma educação que promova “um olhar humanizado e isento de preconceitos e discriminações”.
O livro didático de Ciências pode ir além da anatomofisiologia humana ao abordar, na configuração de conteúdos relacionados ao corpo humano, todos os aspectos sociais e culturais, além de apresentar a desnaturalização de distinção de gênero em diversas representações: tarefas domésticas e maternais, práticas de esportes, profissões, brincadeiras infantis, etc. Essa intencionalidade seria um grande avanço para a disseminação da equidade social das relações de gênero e sexualidade e da superação das discriminações que envolvem essas relações.
Freitag, Costa e Motta (1993) evidenciam que grande parte dos estudos sobre a ideologia do livro didático está desvinculada da realidade dos alunos, procurando disfarçar, omitir ou distorcer os problemas sociais em que se encontram certas classes e minorias. Atualmente, em pleno século 21, esse cenário está sendo cada vez mais reproduzido, mantendo os educandos distantes da realidade social.
Considerações finais
O livro didático não detém a verdade inquestionável. Questionar as invisibilidades e representações preconceituosas de gênero e de sexualidade não significa negar a qualidade do livro didático nem tampouco a importância que eles assumem no cotidiano escolar. Apesar de tantas críticas bem fundadas, é possível usarmos esse artefato cultural de forma analítica e, assim, fazermos dele fonte de reflexões para promovermos a problematização de ideias sociais.
As relações de gênero e sexualidade no ensino de Ciências e nos livros didáticos estão concomitantemente relacionadas com as questões culturais e políticas. Essas relações são muitas vezes silenciadas nos livros didáticos ou moldadas no androcentrismo e na heteronormatização. Destarte, a escola deve se atentar para não cair nas armadilhas da ideologia sustentada pelos pensamentos reacionários e fundamentalistas.
O ensino de Ciências e os livros didáticos de Ciências podem contribuir com a educação sexual, promovendo uma formação com o incentivo à desnaturalização dos papéis de gênero e respeito à diversidade, promovendo a desconstrução de tabus voltados para a sexualidade que geram preconceito. Lembrando que, além de serem considerados grandes auxiliadores pedagógicos, os livros didáticos são também grandes propulsores culturais.