Introdução
Em La forma como ensayo, um manifesto escrito por Raúl Freire, deparamos com uma exaustiva denúncia da “falência das formas do pensamento crítico nos meios universitários” (FREIRE, 2020, p. 19). De acordo com seu prognóstico, essa falência poderia facilmente ser vislumbrada ao analisarmos a pobreza expressiva da escrita acadêmica contemporânea; uma escrita, na visão do autor, saturada de jargões extravagantes e destituída de profundidade analítica. Intrigado, questiona: por que razão os pesquisadores adotaram esse léxico vazio e acrítico? Sem titubear, ele próprio responde: devido a certa “sanha indexadora” (FREIRE, 2020, p. 37), uma sanha caracterizada pela adoção de modelos estandardizados de argumentação que primam por uma ordenação excessiva e rígida das ideias.
A adoção desses modelos estandardizados, ainda conforme Freire (2020), derivaria de uma imposição produtivista que tomou de assalto os meios acadêmicos ao redor do mundo, impondo aos pesquisadores certos padrões considerados como mais adequados por certos periódicos. Para uma ideia ganhar o mundo, nesse diapasão produtivista denunciado pelo autor, deveria antes ser indexada à certa forma expressiva, procurando atender critérios formais construídos de véspera a fim de garantir sua inteligibilidade. Essa imposição de modos expressivos, arremata, acabaria por domesticar o pensamento, calando sua potência crítica. Por esse motivo, La forma como ensayo insiste que as pesquisas acadêmicas precisam se rebelar contra a sanha indexadora contemporânea e, para promover essa rebelião, defende a retomada do gênero ensaio.
Em outro registro, utilizando um tom menos belicoso, Víctor Rodríguez (2012) também defende que os pesquisadores acadêmicos passem a ensaiar. Em O ensaio como tese, Rodríguez argumenta ser cada vez mais necessário desconstruir a estética dos textos científicos. O autor justifica a necessidade dessa preocupação estética levando em consideração que o método científico legou ao século XXI uma escrita insossa, sem espaço para a manifestação e a renovação do pensamento, deixando ao leitor a impressão de que o texto acadêmico se desvirtuou “para um acúmulo de informação sem a devida reflexão” (RODRÍGUEZ, 2012, p. 25-26). Os nossos escritos, embebidos dessa estética cientificista, estariam limitados a seguir uma monótona ordem, inspirada pela dita lógica informal, na qual as proposições se sucedem sem se desviar do reto caminho em direção à conclusão. Como se rebelar contra essa estrutura que pouco espaço confere à criação? Eis a questão. Ensaiando. O ensaio, gênero que o autor sempre condenou em seus anos de formação, por assemelhar-se a uma espécie de rascunho, parece-lhe hoje uma boa resposta diante desse cenário, uma “revolta ao objetivismo puro” ou uma “válvula de escape para pensamentos livres que não cabem na metodologia rígida da ciência humana” (RODRÍGUEZ, 2012, p. 13).
Orlando Lopes Albertino, por sua vez, em O ensaio como tese, a tese como tese, a tese como ensaio: prolegômenos a uma prática ensaística (2011), compartilha do mesmo sentimento de Rodríguez e vai além. Para Albertino (2011), pensando o contexto acadêmico brasileiro, a adoção do gênero ensaio permitiria uma espécie de descolonização dos modos discursivos herdados da ciência europeia, promovendo assim uma ruptura com a mentalidade racionalista moderna2.
Como compreender essa defesa entusiástica do ensaio em autores tão diversos? Seria possível rascunhar uma espécie de resposta por meio do prognóstico, lançado há tempos, por Jorge Larrosa (2003). Entusiasta do gênero ensaio, o autor diagnostica três fortes demandas contemporâneas que vigoram nos meios acadêmicos, capazes de justificar essa predileção recente pelo ensaio por parte de muitos pesquisadores. Em primeiro lugar, uma forte pressão pela diluição das fronteiras disciplinares e outras tantas divisões impostas ao saber, bem expressas nas demandas universitárias por interdisciplinaridade ou por transdisciplinaridade. Em segundo lugar, ainda segundo Larrosa (2003), o esgotamento da razão moderna e suas pretensões de ser a “única razão”, uma descrença generalizada em relação aos progressos infinitos do método racionalista erigido por René Descartes. E, por fim, o enfado acadêmico diante de certa forma de pensar a escrita, regida por estritas diretrizes, e incapaz de flertar com aspectos imaginativos oriundos de modos expressivos artísticos. Ou seja, a escrita deixou de soar agradável ao grande público e tornou-se algo enfadonho ou hermético, restrito a um seleto grupo de iniciados. Essas demandas, enfatiza Larrosa (2003), estariam conduzindo cada vez mais os pesquisadores ao gênero ensaio, compreendido como um modo expressivo mais liberto de amarras formais, por isso mais palatável ao leitor comum, e mais rebelde, capaz de permitir o traspassamento das fronteiras disciplinares.
De Larrosa a Freire, passando por Rodríguez e Albertino, podemos perceber um mesmo esforço em compreender essa singular ascensão de uma cultura ensaística no universo das pesquisas acadêmicas, gerando aquilo que poderíamos denominar de um ensaísmo acadêmico3. Esse ensaísmo pode ser compreendido como uma batalha — o vocabulário combativo utilizado por todos os autores supramencionados, sendo Larrosa a única exceção, justifica a adoção dessa expressão aguerrida —, uma luta contra o hermetismo dos escritos acadêmicos derivado de uma mentalidade mercantil que tomou de assalto os meios universitários4. O ensaio, em outros termos, surge como uma arma expressiva em uma guerra contra os modos de expressão canônicos adotados nas pesquisas acadêmicas ou, retomando aqui a expressão de Freire (2020), contra a “sanha indexadora”.
O embate entre distintos modos expressivos há tempos adentrou o campo das pesquisas educacionais, porém com outros contornos e por outras vias. Em 2016, por exemplo, encontramos algo dessa guerra no livro publicado por Cristiana Callai e Anelice Ribetto, intitulado Uma escrita acadêmica outra: ensaios, experiências e invenções. Resultado de um trabalhado iniciado dez anos antes, deparamos ali com uma aposta narrativa em modelos expressivos mais libertos, capazes de construir “possibilidades de habitar outros territórios na escrita acadêmica” (CALLAI; RIBETTO, 2016, p. 13). O gênero ensaio é evocado logo no subtítulo, sendo considerado por suas autoras como um importante aliado, gênero expressivo apto a produzir uma escrita viva, em contraponto ao modelo dogmático que domina os meios universitários brasileiros. Diferentemente de Freire (2020), contudo, as autoras não retornam ao gênero em uma chave negativa, como se este fosse uma resposta ao modelo reprodutivista e sua sanha indexadora. Compreendem, positivamente, que o mais importante é a construção de um espaço de pensamento outro, não necessariamente a batalha contra ou entre modos expressivos diversos. Célia Linhares (2016), prefaciadora da obra, corrobora tal prognóstico e lembra-nos que:
Se há regras e formas de dizeres sancionadas e hierarquizadas, se estamos circunscritos por gramáticas que pautam diferentes tipos de escrita, que nos exigem que comecemos as frases com maiúsculas e as encerremos com ponto final, entre uma e outra circunstância regrada está o trabalho de transfigurar a vida em uma escrita, de tal modo viva e indomável que nem o ponto final possa reter o jorro do pensar, do inventar, do soltar-se então desencadeado pelas inquietações e potências que nos interrogam. (LINHARES, 2016, p. 8).
O trabalho vivo do pensamento, aquele que acontece entre a letra maiúscula e o ponto final de um escrito, pode ser calado pelo modo expressivo dogmático ou, pelo contrário, pode ganhar corpo por meio de uma escrita viva e indomável, ensaística quiçá, capaz de dar vazão à inquietude do pensamento. São formas distintas de lidar com a escrita e que, embora vez ou outra adentrem em um intenso combate, não se excluem propriamente.
Encontramos defesa similar em alguns outros escritos, muitos deles também embebidos de certo tom belicoso. À guisa de exemplo, citemos os artigos de Ana Godoy (2011), “Uma escrita para um combate incerto”, e, de Luciano Bedin da Costa e Cristiano Bedin da Costa (2019), “Short scenes: a escrita acadêmica como combate”. Não são escritos propriamente destinados a discutir o gênero ensaio, mas neles encontramos um mesmo esforço combativo vislumbrado em autores como Freire (2020) e Albertino (2011). Há, contudo, uma diferença no combate travado. Enquanto Freire (2020) vocifera contra o capitalismo vigente, lançando-se contra as estruturas produtivistas presentes nas universidades e instrumentalizando o ensaio para fins particulares, ambos os escritos evocados neste parágrafo pensam o combate como uma urgência vital5, uma necessidade de modificar aquilo que se é, mais do que destruir um adversário qualquer. Nesse diapasão, o ensaio é um companheiro de batalha entre outros. O vitalismo vislumbrado por esses autores, bem como pelas autoras de Uma escrita acadêmica outra, portanto, parece implicar um combate muito distante daquele vislumbrado em La forma como ensayo e O ensaio como tese. Não obstante essa diferença, partilham com Freire (2020) e Rodríguez (2012) um mesmo incômodo com a escrita praticada nas universidades.
Em comum tanto ao trabalho dos primos Bedin (COSTA; COSTA, 2019) quanto ao de Ana Godoy (2011), para não citarmos muitos dos textos presentes na compilação supramencionada (CALLAI; RIBETTO, 2016), vemos uma mesma remissão teórica, uma recorrente menção ao trabalho do filósofo francês Gilles Deleuze. Companhia teórica para a maior parte desses autores, o autor de Diferença e repetição tem sido evocado amiúde pelos estudos educacionais interessados em promover uma renovação estética na área.
Deleuze jamais escreveu sobre o gênero ensaio e tampouco sobre educação6, embora sua escrita tenha sido considerada por muitos como de verve ensaística (MARTIN, 2016) e seu pensamento esteja inspirando cada vez mais estudos produzidos no campo educacional (VINCI; RIBEIRO, 2018). De algum modo, para os fins deste ensaio, convém reter provisoriamente que sua filosofia seria portadora de uma intranquilidade de pensamento cara também ao gênero ensaio (BARRENTO, 2010), uma intranquilidade insubmissa e indômita. Intranquilidade, acreditamos, apropriada pelos estudos educacionais de acento deleuziano e deleuzo-guattariano, em sua busca pela construção de novos meios de expressão e em seu singular combate contra um modelo prosaico de escrita que passa por certa ideia de vitalidade.
Buscando oferecer alguns apontamentos sobre essa cultura ensaística latente nos meios acadêmicos, mormente nas produções educacionais de acento deleuziano e deleuzo-guattariano, procuraremos retomar o gênero ensaio como um modo de pensamento que, em sua ânsia por escapar dos desmandos do racionalismo, buscará operacionalizar certa ideia de fabulação que tangenciaria certos elementos do pensamento de Gilles Deleuze acerca da necessidade de produzirmos uma crença imanente. Interessa-nos compreender como essa cultura ensaística ressoa nas discussões promovidas tanto pelos adeptos do ensaísmo acadêmico, em sua luta contra o produtivismo, quanto pela produção educacional deleuziana e deleuzo-guattariana recente, engajados na construção de uma espécie de poética do pesquisar de verve mais fabulatória. Essa poética, vitalista por excelência, permitiria a erupção de um combate singular contra a escrita acadêmica contemporânea, um combate cujo principal objetivo não é destruir os inimigos do livre pensar, e sim promover outros modos de existência no interior da pesquisa educacional. Um combate positivo, em suma.
A emergência de uma cultura ensaística
Quando nasce o ensaio? O leitor, afoito, prontamente poderia se dispor a responder: com Michel de Montaigne, na França, e Francis Bacon, na Inglaterra. Esses pensadores, com absoluta certeza, foram os responsáveis pela consolidação do gênero, mas o ensaio possui uma história mais tortuosa. Jean Starobinski (2018) lembra-nos que o vocábulo “ensaio” tem sido utilizado desde o século XII, na França, para se referir a pequenos escritos opinativos. Obviamente, com Montaigne, o gênero assumirá uma outra roupagem e alcançará um sucesso sem precedentes. Antoine Compagnon (2015) argumenta que, após Montaigne, a expressão par manière d’essai [à maneira de ensaio] passará a figurar nos mais variados textos, indiscriminadamente, e todos esses escritos procurarão reproduzir o tom dos escritos montaignianos. Essa profusão de escritos produzidos par manière d’essai, contudo, será danosa para o gênero, compreendido como um gênero menor. Na França, a cultura ensaística só retornará com certo fôlego no século XIX. Isso não significa que, após Montaigne, o ensaio tenha vivido um interregno de quatro séculos. Encontramos vestígios da boa prosa ensaística em outros rincões, como nos Pensamentos, de Pascal (2020). Se, formalmente, as lucubrações pascalianas, apresentadas em forma de fragmentos, diferem dos exercícios escriturais de Montaigne, não podemos negar que ambos os gêneros partilham de uma mesma e intranquila força, um mesmo desejo de experimentar o mundo sem se valer de fórmulas pré-concebidas. Não por outro motivo, autores como Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy (2004) defendem haver certa irmandade entre esses gêneros; tanto o ensaio quanto o fragmento, compartilhariam de uma mesma ojeriza pela totalidade e um mesmo interesse pela elaboração de um pensamento estilhaçado ou portador de um inacabamento essencial7.
Na Inglaterra, por sua vez, a palavra figurou em inúmeros panfletos políticos lidos em voz alta para a população, conforme narra Hugh Walker (1915). Textos de menor porte apagados pela história. O primeiro texto ensaístico de vulto, contudo, não foi aquele da lavra de Francis Bacon, mas sim um pequeno opúsculo sobre poesia publicado pelo Rei James I (SULLIVAN, 2018)8. Obviamente que, assim como na França, será Bacon o responsável por imortalizar o gênero em terras britânicas. O autor de Novum organum compreendia o ensaio como a plataforma mais adequada para o exercício do pensar, uma vez que, dado seu inacabamento essencial, o ensaio permitiria constantes revisões e ampliações. Por esse motivo, alguns de seus escritos contam com nada menos do que três versões distintas, algumas em completa contradição (SANTIAGO, 2007). Depois de Bacon, porém, o gênero acabará sofrendo alguns percalços em solo inglês.
John Locke, por exemplo, passou a enxergar o ensaio como um exercício menor, um apanhado de pensamentos “apressados e mal digeridos”, prenhe de “excesso ou escassez de informações” (p. 4). Seus ensaios expressariam um “entretenimento de quem liberou seus próprios pensamentos e os foi escrevendo à medida que escrevia” (LOCKE, 1988, p. 4) e dariam vazão a um modo de filosofar não mediado por métodos, por isso um gênero menor, e interessado unicamente em apresentar uma ideia nova, pouco explorada. Esse descrédito marcaria a má sina do ensaio em língua inglesa, relegando-o a um segundo plano até o século XVIII, quando David Hume (2011) retornará ao gênero como maneira de promover uma renovação da própria filosofia.
A origem do ensaio, como podemos depreender desse curto preâmbulo, extravasa as páginas escritas por Montaigne e por Bacon. Esses autores, sem sombra de dúvida, foram os pontos altos desse gênero em suas respectivas línguas, os responsáveis por imortalizar o ensaio na história do pensamento ocidental — justificando assim toda a atenção que receberam —, mas suas obras não deixam de ser reflexo de uma cultura ensaística mais ampla, uma cultura nascida de certa crise surgida no século XVI e prolongada até o século XVIII.
A Europa, no decorrer dos séculos XVI e XVII, vivenciou acontecimentos singulares, responsáveis por abalar o centro de gravidade do pensamento europeu e instaurar aquilo que Paul Hazard (2015) denominou de crise da consciência europeia. Em primeiro lugar, assistiu-se ao deslocamento de uma cultura de caráter eclesiástico, dominante até então, para uma cultura mais humanista e racional que, se não instituiu plenamente o ateísmo – como reza Lucien Febvre (2014) em O problema da incredulidade no século XVI: a religião de Rabelais –, em muito inspirou os movimentos contestatórios do período, desde as rebeliões heréticas até o protestantismo. O homem e sua cultura gradativamente assumem o primeiro plano e, a partir desse deslocamento, a crença nos poderes de sua razão passa a ganhar fôlego. É esse o espírito que inspirará, por exemplo, o racionalismo de matriz cartesiana expresso nas Meditações metafísicas (DESCARTES, 2011).
Em Montaigne ou la découverte de l’individu [Montaigne ou a descoberta do indivíduo], Tzvetan Todorov (2001), dialogando com o prognóstico de Hazard (2015), aponta para um segundo abalo importante, qual seja: o contato com o outro. O homem europeu, recém alçado ao centro do mundo com a cultura racionalista, logo percebeu não estar sozinho no mundo e, ainda que apenas para justificar sua supremacia, necessitou lidar com a diferença advinda de além-mar. Ao longo desse processo, inúmeros tratados foram escritos, interessados em devassar a alma dos ditos “selvagens” e descobrir o quanto estes se aproximavam ou não da cultura europeia, considerada por seus artífices como civilizada. Montaigne, curiosamente, adentrou de maneira tímida nesse debate. O primeiro volume de Os Ensaios inicia com um elogio aos povos que vivem “ainda sob a doce liberdade das primeiras leis da natureza” (MONTAIGNE, 2002, p. 4) e, em “Dos canibais”, Montaigne não deixa de considerar os hábitos desses povos como muito mais interessantes do que aqueles cultivados na Europa. O único problema, na visão do ensaísta, não era o fato de cultuarem outros deuses ou mesmo de deglutirem uns aos outros, mas sim o fato de não usarem calças. Obviamente que a apaziguadora visão expressa em “Dos canibais” pouco impacto teve em sua época: apenas engrossou o coro de críticas dirigidas ao processo colonial, e não chegou a impedir o massacre processado no continente americano em nome de um assim chamado progresso civilizacional.
Não surpreende que, diante de tamanhas modificações e em meio a tantos debates, os pensadores europeus buscassem bases sólidas para ancorar seu pensamento, buscassem o claro e o distinto. Essa foi a pretensão de Descartes: conhecer o mundo real – ao menos suas bases – ao invés de se perder em devaneios, garantindo um mínimo de certezas diante de tão significativas mudanças. A partir desse conhecimento, quiçá fosse possível lidar com a intranquilidade que acometia a alma do homem europeu. Diferente de Montaigne, autor para quem pouco interessava as descobertas inquestionáveis ou um modo de pensamento more geometrico. Se Descartes fez do cogito a pedra de toque de sua filosofia, Montaigne achou, na intranquilidade, a maior razão de ser de seus escritos. Para o autor de Os Ensaios, ao pensar não vamos em direção a um porto seguro, pelo contrário, rumamos em direção ao mar aberto. O ensaio, diferentemente dos grandes tratados surgidos na época, busca esse escape, uma vez que compreende não ser possível adquirir qualquer tipo de estabilidade e certeza. “Se minha alma pudesse firmar-se, eu não me ensaiaria: decidir-me-ia; ela está sempre em aprendizagem e em prova”, asseverou Montaigne (2002, p. 27-28). Esse modo de pensamento, expresso contingencialmente nos ensaios de Montaigne, seria recuperado por Pascal em um ataque frontal ao cartesianismo.
Em Pensamentos, Pascal (2005, p. 248) vociferou: “escrever contra aqueles que aprofundam demais as ciências. Descartes”. O engajamento pascaliano não mira o homem Descartes, mas sim a pretensão cientificista ensejada por sua obra e responsável por marcar indelevelmente a história do pensamento ocidental. Em sua guerra, Pascal escolheu como arma uma narrativa fragmentária. Não se tratou de uma escolha arbitrária; pelo contrário, a escolha pelo gênero fragmento por parte do autor de Pensamentos deriva de uma singular aposta por ele firmada; deriva de sua recusa em acreditar que um sistema de pensamento, por mais complexo que seja, possa propiciar uma compreensão clara e distinta seja do homem, seja de Deus. Inconstantes, os homens são seres de fabulação mais do que de razão. Propensos ao erro, quando não à loucura. Por vezes, tal qual aconteceu com Descartes, são acometidos por certa soberba, creem-se capazes de desvendar os mistérios do mundo por meio de um singelo método. Se não é possível qualquer sistematicidade, sequer um vislumbre de compreensão plena, resta então procurar um gênero de conhecimento parcial e singular. Montaigne é citado amiúde por Pascal ao longo de sua obra, sendo considerado um aliado importante em sua batalha contra o cartesianismo. Ambos dão mostras, portanto, de uma cultura ensaística nascente que irá tomar de assalto outros tantos rincões — sendo o exemplo inglês o mais recorrente, embora encontremos o mesmo esforço em países diversos9 — e trará como marca indelével a recusa em operar sob a égide do modelo racionalista cartesiano. Uma cultura que nasce da crise de consciência europeia, mas não busca saná-la, antes procura a ela se entregar de modo a construir novas experiências. Fabular, pois.
Montaigne, Deleuze e a cultura ensaística: a fabulação
Ao iniciar Os Ensaios, em uma espécie de advertência ao leitor, Montaigne aconselha-nos: “sou eu mesmo a matéria do meu livro: não é sensato que empregues teu lazer em um assunto tão frívolo e tão vão” (MONTAIGNE, 2002, p. 4). Embora apele para a nossa sensatez, raros são aqueles que lhe dão ouvidos. Os ensaios fluem, dada sua prosa fácil e agradável. Montaigne adota um tom mais coloquial, abrindo suas discussões para historietas diversas. “Roubemos espaço aqui para uma história” (p.167), amiúde sugere em seus escritos. Esse modo de narrar, próximo da oralidade, dialoga com aquele utilizado pelos antigos ensaístas franceses — conforme relata Starobinski (2018) —, mas Montaigne, obviamente, reinventa a narração ensaística. Não por outro motivo, sugere Compagnon (2015), o vocábulo “ensaio” atrelou-se de maneira indelével ao seu nome.
Diferentemente dos grandes tratados filosóficos, os ensaios de Montaigne primam pelo inacabamento. A maior prova, conforme nota Telma Birchal (2007), seria a escolha do nome dado à obra. A palavra ensaio, derivada do latim exagium [pesar], era costumeiramente utilizada para se referir aos esboços ou os estudos que antecediam uma grande obra, ou simplesmente para nomear escritos de caráter propagandístico. O ensaio, nesse diapasão, seria uma espécie de escrito menor, quase amadorístico. Apontar o caráter ensaístico de uma obra, naquele período ao menos, significava condená-la por sua superficialidade. Aqueles que adotavam esse vocábulo para se referir aos seus trabalhos, assim o faziam para evitar adentrar em contendas filosóficas agudas, querendo demonstrar ao seu público o caráter modesto de seu pensamento. Obviamente, como notou Joseph Bonefant (1989), não há modéstia de nenhuma ordem em Montaigne. Por qual razão adotar a expressão “ensaio” para se referir aos seus experimentos narrativos?
A hipótese mais difundida, aquela espraiada por uma miríade de comentadores (BONEFANT, 1989; COMPAGNON, 2015; TODOROV, 2001), defende haver em Montaigne um interesse em conciliar o exercício escritural com o exercício do pensamento. Escrever e pensar devem ser compreendidos como uma única e mesma coisa. O pensamento não compreende o mundo de maneira imediata, apenas pequenos fragmentos, o mesmo devendo ocorrer com a escrita. “Ensaiar”, portanto, passa a significar o estabelecimento de uma outra relação com a escrita e, por conseguinte, com o mundo. O gesto escritural não deve representar algum sistema de pensamento construído de véspera, mas tornar-se algo imanente ao próprio ato de pensar e, também, ao próprio viver. O escrito, sob a égide do ensaio, segue os tortuosos passos do pensar, compreendido como algo inconstante, incompleto. O objeto do ensaio, ademais, assume um intranquilo e irrequieto movimento, um movimento que se confunde com a própria existência. É Montaigne, mais uma vez, quem o diz:
O mundo não é mais que um perene movimento. […] Não consigo fixar meu objeto. Ele vai confuso e cambaleante, com uma embriaguez natural. Tomo-o nesse ponto, como ele é no instante em que dele me ocupo. Não retrato o ser. Retrato a passagem. […] Se minha alma pudesse firmar-se, eu não me ensaiaria: decidir-me-ia; ela está sempre em aprendizagem e em prova. (MONTAIGNE, 2002, p. 27-28).
Encontraremos essa exigência fragmentária escritural e essa busca pelo movimento existencial, retomando a expressão de Lacoue-Labarthe e Nancy (2004), em outros tantos ensaístas: Pascal e Bacon, sobretudo. Observada a especificidade desse gênero, não surpreende constatar o modo como inúmeros autores retomaram o ensaio como um modelo expressivo fluido e aberto, contraposto ao enrijecido modelo argumentativo moderno interessado em apresentar as verdades filosóficas à maneira dos geômetras — representada aqui pela figura de René Descartes10.
Esse modo de pensar, ensaístico, carrega consigo também o poder da fabulação. Em primeiro lugar, fabulação tal qual compreendida na expressão latina fabulare, passível de ser traduzida como “falar, entreter-se conversando, praticar, conversar” ou “inventar contos, mentir, contar” (SARAIVA, 2006, p. 468). Montaigne, em seus escritos, fabula ao conversar com seu leitor, ao contar suas historietas curiosas. Fabula, ainda, em uma outra acepção da palavra, mais deleuziana. Deleuze, ao longo de sua obra, jamais se declarou um ensaísta ou algo que o valha, apenas em um único momento se remeteu à obra de Montaigne11, mas isso não impede que vejamos rastros de uma cultura ensaística em sua obra, mormente se levarmos em consideração seu conceito de fabulação.
O conceito de fabulação perpassa toda a obra de Deleuze, desde Bergsonismo, publicado em 1968, até O que é a filosofia?, escrito em parceria com Félix Guattari, de 1992. Trata-se, como notou Eduardo Pellejero (2008), de uma noção importante para a filosofia política deleuziana, uma vez que remete à ideia da criação de um povo por vir. Ao fabular, em resumo, expressamos aquilo que ainda não encontra referência no mundo atual, e por esse motivo a fabulação sempre apelará para a criação de modos de existências outros para se fazer ouvir. É, portanto, a partir de um embate contra o tempo atual que a fabulação nasce, visando produzir alguns deslocamentos. Dentre os deslocamentos produzidos, um apregoa a libertação em relação aos valores transcendentes que guiam norteadores de nossa existência. Ao fabularmos, portanto, buscamos intensificar a nossa vida ali onde ela se apresenta, sem recorrer a qualquer instância superior (DELEUZE; GUATTARI, 1992). De maneira vitalista, fabular alia-se à tarefa vitalista propagada por Deleuze em outros momentos de sua obra, alia-se à afirmação da própria vida (DELEUZE, 1976).
Encontramos ressonância desse conceito deleuziano de fabulação em suas discussões sobre cinema, sobretudo. Ao se referir ao cinema de Glauber Rocha, em A Imagem-tempo, o pensador se depara com um impasse: “o diretor de cinema se vê diante de um povo duplamente colonizado”, argumenta, “do ponto de vista da cultura: colonizado por histórias vindas de outros lugares, mas também por seus próprios mitos, que se tornaram entidades impessoais a serviço do colonizador” (DELEUZE, 2007, p. 264). Romper com a dominação cultural, com o jogo de verdade e mentira, torna-se também uma função do cinema que, impelido a pensar outras experiências que não aquelas impostas aos colonizados, vê-se imbuído da missão de fabular. O filósofo, então, passa a defender o exercício da fabulação, compreendida como uma “palavra em ato, um ato de fala” (DELEUZE, 2007, p. 264) capaz de produzir enunciados coletivos passíveis de expressar aquilo que ainda não existe, o impensável que só pode ser pensado12. Fabular, podemos perceber, implica adotar uma exacerbada crença nesse mundo.
Acreditar, não mais em outro mundo, mas na vinculação do homem e do mundo, no amor ou na vida, acreditar nisso como no impossível, no impensável, que, no entanto, só pode ser pensado: “um pouco de possível, senão eu sufoco”. E nessa crença que faz do impensado a potência distintiva do pensamento, por absurdo, em virtude do absurdo. (DELEUZE, 2007, p. 204-205).
Ao lado de Guattari, Deleuze afirmará que acreditar nesse mundo tornou-se “nossa tarefa mais difícil, ou a tarefa de um modo de existência por descobrir, hoje, sobre nosso plano de imanência” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 99). Crer nesse mundo, por conseguinte, significa experimentá-lo sem mediação de nenhuma ordem — sistemas de pensamento, moral etc. — e, dessa experimentação, passarmos a construir outras formas de pensarmos e vivermos, outros modos de existência. Ora, não é justamente isso que encontramos em Montaigne? Os ensaios caracterizam-se por uma escrita que busca apreender o mundo sem mediação de nenhuma ordem, tornando a escrita imanente ao pensamento. Ao ensaiar, entregamo-nos aos movimentos do mundo, sem peso e sem apriorismos, visando dele extrair forças capazes de intensificar nossa existência. É isso que Montaigne depreende ao deparar-se com a singela queda de um dente, por exemplo.
Eis que um dente acaba de cair-me, sem dor, sem esforço; era o fim natural de seu tempo. E essa parte de meu ser e várias outras já estão mortas, outras semimortas, das mais ativas e que ocupavam o primeiro lugar durante o vigor dos meus anos. É assim que me vou dissolvendo e escapando de mim. (MONTAIGNE, 2009, p. 479).
Esse dente, vítima do seu próprio tempo, não recebe lamentos de nenhuma ordem; Montaigne não lhe dirige impropérios ou adentra em um saudosismo sem fim. Antes, embebeda-se de sua própria involução, considerada pelo ensaísta como agradável, visto acompanhar o fluxo natural das coisas. Ao longo desse ensaio, flagramos uma estranha alegria em Montaigne, uma espécie de satisfação em poder desaparecer. Cada pequeno pedaço de seu corpo, assim, serve-lhe como ocasião para saborear a dissolução do seu “Eu” e produzir um escape de si. Em meio ao seu balanço, não obstante os tantos sofrimentos e as angústias vivenciadas, Montaigne chega a uma lição valorosa, qual seja: “o que quer que eu aceite com desagrado me prejudica, e nada que faça com vontade e alegria me prejudica; nunca sofro dano por ato que me tenha sido prazeroso” (MONTAIGNE, 2009, p. 455). Fabular, tanto em Montaigne quanto em Deleuze, significa, portanto, essa entrega ao contingencial, ao mundo em sua absurdidade, buscando extrair forças capazes de potencializar nosso viver. Essa, talvez, seja a principal razão de ser da cultura ensaística. Em um mundo ansioso em descobrir alguns alicerces seguros para salvaguardar a supremacia racional do homem europeu, alguns simplesmente aceitam o contingencial e a ele se entregam com volúpia. Experimentam o mundo, fabulam. Ensaiam, pois.
Considerações finais: combates
Christy Wampole (2018), pesquisadora interessada em apreender as mudanças culturais processadas na virada para o século XXI, aponta a emergência de um movimento denominado por ela de ensaificação de tudo. O mundo social e político, na concepção da pensadora, viu-se dominado por um dogmatismo tacanho na aurora do novo século. Cada vez mais, em sua concepção, as opiniões expressas nos periódicos, bem como nos artigos produzidos nas academias, apresentam uma visão hermética de mundo, fechada em seus próprios valores e devaneios. Como reação a essa estrutura dogmática que dominou as nossas vidas, retomou-se a cultura ensaística como uma maneira de trazer o “espírito do ensaio a todos os aspectos da vida como uma resistência à zelosa limitação das cabeças fechadas” (WAMPOLE, 2018, p. 243). Encontramos essa mesma defesa, com matizes um pouco diferentes, nos textos de Freire (2020) e Rodríguez (2012) citados em nossa introdução.
Surpreende constatar, nesses autores, como a cultura ensaística surge desacreditada, como uma reação ao dogmatismo reinante no mundo. De fato, quando do surgimento dessa cultura, ela buscou se contrapor ao cartesianismo vigente, mas não de maneira reativa e sim afirmando o próprio trabalho do pensamento, se entregando — como Montaigne e outros o fizeram — aos movimentos da vida e, dessa entrega, fabulando outros possíveis. A escrita ensaística, nesse diapasão do ensaísmo acadêmico, não passa de uma ferramenta apropriada em um combate maior: contra o dogmatismo (WAMPOLE, 2018), contra o produtivismo (FREIRE, 2020), ou ainda contra o caráter insosso dos nossos escritos (RODRÍGUEZ, 2012). Nessa guerra, na qual já se sabe de antemão de qual lado se situa o pensar mais liberto ou criativo, abre-se um vão entre aquilo que se escreve e aquilo que se pensa. A escrita, nesse diapasão, surge prenhe de significados construídos de véspera, afoita, e adentra um combate frontal entre uma boa escrita e uma má escrita. Ora, pode-se indagar, não é possível ser de outro modo? Talvez não, as coisas estão configuradas desse modo e uma batalha, vez ou outra, pode soar como algo benfazejo, capaz de arejar os ares. Mas, se seguirmos Deleuze (DELEUZE; PARNET, 2004), não basta ficarmos apenas nesse exercício belicoso. A guerra serve para produzir deslocamentos, apenas.
É esse outro tom, mais deleuziano, impresso em “Short scenes: a escrita acadêmica como combate” (COSTA; COSTA, 2019), no qual a escrita é vista como movimento, e não como uma arma a ser usada em um combate mortífero contra cadeias de pensamento dogmáticos. Se há uma guerra, ela é pontual e efêmera, serve apenas para produzir um escape e permitir ao escrevente construir alguma outra coisa, inventar outros espaços nos quais o pensamento possa seguir cursos inéditos. Espaços não configurados de véspera, espaços nos quais é possível pensar, mas, como nota Anelice Ribetto (2016), enlouquecer ou delirar. Uma escrita preocupada em trabalhar com a experiência, por meio de uma entrega vital, capaz de possibilitar a explosão dos sentidos e a criação de uma outra língua. Uma escrita, pois, preocupada com a afirmação de uma poética mais do que com a destruição de um outro modo expressivo. Uma poética expressa naquilo que Sandra Corazza (2013, p. 34-35) denominou de pesquisa do acontecimento, preocupada em resgatar um “processo de artistagem inventiva da Educação”.
Alinhando-se a certa veia fabulatória, comum tanto à cultura ensaística quanto a Deleuze, a poética proposta por esses trabalhos compreende que fabular implica produzir um movimento tríplice: em primeiro lugar, elaborar um diagnóstico crítico das forças atuais responsáveis por organizar o presente, dizendo aquilo que podemos ou não pensar e viver; posteriormente, uma articulação com forças outras, virtuais, aquelas potencialmente capazes de produzir uma reconfiguração do aqui e agora; e, por fim, a criação de um universo apto a produzir deslocamentos e permitir a erupção do novo. Uma poética, portanto, interessada em criar pesquisas-experimentos, voltadas para um povo pensante ainda por ser inventado. Uma poética para quem pouco interessa a destruição desse mundo, pelo contrário. É dos escombros desse mundo que pode surgir o novo, por isso o pesquisador-poeta acredita nesse mundo e a ele se entrega, experimentando-o. Uma poética, ainda, que compreende a força fabulatória do ensaio em seu mais elevado grau, apostando, por meio do gesto ensaístico, em recolher pequenos fragmentos dispersos para, com eles, construir outros possíveis e experimentar outras formas expressivas. É Bense quem melhor define essa profissão de fé do ensaísta ao afirmar:
O ensaísta é um combinador que cria incansavelmente novas configurações ao redor de um objeto dado. Tudo o que se encontra nas proximidades do objeto pode ser incluído na combinação e, por essa via, criar uma configuração nova das coisas. Transformar a configuração em que o objeto se dá a nós, esse é o sentido do experimento ensaístico; e a razão de ser do ensaio consiste menos em encontrar uma definição reveladora do objeto e mais em adicionar contextos e configurações em que ele possa se inserir. (BENSE, 2018, p. 121).
Nesse diapasão, a experimentação empreendida por um pesquisador soaria, assim, como uma criação artística única e individual, um ensaio como um universo novo, devendo ser avaliada por aquilo que ela fomenta. Como arte composicional, apenas uma poética pode conferir significados outros ao espaço do vivido, dando movimento ao pensamento tal como sugere a cultura ensaística. A poética, tal qual o ensaio, cria mundos ainda não configurados. Por esse motivo, na produção educacional deleuziana e deleuzo-guattariana, a cultura ensaística e a poética se confundem. Ambas fabulam, buscando fomentar outras experiências e construir outros mundos.