Introdução
A intersecção entre o dilatado universo da educação e as relações étnico-raciais tem-se mostrado, particularmente no Brasil, bastante promissora, sobretudo após a promulgação da Lei No 10.639, de 9 de janeiro de 2003 (BRASIL, 2003, 2004), que veio dar novo impulso às pesquisas acerca da participação da população afrodescendente na sociedade brasileira, fazendo, entre avanços e retrocessos, com que o tema entrasse na agenda política do país e se tornasse um dos assuntos mais debatidos ultimamente, muito em razão de sua capilaridade com outros temas afins, como o racismo, a discriminação, a inclusão social e educacional e o empoderamento da população negra. Ao aplicarmos a essa questão princípios e conceitos das epistemologias insurgentes de caráter contra hegemônico, trazendo essa reflexão para o campo da educação, partimos do confronto entre a herança de subalternização das minorias étnicas às ideologias eurocêntricas - que se traduzem, entre outras coisas, na colonialidade do poder, do saber e do ser (MALDONADO-TORRES, 2007; MIGNOLO, 2004; QUIJANO, 2005) - e as formas de resistência e superação das situações de opressão, vivenciadas pelos afrodescendentes e pelas demais populações oprimidas por motivos étnicos, com o objetivo de não apenas refletir acerca das interações entre a educação e outras áreas do conhecimento, mas sobretudo de inserir o binômio educação-relações étnico-raciais na complexa malha teórica das Epistemologias do Sul (SANTOS, 2007; SANTOS; MENESES, 2010), a fim de depreendermos, dessas correlações, um arquétipo de tensões entre uma práxis eurocêntrica e uma práxis afrocêntrica.
O presente artigo busca discutir exatamente a intersecção entre as aludidas práxis euro e afrocêntrica, no domínio teórico das epistemologias contra hegemônicas, inserindo-a, além disso e na medida do possível, no contexto educacional brasileiro, a fim de observarmos não somente o alcance do que acabamos de chamar, aqui, de racismo institucionalizado, mas também os desdobramentos práticos e simbólicos de uma ação e um discurso educativos pautados em processos diversos de silenciamento e invisibilização do próprio racismo, o que certamente resulta, entre outras coisas, em sua inaceitável naturalização.
Educação afrocentrada e pedagogia decolonial
É possível decolonizar o currículo escolar e, consequentemente, promover um movimento mais amplo, no sentido de decolonizar a própria educação? Embora a pergunta pareça pretensiosa, ela precisa não apenas ser feita, mas refletida, sob pena de adotarmos a mesma perspectiva fragmentada que se tem criticado, ao se analisar a educação contemporânea, aceitando, passivamente, os princípios reprodutivos que orientam a própria sociedade (MÉSZÁROS, 2008). Por isso, pensar em termos de um currículo decolonizado é valorizar, antes de tudo, a interculturalidade - sobretudo em contraste com a noção de interdisciplinaridade (TAVARES, 2016) -, em uma acepção ampla do termo, em outras palavras, como um intercâmbio cultural que busca “[...] romper con la historia hegemónica de una cultura dominante y otras subordinadas y, de esa manera, reforzar las identidades tradicionalmente excluidas para construir, en la vida cotidiana, una convivencia de respeto y de legitimidad entre todos los grupos de la sociedad” (WALSH, 2005, p. 8).
Com efeito, com o processo de “modernização” das sociedades ocidentais, o currículo e suas teorias conheceram um movimento amplo de revisão de seus pressupostos e métodos, passando - ou, ao menos, devendo passar, como já se disse uma vez (GOODSON, 2007) - de um modelo prescrito para um modelo em que se valorize mais as identidades narrativas, que se vinculam a modos de aprendizagem mais dinâmicos, mas sem que isso represente mera transferência de um modelo, necessitando-se, portanto, graduar essa transferência por meio de noções como as de hibridização cultural (que articula modelos externos e diferentes tradições, interrompendo hierarquias estabelecidas) e de cosmopolitismo (que pressupõe uma pluralidade de culturas, marcada pela diversidade, evitando a homogeneização) (MOREIRA, 2009). Há, portanto, de ressaltarmos que o currículo é, sobretudo, uma construção social (GOODSON, 2002), particularmente sujeito a um complexo processo de seleção e de hierarquização (SILVA, 2001), carregando em si “[...] os traços das disputas por predomínio cultural, das negociações em torno das representações dos diferentes grupos e das diferentes tradições culturais, das lutas entre, de um lado, saberes oficiais, dominantes e, de outro, saberes subordinados, relegados, desprezados” (SILVA, 2006, p. 22).
Considerando os fatos acima referidos, nossa tese é a de que - no contexto de tensão racial próprio da sociedade brasileira contemporânea e de naturalização do racismo - um currículo decolonizado começa por ser, antes de mais nada, um currículo afrocentrado. Por isso, retomando a ideia presente do título deste artigo, é possível compreendermos a educação afrocentrada - a partir das considerações acerca do currículo, mas não apenas sob esse prisma - como uma pedagogia decolonial e, consequentemente, como estratégia de adoção de uma educação antirracista.
O conceito de pedagogia decolonial tem sido bastante estudado e utilizado nos últimos anos, sobretudo por pesquisadores latino-americanos, em cuja produção essa ideia parece ter se desenvolvido em mais larga escala e profundidade. Surgido a partir da dicotomia conceitual colonialidade/decolonialidade, marco de uma virada epistêmica que surge como resultado do processo de colonização moderno, a pedagogia decolonial diz respeito, como lembram Catherine Walsh, Luiz Oliveira e Vera Candau (2018), a uma intervenção política e pedagógica que resulta de um trabalho de politização da ação pedagógica:
Essa pedagogia [a pedagogia decolonial] se opera além dos sistemas educativos (escolas e universidades), ela convoca os conhecimentos subordinados pela colonialidade do poder e do saber, dialoga com as experiências críticas e políticas que se conectam com as ações transformadoras dos movimentos sociais, é enraizada nas lutas e práxis de povos colonizados e é pensada como e a partir de condições dos colonizados pela modernidade ocidental. (WALSH; OLIVEIRA; CANDAU, 2018, p. 5).
Essa prática pedagógica - que não está desvinculada do projeto de uma educação antirracista (OLIVEIRA; CANDAU, 2010) - tem origens diversas, mas certamente busca inspiração fundamental na pedagogia crítica de Paulo Freire (MOTA NETO, 2018), valorizando culturas historicamente silenciadas, em uma singular vinculação entre os saberes curriculares fundamentais e a experiência social do aluno (FREIRE, 2009), e objetivando a formação de “sociedades realmente plurales y equitativas” (WALSH, 2005, p. 23).
E o que dizer acerca do que chamamos, aqui, de educação afrocentrada e sua relação com a pedagogia decolonial, mediada pela admissão de um currículo afrocentrado? A “educação afrocêntrica” (Afrocentric education), tal como tem sido defendida e veiculada por uma parcela da intelectualidade norte-americana nas últimas décadas, não tem ainda grande afluxo no Brasil. Seu principal porta-voz, o professor afro-americano Molefi Asante, da Temple University (Filadélfia) e fundador do Institute for Afrocentric Studies, tem sido pródigo na defesa do que considera uma verdadeira Teoria da Afrocentricidade, por meio de publicações que - embora ainda sem tradução no Brasil - têm causado significativa discussão nos meios acadêmicos (ASANTE, 1990, 1998, 2003).
Em seu mais recente livro - Revolutionary Pedagogy. Primer for Teachers of Black Children (2017) -, por exemplo, Asante propõe discutir, como o próprio título sugere, uma concepção relativamente singular de pedagogia revolucionária, considerando-na uma prática educacional voltada para a centralidade e a valorização de referenciais culturais próprios dos estudantes afrodescendentes, em um diálogo amplo e contínuo com a diversidade contemporânea, sendo seu locus de realização mais apropriado - de acordo com a proposta de uma “ideia afrocêntrica” (Afrocentric idea) - a escola frequentada majoritariamente por crianças negras. Com o adensamento dos movimentos negros nos Estados Unidos, a partir dos anos de 1960, e com a difusão de uma ideologia radicalmente favorável ao legado cultural africano, o conceito de Afrocentricidade - e outros similares e complementares, geralmente anteriores a ele, servindo-lhe de embrião - ganha, sobretudo a partir dos anos de 1980 e de 1990, mais densidade, em especial ao ser aplicado ao contexto da aprendizagem, em seus diversos níveis de escolarização (WIGGAN, 2010). Assim, da negritude de Aimé Césaire e do pan-africanismo de Du Bois e Garvey, nos anos de 1960, à própria Afrocentricidade de Karenga e Obenga nos anos de 1980 (RABAKA, 2009), um longo caminho foi traçado, não sem a colaboração imprescindível de outros intelectuais “orgânicos” da diáspora africana ou não, como Cheikh Anta Diop, Franz Fanon, Amilcar Cabral, Martin Luther King e outros. Desse modo, pode-se dizer que muitas das ideias que atualmente são consideradas afrocêntricas já existiam - embora não com esse nome - na passagem do século XIX para o XX, época que assinala o auge do colonialismo europeu na África e a prevalência das teorias raciais “científicas” e deterministas, além de marcar, nos Estados Unidos, o ápice da discriminação e perseguição aos afrodescendentes (BRACEY JR.; MEIER, 1994).
Podemos dizer que são duas as matrizes epistemológicas que atuaram como base de sustentação cognitiva do conceito de Afrocentricidade aplicado à educação: a matriz dos Estudos Africanos (African Studies) e a matriz do Multiculturalismo (Multiculturalism). Da primeira provém, em um âmbito geral, o interesse pela revisão do legado africano para a cultura e história universal; da segunda, a luta pela adoção de uma perspectiva culturalmente pluralista. Aplicadas à educação, essas duas matrizes resultaram na proposta de uma lógica educacional em que tanto a cultura material (artes e artefatos, organização social etc.) e espiritual (psicologia, identidade etc.) africanas quanto as relações étnico-raciais atuariam como núcleo da prática pedagógica.
No Brasil, uma versão dos African Studies ganhou adeptos nas últimas décadas, resultando nos chamados Estudos Afro-Brasileiros, abordagem que busca resgatar a cultura e a história africana, sobretudo em suas múltiplas relações com a realidade brasileira. Sua intenção precípua seria, portanto, nas palavras de uma estudiosa do assunto, o “[...] reconhecimento e [a] valorização das culturas de origem africana e das histórias dos africanos do Continente e da Diáspora, o que se configura na adoção de perspectivas próprias dessas culturas e histórias” (GONÇALVES E SILVA, 2010, p. 37). Já sobre o multiculturalism, cumpre destacarmos a necessidade de práticas sociais voltadas à valorização da diversidade, conceito que acaba incidindo sobre todos os âmbitos da sociedade, como se verifica na promoção, impulsionada por alguns intelectuais brasileiros, de uma “educação multicultural”, que pressupõe, evidentemente, modos de atuação diversos, em um constante diálogo com a sociedade, no sentido deliberado de desfazer preconceitos, promover a igualdade de oportunidades e adotar políticas de valorização de culturas historicamente marginalizadas. Trata-se, em outras palavras, do indispensável resgate da memória étnica - ligada, entre outras coisas, aos temas da identidade racial e diversidade cultural -, como sugere Kabengele Munanga (2004), para quem a educação multicultural representa, no plano prático, o resgate da memória e, consequentemente, da plenitude histórico-social do negro. Para o autor,
[...] qualquer que seja sua forma, o multiculturalismo está relacionado com a política das diferenças e com o surgimento das lutas sociais contra as sociedades racistas, sexistas e classistas. Por isso, a discussão sobre multiculturalismo deve levar em conta os temas da identidade racial e da diversidade cultural para a formação da cidadania como pedagogia anti-racista. (MUNANGA. 2004, p. 346).
A partir dessas duas matrizes epistemológicas, portanto, forjou-se o conceito de Afrocentricidade, que, imediatamente aplicado ao plano da educação, revelou-se particularmente produtivo e, em muitos aspectos, inovador.
A primeira questão que se coloca, na exposição/discussão do assunto, é justamente a diferença - segundo seus teóricos - entre a Afrocentricidade (Afrocentricity) e a Africanidade (Africanity).1 Nesse sentido, diferentemente da primeira - que, aliás, em nenhuma hipótese deve ser confundida com as teorias biológicas deterministas, relacionadas à cor da pele -, a africanidade seria uma forma de os africanos viverem de acordo com costumes e tradições africanas, sem que, necessariamente, manifestem uma revolucionária consciência de pertencimento à cultura africana. Segundo Fay (2010),
[…] to be afrocentric one has to have a self-conscious awareness of the need for centering. Thus, those individuals who live in Africa and recognize the decentering of their minds because of European colonization may self-consciously choose to be demonstratively in tune whith their own agency. If so, this becomes a revolutionary act of will that cannot be achieved merely by wearing African clothes or having an African name.2 (FAY, 2010, p. 67).
Outro aspecto relevante da Afrocentricidade, talvez um dos mais importantes, refere-se à relação entre centramento e descentramento, relação já subentendida na citação anterior: trata-se, em poucas palavras, da necessidade, que se projeta ao afrodescendente e à cultura africana, de se afirmar como centro da prática pedagógica. Nesse sentido, defende-se uma inapelável inversão da posição que o estudante afrodescendente ocupa na dinâmica escolar, desfazendo a histórica condição de subalternidade a que o negro está submetido, em uma cultura eurocêntrica. Embora especificamente dirigidas ao alunado afro-americano, as palavras com que Molefi Asante expõe a relação sujeito-objeto na prática escolar, alertando-nos para a necessidade de mudança dessa situação, assentam-se perfeitamente à realidade brasileira:
[…] by seeing themselves as the subject rather than the objects of education - be the discipline biology, medicine, literature, or social studies - African American students come to see themselves not merely as seekers of knowledge but as integral participants in it. Because all content areas are adaptable to an Afrocentric approach, African American students can be made to see themselves as centered in the reality of any discipline.3 (ASANTE, 1991a, p. 171).
Colocar o africano/afrodescendente como agente da história, uma vez que nos últimos 500 anos eles estiveram à margem da história social, cultural, econômica e religiosa, no mundo ocidental, torna-se, assim, um dos princípios básicos da teoria e da prática afrocêntricas. Além disso, há de considerarmos que o desconhecimento do legado cultural africano leva os próprios afrodescendentes a assumirem atitudes discriminatórias e posturas capazes de diminuir dramaticamente sua autoestima, pois
[…] afrocentricity as a theory of change intends to re-locate the African person as subject, thus destroying the notion of being objects in the Western project of domination. As a pan-African idea, Afrocentricity becomes the key to the proper education of children and the essence of an African cultural revival and, indeed, survival.4 (ASANTE, 2010, p. 1).
A perspectiva da valorização da autoestima do negro, em geral muito baixa - às vezes, pela própria falta de uma consciência de seu valor diante da cultura do outro, como, aliás, já denunciara Franz Fanon (2005) -, relaciona-se à ideia de lugar, fundamental para a teoria da Afrocentricidade, na medida em que se localizar no lugar da abordagem afrocentrada não pressupõe uma condição essencialista de afrodescendência (já que nem todo afrodescendente se posiciona neste lugar), mas uma consciência crítica da condição de descentramento da cultura africana e a utilização de métodos e critérios seguros na abordagem afrocentrada (NASCIMENTO, 2009).
Dessa perspectiva resulta o projeto afrocentrado, como sugerimos antes, de promover um deslocamento na tradicional relação entre afrocentrismo e eurocentrismo na cultura ocidental. Esse é, aliás, um assunto há muito denunciado pelos pensadores da cultura, inserindo-se na ampla discussão - agora retomada pelos estudiosos do pós-colonialismo (HALL, 2003) - acerca do imperialismo colonial de que foram vítimas os continentes africano, americano e asiático. Para Paulo Freire (1977), por exemplo, que procurou aliar questões de educação e de colonialismo, a educação colonial, que os países imperialistas da Europa impuseram ao continente africano, tinha como um dos principais objetivos a desafricanização dos nativos. Sendo uma educação de poucos e para poucos, revelava-se seletiva, excludente e discriminadora,
[...] reproduzindo, como não podia deixar de ser, a ideologia colonialista, [a educação colonial] procurava incutir nas crianças e nos jovens o perfil que deles fazia aquela ideologia. O de seres inferiores, incapazes, cuja única salvação estaria em tornar-se “brancos” ou “pretos de alma branca”. Daí o descaso que essa escola necessariamente teria de ter por tudo o que dissesse de perto aos nacionais, chamados de “nativos”. Mais do que descaso, a negação de tudo o que fosse representação mais autêntica da forma de ser dos nacionais: sua história, sua cultura, sua língua. (FREIRE, 1977, p. 21).
Ao contrário dessa visão excludente, discriminatória e preconceituosa que a cultura eurocêntrica tradicionalmente manifestou - no âmbito do empreendimento colonialista - em relação ao continente africano e a tudo o que lhe dizia respeito, a Afrocentricidade é, ainda nas palavras de Molefi Asante (2009, p. 93), um tipo de pensamento e de prática que percebe os africanos como “[...] sujeitos e agentes de fenômenos atuando sobre sua própria imagem cultural e de acordo com seus próprios interesses humanos”. Nesse sentido e considerando que, historicamente, os africanos têm sido colocados à margem da experiência cultural do Ocidente, a Afrocentricidade surge como um processo de conscientização política que busca recentralizá-los, percebendo o mundo sob sua ótica, defendendo seus valores como parte de um projeto humano e cultural e deslocando a discussão sobre o assunto do âmbito do essencialismo (a pessoa é ou não é africana) para o âmbito do perspectivismo (como e/ou onde a pessoa se localiza diante da cultura africana). Sem querer polarizar maniqueistamente o tema, a Afrocentricidade propõe, sobretudo, a convivência pacífica e colaborativa entre as culturas diversas, rompendo assim com projetos hegemônicos e, via de regra, discriminatórios, consequentemente fazendo vigorar o império da reciprocidade cultural. Para Asante (2009),
[...] o afrocentrista sustenta que a cultura européia deve ser vista como estando ao lado, e não acima, das outras culturas da sociedade. A liga que mantém unida a sociedade não pode ser a aceitação forçada da hegemonia, mas antes a aceitação discutida de valores, ícones, símbolos e instituições similares que têm sido empregados no melhor interesse de todas as pessoas [...]. A reciprocidade é o marco dessa nova aventura intelectual e política, já que ninguém fica para trás nem fora da arena. (ASANTE, 2009, p. 108).
Já se disse uma vez que uma proposta de educação afrocentrada deve assentar-se na história, na filosofia, na sociologia e na psicologia dos povos africanos, advogando valores e ideias africanas, que se devem expressar no currículo escolar, isto é, na adoção de um currículo que “[...] favoreça a diversidade etnicorracial e contribua na desconstrução de desigualdades sociorraciais” (SANTOS JÚNIOR, 2010, p. 13). E essa é uma discussão que não está alheia à - pelo contrário, encontra-se no cerne da - dicotomia afrocentrismo/eurocentrismo. De fato, quando analisamos de perto a questão curricular na escola brasileira, percebemos o quanto ela ainda mantém seu ranço etnocêntrico, desconsiderando nossa realidade multirracial e pluriétnica e mantendo em seus currículos a matriz europeia. Seja no ensino de história (XAVIER; DORNELLES, 2009) ou no de literatura (COSTA, 2012); seja em Brasília (LIMA; SOUSA, 2014), em São Paulo (BERNARDO; MACIEL; FIGUEIREDO, 2017) ou em Pretória (MAKRINIUS; REBEL, 2009); seja na escola básica (LIMA, 2015) ou no ensino universitário (CRUZ, 2005); o fato é que nossa matriz curricular continua sendo eurocentrada, apesar da diversidade de culturas, de etnias, de idiomas, de mundividências, de religiões, de subjetividades e de classes sociais que compõe a “nação” brasileira.
Daí a necessidade de um projeto pedagógico que altere essa lógica, inclua o “outro”, combata a discriminação racial e afronte o etnocentrismo, o que pode ser feito, entre outras coisas, pela efetiva inserção em nosso currículo escolar da temática da história e cultura africana e afro-brasileira (COSTA, 2010). Essa é uma questão, antes de mais nada, de inclusão escolar, que se dá, evidentemente, por meio do material didático e das relações interpessoais, mas especialmente - no caso específico que estamos estudando - por meio do currículo (CAVALLEIRO, 2005; MUNANGA, 2009). Por isso, reiteramos, a necessidade de um currículo que contemple “[...] as diferentes identidades presentes na escola brasileira” (PRAXEDES; PRAXEDES, 2014, p. 63) e atue como um instrumento capaz de “dar voz aos excluídos” (CAPRINI, 2016, p. 18).
Uma das maneiras de se alcançar esses objetivos é, em nossa opinião, a adoção de um currículo afrocentrado, como forma não apenas de corrigir um erro que tem sido historicamente perpetuado, mas também como um modo de contemplar nossa diversidade étnico-racial, sem nos sujeitarmos às mistificações de uma falsa democracia racial nem às injunções de políticas públicas anódinas, mas atingindo diretamente o problema da falta de representatividade da cultura negra na escola. E a proposta de uma educação baseada na Afrocentric Idea de Molefi Asante parece-nos uma alternativa especialmente viável para a realidade brasileira.
Uma ideia fundamental de Asante (1991a), ao relacionar, em suas obras, os conceitos de educação e Afrocentricidade é a de que esta última se afirma como uma teoria “[…] against racism, ignorance, and monoethnic hegemony in the curriculum”5 (ASANTE, 1991a, p. 11, grifo nosso). Com efeito, como lembra Cynthia Cornelius (2014), considerando que, por séculos, a hegemonia eurocêntrica nos Estados Unidos (e no Brasil) perpetuou a ideologia da cultura dominante, que, entre outras coisas, disseminou a ideia de inferioridade dos africanos e afro-americanos (e dos afro-brasileiros), não era de se espantar que os currículos refletissem tal distorção, levando esses alunos a se perceberem a partir de uma imagem distorcida que se têm deles, pautada na figura do branco. A resposta para essa situação seria, segundo a mesma autora, a adoção da ideologia da Afrocentricidade no ambiente escolar.
Para Asante (1991b), esse é um ponto fulcral da Afrocentricidade, na medida em que defende, sistematicamente, a centralidade dos africanos e de sua cultura - nos termos do autor, “Afrocentricity is the belief in the centrality of Africans”6 (ASANTE, 1991b, p. 6) -, vinculada ao combate à “Eurocentric racial hegemony” (ASANTE, 2014, p. 1). Esse princípio da ideologia da Afrocentralidade resulta, no final das contas, de uma conjuntura bastante específica, a saber: a existência de um Sistema Cultural Africano (African Cultural System) que une diversas experiências ao redor do mundo e que - ao invés de se apoiar em um essencialismo de fundo biológico - baseia-se na história, na educação e nas experiência de cada um: “[...] unless they are off-center, mis-educated, de-centered or culturally insane, most African people participate in the African Cultural System, although it is modified according to specific histories and nations”7 (ASANTE, 2003, p. 5).
Para nosso propósito, interessa a afirmação - criticada pelo pensador afro-americano - do negro como alguém destituído de educação; ao contrário, o “povo africano” compartilharia de um conhecimento ancestral próprio de sua comunidade, seja ela diaspórica ou não. Daí o vínculo que faz Asante entre processos educativos diversos e as categorias de atuação (African agency) (ASANTE, 1998) e de posição (African location) - esta última sem prescindir de um movimento de conscientização (ASANTE, 2007) -, responsáveis pela valorização, centralidade e autoafirmação da comunidade negra e afrodescendente, categorias que se constituem como decurso da educação afrocêntrica, isto é, de um “[...] process in education that seeks to locate or relocate African people and phenomena within the context of African historical and cultural agency”8 (ASANTE, 2017, p. 20, grifos nossos). Para Monteiro-Ferreira (2014), trata-se, em última instância, de um processo que se afirma não apenas como uma perspectiva de alternativa contra-hegemônica (nonhegemonic alternative perspective), diante da soberania epistêmica europeia, mas, sobretudo, como um paradigma epistemológico holístico (holistic epistemological paradigma), na medida em que busca conciliar - na afirmação de uma posição/atuação dos povos africanos - a cosmologia, a ontologia e a ética africanas.
Daí, finalmente, ser possível falarmos em termos de uma abordagem metodológica afrocêntrica (Afrocentric method), de natureza holística e integrativa (ASANTE, 1990), no intuito não apenas de compreendermos a dinâmica da cultura africana, mas também de perpetuá-la por meio de um amplo, profundo e revolucionário processo educacional.
Considerações finais
Em geral, quando há alguma rejeição do conceito de Afrocentricidade (e de tudo o que ele representa), ela decorre de um desconhecimento que advém não apenas de uma lógica excludente, mas também de uma compreensão um tanto obtusa de seus pressupostos teóricos e práticos. Boa parte dessa atitude que, embora se afirme como uma espécie de racionalidade, parece nascer antes de um posicionamento inconsciente, na medida em que assume como perspectiva analítica da cultura africana o que podemos chamar de razão exótica: o “outro” não é compreendido em sua profundidade e diversidade, sendo, desse modo, rejeitado a priori. Essa é, em suma, a essência do preconceito, que, a rigor, se traduz como adoção - deliberada ou não - de um pré-julgamento. Trata-se de uma postura epistemológica - a qual, aliás, não dispensa boa dose de subjetividade, no mau sentido da palavra - que carrega em seu cerne não apenas uma predisposição discriminatória, mas, sobretudo, uma percepção autocentrada da realidade exterior. Em outras palavras, a rejeição apriorística da noção de Afrocentricidade e seus necessários desdobramentos em vários campos do saber nascem, basicamente, de uma racionalidade hegemônica, monoétnica e unidirecional.
No final das contas, entra em jogo uma oposição explícita entre os conceitos de etnocentrismo, de um lado, e de plurietnicidade, de outro. Nesse contexto, educar para uma sociedade pluriétnica - em última instância, o propósito final da prática pedagógica afrocentrada - passar pela disposição política de fomentar práticas sociais voltadas para a convivência plena dos cidadãos; de incentivar programas de inclusão socioeducacional; de desenvolver políticas de reparação, por meio de ações afirmativas diversas; de valorizar o patrimônio histórico-cultural das etnias marginalizadas; enfim, de implementar ações que, superando os preconceitos historicamente forjados e as discriminações tradicionalmente toleradas, resgatem a autoestima, o universo simbólico, a cidadania e a identidade racial das comunidades que compõem a sociedade brasileira, particularmente os afrodescendentes. Como afirma Maria José Silva (1999, p. 141), “[...] ao se falar em educação, não se pode ter em vista apenas a escolarização, mas também o preparo para a tolerância e da diversidade, fundamental para uma sociedade com pluralidade étnica”.
A melhor maneira de se alcançar esse objetivo, nos limites do que vimos discutindo até aqui, seria lutar - no plano da educação brasileira e, particularmente, no agenciamento de um currículo escolar pautado em uma prática pedagógica democrática - por uma estrutura social não hierárquica, o que ultrapassa, com efeito, o âmbito meramente educacional.
A adoção da afrocentricidade como princípio norteador da estrutura curricular no Ensino Fundamental e no Ensino Médio - mas também no Ensino Superior - deve pautar-se em dois fundamentos epistemológicos: um fundamento cognoscivo, em que o conhecimento teórico da cultura africana seja valorizado como instrumento direcionado à assunção de uma identidade anti-hegemônica; um fundamento praxiológico, em que - como consequência da assunção identitária - se alcance uma intervenção na prática educacional e na atuação pedagógica. Todo esse movimento só adquire sentido ao assumir-se um compromisso com a descentralização dos currículos escolares, no sentido de torná-los, a um só tempo, menos etnocêntricos e, consequentemente, mais híbridos e críticos. Esse descentramento curricular não prevê, simplesmente, a substituição de uma hegemonia por uma contra-hegemonia que, com o passar do tempo, corre o risco de tornar-se, ela própria, uma nova razão hegemônica. A defesa do princípio da Afrocentricidade nos currículos escolares passa, ao contrário, pelo reconhecimento da diversidade, que deveria ser a base conceitual, mas também empírica, da realidade educacional brasileira, em especial em uma realidade que tem na cultura um de seus conceitos rizomáticos. Sem ser uma panaceia para todos os males da educação - simbólicos e/ou reais, representados e/ou concretizados nos discursos pedagógicos -, o princípio da Afrocentricidade afirma-se como um movimento em direção à transformação do real, sobretudo em épocas de globalização excludente, de espetacularização do cotidiano e de aviltamento da ética.
Como lembra Asante (2017, p. 88), uma pedagogia revolucionária pressupõe, entre outras coisas, uma mudança na concepção da natureza dos objetivos educacionais em nossa sociedade, devendo, portanto, desafiar a visão educacional perpetrada pelo racismo, defender os estudantes do auto-ódio e desempenhar um papel de apoio à agência dos que foram marginalizados pelo sistema educacional. Isso revela, entre outras coisas, o aspecto político da educação, sobretudo em tempos de tentativa de despolitização da escola.
Any idea that education is neutral is nothing more than political posturing. All education is political and has lifestyle and policy implications. In a revolutionary pedagogy we seek to expose all myths of education neutrality promoted by those who control the reins of power. In effect, a revolutionary pedagogy is subversive to the oppressive curriculum that is meant to mold the minds of children to be consumers, clients, and victims.9 (ASANTE, 2017, p. 88)
É precisamente nesse papel de descolonização das mentes, que se dá, no contexto aqui exposto, por meio de processos educacionais, que a educação afrocentrada, manifesta na proposição de um currículo afrocentrado, se expressa como uma autêntica pedagogia decolonial. Por meio dela, promove-se uma série de correções e de reparações, que vão dos já citados epistemicídio e naturalização do preconceito racial até o apagamento simbólico das culturas ancestrais e a assimetria estrutural as relações raciais no Brasil, sem nos esquecermos da invisibilização da temática étnico-racial entre nós, o que faz da sociedade brasileira uma das mais permeáveis aos processos de estigmatização por meio de traços fenotípicos e rácicos. A resistência a essa ordem perversa - como, de resto, a qualquer regime de violação da própria condição humana -, todos sabemos onde principia... Como diz Ernesto Sabato (2000, p. 76), “[…] la búsqueda de una vida más humana debe comenzar por la educación”.