Introdução
As políticas públicas específicas para a região de fronteira representam um fenômeno recente no meio educacional e foram decorrentes da criação do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) em 1991 e, sobretudo, do Setor Educacional do Mercosul (SEM) no âmbito dos países membros do referido bloco.
As regiões fronteiriças na América Latina, historicamente, não figuram como pautas das agendas das políticas públicas, com exeção da segurança nacional. Essas condições, segundo Gadelha e Costa (2007, p. 215) faz com que nessas regiões sejam identificadas uma precarização das atividades econômicas, sociais, culturais e educacionais. Logo, “esse território se caracteriza por condições de cidadania bastante adversas”, o que demanda ações pactuadas entre os países.
Nessa perspectiva, o presente artigo apresenta-se como um recorte da pesquisa de doutoramento sobre umas das políticas públicas voltadas para educação na região de fronteira, o Programa Escolas Interculturais de Fronteira (PEIF) na região entre o Brasil e o Paraguai (BUENO, 2019). Esse trabalho permitiu constatar que a maioria das produções relacionadas ao PEIF origina-se dos campos da linguística, geografia e história, sendo poucas e até raras as exclusivas da área da educação. Essa realidade reforça a necessidade de estudos no campo da educação sobre os desafios da formação e gestão educacional na região de fronteira.
Diante do exposto, o artigo tem como objetivo analisar PEIF como uma política para a integração regional do Mercosul a partir da realidade de Brasil e Paraguai no período de 2012 à 2015. Para tanto, mediante abordagem qualitativa, foi realizada uma pesquisa bibliográfica, documental e em campo. As fontes documentais consistiram nos Planos de Ação instituídos pelo SEM e as produções normativas que regulamentaram o PEIF. Para a coleta de dados em campo, optou-se por realizar entrevistas semi-estruturadas com os ex-coordenadores do PEIF no âmbito do Ministério da Educação (MEC) e da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) para compreender o processo de integração regional, construção da identidade fronteiriça e desenvolvimento da interculturalidade da política em questão. As entrevistas semi-estruturadas ocorreram no segundo semestre do ano de 2018.
Portanto, este artigo propõe analisar a política de integração regional por meio do PEIF. Trata-se de uma política pública que tinha como prerrogativa a intenção de ser materializada como uma ação supranacional pelo Mercosul, uma vez que um dos seus objetivos consiste na promoção da aproximação entre países fronteiriços tendo a educação como um instrumento de processo integrador entre as nações pertencentes ao referido bloco.
Globalização e a integração regional: as relações estabelecidas para a constituição do Mercosul
O processo de globalização representou uma maior proximidade entre as nações promovendo, assim, a integração regional entre países com interesses comuns. A aproximação, inicialmente, buscava o desenvolvimento econômico, mas se estendeu para as demais áreas com perspectivas de incremento no orçamento e nas relações diplomáticas estabelecidas entre as nações.
Para Dale (2010), a globalização significa uma coisa nova, distinta e diferente do que já havia sido feito e isso evidencia que o mundo estava em transformação e visava minimizar distâncias e promover o desenvolvimento econômico das nações. Essa situação foi desenvolvida durante o período de Guerra Fria3 e foi acelerada com a transformação do socialismo em um movimento de desenvolvimento e expansão.
De acordo com Mariano et al (2015, p. 36), a integração regional relaciona-se aos discursos governamentais que ressaltam a relevância do conceito de pertencimento à região para a construção de um futuro comum, bem como a superação de desafios em cada país envolvido nesse processo. Os autores então avaliam que integrar países que possuem interesses afins simboliza superar possíveis desavenças e valorizar seus bens, assim como serviços, pois “utilizar esses instrumentos regionais como importantes mecanismos de inserção internacional e de adequação ao sistema internacional, marcado pela globalização”, garantindo, desse modo, a competitividade internacional.
Draibe (2007) destaca que o grande passo no processo de integração regional foi dado quando os países selaram o compromisso de integrar valores do Estado de Direito, da democracia e dos direitos humanos, de forma mais ampla ao modelo estabelecido meramente para o desenvolvimento econômico regional. Essa percepção é pautada pela justiça e pela equidade social. No entender de Souza (2017), a formação dos blocos marcou a nova ordem mundial a partir de meados do século XX, o que fez emergir a multipolarização, ou seja, a ramificação do poder entre os países.
Ao direcionar a organização dos blocos para a América do Sul, pode-se citar a criação do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) em 1991 por meio da assinatura do Tratado de Assunção, que tinha a intenção de promover o desenvolvimento econômico com a livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos entre os países membros, em princípio: Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. O Tratado de Assunção foi sancionado no Brasil pelo Decreto n. 350/1991 enfatiza em seu artigo n. 01:
A coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais entre os Estados Partes de comércio exterior, agrícola, industrial, fiscal, monetária, cambial e de capitais, de serviços, alfandegárias, de transporte e comunicações e outras que se acordem, a fim de assegurar condições adequadas de concorrência entre os Estados Partes, e, o compromisso dos Estados Partes de harmonizar suas legislações, nas áreas pertinentes, para lograr o fortalecimento do processo de integração. (BRASIL, 1991).
Dessa forma, a integração entre as nações transcendeu as vias econômicas e chegou a educação com a criação, no âmbito do Mercosul, do Setor Educacional do Mercosul (SEM), que tinha a missão de integrar as nações por meio de ações que buscassem uma aproximação educacional entre os países do bloco. Como afirma Pereira (2016, p. 102):
O espanhol, o português e o guarani são línguas oficiais dos Estados-Nação que compõem a América do Sul, mas na região transfronteiriça são línguas em contato em que há alternâncias nos usos de ambos os códigos com propósitos comunicativos e identitários. É possível encontrar frequentemente na fronteira, ainda, fenômenos de mescla linguística e de empréstimos em uma ou outra direção.
Essa situação evidencia o interesse no âmbito institucional do Mercosul de buscar estabelecer relações para além de acordos econômicas e comerciais, elegendo a educação como catalizador dos processos formativos que contemplem a diversidade cultural e linguística que permeiam as nações do bloco. Sendo assim, o processo de integração regional educacional apresentou-se emergente, no qual a língua maior se consitituiu um dos primeiros desafios a ser superado no processo intercultural em que os países do bloco se propuseram ao instituir o Setor Educacional do Mercosul (SEM), como uma alternativa para promover a integração regional por meio da educação e cultura, principalmente, nas fronteiras brasileiras.
A constituição do Setor Educacional do Mercosul (SEM) e suas relações com os Planos de Ação
O início das negociações para a criação do Mercosul também tinha a educação em pauta de discussão, já que era considerada “como instrumento central para a superação das disparidades regionais, a consolidação da democracia, o desenvolvimento econômico e social e a integração regional” (ANDRÉS, 2010, p. 7). Sendo assim, além de se garantir a integração regional, econômica e social dos países do Cone Sul, também se almejava o desenvolvimento educacional de cada região.
As negociações entre os responsáveis pela educação de cada nação tiveram início ainda na década de 1990. Tanto que, em dezembro de 1991, o Conselho do Mercosul criou o órgão chamado Reunião dos Ministros de Educação (RME) dos países integrantes do grupo. Esse órgão é, até os dias atuais, o responsável por todas as decisões do setor educacional do bloco, tendo por missão definir planos e programas que orientem a definição de políticas e estratégias comuns para o desenvolvimento educativo regional. A partir daí acordos educacionais foram firmados (ANDRÉS, 2010).
Para Cristofoli (2010), a Comissão de Ministros do Setor se tornou órgão máximo e tinha como principal missão propor medidas que fossem necessárias para a coordenação das políticas educacionais entre as nações parte. Nesse quesito, Alvares (2015, p. 77) enfatiza que “desde a constituição do Setor Educacional do Mercosul, na medida em que se implementam planos, ações e metas, tem havido uma convergência para a implementação de políticas de regionalização”. Sendo assim, a instauração do SEM no âmbito do RME trouxe um direcionamento para o Mercosul e a possibilidade de promover a integração regional por meio da educação.
Nesta perspectiva, um dos principais atos normativos do SEM constitui nos Planos de Ação, que são instrumento de planejamento de políticas públicas educacionais entre os países que compõe o bloco. Souza (2017) registra que os primeiros planos tiiveram uma duração de três a quatro anos, cada um com vistas a nortear as ações do Setor atentando para os acordos internacionais firmados. A partir dos anos 2000, os planos passaram a ter a vigência de 5 anos. Dessa forma, os planos do SEM se constituíram nos seguintes períodos: 1º Plano Trienal 1992-1994, que foi prorrogado até 1998, 2° Plano Trienal 1998/2000, 3º Plano de Trabalho (2001-2005), 4º (2006-2010), 5° (2011-2015) e 6° (2016-2020).
Nesse sentido, apresenta-se o primeiro Plano Trienal implementado em junho de 1992. Com a duração prevista para dois anos e prorrogado até 1998 por ratificação definida entre os ministros de educação por meio do Protocolo de Ouro Preto4, o documento representou um importante passo na integração regional entre os países do bloco, por meio dos programas e subprogramas que o integram (SOUZA, 2017).
Em 1996, durante a RME, aprovou-se o “Plano Mercosul 2000: desafios e metas para o setor educacional”, que respaldava as ações do Setor na área educacional definindo prioridades para destinação de recursos e de esforços conjuntos no período compreendido entre 1997 e 2000 (ANDRÉS, 2010). Já o Plano Trienal (1998-2000) incorporou áreas de ação presentes no documento Mercosul 2000 e instituiu as metas e as estratégias de ação para o desenvolvimento de projetos e de programas.
O documento foi instituído para orientar o trabalho do SEM e definir as áreas prioritárias de atuação do Setor. Para tanto, destacou a preocupação com a qualidade da aprendizagem nos países e, por isso, se propôs incorporar a perspectiva regional à cultura das instituições com a finalidade de promover a integração. Estabeleceu-se, também, a necessidade de parâmetros regionais na prática pedagógica buscando facilitar o reconhecimento dos estudos e a identificação das áreas de excelência em momentos de avaliação (SOUZA, 2017).
A partir do ano de 2001, os Planos do SEM deixaram de ser trienais e passaram a ter vigência de cinco anos. Sendo assim, os governos de países pertencentes ao Mercosul, por meio de seus ministros de educação, aprovaram na RME em Assunção no Paraguai um Plano de Ação do Setor para 2001-2005 e, também, teve a aprovação do Chile e Bolívia, países associados ao bloco. Esse Plano avançou na sensibilização para a aprendizagem dos idiomas oficiais entre os países latino-americanos (MERCOSUL, 2001).
Já o Plano de Trabalho do SEM (2006-2010) teve como estratégia principal a contribuição com a integração regional por meio da criação e da execução de políticas educacionais que promovessem a cidadania, a cultura da paz e o respeito à democracia (MERCOSUL, 2006). Em consonância com o Plano anterior, o quinto Plano de Trabalho do SEM (2011-2015) também é bem sistematizado. Inicialmente, apresenta um panorama da conjuntura internacional em que bloco está inserido, detalhando as mudanças sofridas com as relações políticas, comerciais e financeiras ocasionadas com a crise de econômica de 2008. Essa crise apresentou seus reflexos no mercado globalizado e abriu precedentes para a ascensão de países como Brasil, Rússia, Índia, China e Africa do Sul (MERCOSUL, 2011).
Por fim, o Plano de Ação (2016-2020), que está em vigência, salienta como prioridades e objetivos as proposições relacionadas ao intercâmbio de experiências socioeducativas na primeira infância, que enfatizam a necessidade de promover investigações científicas que levem a publicação e propagação do conhecimento; da qualificação profissional de competências para a vinculação ao mundo do trabalho e o apoio a criação de desenvolvimento de redes para a formação de professores e troca de experiências inovadoras (MERCOSUL, 2016).
Observa-se que os Planos caminharam, timidamente no plano político-normativo, para o processo de integração regional por meio da educação. Esta realidade tem por objetivo melhorar a qualidade da educação dos países do Mercosul e, dessa forma, assegurar maior capilaridade no processo de integração regional. No âmbito das metas de quase todos os Planos de ação do SEM, evidencia-se a sinalização para a necessidade de políticas voltadas para as especificidades da educação no âmbito das fronteiras entre os países. Um dos projetos que visou assegurar essa demanda foi o Programa Escolas Interculturais de Fronteira (PEIF).
O Programa Escolas Interculturais de Fronteira (PEIF) como uma política de integração regional por meio da educação na fronteira do Brasil com o Paraguai
O PEIF tinha em sua essência os princípios presentes, inicialmente, no Protocolo de Intenções firmado em 1991, o qual visava contribuir no setor educacional para alcançar objetivos políticos de integração no âmbito do Mercosul e, posteriormente, na Declaração de Brasília5 firmada em 2003, bem como nos Planos de Ação do SEM que compreendiam que as escolas da fronteira deveriam ser intituladas como escolas interculturais. Para tanto, todas as ações do Programa teve como foco o ensino bilíngue.
Cabe salientar que o PEIF tem como objetivo central, de acordo com o Artigo 1º, “[...] contribuir para a formação integral do alunado, buscando desenvolver ações com vistas à integração regional por meio da educação intercultural nas escolas públicas de fronteira [...] (BRASIL, 2012). O programa propõe mudanças no ambiente educativo, ou seja, almeja adequar o processo de ensino à realidade peculiar de fronteira com a ampliação da oferta de saberes, métodos, processos e conteúdos educacionais. Para isso, o PEIF previa que o Projeto Político Pedagógico (PPP) de cada escola participante fosse alterado para contemplar a metodologia do Ensino Via Projetos de Aprendizagem (EPA). Prática prevista na escola reflexiva por meio da aprendizagem significativa proposta por David P. Ausubel6 (ALARCÃO, 2001). Este era a condição apresentada pelo PEIF para adesão de uma escola ao Programa.
Ao considerar o ensino em dois idiomas, espanhol e português, o PEIF apresenta três princípios básicos que o distinguem das demais formações de professores em serviço, a começar pelo trabalho intercultural a ser delineado nas escolas, conforme previsto na Portaria n.º 798, de 19 de junho de 2012:
[...] I - Interculturalidade, que reconhece fronteiras como loci de diversidade e que valora positivamente as diversas culturas formadoras do Mercosul, promovendo a cultura da paz, o conhecimento mútuo e a convivencialidade dos cidadãos dos diversos países-membros. Esta convivencialidade se realiza com a atuação conjunta de docentes dos dois países em cada uma das Escolas Interculturais (princípio do cruze), gêmeas ou próximas. (BRASIL, 2012).
Torchi e Silva (2016) evidenciam que dentro do PEIF a diversidade cultural deve ser entendida e valorizada para que a comunidade escolar compreenda a riqueza da presença de uma segunda língua em seu cotidiano. Assim, o trabalho com a interculturalidade se torna relevante por respeitar as diferenças e promover os encontros culturais.
A LDB n.º 9.394/96, em consonância com o previsto na Constituição Federal Brasileira de 1988, no Artigo 210, relata que serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais (BRASIL, 1996). Nessa vertente, a proposta pedagógica das escolas brasileiras envolvidas com o PEIF necessitavam realizar adequações para contemplar as alterações previstas durante a execução do Programa, mas sem perder de vista o expresso na LDB.
O termo “escola-gêmea”, presente na Portaria que regulamenta o PEIF, se aplica às cidades situadas no perímetro de 150 quilômetros dos perímetros entre os países, que são considerados faixas de fronteiras. Para conceituar o termo “faixa de fronteira ou fronteiriça”, recorre-se ao Plano de Desenvolvimento e Integração da Faixa de Fronteira (MS):
Histórica e politicamente constituída, a Faixa de Fronteira, é normatizada pela Constituição Federal, a qual delimita a extensão de 150 km de largura, paralela à linha divisória terrestre brasileira. Correspondente a 27% do território nacional, compreende 588 municípios, distribuídos em 11 Unidades da Federação: Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraná, Rio Grande do Sul, Rondônia, Roraima e Santa Catarina. Do ponto de vista populacional, registra-se o número de aproximadamente dez milhões de habitantes nessa área. (MATO GROSSO DO SUL, 2012, p. 08).
Sobre as formas de financiamento do Programa no Brasil, Lorenzoni (2013) salienta que o PEIF era custeado com recursos da Lei Orçamentária Anual (LOA) e com bolsas de pesquisa para os professores e para os gestores das escolas participantes. A partir do ano de 2014, a proposta de expansão do Programa tinha como prioridade a adesão das escolas participantes do Programa Mais Educação (PME)7 e Ensino Médio Inovador8 e, por isso, também escolas municipais passaram a integrar a formação. Torchi e Silva (2016) relatam que para a escola fronteiriça aderir ao programa se fez necessário uma inscrição on-line no sistema do Ministério da Educação (MEC).
Quanto ao custeio para a execução do PEIF nas escolas, Borges (2014) lembra que as escolas que aderiram ao Programa Mais Educação receberam um recurso adicional do Programa Dinheiro Direto nas Escolas (PDDE) vinculado ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) subordinado ao MEC e a universidade, para promover a formação do PEIF e desenvolver ações que qualificassem a formação integral dos alunos no âmbito escolar. Cabe informar que, no caso dessa pesquisa, a universidade responsável pela formação continuada foi a Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
O PEIF previa, em sua estrutura organizacional, formação para os professores universitários, que seriam os multiplicadores em cada estado participante do Programa, capacitando-os a levar a formação continuada aos docentes da educação básica de cada município que realizou a adesão ao PEIF. De acordo com a Portaria n.º 798/2012, Artigo 8º, cabe às universidades capacitar os educadores para atuar no Programa.
A relação estabelecida entre o MEC, as universidades e as escolas se configura em um regime de colaboração e de parceria, pois o Governo Federal estava representado em cada cidade situada na faixa de fronteira ou fronteiriça por meio de uma universidade federal, que realizava as formações continuadas com os professores atuantes nas escolas participantes do PEIF.
O PEIF, em sua essência, previa a integração do MEC por meio das universidades, das escolas e dos professores, em que a proposta da Portaria n.º 798/2012 objetivava uma formação continuada com a qual o professor fronteiriço tivesse a oportunidade de rever a sua prática e a sua postura em sala de aula frente à realidade peculiar da fronteira.
Na fronteira do Brasil com o Paraguai, realidade dessa pesquisa, duas universidades se responsabilizaram pela formação continuada aos professores, a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) da região sul do Mato Grosso do Sul, conforme quadro abaixo:
Município | Classificação | Países Fronteiriços | Universidade Formadora |
---|---|---|---|
Amambai | Linha de Fronteira | Paraguai | UFGD |
Aral Moreira | Linha de Fronteira | Paraguai | UFGD |
Bela Vista | Cidade-Gêmea | Paraguai | UFMS |
Coronel Sapucaia | Linha de Fronteira | Paraguai | UFGD |
Corumbá | Cidade-Gêmea | Bolívia | UFMS |
Mundo Novo | Cidade-Gêmea | Paraguai | UFGD |
Paranhos | Cidade-Gêmea | Paraguai | UFGD |
Ponta Porã | Cidade-Gêmea | Paraguai | UFGD |
Fonte: Bueno (2019).
Contudo, a seleção das ações da UFGD para o propósito dessa pesquisa se deu, pois essa instituição de ensino superior federal possuía o maior número de municípios sob a sua responsabilidade na região. Dentre os municípios apresentados no Quadro 1, apenas uma escola em Ponta Porã aderiu ao Programa preenchendo os pré-requisitos necessários e estabelecidos pelo PEIF. Por este motivo, entrevistou-se a ex-coordenadora do PEIF/UFGD - Torchi (2018) e o ex-coordenador do PEIF/MEC - Silva (2018). Os dados coletados a partir desse instrumento de pesquisa serão apresentados a seguir.
É importante registrar que o PEIF teve a durabilidade entre 2012 a 2015. O pouco tempo de vigência do programa é um importante sinalizador dos obstáculos presentes na pactuação de políticas educacionais entre os países da América do Sul, em especial, do Mercosul. Esse quadro demonstra um grave entrave para a consolidação da integração regional do bloco, uma vez que, segundo Catani (2000, p. 56), a educação tem ocupado papel relevante nas estratégias de desenvolvimento dos países, “[...] tornando-os mais competitivos frente aos desafios do processo de globalização/regionalização, bem como, fortalecimento dos laços culturais e sociais entre os países envolvidos para a construção de uma transnação”.
O PEIF e o processo de integração regional
O desenvolvimento do PEIF como uma política específica para a região de fronteira veio para trazer a oportunidade de construção da identidade fronteiriça no âmbito dos países do Mercosul. Draibe (2007, p. 178, grifos da autora) corrobora que era de interesse dos países membros do Mercosul “adotar uma estratégia institucional da integração social por meio de políticas sociais unificadas”.
Logo, o PEIF trouxe uma oportunidade de aproximação entre o Brasil e o Paraguai não apenas no campo econômico, comercial e político, mas, também, pela educação. O Programa obteve pontos positivos durante a sua execução, como evidencia Silva (2018):
[...] a questão da construção da identidade, um ponto forte. Nós tivemos em algumas fronteiras estudantes que participaram do PEIF, inclusive desde o início e que prestaram vestibular para em outro, para o País vizinho e conseguiram, foram muito bem recebidas, por terem participado de uma escola até então chamada bilíngue. (SILVA, 2018).
Silva (2018) evidencia outro ponto positivo que relaciona-se ao intercâmbio entre as escolas participantes do PEIF pelas fronteiras brasileiras: “eu acho que a integração, com outras fronteiras também, nós sempre procuramos colocar as escolas em contato umas com as outras”. A realização de eventos, encontros entre as escolas brasileiras participantes do PEIF, promovidos pela Coordenação do PEIF no MEC, para trocas de experiências e realidades simbolizou um enriquecimento cultural e pedagógico aos envolvidos. Contudo, cabe salientar que na fronteira do Brasil com o Paraguai, durante a vigência do PEIF, não houve cruce.
Para Torchi (2018), os pontos positivos ou avanços alcançados com o PEIF na fronteira com o Paraguai apresentaram uma preocupação que é específica dessa região fronteiriça.
[...] uma coisa é você trabalhar teoricamente com a fronteira, outra coisa é você trabalhar na fronteira, estar na fronteira, viver a fronteira. A fronteira é um lugar muito diferenciado, muito especial, os entre-cruzamentos interculturais acontecem o tempo todo, eles não são pacíficos. (TORCHI, 2018).
Nesse sentido, para Torchi (2018), o programa vem também a refletir as questões da interculturalidade que para ela, nessa região, é crítica e complexa. Diante desse panorama dado pela entrevistada, algumas questões ainda requerem estudo, representando um obstáculo a ser superado, tais como a seguinte problematização apontada: “a interculturalidade, que é a base desse programa, é uma vivência diária, é viver com as diferenças interculturais, por isso do inter trânsito, do transitar entre culturas diariamente”.
O PEIF também apresentou pontos negativos, que podem servir para avaliar a eficácia dessa política nas fronteiras brasileiras e desenvolver as primeiras conclusões acerca do seu impacto no cenário educacional brasileiro. Dentre os pontos nefrálgicos, Silva (2018) cita em primeiro lugar a descontinuidade do Programa após sua desvinculação do MEC. “A questão da política pública no território, eu sinto muito não ter se consolidado, em muitas fronteiras isso não ter avançado, porque não tinha recurso e nem acompanhamento do MEC”. Ele destacou que em muitas fronteiras não houve o entendimento de que se tratava de uma política de território e não de uma política pública educacional.
Outro ponto considerado como limitador por Silva (2018) respalda-se na falta de comprometimento dos gestores do Mercosul para acompanhar o desenvolvimento do PEIF nas fronteiras:
A falta de acompanhamento do grupo de trabalho do Mercosul também, porque a gente ficava definindo diretrizes, prazos, metas, tem os planos do Mercosul, do Setor Educacional do Mercosul, mas o Mercosul mesmo, os gestores do Mercosul não iam mesmo ao território, ficava só naquelas reuniões semestrais. Eu chegava lá e dava um balanço, e eles acreditavam, e os outros países também, dava um balanço e acreditavam. (SILVA, 2018).
Essa falta de comunicação impediu o sucesso do Programa em todas as fronteiras participantes. Percebeu-se que houve fatores, além dos geográficos, que contribuíram para o enfraquecimento do PEIF como uma política para a fronteira. Inclusive, dentro do próprio Mercosul, mais especificamente do SEM, pois não perfez sua função de monitoar, avaliar e solicitar o cumprimento do acordo entre os países membros.
Já Torchi (2018) relatou como aspecto desafiador a falta de consciência identitária entre os sujeitos envolvidos. “Falta de consciência [...] do próprio profissional que estava na área de educação e na fronteira, a falta de consciência de que a fronteira é um lugar diferenciado e de que ele tem que se adaptar neste lugar diferenciado”.
Essa situação traz a reflexão, mais uma vez, de que o processo de integração educacional entre os países esbarra em situações adversas, como a incompreensão pelos envolvidos locais do objetivo do PEIF. Isso pode levar a dificuldades na execução e ocasionar o insucesso do Programa em sua prática. No entanto, essa é uma situação que, na fronteira do sul do Mato Grosso do Sul com o Paraguai, não se confirmou em sua integralidade, uma vez que para Torchi (2018), o PEIF alcançou objetivos:
[...] 100% não, porque um projeto que termina, digamos assim, na metade, não tem como atingir 100%. Nós, o que nós fizemos, nós terminamos o levantamento sociolinguístico, estávamos entrando no processo de aprimorar a qualificação, íamos fazer o cruce, o projeto acabou. (TORCHI, 2018).
A entrevistada enfatiza que o levantamento sociolinguístico foi concluído e que estava na etapa de consolidação das escolas-espelho para realizar o cruce, mas o Programa foi descontinuado em 2015. Essa evidência sinaliza para uma inconsistência nas ações governamentais, pois não foi informado oficialmente o encerramento do PEIF. Destaca-se que a finalização do Programa não veio por meio da revogação da Portaria n.º 798/2012, nem por outro documento oficial, apenas houve o corte dos recursos financeiros ao PEIF. Ademais, os obstáculos com a execução do PEIF vão além, como constatados por Silva (2018), ao ser questionado sobre o assunto:
Não basta uma escola querer, não basta uma universidade assessorar, o município, ou no caso as escolas estaduais, o Estado, precisava se comprometer com o programa. E também fazer articulação com o país vizinho na mesma estrutura: escola, província e ministério. [...] Então, por exemplo, aconteceu muito nas reuniões do Mercosul, da gente sentar na mesa pra fazer um balanço do programa e pra traçar ações, com o Ministério por exemplo da Argentina, e aí quando, só que quem era responsável e implementava o programa era a província, que tem status de Ministério, é assim, eles tem função independentes, autônomas. Mas a hora de falar sobre o programa vinha uma pessoa do Ministério da Educação da Argentina, e a gente não falava com quem de fato estava implementando o Programa. Então esse desafio político eu acho que foi o principal deles, tanto pra criar o programa quanto pela sua manutenção (SILVA, 2018).
Percebe-se que a falta de comunicação adequada com os demais países dificultou o sucesso do PEIF como uma política de integração regional no Brasil. Ele acrescentou: “fez com que ele (PEIF) não fosse uma política de nação”. Já em países como Argentina e Uruguai houve um comprometimento político maior e o Programa recebeu uma boa repercussão”.
O fator desafiador exposto por Silva (2018) paira na questão do financiamento do PEIF, enfatizando o que havia dito anteriormente, mas de outro ângulo, considerando a dificuldade na logística de desenvolvimento do PEIF na prática.
Não tem como negar que a questão financeira também é, porque até pra pagar o cruce dos docentes, eu sei que muitas escolas tiraram do próprio bolso, diretora, coordenadora, professoras, tiravam do seu bolso pra poder alugar van, carro, ônibus, enfim, dependendo da fronteira. Então eu acho que o financeiro também contribuiu (SILVA, 2018).
Apesar do esforço para o estabelecimento de parcerias no PEIF para, assim, promover o fortalecimento do Programa, não houve adesão da maioria dos setores procurados, como esclarece Silva (2018): “[...] mas não consegui, não consegui transformar numa política mais ampla com outros setores. Uma pena, eu acho que faltou tempo, porque eu acho que uma política pública ela demora pra ser entendida e pra ser constituída.
Em relação à universidade, questionou-se Torchi (2018) sobre a mobilização da UFGD para a execução do PEIF e como isso ocorreu na prática. Quanto à organização institucional, pode-se afirmar que a equipe de professores formada para atuar na formação continuada para docentes de fronteira se caracteriza pelo caráter interdisciplinar:
Então tinha profissionais desde a área de ciências sociais, área de direito, área de letras, área de biologia, nós tivemos profissionais de diversas áreas, porque a educação na escola, não é uma educação de uma única área, ela precisa dessa interdisciplinaridade. (TORCHI, 2018).
Portanto, houve, no decorrer da execução do PEIF, situações que evidenciaram os pontos assertivos do Programa e outros que apresentaram as negligências, bem como desafios não superados ao longo de sua execução. Esse cenário aponta para as inconsistências do PEIF como uma política educacional integradora na região de fronteira.
As falhas operacionais na execução do PEIF e na formalização do Programa como uma política para a fronteira, mencionada por Lorenzetti e Torquato (2016), bem como a mudança de foco nas associações intergovernamentais apresentadas por Mariano et al. (2015) evidenciam a falta de comprometimento do governo brasileiro com a política supranacional proposta pelo SEM.
Frente ao exposto, evidencia-se a proposta do PEIF como uma importante estratégia para tratar a problemática das especificidades da formação docente para professores que atuam em instituições de ensino na região de fronteira, mas pela morosidade das ações e pela descontinuidade do Programa, não se efetivou como uma política supranacional no âmbito do Mercosul.
Considerações Finais
O PEIF trouxe uma proposta inovadora, enquanto uma política pública específica para a região de fronteira, ao estabelecer parceria entre MEC, as universidades e as escolas na fronteira sul do Mato Grosso do Sul no Brasil com o Paraguai na busca pela integração educacional entre os dois países.
Mas o PEIF propunha a necessidade de alterar a proposta pedagógica de cada escola que aderisse ao Programa, objetivando, desse modo, contemplar a adoção do EPA e da aprendizagem significativa como metodologia de ensino. Nessa vertente, o PEIF como uma política de articulação em busca da integração regional pela educação entre Brasil e Paraguai apesar de tímidos avanços, de um modo geral foi limitado, pois não se efetivou em todas as escolas da fronteira sul mato-grossense.
Os entrevistados evidenciaram que o Programa apresentou lacunas e avanços, dentre as perspectivas evidencia-se a projeção para a realização dos intercâmbios (cruce), uma proposta inovadora para se construir a identidade fronteiriça por meio da interculturalidade. Já os entraves relacionam-se a dificuldade de apresentar as ações do PEIF no âmbito do Mercosul desenvolvidas pelas escolas que realizaram a adesão. Houve, ainda, um grande desafio para a efetiva implementação do PEIF, o financiamento. No âmbito do MEC foram apresentadas dificuldades para se definir a fonte dos recursos a serem destinados ao Programa.
Portanto, no tocante ao aspecto político-normativo, aponta-se a proposta do PEIF como uma importante estratégia para tratar a integração regional no Mercosul, mas a sua implementação no contexto investigado entre Brasil e Paraguai revela-se dados que mostram que a sua efetivação não aconteceu plenamente, sendo que morosidade das ações somadas a descontinuidade do Programa fez com que não se materializa-se uma política educacional integradora na região fronteira.