Introdução
Este texto tem como proposta de investigação a análise da política de bonificação do magistério público do Estado do Acre, no período de 1999 a 2018, instituída no movimento de reformas educacionais levadas a efeito pelos governos da antiga Frente Popular do Acre. Tais reformas funcionam como dispositivo de regulação e accountability, na ótica gerencial, do magistério público estadual, no tocante aos resultados, indicadores educacionais e, principalmente, na política de bonificação dos docentes.
Dessa maneira, o objeto de estudo deste artigo são as reformas do aparelho do Estado desenhadas e implementadas no Acre, na perspectiva de um Estado gerencialista que adquire materialidade através da implementação das políticas de descentralização, de avaliação, responsabilização e de bonificação do magistério. Para efeito de recorte, centra-se a pesquisa na configuração da política de bônus, que se traduz na concessão do Prêmio de Desenvolvimento Profissional (VDP) e do Prêmio de Desenvolvimento da Gestão (VDG), criados nesse contexto e materializados pelo Decreto nº. 4.923/2009, que regulamentou o prêmio de Valorização e Desenvolvimento Profissional (VDP), e Decreto nº. 4.924/2009, pelo qual se implantou o Prêmio de Desenvolvimento da Gestão (VDG), ambos previstos, respectivamente, nos Artigos 23/A e 23/B da Lei nº. 67/2009.
Como procedimento metodológico, a pesquisa adota um enfoque descritivo e analítico. Pode-se caracterizá-la como descritiva porque parte da descrição dos fatos e fenômenos relacionados ao objeto de estudo, ou seja, procura descrever o contexto e as características da política de bônus acreana, utilizando como referência os trabalhos de Afonso (2007; 2012; 2013), Ball (2001; 2002; 2004; 2006; 2007; 2009; 2011), Barroso (2005), Braidi (2018), Cardoso (2019), Lagares; Nardi (2020), Morduchowicz (2017), Passone (2014), Santos et al. (2012) e Xavier Silva (2019).
Utiliza-se o conceito de Ciclo de Políticas (policy circle), como uma ferramenta analítica, pois ela “trata de maneira didática a decomposição proposta por esse ciclo e aborda os três momentos separadamente - formulação, implementação e avaliação – para a análise das políticas públicas” (CAVALCANTI, 2012, p. 17). Ou nas palavras de Silva (2019, p. 26), os “três contextos principais apresentados no ciclo de políticas, a saber: o contexto de influência, o contexto da produção de texto, e o contexto da prática”.
Ainda de acordo com essa primeira autora, o Ciclo de Políticas é “um dispositivo analítico para o estudo de uma dada política, intelectualmente construído, para fins de modelação, ordenamento, explicação e prescrição do policy-making (processos pelos quais as políticas são produzidas) aqui traduzido para “processo de elaboração de política” (CAVALCANTI, 2012, P. 123).
Sobre a abordagem do Ciclo de Políticas, tem-se uma melhor definição na entrevista concedida aos professores Mainardes e Marcondes, em 2007, quando Ball afirma que o
[...] ciclo de políticas é um método. Ele não diz respeito à explicação das políticas. É uma maneira de pesquisar e teorizar as políticas. Algumas pessoas o leram e interpretaram como se eu estivesse descrevendo políticas e os processos de elaborá-las. O ciclo de políticas não tem a intenção de ser uma descrição das políticas, é uma maneira de pensar as políticas e saber como elas são “feitas”, usando alguns conceitos que são diferentes dos tradicionais [...] (MAINARDES; MARCONDES, 2009, p. 304-305).
Ainda na referida entrevista, Ball amplia a compreensão do conceito de Ciclo de Políticas e elucida o passo seguinte, que é o que, até então, chamava-se de implementação, substituindo sua transposição pura e simples para o campo social por um processo mais complexo que ele chama de efetivação através da prática:
O ciclo de políticas não tem a intenção de ser uma descrição das políticas, é uma maneira de pensar as políticas e saber como elas são “feitas”, usando alguns conceitos que são diferentes dos tradicionais como, por exemplo, o de atuação ou encenação (enactment). Quero rejeitar completamente a ideia de que as políticas são implementadas. Eu não acredito que políticas sejam implementadas, pois isso sugere um processo linear pelo qual elas se movimentam em direção à prática de maneira direta. Este é um uso descuidado e impensado do verbo. O processo de traduzir políticas em práticas é extremamente complexo; é uma alternação entre modalidades. A modalidade primária é textual, pois as políticas são escritas, enquanto que a prática é ação, inclui o fazer coisas. Assim, a pessoa que põe em prática as políticas tem que converter/transformar essas duas modalidades, entre a modalidade da palavra escrita e a da ação, e isto é algo difícil e desafiador de se fazer. E o que isto envolve é um processo de atuação, a efetivação da política na prática e através da prática (MAINARDES; MARCONDES, 2009, p.305).
Compreensão análoga encontra-se nas análises de Xavier Silva (2019), à medida que o autor reconhece que o Ciclo de Políticas
Configura-se em um referencial teórico analítico não estático, porém, dinâmico e flexível, onde o cerne da análise de políticas perpassa a formação do discurso da política, assim como perpassa a interpretação da ação dos profissionais atuantes na prática, isto é, como eles se empenham para relacionar os textos da política à prática. Nesse caminho, convém identificar os processos de resistências, acomodações, subterfúgios e conformismos, e a marcação de limites, conflitos e disparidades entre os discursos nessas arenas (XAVIER SILVA, 2019, p. 59).
Nessa perspectiva, procura-se compreender o objeto de estudo, a saber, as reformas educacionais e a política de bonificação financeira do Estado do Acre, tendo como referência as formulações de Passone (2014), quando descreve três passos tomados em avaliações dessa natureza:
Apresentar o material analisado a partir de três eixos, que são indissociáveis do tema nuclear, a saber: a avaliação externa da educação básica, a gestão e as políticas de responsabilização da educação e, por último, os mecanismos de incentivos monetários para professores. Como se sabe, tais eixos estão diretamente relacionados à reforma educacional e revelam o lugar que os profissionais da educação ocupam nesta, ora como vilões, que são chamados à responsabilização, ora como heróis, que merecem ser premiados e gratificados (PASSONE, 2014, p. 4).
Ao analisar os novos mecanismos que se desenvolvem no interior do aparelho estatal e que “produzem ou promovem novos valores, novas relações e novas subjetividades nas arenas da prática”, Ball (2001) faz duas afirmações:
A primeira é que no nível micro, em diferentes Estados Nação, novas tecnologias de políticas têm produzido novas formas de disciplina (novas práticas de trabalho e novas subjetividades de trabalhadores). A segunda é que, no nível macro, em diferentes Estados Nação, estas disciplinas geram uma base para um novo “pacto” entre o Estado e o capital e para novos modos de regulação social que operam no Estado e em organizações privadas (BALL, 2001, p. 103).
Ainda de acordo com Ball (2006), a partir de uma concepção de performatividade como tecnologia, cultura e modos de regulação por parte do Estado, se pode compreender como ela
Permite que o Estado se insira profundamente nas culturas, práticas e subjetividades das instituições do setor público e de seus trabalhadores, sem parecer fazê-lo. Ela (performatividade) muda o que ele “indica”, muda significados, produz novos perfis e garante o “alinhamento”. Ela objetiva e mercantiliza o trabalho do setor público, e o trabalho com conhecimento (knowledge-work) das instituições educativas transforma-se em “resultados”, “níveis de desempenho”, “formas de qualidade”. Os discursos da responsabilidade (accountability), da melhoria, da qualidade e da eficiência que circundam e acompanham essas objetivações, tornam as práticas existentes frágeis e indefensáveis – a mudança torna-se inevitável e irresistível, mais particularmente quando os incentivos estão vinculados às medidas de desempenho (BALL, 2004, p. 1.116).
Esse autor identifica, nas formulações de Bonamino e Souza (2012), três momentos distintos nas políticas avaliativas implementadas no Brasil, mas este texto deter-se-á, especificamente àquilo que ele denomina de terceira geração e que se assemelha bastante às políticas implantadas no Acre, pois
Envolvem consequências institucionais cuja operacionalização implica a adoção de sanções positivas e/ou negativas, como é o caso das políticas de avaliação atreladas a mecanismos de incentivos monetários para os profissionais da educação, conforme os resultados obtidos pelos alunos e pelas escolas. A partir da definição apresentada por Carnoy e Loeb (2002) e Brooke (2006) acerca das consequências das políticas de responsabilização, as pesquisadoras assinalam que a terceira geração de avaliação está associada às chamadas high stakes, ou avaliação de responsabilização forte, em oposição às low stakes, ou responsabilização branda, cujas consequências são simbólicas (PASSONE, 2014, p. 9).
Para Santos Et al. (2013), do modelo de política de bonificação implementado no Acre
Depreende-se que a concepção que a orienta também se dá na perspectiva de responsabilização do professor, promovendo um processo de bonificação que não contribui, explicitamente, para o desenvolvimento da carreira docente. Diferentemente do Amazonas, não se fundamentada nos resultados do desempenho do aluno, apesar da existência do Sistema Estadual de Avaliação da Aprendizagem Escolar – SEAPE, mas no cumprimento de metas estabelecidas pelo sistema estadual (SANTOS Et al., 2013, p.7).
Dentro dessa perspectiva, parte-se do pressuposto de que estudar a educação da Amazônia, em qualquer de suas especificidades, significa reconhecer as condicionantes que um trabalho dessa natureza envolve. Nesse particular, concorda-se com Colares (2011), quando este questiona se
Temos elementos justificadores convincentes no campo acadêmico científico para o uso desta expressão designativa “da Amazônia” em nossas produções? Ou esta expressão tem sido utilizada apenas para legitimar o olhar fragmentado e parcial do objeto (educação), desconsiderando-o como produtos de múltiplas determinações no tempo e no espaço? (COLARES, p. 189, 2011).
Assim, fazendo coro com a posição do referido autor, reitera-se que “há (uma) necessidade permanente de articular o singular e o universal para o melhor entendimento de nosso objeto de estudo”. Em outras palavras, significa dizer que é preciso conectar o tema em questão, a política de bonificação implementada no Estado do Acre, a partir de 2009, com experiências similares que já ocorriam em outros estados da federação. Nas palavras de Colares (2011, p. 190), “para que possamos compreender a educação, faz-se necessário situá-la no interior do movimento histórico da sociedade”.
E é no contexto histórico específico do início dos anos 1980, com os governos neoliberais de Ronald Reagan, nos Estados Unidos da América, e Margareth Thatcher, na Inglaterra, que as propostas que nortearam as reformas da educação brasileira começaram a se espalhar pelos mais diferentes países. É nessa perspectiva que Cóssio; Oliveira e Souza (2014) afirmam que
O setor público brasileiro tem passado, nos últimos anos, por uma reforma estrutural que vem alterando, de forma significativa, as concepções e os objetivos que orientam a máquina estatal. Presencia-se no Brasil a adesão a um formato de gestão adotado pelos países centrais nos últimos 20 anos, que têm por finalidade a reorganização e alteração profunda na cultura organizacional e, por consequência, nos serviços que são desempenhados pelo Estado (CÓSSIO; OLIVEIRA; SOUZA, 2014, p. 141).
Formulação semelhante pode ser observada no trabalho de Cardoso (2019), quando ressalta:
A partir de uma visão geral, é possível enxergar certas semelhanças no que se refere aos princípios que nortearam países como a Inglaterra e os EUA a adotar as políticas de responsabilização educacional com aquilo que vem se tentando fazer no Brasil. Ao que tudo indica existe um parâmetro de cunho predominantemente econômico que permeia a ação dessas nações, o que no Brasil, embora isso não esteja efetivamente explícito já que os mecanismos utilizados não são idênticos, o pano de fundo ao final parece ser o mesmo. Ou seja, a concepção de educação vai perdendo cada dia mais seu valor social, como direito, adquirindo um viés mais utilitarista bem ao modo do proposto pelos empresários da educação (CARDOSO, 2019, p. 33).
De acordo com Freitas (2012), a implementação dessas novas políticas na educação trouxe para o cotidiano das escolas públicas brasileiras expressões como responsabilização, meritocracia e privatização. Essa afirmativa também é defendida por Lagares e Nardi (2020), ao defenderem que,
No Brasil, especificamente a partir dos anos 1990, entraram em cena medidas de accountability na educação básica, identificadas com as atuais políticas de avaliação, prestação de contas e responsabilização. Segundo a argumentação de Brooke (2006, p. 378), referindo-se ao crescente enfoque nos resultados educacionais, nas nações ricas, a exigência por informações a esse respeito “tem sido respondida pela implementação de políticas de accountability, ou seja, de responsabilização [...]”. O autor cita a Inglaterra e os Estados Unidos como exemplos de políticas indutoras de melhorias nos resultados escolares, implementadas nesses países a partir dos anos de 1980, destacando que “há evidência de que a responsabilização vem se disseminando como alternativa de política educacional na Europa e na América Latina” (p. 780) (LAGARES; NARDI, 2020, p. 197).
Para Freitas (2012), as políticas educacionais que têm como foco as avaliações externas e os resultados medidos através de testes padronizados têm inspiração nos chamados reformadores educacionais americanos, os quais, alegando um caos no sistema escolar norte-americano e sua consequente perda de competitividade no cenário internacional, vêm implementando esse modelo nos Estados Unidos da América desde o início da década de 1990.
Inúmeros pesquisadores destacam a nova perspectiva que passou a nortear a gestão pública a partir desse período, como Schneider e Rostirola (2015), que afirmam:
As mudanças no modelo de administração pública repercutiram no setor educacional onde passou-se a defender a necessidade de maior transparência por parte de escolas confluindo para a entrada de processos de avaliação, prestação de contas e responsabilização (accountability) também nesse setor. Como consequência dessas mudanças, o Estado passou a fiscalizar e avaliar os resultados obtidos em testes externos (à escola e ao país) impulsionando uma espécie de competição entre as instâncias sob seu domínio (SCHNEIDER E ROSTIROLA, 2015, p. 495).
De acordo com Oliveira (2015), com a implementação dos princípios da chamada Nova Gestão Pública (NGP) na realidade brasileira, tem-se o seguinte resultado:
A avaliação da aprendizagem, de políticas, programas e ações tem sido defendida pela NGP (Nova Gestão Pública) como elemento central para a promoção e garantia da educação de qualidade. A avaliação passou a constituir-se em um mecanismo central de regulação, fornecendo indicadores que são utilizados nos estabelecimentos de metas de gestão e influenciando sobre o financiamento da unidade escolar e em alguns casos até mesmo na remuneração dos docentes. Além, é claro, de determinar em última instância os currículos (OLIVEIRA, 2015, pp. 639-640).
Em perspectiva similar, Schneider e Rostirola (2015) ampliam esse entendimento quando destacam que
é possível afirmar que as políticas de avaliação implementadas nas últimas três décadas têm sido responsáveis pela adoção de mecanismos de um quase-mercado na educação, a partir dos quais se concretiza a remodelação do papel do Estado na condução das políticas públicas e da atuação das escolas e redes de ensino frente ao processo ensinoaprendizagem. (SCHNEIDER E ROSTIROLA, 2015, p. 494)
É importante ressaltar que uma das características que as reformas educacionais adquiriram no Brasil e que as distinguem daquelas adotadas em muitos outros países foi a do Estado gerencialista, o qual passou da condição de provedor para assumir o status de gerente das políticas, inserindo elementos como a lógica de quase-mercado nas instituições públicas, envolvendo uma combinação entre responsabilidade social e regulação governamental, notadamente, no caso da educação, através das avaliações (LIMA; GANDIN, 2012).
Para Morduchowicz (2003), as experiências com as políticas de bonificação do magistério, atrelando a remuneração dos professores ao pagamento de prêmios ou bônus foram bastante divulgadas durante a década de 1980, com resistências e aceitações, o que, para a compreensão desse tipo de política, é fundamental.
No Brasil, Brooke (2006) esclarece que, a partir da década de 1990, alguns sistemas de ensino no país começaram a implementar seus sistemas de avaliação, momento em que também empreenderam esforços no desenvolvimento de políticas de bonificação do magistério. No estado do Acre, tais políticas se evidenciam a partir da primeira década do século XXI, um pouco tardias, se comparadas a de outros sistemas de ensino no país, porém, articuladas com o movimento de reforma do Estado e da educação. Esse movimento, por sua vez, não deixou de ser influenciado por organismos multilaterais, que atuaram como financiadores desse movimento de modernização, especificamente o Banco Mundial.
Pensando no campo da política educacional, compreende-se que o estudo da política de bonificação implementada no Estado do Acre e materializada nos prêmios VDP e VDG une-se a tantos outros que envolvem a ação dos sujeitos, especialmente daqueles que fazem política e política educacional, dos que executam, no espaço escolar, ações que são planejadas no campo macropolítico.
Sobre a questão, são pertinentes as palavras de Souza (2016):
A discussão sobre as políticas educacionais e os conflitos subjacentes oportuniza e amplia as condições de se avaliar a ação, os produtos e os impactos das políticas educacionais e, especialmente, de se reconhecer que isto tudo tem uma intimidade marcante com a luta pelo poder. Este procedimento insere-se em um campo mais amplo, o qual demanda uma profunda análise da ação governamental em dada área e, para além disso, as relações que se estabelecem entre a ação pública e as demandas sociais, pois o Estado se relaciona/responde à pressão ou à ausência de pressão social. Em outras palavras, o Estado, via de regra, reage às pressões sociais, seja atendendo-as, negociando-as, repelindo-as, absorvendo-as mesmo que parcialmente, etc., mas (re)age em acordo com tais pressões, e isto lhe dá sentido. Assim, é necessário considerar que qualquer política pública não pode ser entendida como iniciativa isolada e unidirecional do Estado ou, ainda menos, do governo [...] (SOUZA, 2016, p. 77).
Depreende-se do exposto que as relações na construção das políticas educacionais são extremamente complexas, não são determinadas por uma única forma de compreender o fenômeno educacional. É justamente nesse contexto que se advoga que a política de bonificação do magistério público da rede estadual do Acre não se construiu a partir de um discurso único, sem conflitos e resistências. Nesse sentido, a formulação e implantação de política de bonificação do magistério, revestida de valorização profissional, como consequência direta das reformas educacionais, pode revelar um projeto de Estado diferente do oficialmente defendido pelas forças políticas que o compõem.
A configuração da política de bonificação no Acre
No caso específico das reformas educacionais implementadas no Acre, observa-se que elas reorganizaram fortemente o aparelho estatal e a gestão da Secretaria de Estado de Educação (SEE) e das escolas. Além disso, resultaram na aprovação do Plano de Cargos Carreiras e Remuneração da Educação - PCCR (Lei Complementar nº 67, de 29 de junho de 1999), que reestruturou toda a carreira dos trabalhadores em educação, na aprovação de uma nova lei de gestão democrática, consubstanciada na Lei de Gestão Democrática (Lei nº. 1.513, de 11 de novembro de 2003), construída sob inspiração de muitos dos conceitos preconizados pelos organismos internacionais e que adotou políticas e formulações nessa perspectiva.
A partir da aprovação da Lei Estadual de Gestão Democrática (Lei nº. 1.513/03), de 11 de novembro de 2003, a gestão das escolas públicas do estado do Acre passou a ser composta por um diretor, auxiliado por um coordenador de ensino e um coordenador administrativo, sendo que os dois últimos são indicados pelo primeiro. O diretor é eleito pela comunidade escolar (professores, funcionários, pais e alunos maiores de 13 anos), após ser aprovado em processo de certificação oferecido pela Secretaria de Estado de Educação (SEE).
Um dos preceitos defendidos pelos reformadores educacionais, sob inspiração da Nova Gestão Pública (NGP) e adotado nas reformas do Acre, consistiu na criação de um programa de autonomia financeira das escolas públicas estaduais, nos moldes do que era executado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), e que foi materializado através do Programa Dinheiro Direto na Escola – PDDE (Lei nº. 1.569, de 23 de junho de 2004).
Outra característica marcante dessas reformas consistiu em um processo de reordenamento das redes públicas de ensino, iniciado em 2001, a partir de uma parceria entre a SEE e a Secretaria Municipal de Educação de Rio Branco (SEME – RB), e que preparou as condições para a formulação da Lei do Sistema Público de Educação (Lei nº 1.694, de 21 de dezembro de 2005). Esse movimento possibilitou que Estado e Município de Rio Branco organizassem a oferta de matrículas nas diferentes regiões da cidade, denominadas, a partir daí, de regionais, ofertando, na mesma área geográfica, vagas da educação infantil ao ensino médio, sem que houvesse a necessidade de deslocamento de crianças e de jovens para escolas localizadas na região central da capital ou em bairros mais distantes de suas residências.
É importante destacar que a construção política do reordenamento de rede se constituiu em uma grande façanha, pois, naquele momento, a Prefeitura de Rio Branco era administrada por uma agremiação política adversária da coligação Frente Popular do Acre e que se encontrava em disputa aberta e radicalizada para as eleições estaduais do ano seguinte, que seriam novamente vencidas pela FPA, dando início a 20 anos de mandatos sucessivos de políticos dessa coligação no Acre.
Sobre o impacto dessas políticas no processo de reordenamento da educação e da política de educação em contexto acreano, as pesquisas de Melo (2010), Damasceno (2010) e Nogueira (2015) ajudam a compreender o contexto político e educacional do período.
Uma análise mais detalhada do modelo de reformas educacionais implementado no Estado do Acre mostra que, embora atendesse a reivindicações históricas dos trabalhadores em educação, como, por exemplo, a formação superior para os que ainda não tinham cursado o ensino superior, estruturação da carreira e um piso salarial superior a muitos estados da federação, além de pesados investimentos nas escolas. Havia, também, por parte da gestão, cobranças no sentido de melhorar os resultados do estado nas avaliações externas realizadas pelo MEC e mesmo pela própria SEE, após a criação do Seape, em 2009.
Esse novo padrão de gerenciamento em vigor no Acre situa-se no marco da chamada segunda geração das reformas do Estado, que se desenvolveram nos anos 90, incorporando novas propostas de gestão pública, como o fortalecimento da capacidade gerencial do Estado, a melhoria da qualidade dos serviços públicos e o fortalecimento da accountability, significando algo como responsabilização com participação, transparência, ou capacidade permanente do agente público de prestar contas de seus atos à sociedade (MELO, 2010).
Nesse aspecto é fundamental compreender a importância dada às políticas de reforma preconizadas por organismos internacionais como o BID e o Banco Mundial, que financiaram investimentos vultosos nos anos de 2002 e 2008, e que foram responsáveis pela reconstrução do ciclo econômico e produtivo que caracterizaram a primeira década de governo do grupo político conhecido como Frente Popular do Acre (MORAIS, 2016).
As análises feitas acerca das políticas educacionais levadas a efeito pelos governos da Frente Popular do Acre possibilitaram destacar que se processou uma política sutil de responsabilização das escolas e de seus trabalhadores. O critério da produtividade no trabalho, existente em outras redes de ensino, também foi implantado como uma alternativa para se promover a aprovação dos alunos, premiando escolas, professores e o Núcleo Gestor, composto pelo Diretor, pelo Coordenador de Ensino e pelo Coordenador Administrativo, que alcançavam e/ou superavam as metas pré-estabelecidas a partir do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), principal referência adotada para aferir os resultados (MELO, 2010).
Cabe ressaltar, também, que as referidas reformas estabelecerem as bases para a organização de um Sistema Público de Educação Básica do Estado do Acre quando da aprovação da Lei nº. 1.694, de 21 de dezembro de 2005 e sua regulamentação pela Lei Complementar nº. 162, de 20 de junho de 2006. No entanto, o sistema não chegou a ser implementado, tendo produzido, na melhor das hipóteses, apenas uma “aproximação” com as prefeituras mais alinhadas politicamente ao grupo político governante, fato que possibilitou um reordenamento de rede entre escolas estaduais e municipais de Rio Branco, por exemplo.
Para Damasceno (2010),
Nos últimos anos o governo vem trabalhando no esforço de implantar o Sistema Estadual de Educação – na tentativa de colocar em prática a Lei nº 1.694/2005 que define as responsabilidades sobre as diferentes etapas/segmentos do ensino, deixando a educação infantil e os anos iniciais do ensino fundamental sob responsabilidade das redes municipais de ensino. Essa medida facilita a implantação de instrumentos de acompanhamento e avaliação do desempenho das escolas e dos programas educacionais destinados aos profissionais da educação visando a garantir o alcance das metas de qualidade de ensino (Cf. Plano Plurianual do Governo do Estado do Acre para o quadriênio 2008-2011) (DAMASCENO, 2010, p. 94).
Essa autora afirma, ainda:
(...) constata-se nesses processos híbridos das reformas educacionais, que, mesmo quando as orientações economicistas são suavizadas nas propostas e projetos de governo de alguns contextos locais, como no caso do Acre, a tendência à valorização da gestão por meio da avaliação externa, cada vez mais se torna uma realidade nos dias de hoje. A adoção de um modelo híbrido que conjuga o controle do Estado com estratégias gerenciais nos processos de reformas e mudanças educacionais, como a descentralização e a autonomia parece ser a característica mais comum das atuais políticas públicas (DAMASCENO, 2010, p. 96).
De acordo com o receituário preconizado pelas políticas reformistas, que tem sua origem no modelo adotado pelo Banco Mundial, ainda no ano de 2009, foi criado o Sistema Estadual de Avaliação da Aprendizagem Escolar (Seape). O passo seguinte consistiu na vinculação dos resultados obtidos nessas avaliações ao pagamento de bonificações aos profissionais da educação no ano de 2015, conforme já descrito em outro marco legal da reforma educacional acreana, os prêmios VDP e VDG.
O pagamento de bonificações aos profissionais da educação acreana se deu a partir da aprovação da Lei complementar nº. 199, de 23 de julho de 2009, que criou o prêmio para os professores:
Art. 10. A Subseção II da Seção VII do Capítulo II da Lei Complementar nº 67, de 1999, passa vigorar acrescida do art. 23-A, com a seguinte redação: “Art. 23-A. Os professores do Quadro de Pessoal da SEE, que estejam em efetiva regência, terão direito ao Prêmio Anual de Valorização e Desenvolvimento Profissional – PAVDP, respeitados os valores máximos estabelecidos no Anexo IV.
Parágrafo único. Os critérios para o recebimento e a forma de pagamento do Prêmio Anual de Valorização e Desenvolvimento Profissional– VDP serão estabelecidos em decreto do Poder Executivo.” (NR)
Art. 11. A Lei Complementar nº 67, 29 de junho de 1999, passa a vigorar acrescida do Anexo IV, na forma do Anexo VI desta lei complementar.
No ano de 2009, foi criado o Prêmio de Valorização e Desenvolvimento da Gestão (VDG) para as equipes gestoras, através da Lei Complementar nº. 304, de 30 de dezembro do referido ano, que determinou o seguinte:
Art. 1º A Lei Complementar nº 67, de 29 de junho de 1999, passa a vigorar acrescida do Art. 23-B:
“Art. 23-B. As equipes gestoras do quadro de pessoal da SEE, que estejam em exercício nas unidades de ensino da rede pública estadual, terão direito ao Prêmio Anual de Valorização e Desenvolvimento da Gestão – PAVDG, respeitados os valores máximos de R$ 4.673,00 (quatro mil, seiscentos e setenta e três reais) para os diretores de escola, R$ 2.600,00 (dois mil e seiscentos reais) para os coordenadores de ensino e R$ 1.200,00 (um mil e duzentos reais) para os coordenadores administrativos, a ser pago em duas parcelas, uma em julho e outra em dezembro.
Parágrafo único. Os critérios para o recebimento e a forma de pagamento do PAVDG serão estabelecidos em decreto do Poder Executivo” (NR).
A criação do Prêmio VDP, com a finalidade de incluir os diretores escolares, parece se inserir na linha de argumentação defendida por Ball (2006), quando este afirma que,
Na educação, o segmento dos diretores de escola é a principal “carreira” em que se dá a incorporação do novo gerencialismo, sendo crucial para a transformação dos regimes organizacionais das escolas (Grace, 1995), isto é, para o desmantelamento dos regimes organizacionais profissionais-burocráticos e sua substituição por regimes empresariaismercadológicos (Clarke and Newman, 1992). Na mudança de concepção, o processo de reforma de relações e práticas da chefia também gera uma profunda mudança de valores e subjetividades das lideranças nas escolas (Ball, 1997b) (BALL, 2006, p. 13).
Braidi (2018), ao analisar a concessão da política de bônus e seus efeitos sobre o trabalho escolar, pondera:
(...) constituiu-se como mecanismo de cooptação dos diretores, enquanto uma força determinante para aceitação do prêmio por parte dos professores, representando o comprometimento da gestão escolar com os objetivos da gestão do sistema. Em uma análise crítica, o prêmio VDG funcionou como uma forma de premiar os “colaboradores” do sistema no processo de consolidação da gestão por resultados. É nesse sentido que também podemos destacar, a despeito da política de bonificação no contexto educacional acriano, que sua extensão às equipes gestoras das escolas configurou uma estratégia da SEE de garantir politicamente sua aceitação e apoio junto ao conjunto de educadores (BRAIDI, 2018, p. 80).
Criados, respectivamente, pelas Leis Complementares nº 199, de 23 de julho de 2009 e nº. 204, de 30 de dezembro do mesmo ano e regulamentadas através dos Decretos nº. 4.923 e nº. 4.924, de 30 de dezembro de 2009, os prêmios VDP e VDG consistem no pagamento de uma bonificação anual para professores regentes e equipes gestoras das escolas (diretores, coordenadores de ensino e administrativos) e são estruturados da seguinte forma: uma parte fixa de 20% e outra parte variável de 80%, a ser paga de acordo com o cumprimento das metas estabelecidas.
No plano das estratégias de regulação, pode-se dizer que a criação dos prêmios de bonificação VDP e VDG foram iniciativas utilizadas pela SEE durante uma negociação salarial, entre os meses de março a maio de 2009, com o Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Acre (Sinteac) e com o atual Sindicato dos Professores da Rede Pública do Estado do Acre (Sinproacre), e visava evitar uma greve por reajuste salarial que se anunciava naquele momento.
Para Verçosa (2016),
Talvez a lógica da premiação, mais ligada aos economistas tenha sido utilizada para definir a legislação relativa ao modelo de premiação da rede estadual de ensino do Acre. O anúncio na legislação da oferta do prêmio anual, de que os profissionais do magistério deverão atingir metas estabelecidas pelas leis que regulamentam esse tipo de prática deu início a um processo conflituoso, haja vista que as relações entre o governo estadual e representantes das categorias SINTEAC e SINPLAC se mostraram, no mínimo, conflituosas, pois tanto a incorporação de novos servidores, quanto o próprio pagamento do VDP foram motivos de muitos debates (VERÇOSA, 2016, p. 178).
Nessa perspectiva, concorda-se com Nogueira (2015), quando ressalta que tanto a implementação do Seape quanto a criação dos prêmios VDP/VDG são formas de
Regulação educacional (que são) um conjunto de medidas acionadas por meio de mecanismos institucionais de controle capazes de acompanhar o funcionamento dos sistemas de ensino. Ao descentralizar suas ações, os órgãos gestores dos sistemas públicos de ensino, por intermédio de autoridade institucional reconhecida, acionam dispositivos de controle formais e informais e desencadeiam processos decisórios e orientadores de ações (NOGUEIRA, 2015, p. 96).
É importante ressaltar que, embora nenhuma das ações descritas tenha sido levada a cabo durante a gestão de Sebastião Viana no governo do Estado (2011-2014 e 2015-2018), foi durante sua gestão que foi produzida a configuração definitiva da política de regulação, expressa através de ações de acountabillity/responsabilização, como na vinculação do pagamento de bonificações aos resultados aferidos pelo Seape.
Considerações finais
Acredita-se que embora a política de bonificação implementada no Acre tenha reflexos no vencimento dos professores e equipes gestoras, ela não se configura, em nenhum momento, como um mecanismo de valorização, pois, embora os valores monetários distribuídos como bonificação sejam consideráveis, isso não significa uma efetiva melhoria na remuneração dos profissionais da educação, uma vez que nem todos são contemplados com os prêmios.
Defende-se que, da forma como a política de bonificação expressa nos prêmios VDP e VDG se apresenta, mostra-se, notadamente, como um instrumento de regulação do trabalho escolar por parte da SEE, no sentido de garantir o cumprimento do calendário escolar, dos conteúdos programáticos determinados, da participação nas formações e encontros pedagógicos, da aprovação das prestações de contas dos recursos recebidos, da atualização dos dados da escola no sistema de gestão da SEE, ao mesmo tempo em que incute uma forte política de accountability/responsabilização nos profissionais quanto ao cumprimento do estabelecido.
Em outras palavras, há a prevalência dos aspectos gerenciais em detrimento dos aspectos pedagógicos e de valorização profissional, mesclados com um forte componente de accountability/responsabilização, que funciona como elemento orientador na definição das políticas públicas para o setor, garantindo, assim, um maior controle/regulação. Dessa forma, os mecanismos de controle e regulação de que o Estado dispõe passam a ser determinantes e facilitam a adoção do princípio da qualidade, um forte componente do discurso neoliberal que mascara a meritocracia subjacente à política de bonificação.