Introdução
“Ainda pagaremos um preço elevado por essa aventura”2.
Esta pesquisa se ocupou da literatura acerca de aspectos considerados problemáticos na EaD, que se afiguram como aspectos que merecem maior atenção em razão da significativa expansão dos cursos EaD em território nacional. Trata-se de uma investigação teórica derivada de pesquisa de revisão bibliográfica. Nossa preocupação inicial consistiu em verificar de que modo temas problemáticos foram analisados nas investigações compreendendo os últimos cinco anos (2017-2021) em periódicos revisados por pares (Portal de Periódicos Capes). Para delimitar nosso conjunto temático, utilizamo-nos dos seguintes descritores: “Educação a distância”, “evasão”, “classes sociais”, “dificuldades”, “desafios”. Foram localizados 485 artigos, dentre os quais, após a leitura do título, selecionamos 25 que atendiam de modo mais específico às expectativas de nossa investigação.
A amostra nos permitiu perceber que, dentre os assuntos mais problemáticos na EaD, destaca-se o fenômeno da evasão como principal preocupação dos pesquisadores em EaD. Por tal razão, optamos por discutir o assunto em artigo específico, dividindo esta investigação em duas partes: de um lado, aprofundando o debate acerca da evasão; e de outro, buscando decifrar aspectos relativos a outro problema de maior relevância entre os assuntos relativos à EaD: os riscos de uma expansão desregulada - objeto deste estudo.
Para o trabalho de análise nos debruçamos mais detidamente sobre cinco artigos que abordaram o problema de modo mais direto. Quatro deles publicados no ano de 2018, e apenas um em 2020. Uma característica presente em todo o panorama de artigos que constitui o escopo desta investigação é o contexto político, marcado pela destituição, por meio do impeachment da presidente Dilma Rousseff, perpetrado em 2016, configurandose como um golpe na democracia brasileira. Neste contexto, e já sob o governo de Michel Temer, sucessor da Dilma, publica-se um decreto3 permitindo a ampliação na oferta do ensino a distância nos anos finais do Ensino Fundamental, em que se verifica a viabilidade para a implementação gradativa desta modalidade, intensificando, assim, ainda mais as oportunidades de negócios para o controle quase absoluto por parte da iniciativa privada. Chama a atenção o caráter intempestivo e autoritário do decreto e a ausência de um amplo debate envolvendo especialistas e a sociedade civil - caraterísticas presentes do período pós-golpe, com a reforma do ensino médio, até a ascensão do governo Bolsonaro, em que pairam inúmeras tentativas de entregar à iniciativa privada4 o controle das Universidades públicas do país. Tal é o contexto da publicação destes artigos, que surgem, por assim dizer, como uma reação do pensamento acadêmico preocupado com tais mudanças no cenário político e educacional.
Seria a expansão desenfreada da EaD uma segunda abolição?
Os sentidos que se ocultam sob o caráter vertiginoso da expansão do ensino via EaD carecem de respostas. Será a expansão a expressão mais bem acabada do ideal republicano, da escola para todos? Ou será a expressão de um projeto de subsolo, intencional, mais próximo ao que, aqui, poderíamos chamar de “segunda abolição”, contrária, portanto, à emancipação do sujeito? Cabe reconhecer, de antemão, que o problema não reside na expansão - obviamente o que se espera das democracias é que todos, de maneira igualitária, possam acessar a educação, o trabalho, e viver de maneira digna - mas no modus operandi como a mesma se instala, reduzindo bruscamente o papel do Estado. Quando falamos em “segunda abolição”, estamos nos referindo à ausência de políticas de inclusão do negro após a Lei Áurea (Lei nº 3.353), de 13 de maio de 1888, que extinguiria a escravidão no Brasil, como se pode ver nesta síntese de Maringoni:
A campanha abolicionista, em fins do século XIX, mobilizou vastos setores da sociedade brasileira. No entanto, passado o 13 de maio de 1888, os negros foram abandonados à própria sorte, sem a realização de reformas que os integrassem socialmente. Por trás disso, havia um projeto de modernização conservadora que não tocou no regime do latifúndio e exacerbou o racismo como forma de discriminação (MARINGONI, 2011, n.p., grifos autor).
Devemos ter claro, por conseguinte, que, do mesmo modo como a abolição não se traduz em libertação do negro, uma vez que sobre este pesava, de modo tão ou mais intenso, o racismo e a exclusão da sociedade, somente o “acesso” à formação de nível superior pode não significar, de modo análogo, a restauração de uma defasagem de proporções históricas. Acesso, sim, mas acesso sem qualidade não indica a correção histórica que se espera, mas o aprofundamento do próprio racismo e exclusão do negro e do pobre. A expansão do ensino a qualquer custo, livre de mecanismos de regulação, aligeirada, técnica, superficial, em nada contribui para a emancipação e inclusão das minorias historicamente excluídas.
Buscando localizar o cerne do problema, recorremos a três pistas que podem estar em seus fundamentos. A primeira é de Marilena Chauí:
(...) quando examinamos as reformas do ensino no Brasil após 68, o papel conferido à segurança nacional (levando à introdução do ensino moral e civismo e da organização e política do Brasil) ao desenvolvimento econômico nacional (levado aos cursos profissionalizantes no ciclo médio, às licenciaturas, curtas ou plenas, em estudos sociais, ciências, comunicação e expressão, e aos convênios empresa/escola), e à modernização da escola (cientifização do ensino, organização burocrático-administrativa da escola, centralização e tutela curricular), notamos a aliança intrínseca entre uma certa concepção da ciência, da tecnologia, da profissionalização e do “progresso” que não só indicam a morte da pedagogia como arte de ensinar, mas revelam também o novo papel conferido à escola: além de reprodutora de ideologia e das relações de classe, está destinada a criar em pouco tempo, a baixo custo e em baixo nível, um exército alfabetizado e letrado de reserva (CHAUÍ, 2002, p. 57, grifos autor).
É notável a atualidade do texto aos nossos dias, considerando que a redação original do mesmo data do ano de 1982, quando sequer existiam cursos na modalidade EaD, ainda mais se considerarmos a associação entre tecnologia, ciência e educação como fatores essenciais não somente do formato EaD, mas também na Base Nacional Comum Curricular, de 2017 - ano subsequente ao golpe - que atribui às tecnologias papel central nas áreas de conhecimento, bem como condiciona a formação do estudante de ensino médio a uma escolha precipitada através da escolha por itinerários formativos. Segundo Furtado e Silva:
O “novo” ensino médio e a oferta por itinerários formativos podem produzir uma variabilidade e instabilidade na forma como as escolas passarão a disponibilizar essa modalidade de ensino, com algumas escolas sendo capazes de oferecer todos os itinerários, outras apenas alguns, ou ainda estabelecimentos que ofertarão somente um. Tal prerrogativa, segundo o nosso ponto de vista, poderá servir de base para o alargamento das desigualdades sociais e escolares (FURTADO; SILVA, 2020, p.163).
Novamente: o problema, deve-se observar, não reside no caráter da tecnologia e muito menos na expansão do ensino enquanto ideal democrático, mas justamente a associação entre o uso das tecnologias como mola propulsora da expansão, por meio do formato EaD, parece ser a combinação perfeita para que as elites sigam reproduzindo uma estrutura de reprodução de seus interesses por meio de uma “segunda abolição” das condições que ainda assolam o negro e o pobre. A tecnologia ligada ao ensino, na medida em que favorece processos de formação em massa, constitui o último capítulo antes do total esgotamento da atividade docente relacionada a uma “arte de ensinar”.
Além disso, como observa Bourdieu acerca da massificação do acesso ao ensino:
De fato, o sistema de ensino pode acolher um número de educandos cada vez maior - como já ocorreu na primeira metade do século XX - sem ter que se transformar profundamente, desde que os recém-chegados sejam também portadores das aptidões socialmente adquiridas que a escola exige tradicionalmente. Ao contrário, ele está condenado a uma crise, percebida por exemplo como “queda de nível”, quando recebe um número cada vez maior de educandos que não dominam mais, no mesmo grau que seu predecessores, a herança cultural de sua classe social (como acontece quando taxas de escolarização secundária e superior das classes tradicionalmente escolarizadas crescem continuamente, caindo a taxa de seleção paralelamente), ou que, procedendo de classes culturalmente desfavorecidas, são desprovidos de qualquer herança cultural (BOURDIEU, 2008, p. 67-58).
A “queda de nível”, novamente, parece ser a consequência imediata do processo de expansão. Pois para que seja assegurada uma formação de qualidade para todos, quantidade e qualidade devem caminhar lado a lado, mesmo que para tal seja necessária uma reflexão mais cuidadosa acerca do currículo e das metodologias de ensino. Agora vejamos de que modo a problemática da expansão da EaD tem chamado a atenção da comunidade científica por meio dos artigos selecionados em nossa pesquisa bibliográfica.
A assimetria entre demanda e oferta: a qualidade em declínio
Um artigo essencial a respeito é o de Giolo (2018), que destrincha a problemática da expansão da educação a distância no contexto brasileiro. O autor apresenta dados que apontam para uma desproporção gritante entre oferta e demanda e evidencia o caráter mercadológico da EaD, que atualmente concentra astronômicos 90% das matrículas na iniciativa privada.
Segundo Giolo (2018), as bases que dão sustentação a este processo datam dos anos 1990, por meio de diversos marcos legais que já naquele período – embora de modo embrionário - fomentavam a educação a distância por meio da iniciativa privada, modificando o caráter “auxiliar” desta modalidade ao modelo presencial e colocando-se, efetivamente, como seu concorrente direto. Pior, sob o discurso solene, propagado aos quatro ventos pelas políticas neoliberais, como dispositivo democrático do acesso à educação.
Analisando o processo de expansão por blocos: bloco 1: 2000-2002; bloco 2: 2005; bloco 3: 2010; e bloco 4: 2015, Giolo percebe, já no primeiro, algumas tendências da educação a distância, que viriam a se firmar de modo estrutural ao longo dos anos subsequentes:
A primeira tendência é a de que ela, a educação à distância, apesar de ser concebida, a partir da LDB, para ocupar-se de todos os níveis da escolarização, estruturou-se para constituir um grande mercado educacional na Educação Superior e, nesse terreno, atuar com prioridade absoluta nos cursos de graduação. A segunda tendência é a de que a iniciativa privada promoverá uma oferta extraordinária de vagas e atrairá para si o grande continente da demanda, de forma ainda mais expressiva do que já fez com a educação presencial. A terceira tendência é a de que a educação a distância, sob o patrocínio privado, concentrar-se-á nos cursos de fácil oferta (de poucos investimentos em laboratórios e materiais pedagógicos - cursos de cartilhas) e voltados para segmentos populares da sociedade (GIOLO, 2018, p. 78).
Tais são as características, já percebidas no esboço do projeto em estado inicial, que caracterizam, de modo ainda mais acentuado, a educação a distância no contexto brasileiro. Como se não bastassem os problemas já evidenciados nas tendências apresentadas, deve-se observar, ainda, suas principais sequelas: de um lado, a queda de nível na qualidade da totalidade do sistema educacional brasileiro; de outro, a intensificação das desigualdades entre uma minoria de cursos de elevada qualidade, destinados a conviver sob a atmosfera da formação de baixo nível, coagidos pela expressão relativizante dos diplomas, em que todo o sistema de formação de professores e profissionais e todo o campo científico são flagrados em total descalabro.
Para que se tenha uma ideia da dimensão do problema apontado pelo estudioso, no ano de 2005, “70% das vagas oferecidas pela educação à distância no país5 não foram preenchidas” (GIOLO, 2018, p. 79), o que mostra um sistema de oferta desproporcional em relação à demanda, deixando claro não se tratar mais de uma política pública, mas de uma abertura total ao mercado sem qualquer tipo de regulação por parte do Estado. O dado, já alarmante em 2005, aumenta, ainda, em 2010, quando 76,7% das vagas oferecidas no país permanecem sem preencher.
Diante do presente cenário, Giolo se questiona, em tom de perplexidade, sobre os fundamentos que subjazem a tal estrutura: “estaríamos construindo, no Brasil, uma engrenagem na qual o aluno desistente é peça funcional no esquema que financia a EaD?” (GIOLO, 2018, p. 89), e aprofunda mais adiante, o rol das indagações:
(...) por que um sistema (estamos nos referindo à EaD privada) opera, se mantém e progride preenchendo, a cada processo seletivo, apenas, aproximadamente, 25% das vagas que oferece e, depois, suporta uma evasão que ultrapassa a cifra de 50%? Qual é a relação das vagas ofertadas com a planilha de custos das instituições ofertantes? Qual é a relação entre os ingressos, a planilha de custos e a margem de lucro? Qual é a relação entre a evasão, a planilha de custos e a margem de lucro? (GIOLO, 2018, p. 89).
Diante deste tipo de questões, a um só tempo pertinentes e perturbadoras, percebemo-nos diante de um cenário que não parece ser verdadeiro. Custa entender como podemos ter chegado a um quadro de tamanha gravidade. As questões propostas por Giolo colocam-nos diante de uma atmosfera de falência do sistema educacional superior brasileiro, apontam para a erosão, cada vez mais intensa, da qualidade dos processos de formação, deixando-nos face a face com uma imagem dramática do futuro que se avizinha. Cabe observar, todavia, que não é necessariamente o mercado o principal vilão do problema, mas a ausência de mecanismos de regulação da oferta em razão da demanda; dos processos de qualidade, do projeto político que deve estar na base dos sistemas educacionais democráticos. Pois democracia não pode ser sinônimo de nivelamento a qualquer custo, de expansão vertiginosa dos acessos, de mera expressão estatística. O preço a pagar quando não há políticas de base, que deem sustentação aos preceitos republicanos, já o demonstra a história, são equivalentes à abolição da escravatura: uma reprodução da estrutura racista e segregacionista por outros meios. A expansão do ensino superior por meio da educação a distância, neste sentido, em tudo se aproxima ao que, aqui, chamamos provocativamente de segunda abolição, isto é, um modelo político de controle da pobreza por meio de um falso sentido formativo ou, em outras palavras, com o propósito de fazer justiça ao fracasso e à pobreza por meio da culpabilização dos sujeitos, desresponsabilizando o poder público e, ainda, reforçando as representações negativas e falsas de que o negro e o pobre são inferiores e merecem, portanto, a posição que ocupam na sociedade. Tal aspecto seria, sem dúvida, o principal motor de legitimação da injustiça social brasileira.
O mercado faminto da EaD
Se em Thomas Hobbes o Leviatã simbolizava o governo central e autoritário, concentrando a totalidade do poder; sob a égide do neoliberalismo, o monstro mitológico parece ser a própria representação do mercado. Mostra os efeitos da ideologia de demonização do Estado, sob falsos argumentos acerca de sua robustez, prejudicial ao desenvolvimento do país, sua forte associação à corrupção e sua estrutura favorável aos privilégios dos servidores públicos, que gozam de boa vida a serviço de uma máquina burocrática e de resto onerosa à sociedade. Mas, obviamente, estes são apenas elementos de uma semiótica de disseminação do ódio em favor da desinstalação do Estado, e que visa à substituição, em seu lugar, do livre mercado - elemento-chave do neoliberalismo6.
É sob este pano de fundo que Santos (2018) discute os efeitos da expansão da educação superior a distância, trazendo ao núcleo do debate os fatores que impulsionam a tomada das políticas educacionais pela iniciativa privada. Segundo a autora, é possível perceber, no cenário atual, um aumento da expansão pelo setor privado, e uma desaceleração por parte do poder público, o que aponta o poder de lobby dos grandes conglomerados empresariais sobre os destinos educacionais do país.
Segundo Santos (2018), as razões que sustentam tal estrutura encontram-se nas bases da expansão da globalização apoiada nas noções de “sociedade da informação”, “sociedade do conhecimento”, “economia do conhecimento” como principais instrumentos para a redução da pobreza dos países em desenvolvimento. Desta forma, a autora apoia-se nos principais documentos dos organismos multilaterais7, que emanam orientações para a formulação de políticas públicas para este grupo de países dentre os quais o Brasil faz parte. Neste sentido, em razão de a educação ser o principal meio apontado por estes organismos responsável pela redução da pobreza e diminuição das desigualdades, a expansão do ensino superior por meio da educação a distância assume, por assim dizer, a incontestável aura de instrumento democrático para cumprir tais objetivos.
Tal é o contexto que, no caso brasileiro, resultou em um aumento do ensino superior a distância a razão de 570% em 12 anos (Santos, 2018). Por outro lado, não obstante a gritante desproporção entre demanda e oferta, como já assinalamos, percebese a influência da iniciativa privada sobre a política pública, representando uma apropriação ainda mais robusta do mercado e, por consequência, aumentando o hiato entre ensino público e privado no país. Segundo Santos:
(...) em que pese o que prevê a meta 12, a atitude do governo federal se deu na contramão dessa previsão, tendo em vista que o ano seguinte à aprovação do Plano, a então presidenta Dilma Rousseff cortou 10% do orçamento do MEC, ou seja, R$ 10,5 bilhões. No orçamento de 2017, houve outro corte, dessa vez no valor de R$ 4,3 bilhões o que fez com que o orçamento da pasta para 2017, que havia sido definido pelo Congresso em R$ 35,74 bilhões, fosse reduzido para R$ 31, 43 bilhões (SANTOS, 2018, p. 178).
Mas esta sequência de contingenciamento orçamentário não encontra alinhamento com o próprio Decreto nº 9.057, de 25 de maio de 2017 (BRASIL, 2017), que regulamenta o art. 80 da Lei nº 9.394/96, estabelecendo nova regulamentação para a EaD e flexibilizando a regulação do ensino a distância, cujos efeitos resultam na abertura de novos horizontes para o mercado em expansão. Contingenciamento orçamentário para a educação pública, liberdade ilimitada de negócios para a iniciativa privada. Segundo Sousa et. al. (2022):
O mercado educacional se converteu e se consolidou como modelo de negócios, atraindo investidores de toda natureza (muitos sem qualquer vínculo com a educação), sem qualquer relação com a democratização do ensino superior, com a redução das desigualdades ou com o desenvolvimento do país. Na realidade, representam a efetiva oportunidade de valorização para capitais privados de várias partes do mundo, num ritmo e intensidade que nem a experiência chilena foi capaz de produzir. Neste cenário, estudantes são tratados como ativos financeiros e docentes como custos a serem eliminados (SOUSA et. al. 2022, n.p.).
Analisando outros aspectos da expansão da educação superior a distância, Castro e Araújo (2018) abordam a questão problematizando as estratégias subjacentes ao processo de expansão, que consistem na substituição de um sistema de elite para um sistema de educação de massa, desobrigando, ainda, o Estado quanto à responsabilidade neste setor à medida em que aumenta o controle da iniciativa privada sobre esta modalidade.
Na mesma linha do estudo de Santos (2018), os autores apontam para a influência que os organismos multilaterais exercem sobre seus países signatários, orientando a formulação de políticas públicas preocupadas em garantir os interesses do capital. Neste contexto, de acordo com os autores, esse cenário tem levado os países a uma expansão de seus sistemas de ensino superior, seguindo as diretrizes do Banco Mundial (1996, 2000, 2002), que tem orientado a utilização de diferentes estratégias” (CASTRO; ARAÚJO, 2018, p. 193). Assim, dentre tais estratégias, os autores assinalam a privatização do sistema uma de suas principais características.
Chama a atenção o argumento central utilizado pelo Banco Mundial, que estabelece de modo automático uma correlação entre nível e formação e desenvolvimento social sem considerar, todavia, aspectos minuciosos da realidade brasileira, como, por exemplo, disposições socialmente incorporadas, ainda bastante deficitárias a boa parte de nossa população em razão do crônico problema educacional do país, a qual se deve acrescentar a tardia construção das universidades se comparado com outros países da América Latina. Seria, portanto, a educação a distância uma resposta ao grave problema nacional da expansão do ensino superior, como sugerem as diretrizes do Banco Mundial? O apelo dos organismos internacionais a respeito da educação a distância se mostra insensível aos problemas históricos e muito menos às suas características culturais dos países aos quais se destinam. Segundo Castro e Araújo:
O cerne da apologia do BM sobre a defesa da modalidade a distância assenta-se nos seus custos pretensamente baixos e não considera, a priori, o fundamento de uma formação consistente que contribua para a solução dos problemas encontrados na educação brasileira, relacionados à qualidade do ensino ofertado e suas consequências para o déficit de aprendizagem, acumulado ao longo dos anos em todos os níveis da educação (CASTRO; ARAÚJO, 2018, p. 197).
Por todos os ângulos que se olhe, resta a discrepância entre, de um lado, um déficit de formação em nível superior a uma elevada parcela da população e, de outro, a necessidade de ampliação do debate sobre a educação a distância enquanto modelo capaz de assegurar uma sólida formação que ultrapasse a mera distribuição de diplomas – tema que dá sequência a este debate.
Entre a qualidade e o diploma: o dilema da educação superior a distância
Mas há quem faça uma leitura menos dura do contexto apresentado até aqui, e que nós mesmos nos sentimos impelidos a utilizar a triste metáfora de ser o modelo a distância algo próximo a uma segunda abolição, isto é, a cobertura de uma demanda astronômica pelo ensino superior por meio de uma oferta ainda maior, porém pouco preocupada com a qualidade e com questões cruciais ao desenvolvimento de uma formação mais sólida e consistente, mais próxima da emancipação enquanto conceitochave de uma educação libertadora.
O primeiro argumento é de Bielschowsky (2018), que analisa a situação da qualidade na educação superior a distância no Brasil. Segundo o autor, a modalidade a distância tem contribuído de modo ímpar no processo de democratização do acesso ao ensino superior, sobretudo se considerada a parcela da população residente nos lugares mais distantes dos grandes centros, onde se percebe uma escassez de instituições em modo presencial. A autora enfrenta a tensão entre quantidade e qualidade, questionando-se, por exemplo, se não seria “mais adequado o relaxamento das regras regulatórias, deixando que as regras do mercado e da oferta conduzam naturalmente à execução de padrões mínimos de qualidade” (BIELSCHOWSKY, 2018, p. 04). Se o relaxamento de algumas regras e maior flexibilidade na oferta significar, como é constatável, uma maior cobertura do ensino superior, o que dizer acerca da qualidade destes cursos?
Entre a amplitude do modelo da educação superior a distância, são preocupantes, de acordo com este autor, os instrumentos de avaliação de qualidade dos cursos, que deveriam levar em conta dados do Enade anteriores a 2015, além de abrir um amplo debate com o Conselho Nacional de Educação; a Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (Seres) e a Secretaria de Ensino Superior (SeSu) do MEC; a Abed (Associação Brasileira de Educação a Distância) e a Unirede (Associação de Educação a Distância das Universidades Públicas, dentre outras. Segundo ele:
(...) a educação superior a distância desempenha importante papel na educação superior do país, já que a maior parcela das IES que oferecem EaD demonstra qualidade equivalente àquela do ensino presencial e pode ajudar a alavancar uma sociedade mais desenvolvida e justa (BIELSCHOWSKY, 2018, p. 24).
Entretanto, o autor deixa de lado aspectos dramáticos da expansão da educação superior a distância, como seus vínculos com o mercado e a consequente desresponsabilização do poder público sobre o tema, a ociosidade do sistema entre oferta e demanda, a desqualificação da carreira docente, que é pressionada a adequar-se a uma estrutura de exploração sem qualquer reconhecimento ou regulação, como bem ilustram Sousa et. al. (2022):
De tudo isso decorre uma espécie de extinção da figura tradicional dos professores no ensino superior privado. Substituídos por robôs ou por novos formatos precarizados de contratação, vê-se, em pleno século XXI, a emergência de formas esdrúxulas de desintegração e descorporificação de uma categoria, até pouco tempo, numericamente bastante expressiva. (...) São diversas e complexas as determinações para que chegássemos a esse quadro, ainda inconcluso. Mas é com o ensino à distância, com a falta de regulamentação e, em muitos casos, também com dificuldade de mobilização das entidades de classe (de trabalhadores) que observamos uma deterioração ainda mais acintosa do trabalho docente. As sucessivas omissões intencionais e criminosas do MEC nos assuntos laborais e de regulação dos cursos e instituições fere o sentido e a função social de uma formação profissional superior, comprometendo o futuro de gerações e da própria sociedade brasileira (SOUSA et. al., n.p., 2022).
A despeito deste complexo cenário, ao qual se deve estar atento sob o risco de comprometer o futuro educacional de gerações futuras, perpetuando um sistema desigual de distribuição de conhecimentos justamente na propalada “sociedade do conhecimento”, o diploma como expressão da consagração pode não necessariamente refletir as expectativas individuais, resultando, finalmente, em um fracasso social ainda maior, porque legitimado pela noção de igualdade de oportunidades. É o que observa Bourdieu ao se referir à ideia de geração enganada:
A desqualificação estrutural que afeta o conjunto dos membros da geração, destinados a obter de seus diplomas menos do que teria obtido a geração precedente, está no princípio de uma espécie de desilusão coletiva que incita essa geração enganada e desiludida a estender a todas as instituições a revolta mesclada de ressentimento que lhe inspira o sistema escolar (BOURDIEU, 2008, p. 162).
A respeito da educação superior a distância ser a única alternativa para boa parte da população brasileira, especialmente para aquela parcela distanciada dos bancos escolares há mais de uma década, se é, de um lado, um dado alentador, em que se ventila ares democráticos jamais vistos no Brasil, por outro, deve-se estar atento para os apontamentos de Bourdieu sobre a desilusão coletiva decorrente de uma vertiginosa e descuidada distribuição de diplomas.
No último artigo consultado por nós nesta revisão temática, Garcia da Costa (2020) ocupa-se do problema a partir das impressões coletadas por meio de entrevistas de estudantes do Rio Grande do Sul. Como é de se imaginar, os dados confirmam que, “no contexto das suas vidas, a EaD surge como uma nova, senão como única chance para a obtenção do diploma de formação superior” (GARCIA DA COSTA, 2020, p. 12). Contudo, percebe-se que, mesmo que para estes alunos a EaD assuma uma aura redentora em face das dificuldades da própria vida, tornando-se única fonte de formação em um contexto adverso aos estudos, o diploma não deve ser considerado acriticamente. Tomá-lo como dado absoluto, como capital cultural em estado institucionalizado8 ou, mais ainda, como estado incorporado, sugere não existirem diferenças nos processos de formação superior, reduzindo tais diferenças a uma dialética de mútuo relativismo.
Considerações Finais
Abordamos neste artigo aspectos problemáticos do processo de expansão do ensino superior a distância. A partir de dados e do referencial utilizado neste trabalho, é possível perceber o caráter mercadológico associado ao ensino a distância, configurando um quadro dramático de desobrigação do Estado por meio de políticas que favorecem a privatização na quase totalidade do sistema EaD.
Não se observou nos trabalhos consultados, com exceção do artigo de Sousa et. al. (2022) publicado no Le Monde Diplomatique9, uma abordagem mais aprofundada sobre outros aspectos relativos ao processo de expansão, como a precarização do trabalho docente - categoria que, no modelo à distância, converte-se na figura do tutor10 -caracterizado pela sobrecarga de trabalho, número exorbitante de alunos, baixa remuneração por meio de bolsas, ausência de estímulos para a pesquisa, etc. Além disso, não se aprofundou o debate acerca das iminentes consequências sociais deste modelo que, regido pelas leis do mercado, tendem a aprofundar ainda mais as desigualdades educacionais, sociais e econômicas do país.
Apontamos, finalmente, para a emergência, cada vez mais fulcral, de uma leitura rigorosa acerca da adequação acrítica das políticas da educação pública acerca das orientações dos organismos internacionais, compreendendo os sentidos ocultos de tais medidas que, como mostrou Coraggio (2003), são muitas vezes apresentadas sob a aparência de um verdadeiro “Cavalo de Troia”.
No mais, permanece em aberto o campo para uma compreensão mais detalhada sobre os aspectos que mais têm chamado a atenção: a) a assimetria entre oferta e demanda; b) a consequente ociosidade do sistema em face da demanda real; c) a relação entre o capital cultural (ou ausência dele) e os efeitos do diploma enquanto capital institucionalizado. Não há consenso sobre tais respostas. No fundo, por se tratar de um campo recente no cenário educacional, a EaD e o seu caráter de novidade podem guardar aí o núcleo de uma resposta: o caráter inexorável do mercado diante de tudo o que, pela sua novidade, tende a ser visto como uma pedra preciosa a ser rapidamente explorada, a ser vorazmente consumida.
Há sérios riscos quando a educação é entregue às leis do mercado. Um bom exemplo é a mensagem deixada por Diane Ravitch (2011) em “Viva e Morte do grande sistema escolar americano”, em que a autora relata sua experiência como ex-secretáriaassistente dos movimentos de reforma educacional dos governos neoliberais e, em tom de denúncia ou de mea-culpa, apressa-se para nos alertar sobre os perigos da tomada da educação pela iniciativa privada e da lógica empresarial. Se o capital humano é destino de todo projeto educacional e, consequentemente, do desenvolvimento social e econômico de um país, fazê-lo por meio de um sistema privado, sem garantias quanto a sua qualidade e sem a figura do Estado como idealizador de seu funcionamento significa colocar o próprio caráter de reprodução dos valores democráticos em uma condição de séria vulnerabilidade, significa a condenação da sociedade ao total apagamento na noite dos tempos.