Introdução
O Estado da Geórgia está localizado na região sudeste dos Estados Unidos e faz divisa com o Tennessee e a Carolina do Norte ao Sul, com a Flórida ao Norte, com o Alabama ao Leste e com a Carolina do Sul ao Oeste. Por ser cercada por esses cinco estados, a Geórgia sempre foi considerada um hub de transporte, primeiro ferroviário e, hoje em dia, sua capital, Atlanta, é sede do Hartsfield-Jackson, o aeroporto internacional mais movimentado do mundo. Também reconhecida pela agricultura, a Geórgia ocupa posição de destaque na economia norte-americana, além de ser onde nasceu a Coca-Cola, notoriamente, uma das marcas mais consumidas no mundo.
Em relação à política, a Geórgia é considerada historicamente republicana, surpreendendo nas eleições presidenciais de 2020, quando elegeu Joe Biden por uma margem de 0,23% e um total de 11.779 votos contra seu adversário republicado, Donald Trump. No entanto, fazendo jus ao seu caráter mais conservador, o estado já levou ao senado, através do republicado Joshua McKoon, uma proposta de emenda à constituição estadual para que se reconheça a língua inglesa como a língua oficial do estado (ATHENS BANNER-HERALD, 2018). Apesar de a lei estadual já ter instituído em 1996 apenas o inglês como língua oficial para informações públicas3, o senador justificou seu pedido no ano de 2018 dizendo que, “na atualidade, a lei não estava sendo devidamente aplicada” (ATHENS BANNER-HERALD, 2018, s.p).
Nesse contexto historicamente orientado pelo uso exclusivo do inglês4, é urgente garantir o direito humano à educação pluricêntrica. Portanto, é necessário evidenciar essa “imposição dos valores morais associados a um grupo hegemônico” (BARBOSA, 2013, p. 675), a qual carrega em si um critério equivocado de exclusão linguística em que se veementemente acredita que, para pertencer à sociedade norte americana, todas as pessoas devem ser proficientes apenas em inglês (BARBOSA, 2013).
O presente artigo detalha políticas educacionais relacionadas à Lei de Igualdade de Oportunidades Educacionais (em inglês, Equal Educational Opportunities Act) (1974) promulgada em 1974 e à sua implementação através da criação de programas de educação bilíngue no estado da Geórgia a fim de motivar reflexões sobre o ensino de línguas adicionais e contribuir para que se possa pensar em ampliar a educação plurilíngue no país.
Tendo estabelecido o contexto geral de fala, este artigo está organizado em quatro seções, incluindo esta introdução. A segunda seção introduz uma revisão da literatura sobre a promoção de políticas públicas relacionadas ao ensino de inglês e à educação bilíngue. A seção 3 detalha dados da imersão em duas línguas no estado da Geórgia e discorre sobre as estratégias propostas pelo departamento de Educação da Geórgia (GADOE na sigla em inglês para Georgia Department of Education), discutindo os resultados referentes à implementação de programas de imersão em duas línguas (Dual Language Immersion programs) (DLI) no estado. Por fim, nas considerações finais, resumimos a discussão aqui apresentada evidenciando como as políticas públicas de acesso à educação em mais de uma língua foram implementadas no estado da Geórgia e como essas se relacionam com as políticas educacionais norte-americanas e brasileiras para o ensino de línguas.
As informações apresentadas foram coletadas por meio de consulta ao site do departamento de Educação e, além de apresentações de PowerPoint concedidas pelo mesmo departamento, também foram consultados os sites5 das escolas que oferecem programas de DLI.
Políticas públicas para a promoção de educação bilíngue nos Estados Unidos
Educação bilíngue é um termo utilizado para se referir a programas nos quais duas línguas são usadas para instrução. O Centro de Linguística Aplicada (CAL) define essa educação em dois idiomas, comumente conhecida como Dual Language Immersion (doravante, DLI) nos EUA, como “uma abordagem eficaz para desenvolver a proficiência e a alfabetização em inglês e em um idioma parceiro e integrar falantes nativos de inglês e falantes nativos de outro idioma para instrução de conteúdo acadêmico por meio do inglês e do idioma parceiro, começando no ensino fundamental.” (CAL, 2022, tradução nossa6). Esses programas bilíngues têm três objetivos gerais: o primeiro é promover a alfabetização em dois idiomas; o segundo, manter alto desempenho acadêmico adequado à série dos estudantes; e, por último, expandir a competência transcultural de todos os alunos.
Na literatura, programas de imersão em duas línguas nos Estados Unidos têm como objetivo promover o ensino de dois idiomas para que os alunos mantenham seu idioma nativo, por exemplo, o espanhol, enquanto adicionam um novo idioma e, ao mesmo tempo, desenvolvam orgulho de sua própria cultura e língua e compreensão de outras (CAL, 2017). No entanto, na prática, apesar do crescente interesse na área e de resultados que demonstram a eficácia dessa abordagem para o desenvolvimento da proficiência em duas línguas7 (LI et al., 2016; ROLSTAD, MAHONEY e GLASS, 2005), ainda existe “uma tentativa de reforçar a ideia de uma comunidade linguística associada à noção de cidadania americana” (BARBOSA, 2013, p. 684). Em outras palavras, mantém-se o inglês como língua de prestígio e utiliza-se o espanhol ou outra língua adicional como uma ferramenta para atrair famílias brancas (BURNS, 2017) para programas bilíngues.
Levando em consideração que
o financiamento público da educação resulta de escolhas ou alternativas desenhadas, em grande parte, no cruzamento de preferências de política fiscal e educacional, por sua vez, demarcadas por regras institucionais de organização do Estado e do setor educacional, bem como pelo jogo político e setorial. (GIL et al, 2022, p. 3, tradução nossa8),
Tal financiamento reflete o interesse e ideias imbricadas na construção de políticas públicas em determinados momentos no país e no mundo. Em se tratando do ensino em mais de uma língua nos Estados Unidos, esse passou a ser requerido apenas a partir da Lei de Igualdade de Oportunidades Educacionais, em inglês Equal Educational Opportunities Act (ESTADOS UNIDOS, 1974), que declara que é política dos Estados Unidos que todas as crianças matriculadas em escolas públicas tenham direito a oportunidades educacionais iguais, independentemente de raça, cor, sexo ou origem nacional.
Uma das políticas públicas derivadas dessa lei é a exigência que os distritos escolares tomem “medidas apropriadas para superar as barreiras linguísticas que impediam a participação igual dos alunos em programas de instrução” (GADOE, Dual Language Immersion_ESOL_and_Federal Programs, 2019, p. 1, tradução nossa9). Dessa forma, "cabem às políticas públicas de educação e aos sistemas de ensino [locais] fornecerem as condições de possibilidade para o desenvolvimento integral de todos os alunos, com equidade e qualidade, tendo por fundamentos o direito à educação e a democratização do ensino” (PASSONE e RONCOLI, 2022, p. 2-3). Em outras palavras, de um lado, tem-se a exigência prevista em lei e, do outro, a necessidade de cada sistema de ensino local se adequar e oferecer os meios para que se possa, de fato, promover a igualdade de oportunidades no que diz respeito à superação de barreiras linguísticas.
Na prática, isso seria possível através da implementação de programas bilíngues alinhados aos dados demográficos de cada região. No entanto, um dos problemas enfrentados na implementação desses programas está na ação de apoiadores de políticas de assimilação à cultura norte-americana. Conforme Barbosa (2013), esses agentes deslegitimam o uso de duas línguas em contextos educacionais e sociais, defendem o distanciamento de outras culturas e, ao fazerem isso, afetam negativamente o direito à pluralidade linguística e cultural de falantes de mais de uma língua. Além de não ser um movimento social espontâneo, o monolinguismo é um projeto de homogeneização estruturado para que pessoas optem por uma só língua e entendimento de nação (MONTEAGUDO, 2012). Como consequência dessa defesa do uso apenas do inglês, existe um processo de assimilação a essa língua em detrimento ao desenvolvimento escolar plurilíngue. Além disso, existe o risco de não se garantir direitos educacionais básicos e principalmente o perigo de se apagar o sentimento de pertença a uma sociedade plural.
Um dos resultados dessa prática contrária à educação bilíngue seria a alienação das próprias pessoas falantes de duas línguas sobre a posição de colonialidade na qual elas se encontram ao deixar parte de suas identidades para trás. Em relação a esse tema, em artigo sobre o ensino bilíngue nos Estados Unidos, Barbosa (2013) faz uma análise crítica dos argumentos apresentados pelo autor mexicano-americano Richard Rodriguez (RODRIGUEZ, 2005). Em sua autobiografia, o autor bilíngue argumenta a favor do uso exclusivo do inglês (English Only) nas escolas, o que contradiz sua própria narrativa, haja vista que Rodriguez evidencia em seu livro momentos em que, por ter aprendido apenas inglês e se distanciado do espanhol, percebeu uma falta de aceitação da comunidade hispânica, algo que se tornou uma possível barreira para que ele continuasse se sentindo pertencente a ela enquanto se assimilava à comunidade norte-americana (BARBOSA, 2013, p. 684).
Analisando a experiência de Richard Rodriguez com base na literatura vigente sobre o ensino bilíngue disponibilizada através do GADOE (2019), podemos inferir que a exposição sistemática e deliberada ao inglês, combinada com a manutenção da língua materna seria positiva para manter as conexões com sua origem e cultura e a comunicação com os membros da família que falam apenas a outra língua. Além disso, conforme Pereira (2001), a língua materna interage com a aquisição da língua estrangeira, podendo, inclusive, nortear e facilitar a aprendizagem. Mais ainda, a exposição sistemática e deliberada ao inglês, combinada com o contínuo desenvolvimento da língua materna em um ambiente educacional de alta qualidade pode gerar resultados acadêmicos positivos para crianças multilíngues que estão aprendendo inglês na escola (Georgia Department of Education, Federal Programs and Curriculum & Instruction, ESOL and DLI, Jan 2019, p. 2).
Portanto, tem-se, de um lado, os defensores de movimentos a favor apenas do ensino de inglês (English Only) nas escolas, os quais argumentam sobre a relevância da língua como língua internacional ou franca e pretextam que essa deve ser priorizada em detrimento de outras línguas consideradas minoritárias ou menos importantes. Do outro lado, estudiosos da educação apontam que vivemos em um mundo multilíngue no qual a educação bilíngue deve gerar direitos equitativos às minorias (GARCIA, 2019, MEGALE e LIBERALI, 2016, PENNYCOOK, 2007).
Em consonância com essa visão de educação bilíngue, em entrevista recente, Dessler (2022) explica que,
a educação bi/multilíngue tem muitas vantagens, incluindo o desenvolvimento de habilidades cognitivas, a melhoria da memória e recordação de informações, a promoção da confiança saudável, a expansão das perspectivas globais, a ampliação dos horizontes e, ironicamente, melhora a língua primária também (DESSLER, 2022, n.p., tradução nossa10)
Além de discorrer sobre os benefícios de uma educação em duas línguas, concluindo que o ensino em duas línguas pode ser positivo para todos, o entrevistado considerou o contexto atual e argumentou que, “vivemos em um mundo interconectado e globalizado e uma segunda língua, cada vez mais prevalente, pode representar um investimento para o futuro” (DESSLER, 2022, n.p., tradução nossa11). Dessa forma, ao levarmos em consideração que uma em cada cinco crianças nos Estados Unidos fala uma outra língua em casa (CENSUS BUREAU, 2000), argumentamos que os programas de imersão em duas línguas se relacionam às políticas educacionais federais e estaduais pela necessidade de se expandir o ensino em duas línguas como forma de garantir direitos e respeitar a diversidade do corpo estudantil.
Além disso, esse investimento em educação bilíngue também serviria como uma estratégia nacional de profissionalização de cidadãos americanos, haja vista a demanda global por uma força de trabalho multilíngue (ACTFL, 2019) e o fato de 67,3 milhões de residentes nos Estados Unidos falarem um idioma diferente do inglês em casa (ZEIGLER e CAMAROTA, 2019; CENSUS BUREAU, 2018).
Em relação ao mercado de trabalho norte-americano, o Conselho Americano de Ensino de Línguas Estrangeiras (ACTFL na sigla em inglês) defende que esforços para internacionalizar o ensino de línguas estrangeiras são urgentemente necessários para atender as empresas nacionais. Isso porque, de acordo com o relatório produzido em 2019, nove em cada dez empregadores relataram contar com funcionários com habilidades linguísticas diferentes do inglês. Dos pesquisados, 47% afirmaram a necessidade de habilidades linguísticas exclusivamente para o mercado doméstico, 25% especificamente para o mercado nacional, 18% igualmente para o mercado nacional e internacional, 8% principalmente internacional e 3% apenas para o mercado internacional (ACTFL 2019, como discutido em KLEN-ALVES, 2022).
Com base nessas porcentagens, podemos compreender a urgência dentro do próprio país para atender demandas educacionais em mais de uma língua, garantir educação pública igualitária para todos e preparar os trabalhadores para as novas demandas globais. À luz dessa necessidade, retomamos o censo de 2018 supramencionado, o qual explicita que o número de falantes de outras línguas nos Estados Unidos quase triplicou desde 1980 e mais do que dobrou desde 1990. Como demonstrado na Figura 1 abaixo, apesar de serem muitas línguas e culturas, a maioria desses estudantes são hispânicos ou latinos sendo o espanhol, além do inglês, o idioma mais falado nos lares norte-americanos.
Fonte: Departamento de Educação dos EUA, ED Facts Data Warehouse (EDW), 2014–15. Arquivo SEA C141, LEP Inscrito. Extraído em 23 de junho de 2022. Departamento de Educação dos EUA, Centro Nacional de Estatísticas da Educação, Common Core of Data (CCD), "State Nonfiscal Survey of Public Elementary/Secondary Education", 2014–15.12
Como podemos observar na figura 1, a maioria dos alunos considerados aprendizes de inglês nos EUA são hispânicos ou latinos seguidos por alunos asiáticos. Historicamente, esses alunos eram vistos como atrasados e colocados em programas de educação bilíngue transicional (TBE) (para uma discussão detalhada, ver Gándara e Escamilla, 2017) como uma tentativa hegemônica frustrada de assimilação que foi, e continua sendo, excludente, não reconhecendo como direito, mas, sim, como privilégio uma educação pública de qualidade para todos (TOMAŠEVSKI, 2005).
Gándara e Escamilla (2017), explicam que
A história da educação bilíngue nos Estados Unidos mudou entre tolerância e repressão, dependendo da política, da economia e do tamanho da população imigrante. Outras línguas além do inglês têm sido (e continuam a ser) vistas principalmente como um problema a ser corrigido pelas escolas. No entanto, o aumento maciço de estudantes cuja língua primária não é inglês (hoje mais de um em cada cinco) e que atuam em níveis excepcionalmente baixos nas escolas do país provocou mais uma vez a discussão sobre a maneira mais eficaz de educá-los. (GÁNDARA & ESCAMILLA, 2017, p 1, tradução nossa13)
A despeito desta constatação e dos dados apresentados na figura 1, alguns estados como a Geórgia têm aumentado a oferta de programas bilíngues, principalmente nas línguas adicionais mais faladas, o que é o caso do espanhol. Portanto, é incontestável que há uma necessidade visível de programas bilíngues para que esses alunos que já falam outras línguas não percam a capacidade de usar essas outras línguas fluentemente.
No entanto, as decisões sobre que tipo de imersão deve ser oferecida aos alunos em escolas públicas nos Estados Unidos ainda estão em aberto. Por um lado, existe um crescente interesse em programas DLI e esses se tornam uma importante ferramenta para adequar o currículo estadunidense para os 89% de alunos que, de acordo com um levantamento do Departamento de Educação dos EUA, se consideram hispânicos ou latinos e falam espanhol como primeira ou segunda língua. Por outro lado, muitas vezes, essas escolas têm como principal objetivo o ensino de inglês ao invés de desenvolver o bilinguismo (GÁNDARA e ESCAMILLA, 2017).
Apesar do crescimento de programas de imersão em duas línguas nas escolas públicas estadunidenses, há um conflito sobre como esse ensino é ofertado. Enquanto programas de imersão 50/50 em duas línguas se propõem a utilizar igualmente dois idiomas para ensinar conteúdo e alfabetização por um período sustentado de tempo (HOWARD et al., 2003), outros programas segregam alunos em turmas específicas para aqueles que não falam inglês como primeira língua, deixando de promover a integração desses alunos com aqueles que falam apenas uma língua.
Nesses contextos, a fluência em outra língua é rotineiramente ignorada, haja vista que aqueles alunos continuam sendo considerados e ‘etiquetados’ como aprendizes de língua inglesa (English Language Learners), enquanto estudantes que falam apenas uma língua não são estimulados a aprender uma língua adicional, correndo o risco de criar resistência ao uso de outras línguas por seus pares e radicalizar em um ambiente que privilegia o inglês como idioma da nação, distanciando-se ainda mais da realidade multilíngue do país.
Ademais, tendo em vista que grande parte dos alunos considerados aprendizes de inglês são, na verdade, bilíngues emergentes, é contraproducente que eles sejam impedidos de desenvolver suas habilidades acadêmicas e conhecimentos em duas línguas devido às políticas federais e estaduais atuais que muitas vezes não corroboram com o ensino bilíngue (GÁNDARA e ESCAMILLA, 2017, p. 448). Nesse sentido, “desenvolver práticas educacionais pós-modernas baseadas em princípios comuns de justiça associadas ao ensino de competências interculturais individuais” (BARBOSA, 2013, p. 686) pode ajudar a minimizar a diferença de desempenho entre os alunos de inglês e os falantes nativos de inglês e, ao mesmo tempo, promover “uma sociedade mais humanista, o que corresponderia, por sua vez, a mais um passo em direção ao diálogo intercultural e democrático entre os diversos grupos” (BARBOSA, 2013, p. 685) que participam de programas bilíngues estruturados com base em princípios de igualdade de línguas.
Também há de se considerar que políticas educacionais para o acesso à educação bilíngue vêm acompanhadas de incentivo financeiro para as escolas que as implementarem. Esse financiamento está disponível com base nas necessidades dos alunos atendidos por cada distrito, por exemplo, o programa Título 1 (Title I) fornece fundos federais por meio do Departamento de Educação da Geórgia para agências educacionais locais (LEAs) e escolas públicas com alto número ou porcentagem de crianças em situação de pobreza. Esse dado é calculado a partir da porcentagem de alunos que qualificam e recebem almoço gratuito ou a preço reduzido nas escolas. Esse programa tem como objetivo ajudar a garantir que todas as crianças tenham acesso ao conteúdo acadêmico estadual de forma acessível, esperando que isso se traduza em bom desempenho acadêmico (Title I, part A, Estados Unidos, 2018).
Panorama da imersão em duas línguas no estado da Geórgia
A seção anterior detalhou as políticas educacionais de acesso à educação bilíngue nos Estados Unidos discorrendo sobre a implementação dessas políticas públicas para garantir o acesso à educação a alunos que falam outras línguas além do inglês. Nesta seção, oferecemos um panorama da imersão em duas línguas no estado da Geórgia a partir da descrição de dados do departamento da Educação (GADOE) que detalham os programas existentes. Repetimos que as informações apresentadas foram coletadas por meio de consulta ao site do departamento de Educação e de acesso à documentos concedidos pelo mesmo departamento.
Mais da metade de todos os programas de imersão em dois idiomas das escolas públicas nos Estados Unidos estão localizados em cinco estados: Califórnia, Nova York, Carolina do Norte, Texas e Utah, e muitos estão nas principais áreas metropolitanas14. De acordo com o documento CANVASS OF DUAL LANGUAGE AND IMMERSION (DLI) PROGRAMS IN US PUBLIC SCHOOLS, publicado em 2021, existem mais de 3600 programas DLI ao todo, espalhados em quarenta e quatro (44) estados dos EUA. Nesse contexto, os programas em espanhol e inglês representam cerca de oitenta por cento (80%) de todos os programas seguidos por programas em chinês (8,6%) e francês (5,0%) (ROBERTS, 2021, n.p.).
No caso da Geórgia, o estado conquistou o Seal of Biliteracy (selo de alfabetização em duas línguas) em 2016. Como não existe legislação nacional para o ensino em duas línguas, cada estado tem a autonomia para decidir qual é o requisito mínimo e nível de proficiência para receber o selo (GADOE, comunicação pessoal, 2018, tradução nossa). Na Geórgia, esse selo já reconheceu milhares de alunos que falam uma segunda língua no nível intermediário alto de acordo com a escala de proficiência ACTFL15. Também de acordo com o departamento de Educação do estado, o ensino bilíngue na Geórgia é balanceado, assim,
Os alunos passam pelo menos metade do dia escolar no idioma de destino e a outra metade do dia em inglês. Alguns programas podem optar por aumentar a porcentagem do dia gasto na língua-alvo nos primeiros anos. Os alunos de imersão aprendem Matemática, Ciências, Alfabetização e, às vezes, Estudos Sociais na língua alvo. Eles são ensinados em Artes da Língua Inglesa, Leitura e, geralmente, em inglês.” (GADOE, comunicação pessoal,2018, tradução nossa16)
Dessa forma, no modelo apresentado por GADOE (2021), os alunos passam pelo menos metade do seu dia escolar em um ambiente de ensino da língua-alvo, enquanto a outra metade do dia letivo é reservada a um ambiente instrucional somente em inglês, em salas de aula que podem ter alunos que estão aprendendo uma língua-alvo e alunos que estão aprendendo inglês. Assim, busca-se garantir que os estudantes tenham acesso e sejam instruídos nos dois idiomas de forma equitativa, considerando que cada período do dia escolar é dedicado à instrução em uma das línguas.
No entanto, como demonstrado na figura 2 abaixo, apesar do modelo prever instrução 50/50, isto é 50% no idioma alvo e 50% no inglês, a realidade indica que a maior porcentagem ainda se concentra no ensino de língua inglesa:
Fonte: Dados da apresentação 'An Overview of DLI in Georgia 2022', slide 8, disponibilizada pelo GADOE
Como podemos observar, apesar de haver uma divisão igual entre o tempo em cada língua (50/50) há a priorização do ensino de língua inglesa (35%) em detrimento do ensino de língua adicional (15%), pois grande parte do período nessa língua é dedicado a um maior número de tópicos e conteúdo. Apesar dessa problematização, a relevância de programas de imersão em duas línguas e a preocupação com a promoção de educação bilíngue é positiva e pode ser observada no aumento da oferta de programas DLIs ao longo dos anos. Houve, no estado, um crescimento expressivo de DLIs nos últimos 16 anos desde a implementação do primeiro programa em 2006 no condado17 de Clayton (Figura 3). No ano letivo de 2013-14, eram apenas 6 programas DLI, enquanto o número passou a 70 programas no último levantamento feito (2020-21).
Fonte: Dados da apresentação 'An Overview of DLI in Georgia 2022', slide 10, disponibilizada pelo GADOE.
A realidade acima ilustrada desdobra-se em seis línguas ensinadas nas escolas com programas DLI na Geórgia além do inglês. Os programas bilíngues no estado oferecem os idiomas espanhol, alemão, francês, chinês, japonês e coreano, o que está em consonância com os objetivos apontados nas políticas públicas estaduais, que prevê o aumento da oferta dessas línguas em programas DLI.
Ainda que haja multiplicidade de línguas adicionais ensinadas nos programas bilíngues da Geórgia, a maioria é de escolas em que o espanhol é a língua adicional ensinada. Das 70 escolas com programas DLI, 57 concentram-se no espanhol, sendo este, além do inglês, o único idioma ensinado em 55 delas. O fato de haver maior número de programas voltados ao desenvolvimento da aprendizagem da língua espanhola parece estar relacionado ao crescimento da comunidade latina em todo país, como discutido acima e representado na Figura 1. O número de falantes nativos de espanhol no estado também se reflete, segundo Downey (2018), no aumento do número de hispânicos matriculados nas escolas da Geórgia. Assim, o maior número de DLIs em língua espanhola parece ser reflexo das necessidades de integração das comunidades locais.
Apesar disso, em determinados condados, também podemos notar a presença de escolas e programas em outras línguas, como no DeKalb County, em que há mais programas em língua francesa que em espanhol, divergindo da realidade geral do estado. Neste condado, por exemplo, há também programas em alemão, além de uma escola que oferece chinês, francês e espanhol. Vale destacar que esse condado é na área metropolitana do estado e é servido por três distritos escolares diferentes (Distrito Escolar do Condado de DeKalb, Escolas Públicas de Atlanta e Escolas Públicas da Cidade de Decatur).
Além da abundância de escolas públicas, o condado DeKalb possui 12 escolas particulares e 10 instituições de ensino superior e se destaca como um condado de alto poder econômico e de voto mais fortemente democrata, tendo sido o segundo condado com mais votos para Joe Biden nas últimas eleições. Ainda em relação ao condado, sua demografia pode explicar também o ensino de outras línguas, já que, de acordo com o censo de 2020, a composição racial do condado é de 54,3% de negros, 33,3% de brancos, 9,8% de hispânicos ou latinos, 5,1% asiática, 0,4% indígenas americanos, 4,5% de outras raças e 2,4% de duas ou mais raças. Quanto à ascendência, 5,9% se definem como ingleses, 5,2% alemães e 3,5% americanos.
Quanto à distribuição dos programas de DLI no estado, apesar dos 70 programas poderem ser encontrados em diferentes condados, em sua maioria (64), estão localizados próximos à capital do estado, Atlanta, como podemos observar no mapa a seguir (Figura 4).
Fonte: Captura de tela de mapa da Geórgia criado por Tatiana Smithson e editado por Uli Ingram. Disponível em: <https://arcg.is/0ya1DW. Acesso em 23 jun 2022.
No mapa, os pontos em azul representam os diferentes programas e estão mais concentrados ao norte do estado, sendo que apenas dois programas estão mais ao sul, no condado de Savannah-Chatham e quatro estão localizados mais ao norte de Atlanta, no condado de Dalton. Se considerarmos a extensão do estado, a quantidade de escolas (2.213 no total), e a distribuição dos programas de DLI, podemos problematizar o acesso da população ao ensino público bilíngue, apesar dos esforços para suprir as necessidades de formação multilíngue dos estudantes.
Um exemplo dessa falta de acesso está no condado de Athens-Clarke que possui apenas uma escola com programa DLI em espanhol apesar de receber 3.242 alunos que se identificam como hispânicos ou latinos, 593 que se declaram de duas ou mais raças e 162 alunos asiáticos18. Como discutido anteriormente por Drabach e Klen-Alves (2021), a população de Athens é composta predominantemente por negros e latinos e grande parte desses alunos vivem em situação de pobreza, evidenciando a necessidade de se alinhar o trabalho realizado pelo distrito escolar com esforços para garantir a equidade tanto de um ponto de vista socioeconômico quanto de um ponto de vista linguístico.
Ampliando essa análise para o contexto estadual, as escolas públicas da Geórgia são atualmente compostas pelas seguintes raças étnicas declaradas: alunos brancos (634.101), negros (632.617), hispânicos (308.246), asiáticos (79.047), indígenas americanos (3.525), nativos das ilhas no Sul do Pacífico (1.790) e alunos que declaram duas ou mais raças (76.833)19. Em relação às séries atendidas, os programas DLI podem ser encontrados no estado desde os níveis iniciais de pré-escola (Pre-K) até as séries finais, sendo maior a concentração de programas bilíngues até a quinta série. De fato, a maior parte dos programas de DLI são ofertados no nível elementary - 56 programas -, enquanto 9 programas são ofertados em nível middle school, 2 em nível high school e 3 em nível Continuation high school (ver Anexo I).
Em linhas de conclusão, apesar dos avanços em políticas públicas federais e estaduais, considerando os dados demográficos apresentados acima, em conjunção com as ofertas educacionais atualmente disponíveis no estado da Geórgia, ainda parecemos estar distantes de promover práticas multilíngues decoloniais e em mais línguas para todos os alunos.
Ao apontarmos, neste texto, a problemática do ensino apenas de inglês e a lenta transição de programas que percebem os aprendizes de inglês como deficitários para programas DLI que os vêm como bilíngues emergentes, podemos também concluir que ainda estamos mais próximos de um bilinguismo elitista, aquele que vende o ensino de línguas como mercadoria e prestigia uma língua em detrimento da outra e mais distantes de um alinhamento político e social que prestigie o uso de mais de uma língua como parte de uma sociedade plurilíngue.
Apesar dos mais de 45 anos da Lei de Igualdade de Oportunidades Educacionais (1974) e de alguns avanços políticos e sociais incentivados por financiamento federal, há espaço para a criação de novas políticas de gestão públicas que possam trazer maior equilíbrio para o currículo escolar. A análise de políticas educacionais existentes é essencial já que essas orientam os tomadores de decisões e os profissionais da educação em suas práticas institucionais (PEREZ e PASSONE, 2014). Refletir sobre as lógicas administrativas aplicadas nas políticas públicas de ensino de línguas e compreender a ação pública dos diferentes atores desta equação pode auxiliar na implementação de programas que considerem as necessidades linguísticas de aprendizes de inglês como segunda língua ao mesmo tempo em que percebam suas necessidades sociais e acadêmicas em relação aos seus pares.
Considerações finais
Este estudo se propôs a oferecer um panorama das políticas educacionais de acesso à educação bilíngue no estado da Geórgia, nos Estados Unidos. Para tanto, apresentou-se uma análise dos objetivos apontados nas políticas públicas federais e estaduais através de publicações e apresentações do departamento de educação do Estado da Geórgia (GADOE).
Percebemos inúmeros avanços na oferta de programas de DLI no estado da Geórgia, considerando-se o crescimento da oferta de 1066% na última década, bem como a busca por uma educação pública bilíngue gratuita para alunos norte-americanos aprendizes de inglês e falantes das mais diversas línguas adicionais ensinadas. Ainda assim, há desafios a serem enfrentados para que mais pessoas tenham acesso a programas DLI e para que estes ampliem sua oferta em diferentes idiomas e níveis de ensino.
Ao revisar as estratégias propostas pelo GADOE para promover o ensino em duas línguas em comparação com o que a literatura apresenta sobre as práticas de DLI nos Estados Unidos, percebemos, em consonância com a discussão apresentada por Barbosa (2013), que ainda vivemos uma transição entre uma abordagem mais conservadora de DLI que promove apenas um tipo de cidadania a partir de práticas de educação bilíngue transicional ou do ensino de inglês como língua de prestígio em detrimento à uma cidadania mais global, através de uma educação bilíngue ou plurilíngue mais equânime.
O presente estudo revela que, de um lado, há clara preocupação com a expansão de programas de imersão em dois idiomas, buscando a integração de diferentes comunidades linguísticas, além da preparação de estudantes multilíngues capacitados para circularem em diferentes contextos pessoais e profissionais de um mundo cada vez mais conectado. Por outro, ainda persiste uma estrutura que considera falantes de línguas adicionais como aprendizes de inglês, dessa forma, “em vez de oferecer oportunidade para todos, o inglês opera como uma linguagem profundamente excludente e dominante” (PENNYCOOK, 2007, p.103, tradução nossa20) reforçando, por meio de um ensino que prioriza a aprendizagem do inglês, “a ideia de uma única comunidade linguística como sendo a corretamente associada à noção de cidadania americana” (BARBOSA, 2013, p. 684). Além disso, grande parte das escolas operam com salas de ensino “regular” e ensino bilíngue, compartimentalizando a experiência dos alunos.
Não obstante, em consonância com Barbosa (2013), entendemos que os programas de educação bilíngue não devem ser vistos como uma resposta a um problema social e moral, mas, sim, como um caminho em direção a um conceito de cidadania americana mais humanista e democrático. Nesse contexto, diferentes comunidades linguísticas poderão, enfim, estar integradas, estudantes de diferentes raças e classes sociais terão possibilidades de acesso a práticas sociais diversas e competência para o diálogo intercultural.
Concluímos este texto em busca de políticas educacionais que valorizem o ensino em duas línguas ou mais, nas quais há um comprometimento de todo o sistema em manter as línguas estudadas ativas com maior integração curricular entre as línguas e culturas dos aprendizes e os conteúdos presentes na sala de aula. É necessária uma educação bilíngue que considere mais de uma língua de maneiras mais recíprocas e que verdadeiramente acolha a crescente diversidade cultural do país, expandindo o que Liberali (2022) nomeou de patrimônio vivencial dos alunos.