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Revista Brasileira de Educação Médica

Print version ISSN 0100-5502On-line version ISSN 1981-5271

Rev. Bras. Educ. Med. vol.46 no.3 Rio de Janeiro  2022  Epub July 13, 2022

https://doi.org/10.1590/1981-5271v46.3-20210391 

Artigo Original

Preceptoria na atenção primária durante as primeiras séries de um curso de Medicina

Preceptorship in primary care during the first years in a medicine undergraduate course

João Pedro de Barros Fernandes Gaion1 
http://orcid.org/0000-0002-5076-0388

Renata Giannecchini Bongiovanni Kishi1 
http://orcid.org/0000-0002-1577-3917

Aline Barreto de Almeida Nordi1 
http://orcid.org/0000-0003-0262-9796

1Universidade Federal de São Carlos.


Resumo:

Introdução:

A preceptoria médica é uma atividade presente em todos os cursos de Medicina do Brasil e em grande parte dos cursos do mundo. As mudanças do ensino médico brasileiro levaram à inserção dos estudantes das primeiras séries ao mundo do trabalho, especialmente na atenção primária, evidenciando a importância da preceptoria. No curso de Medicina da UFSCar, os estudantes são inseridos em unidades de saúde da família desde a primeira série, sob acompanhamento dos docentes e médicos atuantes nas unidades.

Objetivo:

Compreender as percepções dos médicos sobre o exercício da preceptoria no primeiro ciclo do curso de graduação em Medicina.

Método:

Trata-se de estudo exploratório de cunho fenomenológico com abordagem qualitativa. Os sujeitos do estudo foram os preceptores da primeira e segunda série do curso de Medicina da UFSCar, atuantes nos últimos cinco anos. Utilizaram-se entrevistas individuais com questões semiestruturadas para a coleta de dados, que foram analisados a partir da abordagem da análise de conteúdo, do tipo categorial temática.

Resultado:

Os preceptores supervisionam atividades de atendimento médico, visitas domiciliares, ações com a comunidade, ações colaborativas interprofissionais e discussões de casos; participam de espaços de reflexão da prática, análise e discussão dos produtos dos estudantes, e de avaliação, possibilitando a construção de estratégias de ensino individualizadas. Os impactos da preceptoria foram percebidos positivamente, sobretudo no cuidado de indivíduos vulneráveis, com aproximação dos sujeitos com a equipe e criação de planos de cuidado ampliados. A preceptoria é vista como estímulo à atualização, capacitação e reflexão quanto à própria prática. Entre os desafios, os médicos relataram dificuldades com a equipe de saúde, acúmulo de trabalho, indisponibilidade de tempo e fragilidade da relação universidade-rede de saúde.

Conclusão:

Os preceptores são essenciais para a realização da prática profissional e percebem positivamente sua relação com os estudantes no exercício da preceptoria, bem como seu impacto no cuidado. Ante os desafios apontados, faz-se necessário que os preceptores estejam inseridos em programa de qualificação para a preceptoria e educação permanente em serviço. A parceria ensino-serviço deve ser fortalecida, a fim de possibilitar o exercício da preceptoria com impactos positivos para a equipe, o estudante, as pessoas, as famílias e as comunidades.

Palavras-chave: Educação Médica; Educação de Graduação em Medicina; Preceptoria; Atenção Primária à Saúde

Abstract:

Introduction:

Medical preceptorship is an activity found in all medical courses in Brazil and in most courses worldwide. Changes in Brazilian medical education have led to the inclusion of first and second-year students in professional practice, mainly in primary care, highlighting the importance of preceptorship. In the medical course at UFSCar, from the first year onwards students are placed in Family Health Practices under the supervision of professors and doctors working in those units.

Objective:

To understand physicians’ perceptions regarding the activity of preceptorship in the first cycle of the undergraduate medical course.

Methodology:

Exploratory study of a phenomenological nature with a qualitative approach. The study subjects were the preceptors of the first year medical students at UFSCar over the last five years. Individual interviews were conducted using semi-structured questions for data collection, and analyzed using the thematic categorial content analysis approach.

Results:

The preceptors supervise clinical appointments, home visits, community actions, collaborative interprofessional activities and case discussions; participate in reflections on practice, analysis and discussion of student products and evaluation, enabling the construction of individualized teaching strategies. The impacts of preceptorship were positively perceived, especially in the care of vulnerable individuals, by bringing the subjects closer to the team and creating comprehensive care plans. Preceptorship is seen as a stimulus for updating, training and reflection on the practice itself. As example of challenges, physicians reported difficulties with the health care team, work backlogs, lack of time and fragility in the relationship between university and health network.

Conclusions:

Preceptors are essential for the realization of professional practice, and they have a positively view of their relationship with students in the exercise of preceptorship, as well as its impact on care. In view of the challenges identified, it is essential for preceptors to be included in a qualification program for preceptorship and continuing education in service. The teaching-service partnership must be strengthened in order to enable the exercise of preceptorship with positive impacts for the team, students, people, families and communities.

Key words: medical education; education, medical, undergraduate; preceptorship; primary health care

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, o ensino médico vem sofrendo transformações em todo o mundo. Os cenários de práticas profissionais têm se diversificado, incluindo todos os níveis de atenção à saúde e não somente ambientes hospitalares, com atuação comunitária e ambulatorial, em ações de promoção, prevenção, assistência e recuperação da saúde. Trabalhos na área da educação médica evidenciam que currículos orientados por competências com integração curricular sistematizada e com forte inclinação para as práticas são mais eficazes na formação de futuros profissionais mais preparados para o mundo do trabalho e para as necessidades das suas localidades1)-(6.

O processo de ensino-aprendizagem nos cenários de prática é um fenômeno complexo, multidimensional e contínuo, e requer conhecimento sobre o paciente em sua totalidade e sobre o contexto em que os profissionais, estudantes e pacientes estão inseridos7. As atividades de prática profissional em cenários reais potencializam a formação médica. De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), os estudantes integram seus conhecimentos, suas habilidades e suas atitudes por meio da prática e do encontro com a pessoa sob seus cuidados ou sob os cuidados do(s) profissional(is) da equipe, e vivenciam as relações médico-paciente, médico-família e médico-comunidade, o trabalho em equipe e a profissão médica8. Dessa forma, torna-se cada vez mais importante o papel do preceptor que exerce a função de educador/professor clínico. Dada a polissemia da terminologia, ​​utilizou-se o conceito de preceptor para referir-se àqueles profissionais que supervisionam ou acompanham o processo ensino-aprendizagem nos cenários de prática5)- (7),(9.

O estudo faz-se relevante porque se entende que, atualmente, o desempenho do preceptor no acompanhamento dos estudantes é pouco conhecido e/ou sistematizado pelos docentes e/ou suas instâncias representativas de acompanhamento do desenvolvimento do currículo (como o Núcleo Docente Estruturante) e de tomada de decisão (como o Conselho de Curso).

Adicionalmente, posto que a inserção do aluno no contexto do serviço de saúde procura garantir legitimidade ao aprendizado, é problemático que trabalhos tenham encontrado como percepção dos próprios preceptores a falta de legitimidade de sua participação no ensino em saúde, relacionada à falta de formação e de compreensão de seu papel de docência10),(11.

Na defesa de que o preceptor participa do processo de ensino-aprendizagem dos estudantes de Medicina, é apropriado dar voz a esses profissionais a fim de compreender suas atividades e o papel que cumprem, bem como suas percepções e perspectivas próprias acerca de sua participação nesse processo. Este trabalho objetiva compreender as percepções e práticas dos médicos sobre o exercício da preceptoria na atenção primária nas duas primeiras séries do curso de graduação em Medicina da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

MÉTODO

Para atingir o objetivo da pesquisa, realizou-se um estudo exploratório de cunho fenomenológico e de abordagem qualitativa. Buscou-se compreender as percepções e os produtos das interpretações no processo do fazer cotidiano sob a ótica dos atores envolvidos com o problema em questão. Além disso, efetuou-se investigação de um grupo delimitado e focalizado, o que permitiu desvelar processos sociais ainda pouco conhecidos e/ou estudados para a compreensão da lógica interna e da problemática em estudo12.

O papel da preceptoria no processo de ensino-aprendizagem do curso de medicina da UFSCar tem importância crescente desde o início do curso, possibilitando o desenvolvimento das competências necessárias para o futuro médico generalista. O currículo do curso é orientado por competências que propiciam a integração entre teoria-prática e se utiliza de metodologias ativas de aprendizagem8. Está organizado em três ciclos educacionais com duração de dois anos cada. A Unidade Educacional Prática Profissional (UEPP) se desenvolve em cenários do mundo real do trabalho e focaliza o desenvolvimento, em contexto, da prática profissional.

Todos os preceptores do primeiro ciclo (n = 14) do curso de Medicina da UFSCar, atuantes nos últimos cinco anos, foram convidados a participar da pesquisa. Os critérios de exclusão foram: não resposta aos contatos após três tentativas via e-mail (n = 8) no intervalo de dezembro de 2020 a março de 2021 ou recusa em participar da pesquisa (n = 1). Do total de preceptores elegíveis, cinco colaboraram com a pesquisa. A pesquisa pautou-se pela perspectiva de que as informações prestadas por pessoas implicadas num tema de pesquisa podem representar o conjunto da categoria, preocupando-se menos com os aspectos que se repetem e considerando as singularidades e os significados; e de que o número obtido é o mínimo viável para a análise em questão, visto que a entrevista com alguém de um grupo é, ao mesmo tempo, um depoimento pessoal e coletivo13.

As entrevistas individuais foram utilizadas como técnica de pesquisa para a coleta de dados, como conversas com finalidade destinada a construir temas e informações pertinentes a um objeto de pesquisa12. A opção pela entrevista do tipo semiestruturada consistiu em perguntas abertas e fechadas, em que a direção da conversa pode ser dada alternadamente pelo entrevistador em alguns momentos, mas com flexibilidade que permita também ao entrevistado assumir o comando, representando ganho para reunir os dados segundo os objetivos propostos14. Os encontros para a coleta de dados foram realizados por meio da plataforma Google Meet, conforme distanciamento social preconizado pela instituição local durante a pandemia da coronavirus disease 2019 (Covid-19). Todos os procedimentos éticos foram respeitados, e o projeto recebeu aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da UFSCar: Parecer nº 4.291.357. As entrevistas tiveram duração mínima de 12 minutos e máxima de 50 minutos.

A transcrição do material utilizou-se da recomendação da transcrição não naturalista15. A audição foi realizada em dois momentos: 1. para descrição completa e minuciosa; e 2. para validação da primeira transcrição realizada e exclusão de vícios de linguagem, elementos idiossincráticos do discurso e termos que pudessem sugerir alguma identificação do entrevistado. Como forma de preservar a identidade dos indivíduos entrevistados, tanto na análise dos dados quanto na redação do artigo, os nomes foram alterados para preceptor A, B, C, D e E; e o gênero para o masculino nas citações, segundo a norma culta da língua portuguesa.

Os dados foram analisados a partir da abordagem da análise de conteúdo12, do tipo categorial temática. A análise dos dados seguiu os dez passos recomendados por Minayo16 para pesquisas qualitativas. Destaca-se que, durante todo o processo de análise, buscou-se compreender os significados no contexto das falas. Segundo essa autora, para compreender é preciso levar em conta a singularidade do indivíduo, e a experiência e a vivência de uma pessoa ocorrem no âmbito da história coletiva e são contextualizadas e envolvidas pela cultura do grupo em que ela se insere.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Perfil dos preceptores

Participaram da pesquisa cinco preceptores: três do sexo feminino e dois do sexo masculino. As idades variaram de 33 a 46 anos. O tempo de formado variou de oito e 20 anos; e o tempo de preceptoria, de três a 20 anos. Todos os preceptores são especialistas em Medicina de Família e Comunidade e possuem pós-graduação, e três possuem mestrado. Os preceptores atuaram no primeiro ciclo entre 2016 e 2020.

Acompanhamento dos estudantes no fazer da prática profissional

Durante a prática no cenário real, o estudante é inserido em um contexto sociocultural, em sua maioria, com realidades distintas da sua experiência pessoal. Nesse sentido, o preceptor é figura importante no primeiro contato que o estudante tem com situações de vulnerabilidade:

É você receber o aluno, entender e acolher o aluno dentro desse contexto também. Às vezes, o aluno nunca tinha saído da casa dele, primeiro ano, vai em uma periferia, vai visitar uma casa muito simples, às vezes uma pessoa que nunca teve esse contato, aprender a lidar com isso, aprender a lidar com as diferenças, apoiar aluno nessas questões, orientar o aluno em como vivenciar isso (Preceptor A).

A exposição a diferenças sociais e culturais é uma das grandes contribuições da inserção dos estudantes de graduação na atenção primária à saúde17, o que pode estimular não apenas reflexões, mas também gerar desconfortos por parte dos estudantes. A percepção das dificuldades encontradas pelos estudantes durante essa exposição e o suporte afetivo aliado a essa percepção contribuem para a aprendizagem centrada no estudante e para a criação de vínculo com o preceptor, o serviço e o território em que está inserido18. Essa estratégia é potente na facilitação do ensino em serviço, bem como na construção crítica do papel social da medicina no Sistema Único de Saúde (SUS) (19, principalmente na atenção primária à saúde19),(20, bem como na aquisição de competência cultural e dialógica pelos estudantes17.

Nas entrevistas, os preceptores relataram supervisionar e/ou acompanhar os estudantes nas unidades de saúde e nos territórios das áreas de abrangência, nas seguintes atividades: atendimento médico generalista; visitas domiciliares; ações com a comunidade; ações colaborativas interprofissionais; e discussão de casos individuais e coletivos com levantamento de necessidades de saúde e planos de cuidado.

Vivenciar um pouco os atendimentos, vivenciar as visitas domiciliares ENT#091;...ENT#093; participar das atividades de rotina da unidade, da sala de vacina, do acolhimento, da sala de curativo, da sala de pequenos procedimentos. ENT#091;...ENT#093; Os alunos são convidados a participar de algumas atividades de educação em saúde dentro da unidade (Preceptor A).

Eles acabam conhecendo a rotina da unidade, a função de todos os integrantes, acabam passando pelos espaços da unidade (Preceptor B).

Nos relatos, percebe-se que o processo de integração do estudante ao território e ao serviço de saúde ocorre de forma concomitante com a aquisição de competências profissionais em atenção, educação e gestão em saúde21, o que permite o cuidado ampliado à população e facilita a formação humanística e crítica dos estudantes inseridos no território20.

Acompanhamento dos estudantes no processo de ensino-aprendizagem

As vivências nos cenários reais subsidiam reflexões sobre a prática profissional, a identificação de necessidades de aprendizagem e a elaboração de plano educacional individualizado. Nesse sentido, os preceptores são atores-chave no processo de aprender a aprender.

No projeto político-pedagógico do curso, é descrito o movimento contínuo de exposição a disparadores, discussão e formulação de síntese provisória com hipóteses e questões de aprendizagem, estudo individual e discussão em grupo para compartilhamento do conhecimento e da construção de uma nova síntese8),(22. Esse movimento é utilizado pelos preceptores, que relatam momentos de reflexão com os estudantes, com a percepção das necessidades de aprendizagem a partir de situações reais significativas: “O aluno traz a discussão de algum tema que ele atendeu, ENT#091;...ENT#093; necessidades de saúde que levantam, os estudos que eles trazem ENT#091;...ENT#093;, os disparadores que eles criam ENT#091;...ENT#093; e que depois trazem essa discussão” (Preceptor A).

Nesse ponto, é evidente a apropriação consciente dos preceptores de estratégias pedagógicas para a facilitação do processo de ensino-aprendizagem. Outras pesquisas10),(18),(23)-(25 corroboram que as potências do ensino em serviço são ampliadas quando o preceptor percebe seu papel de educador e quando são utilizadas estratégias de aprendizagem ativa e centradas no estudante, como a descrita.

Outra forma de acompanhamento dos estudantes é a leitura dos produtos construídos por eles, como o portfólio reflexivo individual, que é uma ferramenta de reflexão e avaliação longitudinal utilizada em todas as séries8: “Você vai avaliando através do portfólio o quanto o aluno consegue construir de uma história de vida, uma história clínica, de levantar necessidades de saúde, pensar o plano conjunto de cuidado” (Preceptor C).

Nos portfólios, encontram-se narrativas criadas pelos estudantes a partir das situações significativas vividas na prática profissional, como o acompanhamento longitudinal de famílias em visitas domiciliares. A criação de histórias de vida é parte da estratégia de uso de narrativas na educação médica, de forma a promover a empatia e a reflexão, ao interligar habilidades de escuta, interpretação e escrita, objetivando o cuidado integral e centrado na pessoa17),(19),(26. Os estudantes também constroem histórias clínicas e pensam nas necessidades de saúde, e o preceptor acompanha o desenvolvimento deles ao ler esses produtos.

Esses produtos são utilizados pelo preceptor para incluir e criar demandas significativas de aprendizagem para o estudante na elaboração e implementação de planos de cuidado a partir da realidade em que estão inseridos, como preconizam as diretrizes para o ensino na atenção primária17. Além disso, os portfólios podem ser uma ferramenta educacional de apoio aos preceptores para a aprendizagem centrada no estudante e para o estímulo da capacidade de aprender a aprender, aspectos previstos nas DCN21 e no projeto pedagógico do curso8.

As avaliações dos estudantes pelos preceptores são realizadas tanto verbalmente, ao longo do estágio, quanto registradas em documentos específicos do curso, como a Avaliação de Desempenho do Processo de Ensino-Aprendizagem (Adpea). O instrumento é preenchido pelos preceptores e docentes que avaliam o desempenho dos estudantes nas atividades, e contém recomendações individualizadas e o conceito obtido8.

Assiduidade, postura na unidade, como é o desenvolvimento dele na atividade prática, como é o registro do atendimento dos atendimentos deles (Preceptor B).

Faço avaliação do portfólio e faço a Adpea na perspectiva do preceptor. Pensando no primeiro ano, se o aluno conseguiu desenvolver uma história de vida, se consegue redigir isso de maneira que comunique essa informação, se consegue fazer uma história clínica e redigir isso de maneira adequada, se se mostra interessado na unidade, se cumpre com os pactos de trabalho, de estar presente, se ele demonstra habilidade pra identificar necessidade de estudo (Preceptor C).

Na prática profissional do primeiro ciclo, fica evidente a importância da parceria entre preceptor e docente para o acompanhamento do estudante. A participação do preceptor nas atividades de reflexão da prática (RP), movimento previsto na espiral construtivista, almeja a melhoria das capacidades de aprender, trabalhar em grupo e pensar em intervenções na realidade22.

A interação preceptor, docente e discente nos cenários de prática profissional e nas RPs permite a avaliação visando a aprendizagem individualizada e centrada no estudante de acordo com as competências esperadas.

Converso com o docente, a respeito de um aluno ENT#091;...ENT#093; que esteja com um pouco mais de dificuldade ou que precise de uma certa atenção. Isso é feito ENT#091;...ENT#093; com o aluno também, para que não fique surpreso e entenda que ele está no processo de aprendizado (Preceptor A).

A gente também participava das Reflexões da Prática ENT#091;...ENT#093; e, conforme a evolução, tinha uma discussão trabalhada junto com o professor. É em conjunto” (Preceptor D).

A gente tentava trocar muita informação com relação aos estudantes, porque o docente também acompanha e desenvolve as etapas da espiral construtivista. ENT#091;...ENT#093; Então a gente conseguiu tecer ENT#091;estratégiasENT#093; conjuntamente, ter uma visão um pouco mais ampliada e integrada de como é que os alunos estavam conseguindo se desenvolver (Preceptor E).

Estudos mostram que o estágio longitudinal permite a criação de vínculo afetivo e corresponsabilização quanto aos resultados do ensino em serviço por preceptores e estudantes, o que se traduz em melhoria na aprendizagem dos estudantes inseridos nele27),(28. As avaliações longitudinais permitem o progresso dos estudantes em atributos profissionais quando aliadas à criação de estratégias de aprendizagem pelos preceptores28.

No contexto da UFSCar, a UEPP tem caráter longitudinal, o que possibilita que as estratégias criadas sejam implementadas a longo prazo com flexibilidade para adaptações de rotas de forma colaborativa entre os sujeitos envolvidos. A sistemática de avaliação na UEPP é utilizada como forma de “avaliação para a aprendizagem”, em contraposição aos modelos tradicionais de avaliação “somativa do aprendizado” (29.

Impactos dos estudantes na assistência

Os impactos dos estudantes foram encarados como positivos, principalmente para famílias e indivíduos mais vulneráveis.

Principalmente para as famílias mais dependentes, com mais necessidade de saúde, a presença do estudante, ela facilita a ligação entre essas famílias e a unidade. A presença do estudante melhora a atenção a essas famílias e também acaba ajudando no cuidado, porque os alunos ficam mais próximos, veem mais, assistem mais e trazem essa problemática para mim (Preceptor A).

Eu acho que as histórias que estão colhidas, as reflexões que são feitas para as famílias, o atendimento para os pacientes é muito bom ENT#091;...ENT#093; porque são histórias riquíssimas, muito bem contadas, a análise que é feita, e o plano de cuidado é bem legal (Preceptor D).

O contato próximo dos estudantes com as pessoas e famílias se traduz em maior vinculação com o serviço de saúde. Além disso, possibilita a identificação de necessidades de saúde e a pactuação de planos de cuidado ampliado17.

Os produtos construídos pelos estudantes são usados para qualificar o cuidado no serviço em que eles estão inseridos:

Pensando que o aluno não cuida só da parte do cuidado individual, mas o coletivo também, faz a gente refletir sobre como tem sido a execução dos programas. Já teve grupo de aluno que fez um estudo sobre como está sendo o atendimento à saúde da criança, aí você vai lá e reflete sobre como está acontecendo lá na sua unidade (Preceptor C).

Isso demonstra a capacidade de fortalecimento do serviço de saúde quando ele é utilizado como espaço educacional em que a reflexão sobre a prática é estimulada. Os resultados da pesquisa corroboram outros estudos em relação aos impactos dos estudantes no território, visto que apoiam a ampliação da compreensão do processo de saúde-doença30, a contribuição social do estudante, principalmente ao lidar com as diferenças, e o favorecimento da interdisciplinaridade e da resolubilidade clínica, por lidarem de forma longitudinal com problemas complexos e multifatoriais17. Atividades interprofissionais e intersetoriais permitem uma visão ampliada do cuidado em saúde, aliada à criação de estratégias e ações inovadoras no território17.

A relação entre o preceptor e o estudante foi percebida como estimulante para a atualização, capacitação e reflexão no que concerne à assistência prestada: “Contribui com meu propósito, com a minha capacitação, com a minha atualização, com meu interesse em manter-me atualizado, em manter-me atento” (Preceptor A).

Dessa forma, o impacto da inserção dos estudantes se relaciona fortemente com a qualificação do trabalho do preceptor. Nossos achados reforçam resultados de outras pesquisas que revelam que os preceptores são cotidianamente tensionados à reflexão sobre os atendimentos realizados e a atualização do conhecimento, e isso pode se traduzir em melhora da assistência prestada10),(31),(32.

Desafios relacionados à preceptoria

Embora sejam identificados fatores positivos para o estudante, o preceptor e a população, as entrevistas trouxeram desafios no trabalho com a equipe e na relação do município com a instituição de ensino.

Os entrevistados relatam ruídos com outros membros da equipe com relação à remuneração da supervisão do preceptor e quando os estudantes são vistos como uma demanda adicional sobre a equipe.

Tem toda uma tensão envolvendo a remuneração do preceptor e a não remuneração da equipe em relação aos alunos, e isso desgasta um pouco as relações de trabalho (Preceptor C).

O aluno, principalmente aluno do primeiro e segundo ano, não ajuda quase nada. A gente sabe que ele é importante, eu gosto de ter aluno, mas a gente precisa reconhecer que o aluno dá trabalho (Preceptor C).

Em algumas unidades há resistência e só enxerga que o aluno está atrapalhando. Existe isso, infelizmente (Preceptor E).

As mudanças no processo de trabalho e a indisponibilidade de tempo para a preceptoria são fatores sensíveis ao bom acompanhamento dos estudantes pelos preceptores, os quais são potencializados pela frágil articulação entre a universidade e a rede municipal de saúde.

É uma fragilidade essa correria que eu vivo, que eu acho que eu não consigo me dedicar tanto à atividade de preceptoria. Se o aluno é mais proativo, se ele está mais interessado, se ele vem mais atrás e demanda mais de mim, eu cumpro com meu papel. Se é um aluno mais recolhido, eu não vou conseguir dar conta (Preceptor C).

Nós não temos um horário disponível para estar com os estudantes. Nós temos que criar dentro do dia a dia um horário (Preceptor A).

O excesso de carga de trabalho é uma queixa encontrada em cenários de ensino, em serviço de estudantes das primeiras séries33. A relação conflituosa entre a produtividade requerida pelo serviço e as demandas do trabalho de preceptoria leva à dificuldade de construir momentos de aprendizagem significativos com os alunos, mesmo no internato médico10),(34, e pode contribuir para a percepção de que a preceptoria pode interferir na qualidade da atenção prestada35.

O distanciamento da instituição de ensino pode gerar incertezas quanto ao papel pedagógico e à capacidade de ensino do preceptor34),(36, o que, segundo outros trabalhos, pode levar à fragilização da aprendizagem e contribuir para a desvinculação desse profissional com a universidade10),(34),(36)-(38: “Não tem muito uma instrução pra gente. É tudo muito em cima da hora (Preceptor D).

Quando perguntados sobre a capacitação para preceptoria, os médicos reportaram que, durante a residência em Medicina de Família e Comunidade houve treinamento para a preceptoria atuando com internos e residentes. Todos negaram o recebimento de qualquer formação focada na preceptoria para a graduação ofertada pela universidade. Um dos preceptores narrou que houve busca ativa de sua parte de um curso particular para a qualificação da preceptoria para graduação em Medicina. Todos os entrevistados relataram interesse em receber qualificação para a preceptoria.

Na residência, a gente tem formação voltada para preceptoria, então, quando você é o r2, você vira preceptor do internato e do r1. ENT#091;...ENT#093; Tem alguns conteúdos dentro da residência que acabam sendo formativos na perspectiva de preceptoria (Preceptor E).

Eu gostaria de fazer a qualificação. Acho que ela te dá ferramentas, que vai ajudar no plano pedagógico do estudante, te dá uma diretriz, te dá recursos. Eu acho que melhora a qualificação do profissional para com o estudante (Preceptor B).

Só se não me tomasse mais tempo, que eu estou sem tempo. ENT#091;...ENT#093; Sempre a gente quer mais qualificação. ENT#091;...ENT#093; Sempre é bom aprender instrumentos de ensino e de avaliação (Preceptor D).

A proximidade entre universidade e serviço, como atividades de educação e capacitação e acesso a espaços da universidade, é um ponto importante para o recrutamento e a retenção de preceptores, aspecto também levantado em outros trabalhos10),(37),(38. Em uma experiência encontrada39, a capacitação de preceptores resultou na percepção de instrumentalização para as funções pedagógicas e assistenciais, bem como permitiu melhor compreensão da possibilidade de utilizar as atividades realizadas no cuidado como disparadores para a aprendizagem significativa, destacando-se o papel do preceptor como educador.

Limitações do estudo

A participação dos preceptores na pesquisa foi abaixo da expectativa dos autores, embora se considerem causas multifatoriais para a não adesão: férias e afastamentos prolongados que impossibilitaram o contato durante o período de coleta de dados; a pandemia da Covid-19, que está exigindo reorganização e maior dedicação das equipes no cuidado às pessoas, e a interrupção da preceptoria por medidas sanitárias, com a retirada dos estudantes dos cenários de prática. Além disso, esse resultado pode revelar o quão frágil se encontra a relação entre a universidade e o sistema de saúde municipal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os preceptores que aceitaram participar da pesquisa trouxeram extensas evidências das potencialidades e fragilidades da preceptoria no primeiro ciclo do curso, revelando a compreensão de sentidos e significados internos do grupo de preceptores. Além disso, compreende-se que os dados contemplam o conjunto das características, experiências e expressões almejadas pelo estudo.

No primeiro ciclo da graduação em Medicina da UFSCar, os preceptores são essenciais para a realização das atividades da prática profissional e avaliam positivamente sua relação com os estudantes no exercício da preceptoria, bem como no cuidado às pessoas e famílias.

Os médicos possuem papel importante no suporte emocional, acompanham os estudantes em atividades práticas e participam ativamente do processo de ensino-aprendizagem com discussões de casos, feedback oportuno e cocriação de estratégias de aprendizagem individualizadas. As atividades realizadas com os estudantes são potentes na aproximação de usuários, principalmente os mais vulneráveis, com o sistema de saúde e podem induzir a reflexão sobre a própria prática e a criação de estratégias de prevenção, promoção e atenção à saúde no território.

Diante dos impactos positivos e dos desafios identificados no nosso estudo e corroborados na literatura, indica-se o uso dos resultados para subsidiar a tomada de decisões do curso de Medicina da UFSCar e a continuidade de pesquisas que procurem investigar outros sujeitos envolvidos na preceptoria. Reforça-se a importância do preceptor na inserção do estudante no mundo real do trabalho desde as séries iniciais e da oferta regular de um programa de formação e educação permanente para os preceptores. Aliado a isso, destaca-se a necessidade de urgente fortalecimento da aliança entre universidade e sistema de saúde para uma rede saúde-escola atuante na formação de profissionais de saúde no e para o SUS.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos aos(às) preceptores(as) do curso de Medicina da UFSCar, pela valiosa contribuição para este estudo.

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2Avaliado pelo processo de double blind review.

FINANCIAMENTO Este projeto recebeu financiamento de bolsa estudantil do Programa Institucional de Iniciação Científica e Tecnológica da UFSCar.

Recebido: 10 de Maio de 2022; Aceito: 27 de Maio de 2022

joaogaion@estudante.ufscar.br renatagbk@ufscar.br alinenordi@ufscar.br

Editora-chefe: Rosiane Viana Zuza Diniz. Editora associada: Kristopherson Lustosa Augusto.

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES

Aline Barreto de Almeida Nordi e Renata Giannecchini Bongiovanni Kishi foram responsáveis pela conceptualização, administração e supervisão do projeto, pelo planejamento metodológico da investigação, pela análise dos dados e pela escrita do artigo. João Pedro de Barros Fernandes Gaion participou da investigação, da análise dos dados e da escrita do artigo.

CONFLITO DE INTERESSES

Declaramos não haver conflito de interesses.

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