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Educação e Filosofia

Print version ISSN 0102-6801On-line version ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.25 no.spe Uberlândia  2011  Epub Jan 31, 2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.issn.0102-6801.v25nespeciala2011-03 

Dossiê: Descartes e o Grande Século

GENEROSIDADE E SUBSTANCIALIDADE DA ALMA SEGUNDO DESCARTES*

Laurence Renault** 

**Professora da Universidade de Paris - Sorbonne (Paris IV). E-mail: laurence.renault@paris-sorbonne.fr


RESUMO

O que é o eu segundo Descartes? Para responder a esta questão é preciso levar em conta não somente as análises a respeito do ego no desenvolvimento da metafísica cartesiana, mas também as referentes a uma segunda consideração sobre o eu que se encontra nos escritos de Descartes, a qual reside nas análises consagradas à generosidade. Se a primeira consideração deriva da metafísica e se atém ao ego enquanto substancialmente distinto do corpo, a segunda consideração deriva do que se poderia chamar de a antropologia cartesiana, que Descartes anuncia no momento da redação dos Princípios da Filosofia, e da qual se observa o desenvolvimento nas Paixões da Alma. Trata-se, nesse caso, de um eu que experimenta a si mesmo através de uma paixão, isto é, não como puro ego, mas no horizonte de sua união bem estreita com o corpo. Esta união não repõe em causa a distinção, como se diz, pois, por mais estreita que ela seja, a alma e o corpo estão unidos por unidade de composição e não por unidade de essência. Em vez disso, ela coloca esta distinção à prova, uma vez que o eu se vê por ela ameaçado de ser inserido no determinismo material, isto é, em certo sentido, ele se vê ameaçado de “materialização”. Ora, é à generosidade que cabe precisamente afirmar a distinção substancial entre a alma e o corpo na relação que a alma mantém com o corpo, pois é ela que preserva a vontade de uma tal inserção no determinismo material. Tal é a ótica que adotaremos aqui na análise da noção de generosidade. Tratar-se-á aí de estudar a maneira pela qual a antropologia cartesiana renova o tratamento da substancialidade do eu, no seio do pensamento cartesiano.

Palavras-chave: Descartes; Generosidade; Substancialidade do eu

RÉSUMÉ

Qu’est-ce que le moi selon Descartes ? La réponse à cette question passe par la prise en compte, non seulement des analyses de l’ego dans les développements de sa métaphysique cartésienne, mais aussi de la seconde approche du moi que l’on rencontre dans les écrits de Descartes, laquelle réside dans les analyses consacrées à la générosité. Si la première approche relève de la métaphysique et atteint l’ego en tant que substantiellement distinct du corps, la seconde approche relève de ce qu’on peut appeler l’anthropologie cartésienne, que Descartes annonce au moment de la rédaction des Principes de la philosophie, et dont on observe le développement dans les Passions de l’âme. Il s’agit dans ce cas d’un moi qui s’éprouve lui-même à travers une passion, c’est-à-dire non pas comme pur ego, mais dans l’horizon de son union très étroite au corps. Cette union ne remet pas en cause la distinction, comme l’on sait, puisqu’aussi étroite soit-elle, l’âme et le corps ne sont unis que par unité de composition, et non par unité d’essence. En revanche, elle met cette distinction à l’épreuve, puisque le moi se voit par elle menacé d’insertion dans le déterminisme matériel, c’est-à-dire, en un sens, de “matérialisation”. Or, c’est à la générosité qu’il revient précisément d’affirmer la distinction substantielle de l’âme et du corps dans le rapport que l’âme entretient avec le corps, parce que c’est elle qui préserve la volonté d’une telle insertion dans le déterminisme matériel. Telle est l’optique que nous adopterons ici dans l’analyse de la notion de générosité. Il s’agira par là d’étudier la manière dont l’anthropologie cartésienne renouvelle l’approche de la substantialité du moi, au sein de la pensée cartésienne.

Mots clé : Descartes; Générosité; Substantialité du moi

1. A generosidade, apercepção do eu

Precisemos, primeiramente, o sentido em que se pode dizer que o discurso cartesiano sobre a generosidade não se reduz a ser apenas uma análise de uma certa paixão, mas concerne ao discernimento sobre o que é o eu. A generosidade está ligada à maneira pela qual um indivíduo humano considera-se a si mesmo e como se avalia a si mesmo, ela envolve a afirmação daquilo em que ele considera que reside sua própria grandeza. Somente o generoso tem, segundo Descartes, uma justa percepção do que constitui a grandeza do homem. Mas essa análise cartesiana sobre a generosidade somente pode relacionar-se com a grandeza do homem por repousar sobre uma explicitação do que constitui o eu.

O generoso se caracteriza, com efeito, por um primeiro traço, que consiste em seu reconhecimento de que “não há nada que lhe pertença realmente a não ser a livre disposição de suas vontades”. 1 Isso significa, em primeiro lugar, que nada está em seu poder tanto quanto esta livre disposição de suas vontades, no sentido em que isso é a única coisa que está plenamente em seu poder, cuja posse não depende senão de si. Mas isso significa também, consequentemente, que nada lhe é mais próprio do que essa disposição livre de suas vontades, pois ela não lhe poderia ser subtraída enquanto ele a possui, nem pode ele perdê-la, a não ser abandonando-a e, mesmo nesse caso, permanece plenamente em seu poder recuperá-la. Ela é assim, quer ele a possua ou não, mais sua do que quaisquer outras determinações que puderem advir-lhe.

Quanto a essas outras determinações, com efeito, tais como a riqueza, as honrarias, a beleza, o saber, a sua posse não está inteiramente em seu poder, mas depende, ao menos em parte, do acaso. Nesse sentido, essas outras determinações jamais lhe pertencem verdadeiramente, pois elas lhe podem ser subtraídas por causas exteriores. Não são verdadeiramente suas, mesmo que ele as possua.

O generoso é, então, aquele que faz uma discriminação, no seio das características que ele pode adquirir e perder, entre aquela que lhe é própria, mesmo que ele não a possua, e aquelas que lhe permanecem de algum modo estranhas, mesmo quando elas lhe pertençam. A generosidade repousa, assim, sobre uma delimitação do que é verdadeiramente ou autenticamente o eu no homem.

Aqui intervém, é verdade, o tema da grandeza do livre arbítrio em relação a todo outro bem, uma vez que, se o livre arbítrio está no coração da consideração de que o generoso tem de si mesmo e dos outros, não é somente porque está absolutamente em nosso poder exercê-lo, mas também porque, de todos os bens que podemos adquirir, ele é o maior. Contudo, essa grandeza parece ser, num certo sentido, secundária, pois não é independente da relação que apenas o livre arbítrio mantém com nosso poder. Esta relação com o nosso poder é, ao contrário, a razão principal que nos leva a colocar nele a nossa grandeza: “a grandeza de um bem na nossa consideração não deve ser medida apenas pelo valor da coisa em que ele consiste, mas também principalmente pelo modo segundo o qual ele se relaciona conosco”; ora, o livre arbítrio é, de todos os bens, precisamente “aquele que é mais propriamente nosso” 2 e é principalmente nisso que ele é o maior. Portanto, é principalmente pelo fato de que não são totalmente nossos que os demais bens - a beleza, a riqueza, o saber, as honrarias - são inferiores e sem importância na estima que o generoso faz de si mesmo. É bem por isso que excluí-los daquilo que faz a grandeza de si equivale a excluí-los de si. A estima do que faz a nossa grandeza se apoia, portanto, no discernimento daquilo que nos é o mais próprio. A determinação do que faz a dignidade do eu pressupõe a determinação do que constitui o eu.

2. Singularidade e “materialização” do eu

Resulta disso que o eu do generoso, não mais do que o ego da metafísica, não se caracteriza pela sua singularidade. A concepção cartesiana da generosidade conduz, com efeito, a excluir do autêntico eu aquilo que singulariza os indivíduos humanos uns em relação aos outros. Primeiramente, a livre disposição de nossas vontades, por estar absolutamente em poder de cada um, pode ser exercida por qualquer indivíduo humano, pois “os outros, tendo o seu livre arbítrio tanto quanto nós, também podem bem usá-lo”. 3 Ela nada tem, portanto, desingularizante.

Além do mais, os outros bens diferentes da livre disposição de nossas vontades, cuja posse nos singulariza uns em relação aos outros precisamente porque ela não está em nosso poder mas depende do acaso, são, por essa mesma razão, neutralizados, no sentido de que não contam para nada na estima do eu autêntico. Assim, tudo o que nos torna singulares, no sentido de que o fato de possuí-lo nos distingue dos outros, não poderia, por essa mesma razão, ser considerado como verdadeiramente nosso. Desse modo, o que faz o eu não é precisamente o que o torna singular. O que singulariza o indivíduo humano é precisamente estranho ao eu, permanece de algum modo extrínseco a ele, e deve permanecer extrínseco se o eu não quiser se confundir com o que ele não é.

É bem por isso que o orgulho, para Descartes, é o oposto da generosidade, isso significa que ele recobre todas as formas de apercepção inadequada de si mesmo: “todos os que concebem boa opinião de si mesmos por alguma outra causa, qualquer que ela possa ser, não tem uma verdadeira generosidade, mas apenas um orgulho”. 4 O orgulho consiste não somente em estimar a si mesmo em função dos bens exteriores que se possui, mas em se estimar a si mesmo tanto mais quanto mais raros sejam esses bens e mais singularizantes para aqueles que os possuem, sendo estes bens “costumeiramente tão mais estimados quanto menos pessoas sejam os seus possuidores”. 5 Descartes recusa, portanto, toda concepção do eu em que se pretenda fazê-lo consistir no que singulariza um indivíduo em relação aos outros. Caracterizar o eu por sua singularidade não pode ser senão o sinal de um desconhecimento daquilo que nós somos: “são os que se conhecem menos, que mais estão sujeitos a se orgulhar e a se humilhar mais do que devem”. 6

Na generosidade, portanto, se alcança apenas um sujeito idêntico de um indivíduo a outro, e que designa sob essas relações o ego: tudo se passa como se a concepção cartesiana do generoso sofresse deficiências comparáveis àquelas da reflexão sobre o ego e sua problemática individuação. Observa-se, no caso do generoso, como no caso do ego, a mesma ausência de todo princípio de individuação.

Como se sabe, a metafísica cartesiana não fornece os meios para pensar a distinção entre os espíritos. A individuação do ego permanece problemática por causa do critério cartesiano de distinção substancial, e de seu horizonte primeiro de elaboração (aquele da distinção entre duas substâncias de natureza diferente: o ego e a res extensa). O critério da distinção de substâncias reside na distinção das essências. Duas coisas são distintas substancialmente na medida em que têm essências que nada têm em comum, de tal modo que não haja nenhuma conexão entre elas. Isso permite estabelecer que o corpo e a alma são substancialmente distintos, mas põe um problema, em contrapartida, quando se trata de distinguir duas substâncias de mesma natureza, como duas almas, dois sujeitos pensantes. Descartes, no entanto, não propõe nenhum outro meio para distinguir substâncias de mesma natureza. Ele se contenta, em certo sentido, em afirmar a pertinência de seu critério de distinção substancial nesse horizonte da distinção entre duas substâncias de mesma natureza, como o atesta o artigo 60 da primeira parte dos Princípios da Filosofia. 7 A metafísica cartesiana não nos dá, portanto, os meios de discernir a individualidade de uma substância de certa natureza.

Resta que o que pode parecer como deficiência da doutrina cartesiana do ponto de vista da metafísica, da qual Espinosa notadamente tirará as lições da proposição 5 da primeira parte da Ética, 8 se explica, ao contrário, de um modo totalmente diferente no horizonte da antropologia: o eu do generoso não é singular, se se entende por isso que ele teria características totalmente singulares, precisamente porque o que torna o eu autêntico, não alienado àquilo que não depende dele e àquilo que não é ele, não é precisamente algo singular. Perguntar por um princípio de individuação para o generoso já é deixar escapar o eu autêntico que discerne a generosidade, pois já é, num certo sentido, “materializá-lo”.

O que está em jogo na generosidade é, com efeito, a afirmação pelo eu da distinção substancial entre a alma e o corpo, de um modo muito particular, da substancialidade da alma, dito de outro modo, de sua capacidade de ser e agir independentemente do corpo. Com efeito, a união com o corpo representa para a alma uma ameaça, a qual consiste bem precisamente no fato de que a alma, sofrendo a ação do corpo, se arrisca a ser inserida de algum modo no determinismo material. Com efeito, a ação do corpo sobre a alma induz as paixões da alma que “incitam e dispõem a alma a querer as coisas para as quais elas preparam o corpo”.9 Descartes descreve no coração do fenômeno passional um puro mecanismo pelo qual a ação de um objeto sobre o nosso corpo induz, por intermédio dos nervos, um certo movimento dos espíritos animais no cérebro, o qual induz, por sua vez, um certo movimento dos músculos de nosso corpo, puro mecanismo e puro determinismo, os quais se apresentam também entre os animais, quando, por exemplo, o ruído de um tiro de fuzil faz naturalmente fugir uma perdiz. No caso do homem, esse encadeamento puramente mecânico é acompanhado de uma paixão da alma, na medida em que esse movimento afeta, em sua passagem no cérebro, a glândula pineal, lugar de interação entre corpo e alma. 10 A paixão que disso nasce na alma, a qual, nesse caso, seria o medo, não tem por função natural produzir o movimento de fuga do corpo, cuja causa é puramente mecânica, mas sim fazer cooperar a vontade com o movimento que o mecanismo corporal provoca. Nisso, pode-se dizer que a união entre corpo e alma, assim como o fenômeno passional que resulta dela, ameaçam inserir a alma no determinismo que rege a matéria, a ponto de conduzi-la a aquiescer a isso.

O orgulho, no que lhe concerne particularmente, trata-se de uma paixão que não parece ter um equivalente puramente mecânico entre os animais, uma vez que o liame entre o movimento dos espíritos induzido pelas impressões externas e os movimentos musculares parece aí condicionado pelo juízo que nos faz colocar nossa grandeza na posse de bens exteriores. Mas essa paixão também não contribui para inscrever a ação humana em um determinismo comparável àquele que caracteriza as paixões, tais como o medo, por exemplo. A diferença é que a instituição da correlação entre os dois movimentos parece reenviar à própria alma, e não originar-se de um puro encadeamento mecânico. O orgulho, com efeito, coloca a estima e o desprezo de si na dependência daquilo que sobrevém ao indivíduo, de sorte que, de uma maneira muito manifesta, são os acontecimentos que determinam as ações do orgulhoso: “o movimento dos espíritos que […] causa [a estima e o desprezo de si] é assim tão manifesto que modifica mesmo o semblante, os gestos, as maneiras e de um modo geral todas as ações daqueles que concebem uma melhor ou pior opinião de si mesmos do que habitualmente”. 11 Segue-se que podemos dizer que o orgulho é a paixão pela qual a alma institui por si mesma uma correlação entre os movimentos dos espíritos induzidos por aquilo que provoca impressão sobre ela e aqueles que determinam a ação do corpo, correlação na qual se exprime o desconhecimento da alma relativamente à sua liberdade e à sua natureza própria, uma vez que ela volta a se tornar escrava do acaso. Esta correlação é tão mais perversa, visto que não provém da união entre alma e corpo, mas resulta de uma maneira pela qual a alma abdica 12 de suas prerrogativas.

A generosidade, enquanto é ao mesmo tempo o remédio para todas as paixões e, mais particularmente, o oposto do orgulho, é a paixão pela qual, em sua união com o próprio corpo, a alma afirma sua diferença substancial, manifestando e exercendo sua capacidade de subtrair sua ação da causalidade corporal, isto é, de se autodeterminar. Ela consiste, portanto, para a alma, em afirmar não somente sua diferença substancial em relação ao corpo, mas ainda a superioridade ontológica da substância pensante, capaz de autodeterminação, sobre a substância corporal.

3. Generosidade e alteridade

A ausência de singularidade do generoso não testemunha apenas a afirmação da distinção substancial entre a alma e o corpo. Ela implica os outros nessa distinção. Com efeito, essa ausência de singularidade está ligada ao fato de que o generoso somente concede valor a um bem que, sendo por completo aquilo que lhe é mais próprio, é também, ao menos em direito, o mais comum, no sentido de que todos podem possuí-lo. Assim, a percepção que o generoso tem de sua grandeza é também a percepção da grandeza dos outros. A estima de si autêntica, portanto, não tem de modo nenhum o sentido de uma relação privilegiada consigo mesmo. O sujeito da generosidade é um sujeito que envolve, na estima que tem de si mesmo, a estima do outro.

Além disso, o discernimento do que nos é próprio na generosidade não somente permite a consideração dos outros, mas ainda implica a estima dos outros, uma vez que o que nos é próprio não se atesta enquanto tal senão pelo fato de que é também o mais comum. É porque a boa vontade é, por direito, acessível a todos os homens que é manifesto que ela não depende do acaso, mas se encontra em nosso poder, contrariamente aos outros bens. Aquilo que nos é mais próprio somente pode sê-lo, porque ele é o mais comum. A generosidade implica, portanto, necessariamente uma consideração do outro, ela passa pelo fato de considerar o outro como o nosso igual.

Além disso, Descartes afirma que a perfeição última da generosidade consiste em fazer passar o interesse do outro adiante do nosso: os generosos “não estimam nada maior do que fazer o bem aos outros homens e menosprezar seu próprio interesse por esse tema”. 13 Não somente a generosidade envolve o reconhecimento do outro, mas a livre disposição de nossas vontades, na qual consiste nossa grandeza alçada ao seu ápice quando fazemos passar a consideração do bem do outro antes daquela de nosso próprio interesse. Assim, tanto mais alguém se apropria de si quanto menos se volta sobre si, e quanto menos experimenta a preocupação com seu interesse próprio. É que a generosidade não é somente o amor de si, mas ainda o amor do livre arbítrio pelo qual nós somos nós mesmos, e que retorna também ao outro. A generosidade é, com efeito, uma composição de admiração, de alegria e de amor, amor acerca do qual Descartes precisa que é necessário compreender por isso que: “tanto […] aquele que se tem por si quanto […] aquele que se tem pela coisa que faz com que se estime”. 14 A generosidade é estima do livre arbítrio, quer isso esteja em nós ou no outro.

Em que isso induz a preferir o bem do outro ao nosso? Descartes distingue duas formas de amor, 15 um amor que se pode chamar amor de egoísmo, na medida em que ele instrumentaliza aquilo que ama, e um amor que se pode chamar de amor de generosidade, na medida em que consiste precisamente em considerar aqueles que são seu objeto “como outros si mesmos” e a procurar “seu bem como o seu próprio, ou mesmo com mais empenho”. O filósofo dá dois exemplos: o amor de um bom pai pelos seus filhos, mas também “a afeição que as pessoas de bem tem por seus amigos”. Ora, a amizade se caracteriza pelo fato de que somente se experimenta por aquele que se julga como “igual a si”, de tal modo que “só se pode ter amizade pelos seres humanos”. 16 Retoma-se, assim, aqui, a configuração evocada no caso da generosidade: trata-se de, ao mesmo tempo, reconhecer o outro como um outro si mesmo, isto é, como igual a si mesmo e de dar a preferência a seus interesses, de cuidar dele mais do que de si mesmo. A única diferença, poder-se-ia dizer, é que o generoso não tem uma tal afeição somente por aqueles dentre os homens que são seus amigos, mas considera todos os homens como seus amigos, e assim prefere o bem de qualquer outro homem ao seu próprio.

Contudo, como é que a consideração do outro como um igual a si conduz o generoso a preferir o bem do outro ao seu? Não é necessário entender isso no sentido em que o generoso seria conduzido por isso a sacrificar o seu bem em favor daquele de outrem, o que decorreria daquilo que Descartes chama devoção, 17 não decorrendo da amizade, a qual somente se dá entre iguais. Mas antes deve-se entendê-lo no sentido de que, estando seguro de seu próprio bem, não se preocupa mais senão com o bem de outrem. As análises de Descartes a respeito da piedade do generoso o atestam. Enquanto as almas, sujeitas às adversidades do acaso, isto é, as almas fracas ou orgulhosas não são tocadas pelo mal do outro senão na medida em que o temem para si mesmas, 18 as almas generosas experimentam compaixão sem nada temer para si mesmas. 19 Isso significa que umas e outras não consideram o mal que atinge o outro da mesma maneira: as orgulhosas ficam tristes com isso enquanto é o reverso da fortuna, pois elas mesmas lhe estão submetidas, 20 enquanto os generosos ficam aflitos de ver o outro falhar no uso correto da vontade, pelo qual somente se pode por-se ao abrigo dos reveses da fortuna. 21 Se estes últimos experimentam a piedade, é porque então “é uma parte da generosidade ter boa vontade para com cada um”. 22 A benevolência do generoso consiste em querer para o outro a boa vontade.

Desde então, se compreende que para o generoso o bem do outro passe adiante do seu próprio, mesmo quando ele considera o outro como um igual: é que o seu próprio bem está assegurado, e que amando não apenas o seu bem próprio, mas o livre arbítrio em geral, ele trabalha para vê-lo realizado em toda parte em que isso seja possível, isso é, em cada homem. É nesse sentido que ele não estima “nada maior que fazer o bem aos outros e menosprezar o seu interesse próprio por esse assunto”, 23 tal é a amizade perfeita que se segue da generosidade e que se constitui no seu ápice.

Contrariamente ao ego que é alcançado na metafísica, o qual se define somente no horizonte da diferença entre a alma e as coisas materiais, o eu do generoso se inscreve sem dificuldade no horizonte de uma comunidade de indivíduos capazes de agir livremente, e trabalha para que essa capacidade se efetive em cada um.

Isso significa não somente que a afirmação da diferença entre o eu e as coisas materiais, na generosidade, passa pelo horizonte de uma comunidade de sujeitos livres, mas ainda que ela passa pela afirmação da distinção substancial entre os diferentes indivíduos humanos. A análise da humildade viciosa é testemunho explícito disso, uma vez que consiste, em parte, “no que se crê não poder subsistir por si mesmo nem poder abster- se de muitas coisas cuja aquisição depende do outro. Assim, ela é diretamente oposta à generosidade.” 24

Dito de outro modo, a afirmação da substancialidade do eu na generosidade se dá no duplo horizonte da distinção substancial entre alma e corpo, e da distinção substancial entre os diferentes indivíduos pensantes. Em um mesmo movimento, ela evita o escolho do solipcismo e preenche a deficiência da metafísica a respeito da distinção entre as diferentes substâncias pensantes: é no horizonte de uma comunidade de sujeitos livres, distinguidos igualmente como sedes de autodeterminação, que a alma afirma sua diferença em relação ao corpo e aos outros espíritos.

4. Substancialidade do eu e reflexão

O que caracteriza o eu na generosidade é, assim, menos a consciência que a reflexão. O generoso não é somente aquele que se percebe a si mesmo, que sabe que ele é aquilo que ele é, ele se faz ser o que ele é. Ele é aquele que se determina a si mesmo a ser o que é autenticamente, a ser conforme à apercepção que ele tem do seu verdadeiro eu. É o sentido da dupla determinação que intervém na definição cartesiana da generosidade: “a verdadeira generosidade […] consiste somente em parte em que ele conhece que nada há que verdadeiramente lhe pertença senão essa livre disposição de suas vontades […] e em parte em que ele sente em si mesmo uma firme e constante resolução de bem usá-la”. 25 Somente é generoso aquele que exerce efetivamente esse poder de dispor livremente das suas vontades, que reconhece como constituindo o seu verdadeiro eu. A generosidade se caracteriza, assim, por uma reflexão que não é simples consciência de si mesmo, mas reveste o sentido de agir sobre si, de retornar sobre si, no qual o mesmo é, ao mesmo tempo, ativo e passivo. O eu do generoso se caracteriza, assim, pelo agere in seipsum. O poder do qual a generosidade constitui o exercício efetivo é, com efeito, um poder sobre nós mesmos, cujo exercício tem efeito em nós mesmos. Tais efeitos são de duas ordens, de um lado, há a determinação de nossas vontades, dito de outro modo, o fato de se determinar a si mesmo a agir. Mas o exercício efetivo desse poder não governa somente nossas vontades e nossas ações, ele modifica o conjunto de nossos estados de alma, dando- nos a satisfação por nós mesmos, 26 equilibrando nossos desejos e nos liberando do ciúme, da inveja, do ódio, do medo e da cólera, 27 bem como do arrependimento, 28 do desprezo e da indignação, 29 conferindo-nos a coragem, 30 modificando mesmo a natureza da piedade que nós experimentamos, 31 etc. O generoso, portanto, é aquele que não apenas se torna livre, e que se coloca assim no princípio de seu agir, mas também é aquele que se transforma ao modificar o conjunto de seus estados de alma, se colocando assim no princípio daquilo que ele é.

Eis o tema que está no último plano da evocação da semelhança com Deus, que caracteriza o generoso. O uso que fazemos de nosso livre-arbítrio na generosidade “nos torna de algum modo semelhantes a Deus, nos fazendo senhores de nós mesmos”, escreve Descartes no artigo 152 das Paixões da Alma. Ele já havia escrito à rainha Cristina, em 20 de novembro de 1647, que o livre arbítrio “nos torna de algum modo semelhantes a Deus e parece nos isentar de lhe estar sujeitos”. 32 Em que sentido entender esse domínio de si? Se ele permite fundamentar uma semelhança do homem com Deus, é porque ele não deve ser entendido no sentido simplesmente moral de domínio sobre as paixões. Com efeito, em que sentido pode-se dizer que Deus é senhor de si mesmo? Isso pode significar somente uma coisa: ele está no princípio daquilo que ele é. Isso parece ser confirmado pelas análises leibnizianas. Leibniz, segundo a escala dos seres que admite, considera que o agere in seipsum caracteriza os espíritos, e faz deles as criaturas mais próximas de Deus. Ele explicita esse agere em um texto bastante esclarecedor para a interpretação do pensamento de Descartes: “Deus[..]agit[..] in seipsum quia est causa sui...caeteras mentes se non producant, etsi se mutent”. 33 A generosidade é, no homem, a imagem da causa sui em Deus, o fato de estar no princípio daquilo que se é, de se determinar a si mesmo a ser aquilo que se é. Para Deus, isso significa se pôr a si mesmo no ser. Para os espíritos finitos, dos quais Deus é a origem, isso só pode significar o mudar a si mesmo. O domínio de si que produz a generosidade reside, portanto, no fato de o homem (em relação com o livre-arbítrio, mas sem se resumir ao domínio da ação) se mudar a si mesmo pelo uso do livre- arbítrio: de tornar-se a si mesmo aquilo que se é.

A firme e constante resolução de bem usar de seu livre-arbítrio que define a generosidade em nada difere da caracterização do eu autêntico da generosidade pela reflexão, e não mais pela simples consciência. O que faz o eu, segundo a doutrina da generosidade, é a reflexão.

Ora, no tratado da substância que Descartes propõe nos Princípios da Filosofia, ele discerne duas maneiras de entender a definição da noção de substância, a qual designa a coisa “que não tem necessidade senão de si mesma para existir” 34. Para falar propriamente, apenas Deus preenche o requisito dessa definição, enquanto toda criatura só existe porque é sustentada e conservada no ser pelo poder divino. Não resta a menor dúvida de que, dentre as criaturas, aquelas que não têm necessidade de nada além do concurso ordinário de Deus para existir e cujo ser não deriva, portanto, do ser de outras coisas, podem ser chamadas substâncias. À subsistência, no sentido clássico do termo, segundo o qual uma coisa é substância enquanto não tem necessidade de um substrato para existir, Descartes acrescenta, portanto, uma nova acepção da substancialidade, que só vale para Deus, e que se refere ao fato de que Deus existe não somente em si, mas por si. No último plano desse texto parecem operar as análises das Primeiras e Quartas Respostas, nas quais asseidade divina ficou explicitada de uma maneira positiva, isto é, no sentido de causa sui, e segundo as quais Deus existe em virtude de sua potência infinita. Se, por conseguinte, a especificidade da substância pensante, tal como obtida na generosidade, reside na reflexão no sentido de agir sobre si, pode-se, então, avançar a seguinte interpretação: a generosidade atinge o eu na medida em que sua substancialidade não é idêntica à substancialidade dos corpos. Com efeito, se a reflexão é a imagem criada da causa sui, então a substancialidade da alma constitui um tipo de intermediário entre a substancialidade tal como convém aos corpos, a qual remete à subsistência no sentido tradicional, e a substancialidade divina, novamente explicitada por Descartes: a substancialidade da alma não consiste simplesmente em não ser em um outro, consiste também em que ela se determina a si mesma a ser aquilo que ela é, imitando nisso, imperfeitamente, a substancialidade divina, a qual reside no fato de ser causa sui. Não parece possível, portanto, na linha das análises sobre a generosidade, sustentar que o estatuto de substância conferido à alma a reduz ao nível de coisa.

As análises cartesianas sobre a noção de generosidade nos parecem, assim, propor notáveis avanços no que concerne à substancialidade da alma, o sentido próprio que é preciso lhe conferir, assim como a relação com o outro que ela implica. A antropologia das Paixões da Alma nos parece, assim, apresentar o último estado da metafísica cartesiana do ego.

REFERÊNCIAS

Art. 153, AT, XI, 446, l. 2-3. A referência usada para os textos de Descartes é a edição Adam et Tannery (Oeuvres de Descartes, publiées par Charles Adam et Paul Tannery, 11 volumes, Paris, Vrin, 1996). Na notação simplificada usada internacionalmente, AT indica a edição; os numerais romanos, o volume; e os algarismos arábicos, o número da página. [ Links ]

Lettre à Christine, 20 novembre 1647, AT, V, 85. [ Links ]

Art. 155, AT, XI, 447. [ Links ]

Art. 157, AT, XI, 448. [ Links ]

Art. 158, AT, XI, 449. [ Links ]

Art. 160, AT, XI, 451. [ Links ]

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« In rerum natura non possunt dari duae, aut plures substantiae ejusdem naturae, sive attributi ». [ Links ]

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Art. 191, AT, XI, 472-473. [ Links ]

Art. 203, AT, XI, 481. [ Links ]

Art. 171-174, AT, XI, 460-462. [ Links ]

Art. 187, AT, XI, 469-470. [ Links ]

AT, V, 85. [ Links ]

De summa rerum, n. 57, De mente, de universo, de Deo, Philosophische Schriften III, Berlin, Akademie Verlag, 2006, p. 465 [ Links ]

Art. 51, AT, VIII-1, 24. [ Links ]

1Art. 153, AT, XI, 446, l. 2-3. A referência usada para os textos de Descartes é a edição Adam et Tannery (Oeuvres de Descartes, publiées par Charles Adam et Paul Tannery, 11 volumes, Paris, Vrin, 1996). Na notação simplificada usada internacionalmente, AT indica a edição; os numerais romanos, o volume; e os algarismos arábicos, o número da página.

2Lettre à Christine, 20 novembre 1647, AT, V, 85.

3Art. 155, AT, XI, 447.

4Art. 157, AT, XI, 448.

5Art. 158, AT, XI, 449.

6Art. 160, AT, XI, 451.

7AT, VIII-1, 28-29.

8« In rerum natura non possunt dari duae, aut plures substantiae ejusdem naturae, sive attributi ».

9Art. 40, AT, XI, 359.

10Art. 36, AT, XI, 356-357.

11Art. 151, AT, XI, 445.

12Art. 152, AT, XI, 445.

13Art. 156, AT, XI, 447-448.

14 14Art.160, AT, XI, 451.

15Art. 82, AT, XI, 388-389.

16Art. 83, AT, XI, 390.

17Cf. art. 83, AT, XI, 390.

18Art. 186, AT, XI, 469.

19Art. 187, AT, XI, 469-470.

20Art. 186, AT,XI 469.

21Art. 187, AT, XI, 469-470.

22Art 187, AT, XI, 470. Grifo da autora.

23Art. 156, AT, XI, 447-448.

24Art. 159, AT, XI, 450. Grifo da autora.

25Art. 153, AT, XI, 445-446.

26Art. 190, AT, XI, 471-472.

27Art. 156, AT, XI, 447-448.

28Art. 191, AT, XI, 472-473.

29Art. 203, AT, XI, 481.

30Art. 171-174, AT, XI, 460-462.

31Art. 187, AT, XI, 469-470.

32AT, V, 85.

33De summa rerum, n. 57, De mente, de universo, de Deo, Philosophische Schriften III, Berlin, Akademie Verlag, 2006, p. 465

34Art. 51, AT, VIII-1, 24.

Recebido: 18 de Julho de 2011; Aceito: 24 de Agosto de 2011

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Tradução de Anselmo Tadeu Ferreira.

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