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Educação e Filosofia

Print version ISSN 0102-6801On-line version ISSN 1982-596X

Educação e Filosofia vol.36 no.78 Uberlândia Sept./Dec 2022  Epub Jan 29, 2024

https://doi.org/10.14393/revedfil.v36n78a2022-65508 

Artigos

Grito. Gaguejo. Silêncio. (modos de re-existir na docência)

Shout. Stutter. Silence. Ways of re-existing in teaching

Grito. Tartamudeo. Silencio. Modos de reexistir en la docencia

*Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professor Adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: andreb.ufrj@gmail.com

**Doutora em Educação e Sociedade na Universidad de Sevilla (US). Professora Adjunta da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: teresanrgoncalves@gmail.com


Resumo

O texto é um exercício de pensamento, a partir de textos filosóficos e de experiências vivenciadas por seu autor e sua autora, sobre a voz docente e os lugares por ela ocupados, com base em três de suas expressões que, aqui, funcionam como figuras analíticas: o grito, o gaguejo e o silêncio. Elas são tomadas a partir de sua força acontecimental e não individualizante, apontando para as forças do fora deleuziano em seu encontro com a ação docente e em suas possibilidades de criação. Com tais motes vislumbram-se, ao longo do texto, gestos que narram e se propõem a ampliar reflexões sobre uma experiência de docência que, ao resistir à captura, aponta para a re-existência dos próprios professores, e para outros modos de gritar, gaguejar e silenciar.

Palavras-chave: Grito; Gaguejo; Silêncio; Voz docente

Abstract

This text is an analytical exercise about the teaching voice and the places it occupies, based on philosophical texts and experiences lived by its authors. Three of this voice expressions function here as analytical figures: the shout, the stutter and the silence. They are taken from their event-based and non-individualizing force, pointing to the powers of the Deleuzian outside in their encounter with the teaching action and in their possibilities of creation. Gestures that narrate and propose to expand reflections on a teaching experience can be glimpsed throughout the text. They are based on a way of teaching experience that, by resisting capture, points to the re-existence of the teachers themselves, and to other ways of shouting, stuttering and silencing.

Keywords: Scream; Stutter; Silence; Teachers voice

Resumen

El texto es un ejercicio de reflexión, a partir de textos filosóficos y experiencias vividas por sus autores, sobre la voz docente y los lugares que ocupa a partir de tres de sus expresiones que, aquí, funcionan como figuras analíticas: el grito, el tartamudeo y el silencio. Tales expresiones son analizadas desde su fuerza acontecimiental y no individualizadora, y apuntan a las fuerzas del “afuera” deleuziano en su encuentro con la acción docente y en sus posibilidades de creación. Desde ahí se vislumbran a lo largo del texto gestos que narran y proponen ampliar reflexiones sobre una experiencia docente, que, al resistirse a la captura, apunta a la reexistencia de los propios docentes, y a otras formas de gritar, tartamudear y silenciar.

Palabras-clave: Grito; Tartamudeo; Silencio; Voz docente

Este texto surge a partir de uma foto. De um ônibus que arde em chamas durante um dia de protestos contra um governo vergonhoso. No cair do dia, a imagem do veículo, que queima, inquieta; a alguns faz sorrir com a força da mensagem de resistência que incita, a outros incomoda pela violência que anuncia. A sua frente, aparentemente tranquilo, caminha um homem com uma bandeira sobre os ombros - uma bandeira que exige a liberdade de um ex-presidente. Aquele fogo, aqueles passos, produzem uma imagem que ao mesmo tempo parece gritar, fazer hesitar e provocar silêncios. Este texto é sobre esses movimentos e sobre o que eles têm a dizer de certos modos de ser docente em um mundo que faz berrar, gaguejar e silenciar.

Propomos um exercício de pensar, aqui e agora, a partir de gestos que irrompem no momento que estamos vivendo, e que estão presentes nos ensaios que vimos na formação de pedagogos e de pesquisadores em educação, no sentido de pluralizar, ou melhor, de multiplicar a voz docente. Tentando escapar dos discursos vigentes sobre docência e formação docente focados na promoção de uma identidade, aprendizagem ou conhecimento profissional, que determinam modos de fazer e estar na docência, propomos um deslocamento que nos permita pensar a partir de uma relação mais potente com o presente de nossa atuação educativa: presente que surge em manifestações das quais participamos nas ruas do Rio de Janeiro, em oficinas corporais e em práticas docentes em torno da leitura, da escrita e da pesquisa desenvolvidas nos últimos anos. Entendemos que esse deslocamento pode se produzir na singularidade das respostas aos acontecimentos, ao que é imprevisível e que, portanto, escapa aos modos habituais, abrindo espaços para a emergência de respostas singulares e para a manifestação de uma multiplicidade de relações possíveis com o nosso tempo a partir da ação docente, numa abertura ao acontecimento, às forças que nos atravessam pela reiteração característica da potência que lhes instaura (DELEUZE; GUATTARI, 2000) - uma vez que o acontecimento não para de reverberar no infinitivo que por ele se materializa (FOUCAULT, 1997). Gritar, gaguejar e silenciar são então, aqui, tomados como dispositivos que dão a ver modos de expressão jamais individuais sobre a docência contemporânea.

Trata-se de experimentar relações com a docência a partir da constituição do que Biesta (2013) designou de uma comunidade plural, na qual o gesto e a voz docente possam se constituir, não como representação, mas como presença e subjetivação. A partir dessa perspectiva, a comunidade existe como acontecimento e, não, como identidade; se constitui a partir da relação entre singularidades. Ao colocar em evidência a singularidade da ação docente, se abre a possibilidade de pensar a partir da diferença, entendendo a educação como um processo irrepetível, cujos resultados são imprevisíveis. É precisamente essa possibilidade de perturbação, de disrupção, de ruptura na lógica uniformizadora dos discursos fundados na ideia de identidade profissional, que pretendemos discutir; ruptura de uma voz docente única e uniforme, da ideia da voz docente como representação de uma suposta comunidade racional da educação. As ideias de grito, gaguejo e silêncio surgem, então, também como gestos que interrompem lógicas vigentes e que podem abrir a possibilidade de modos outros de relação com a docência e com a educação, remetendo para questões éticas, estéticas, políticas e existenciais.

A voz de que queremos falar, repetimos, não é a de um sujeito, nem a de um eu ou de uma identidade aprioristicamente legitimados; não é uma voz individualizada, mas singular por ser, em sua irrupção, “pré-individual, não-pessoal, aconceitual” (DELEUZE, 2015, p. 55). Não é, portanto, uma voz unificada ou homogênea; é uma voz plural, múltipla, que existe e se constrói em relação. É a voz de muitos, sem sentido único, mas com forças que se agenciam: é uma voz sem sujeito. É, finalmente, uma voz precária, porque precária é a docência - quer por sua dimensão política, quer pelo jogo entre vulnerabilidade e interdependência que lhe caracteriza (BUTLER, 2018) -, se a entendermos a partir da experiência, do acontecimento, desse lugar fluído, desse entre que se dá na relação com a alteridade. Essa voz que não está dada, não está feita e está sempre acontecendo; está no meio, sempre em transformação.

Lizza Mazzei (2013), inspirada na ideia de “Corpo sem Órgãos” - usada por Deleuze e Guattari (2000, p. 13) para denominar a “matriz intensiva” que só pode ser povoada por intensidades, anterior a qualquer organização orgânica -, fala de uma “Voz sem Órgãos” (MAZZEI, 2013) para escapar à ideia de um sujeito essencialista e se focar nas relações, nos acontecimentos, a partir dos quais ela se produz. Se o corpo sem órgãos é o que escapa à ideia de identificação, se “não pára de desfazer o organismo, de fazer circular partículas a-significantes, intensidades puras, e não pára de atribuir-se os sujeitos aos quais não deixa senão um nome como rastro de uma intensidade” (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p. 11), a voz sem órgãos, do mesmo modo, não está dada, sendo uma composição de forças, desejos e intensidades.

Trata-se de pensar nas composições, nos entrelaçamentos, nas forças, nas intensidades que operam num mesmo plano de composições afetivas e que produzem uma voz que não emana de um sujeito individual, mas que emerge através e em um conjunto de relações - entre pessoas, acontecimentos, dados, situações, espaços, coisas, que tão pouco estão ligadas a fins exteriores, transcendentes ou universais, mas que antes, têm valor por si mesmos. Entendemos que esse movimento é uma deriva, uma vez que não existe uma divisão entre “realidade”, “representação”, “subjetividade”. Antes, ele opera através das conexões e reconexões permanentes entre esses diversos elementos que materializam planos de circulação de afetos e que agem um sobre os outros simultaneamente, sem horizonte ou meta definidos. Pretendemos pensar, ao longo deste texto, sobre as forças dessa deriva, no que se refere aos modos pelos quais nós, professores e professoras, reafirmamos a docência. O que produzem nossas vozes, na condição precária que as caracteriza? Como elas nos permitem inventar modos de re-existir em nossa ação?

O grito.

Pensemos no “Fora, Bolsonaro!” que ecoa a cada vez que nos juntamos na rua. Rio de Janeiro, 24 de julho de 2019, 2 de outubro de 2021, 1º de maio de 2022. De onde vaza o grito? É sempre de uma insuportabilidade que se trata; de uma espécie de deficit entre a experiência e sua enunciação - a primeira forte demais para que a organização da segunda a acompanhe. O que vaza, portanto, é um excedente: um excedente de vida típico de quem existe.

É porque a existência, por si mesma, grita. Sabemos disso, exemplarmente, com Didi-Huberman e seu “A sobrevivência dos Vagalumes” (DIDI-HUBERMAN, 2011). O texto de Didi-Huberman é uma apologia à força implicada no simples existir: os vagalumes são vislumbres da potência efêmera da existência; sua dança, diz ele, “esse momento de graça que resiste ao mundo do terror, é o que existe de mais fugaz, de mais frágil” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 25).

É de fato comumente frente ao terror que o grito irrompe, seja ele materializado pelo inaceitável que queremos deter, pela derrota iminente etc. Mas é curiosamente diante dos maiores terrorismos que as existências-grito se tornam mais belas. Lembremos do corpo em um grito-silêncio do homem que, com as sacolas nas mãos nos manifestos de Pequim de 1989, enfrenta uma fileira de 20 tanques. Ou dos muitos “Lula livre” que, há alguns anos, andamos a berrar. A estética da existência-grito se faz, justamente, tendo como anteparo todo o inaceitável contra o qual ela se levanta. E isso não se dá, claro, por uma suposta beleza desse pano de fundo horrível que se mostra, mas porque seu efeito sobre as existências - ao menos essas existências-vagalume de que tratamos por aqui - já inclui, consigo, sua inaceitabilidade; o germe da insuportabilidade do terror evoca o excedente de vida que materializa o grito.

Mas, é claro, não é só o terror o responsável pela evocação desse excedente. Gritamos diante do descomunal, do incômodo, do gozo, da alegria que parece infinita. Há nisso tudo, nesses gritos que o valem, um relacionar-se com essa experiência-limite de que trata Maurice Blanchot (2007), que não nos deixa em paz - ou, melhor ainda, que não nos deixa em nós. Um relacionar-se, portanto, com essa “prodigalidade” (BLANCHOT, 2007, p. 192) de uma afirmação que não é produto de nenhuma razão dialética mas que escapa a todos os movimentos. Com esse algo que é “pura afirmação” sem “ser afirmação de si”. O “Sim decisivo” (BLANCHOT, 2007, p. 192) que grita a existência no afirmar-se com o mundo. É por isso que, talvez, não tenhamos tanto que pedir para que gritemos. O pedido mais importante talvez seja, de fato: Experienciemos! Experienciemos ao limite do que podemos chamar denós mesmos! - até porque, como nos lembra o próprio Blanchot, “o eu nunca foi o sujeito da experiência” (BLANCHOT, 2007, p. 193). De fato, com autores como Blanchot e Foucault já sabemos há muito que a experiência, como diz esse último, é sempre um “arriscar não ser mais si mesmo” (FOUCAULT, 2018, p. 29).

De qualquer modo, o importante aqui é poder pensar esse grito que o é por emergir da experiência. Mas, se olharmos bem de perto, o grito não se encerra aí: ele é como uma ponte que conecta esse questionamento de si mesmo, imediatamente, a uma experiência de ação que nos devolve, em intensidade, um sentido de presença de si no mundo. Talvez seja por isso que Foucault (2018, p. 84), ao nos falar da revolta como experiência, a conecta com essa fixação do sujeito em uma posição específica a que ele chama “vontade”. É a partir dessa conexão entre o acontecer da experiência e sua convergência em vontade que Foucault (2018, p. 94) nos diz: “É preciso que os homens” - e hoje poderíamos dizer o mesmo das mulheres, dos não binários - “inventem aquilo contra o que eles podem e querem se insurgir e, ao mesmo tempo, aquilo em que transformaram sua revolta. Ou para onde vão dirigir sua insurreição. Essa direção tendo de ser reinventada indefinidamente”. Compreendemos que Foucault está a nos dizer algo do tipo: Sejamos suficientemente fortes para deixar irromper esse excedente, esse grito, e então desviá-lo em favor de nossa revolta! Nos embriaguemos em nosso grito, em nossa insurreição.

De fato, é a experiência que nos dá o grito que nos interessa aqui, e esse excedente que ele materializa é, corporalmente, inundação. Se de um lado o grito surge pela destituição do sujeito, por outro ele opera pela tomada plena do corpo. Recuperemos, exemplarmente, as convocações ao grito das mulheres que Gloria Anzaldúa faz em seu belíssimo texto “Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo” (ANZALDÚA, 2000). Anzaldúa grita pela escrita; ou, mais do que isso, permite a composição de um grito-escrita que provoca inundações e excedentes no corpo que lê. A essa altura, por sinal, já podemos compreender que a partir do grito deriva sempre uma agência, algo que conecta ele a outros elementos: grito-corpo em revolta, grito-corpo em gozo…

O grito de Anzaldúa é esse que se conecta ao corpo e à escritura. Por tal aproximação, ela nos ensina ao menos duas coisas fundamentais sobre esse berro que nasce na experiência e se converte em presença de que falamos aqui. Em primeiro lugar, ela nos lembra de sua visceralidade:

Mesmo se estivermos famintas, não somos pobres de experiências. [...] Escrevam com seus olhos como pintoras, com seus ouvidos como músicas, com seus pés como dançarinas. Vocês são as profetisas com penas e tochas. Escrevam com suas línguas de fogo. Não deixem que a caneta lhes afugente de vocês mesmas. Não deixem a tinta coagular em suas canetas. Não deixem o censor apagar as centelhas, nem mordaças abafar suas vozes. Ponham suas tripas no papel. [...] Encontrem a musa dentro de vocês. Desenterrem a voz que está soterrada em vocês. (ANZALDÚA, 2000, p. 235)

Com Foucault, Blanchot e Alzaldúa talvez possamos então afirmar: gritar é deixar que o acontecimento tome conta de nossas vísceras, com toda a carga intensiva que essa imagem carrega. Mas por que se deixar levar pelo grito? Por um lado, já o sabemos até aqui: porque ele carrega consigo a potência da abertura à intempestividade - e com ela, digamos, a própria vida, que acontece sempre “na ponta dela mesma”, como diz David Lapoujade (2015, p. 23). Mas por outro, e talvez esteja aí o valor maior desse gesto que é o gritar, porque ele nos impede de voltar atrás. No seu grito-escrita, no seu grito que fala da escrita, Anzaldúa mais uma vez nos incita:

[...] em espirais que se alargam, nunca retornamos para os mesmos lugares de infância onde o exílio aconteceu, primeiro nas nossas famílias, com nossas mães, com nossos pais. A escrita é uma ferramenta para penetrar naquele mistério, mas também nos protege, nos dá um distanciamento, nos ajuda a escrever. (ANZALDÚA, 2000, p. 232)

Se gritamos, já não podemos retornar. Já não podemos demover o que o grito gerou em nós, pelo acontecimento que lhe forjou e pela presença que ele efetuou. Desde aí, então, a pergunta: qual foi a última vez que nosso grito ecoou por aí? Qual foi a última vez em que nós, professores, deixamos que o intempestivo da vida virasse erupção em nosso corpo?

Talvez o grito agrida. Talvez o grito chame a atenção. Mas isso não nos parece o mais valioso. Em uma oficina recente, realizada em 2019 durante o XIII Encontro Regional Sudeste de História Oral, e a que denominamos “Corpo, história e resistência”, colocamos corpos para gritar. Por meio de experiências corporais, convidamos o grupo a se proteger, incitamos cada um a escapar do outro que lhe impedia o movimento, solicitamos aos participantes que afirmassem, gestualmente, sua capacidade de estabelecer limites frente ao outro. A partir daí, pedimos a cada um que materializasse o que reverberava de seus gritos em uma grande folha de papel. Surgiram, então, frases-gritos valiosas: Vidas importam. Somos palhaços. Amor: ação direta. E figuras de espirais, de corpos que sangram, de mãos que se unem. Há toda uma invenção do mundo no grito; uma estética acontecimental que irrompe em ação. O grito nos convoca a redescobrir, no excedente, no que nos escapa, a feitura de nós mesmos. Uma vez mais, lembramos Didi-Huberman (2011), falando desses seres que brilham, tão somente, por existir:

Os vaga-lumes, depende apenas de nós não vê-los desaparecer. Ora, para isso, nós mesmos devemos assumir a liberdade do movimento, a retirada que não seja fechamento sobre si, a força diagonal, a faculdade de fazer aparecer parcelas de humanidade, o desejo indestrutível. Devemos, portanto, [...] nos tornar vaga-lumes e, dessa forma, formar novamente uma comunidade do desejo, uma comunidade de lampejos emitidos, de danças apesar de tudo, de pensamentos a transmitir. Dizer sim na noite atravessada de lampejos e não se contentar em descrever o não da luz que nos ofusca. (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 154-155)

E fazer isso também por nossas escritas, em nossas pesquisas. Nessa convocação aos gritos, nos dedicamos uma vez mais ao texto de Anzaldúa, dessa vez tomando a liberdade de converter uma de suas incitações à escrita em uma convocação ao grito. Fazemos isso substituindo toda a alusão de seu texto à palavra “escrita” por uma alusão ao próprio grito. Eis o resultado desse devir-grito que encontramos na convocatória escritural dessa autora:

Por que sou levada a gritar? Porque o grito me salva da complacência que me amedronta. Porque não tenho escolha. Porque devo manter vivo o espírito de minha revolta e a mim mesma também. Porque o mundo que crio no grito compensa o que o mundo real não me dá. No grito coloco ordem no mundo, coloco nele uma alça para poder segurá-lo. Grito porque a vida não aplaca meus apetites e minha fome. Grito para registrar o que os outros apagam quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você. Para me tornar mais íntima comigo mesma e consigo. Para me descobrir, preservar-me, construir-me, alcançar autonomia. Para desfazer os mitos de que sou uma profetisa louca ou uma pobre alma sofredora. Para me convencer de que tenho valor e que o que tenho para dizer não é um monte de merda. Para mostrar que eu posso e que eu gritarei, sem me importar com as advertências contrárias. Gritarei sobre o não dito, sem me importar com o suspiro de ultraje do censor e da audiência. Finalmente, grito porque tenho medo de gritar, mas tenho um medo ainda maior de não gritar. (ANZALDÚA, 2000, p. 232)

Gritemos, portanto, diante da experiência fundamental da docência e do mundo que nos convoca.

O gaguejo.

O que cria, em nós, a foto cuja descrição abre este texto, de um ônibus por alguém, ou alguns, incendiado? Se deve ou não se deve? É aceitável ou não? Violência paga com violência ou a possibilidade de afirmar-se ante a truculência? Reivindicação legítima ou vandalismo agressivo? Atividade transformadora ou reprodutora da agressividade deliberada?

Talvez uma das forças mais valiosas daquela foto seja a de nos fazer vacilar. A força da voz é também a da hesitação, a desse movimento que oscila entre o desejo de dizer - Está certo!, Está errado!, no caso da foto - e a capacidade de fazê-lo: o gaguejo.

Uma cena possível sobre esse gaguejar, um texto retirado de um certo número do “Diário de Notícias”, um jornal português. Trata-se de uma comunicação enviada por um tal Ambrósio Silva frente aos acontecimentos de 25 de abril de 1974 que, como sabemos hoje, culminaram na deposição do regime ditatorial de Portugal. A mensagem, feita “à consideração superior”, diz o seguinte:

Excelentíssimo Senhor Director-Geral. Informo a V. Ex.ª que ontem, dia 25 de abril de 1974, vários funcionários faltaram ao serviço, invocando ter ocorrido uma revolução no País. Esclareço que esta revolução não foi autorizada superiormente, não se vendo qualquer justificação para as faltas, tanto mais que o serviço se atrasou consideravelmente. Como na legislação vigente não estão previstas faltas pela ocorrência de revoluções, submeto o assunto ao alto critério de V. Exª, na certeza de que o mesmo merecerá a atenção devida. Lisboa, 26 de abril de 1974. A Bem da Nação. O chefe da 3ª Secção. Ambrósio Silva. (CONSIDERAÇÃO, 1974, s. p.)

O que provoca o acontecimento que sai dos planos? Na revolução, na manifestação, o acontecimento questiona o que está posto como norma, como aceitável. Produz o que não estava dado, faz a estrutura burocrática e legalista emperrar. Mas emperrar em favor de quê? Em favor dessa voz da rua, também ela meio gaga, já que as manifestações não são feitas com unanimidade, mas sempre com acordos temporários. Voz que, como já dissemos, não é individual, mas carrega a singularidade do instante que agrega os muitos que ali estão - e talvez por isso mesmo tenha sempre um germe de vacilação em si.

Estamos extremamente acostumados e acostumadas, como nos lembra Jorge Larrosa, a nos pensarmos em busca de uma espécie de fortaleza que se converte em firmeza, em certeza, e que nos impede de viver a experiência: essa potência inesperada que caracteriza muitas vezes o mais valioso da vida, e que exige um sujeito frágil, disponível ao que pode lhe atravessar. Diz Larrosa (2015), em um texto bastante famoso, acerca do sujeito que vive a experiência:

[...] é um sujeito alcançado, tombado, derrubado. Não um sujeito que permanece sempre em pé, ereto, erguido e seguro de si mesmo; não um sujeito definido por seus sucessos ou por seus poderes, mas um sujeito que perde seus poderes precisamente porque aquilo de que faz experiência dele se apodera. Em contrapartida, o sujeito da experiência também é um sujeito sofredor, padecente, receptivo, aceitante, interpelado, submetido. Seu contrário, um sujeito incapaz de experiência, seria um sujeito firme, forte, impávido, inatingível, erguido, anestesiado, apático, autodeterminado, definido por seu saber, por seu poder e por sua vontade. (LARROSA, 2015, p. 28)

Os adjetivos que nos dá Larrosa são particularmente interessantes para pensarmos na questão da hesitação. O sujeito de Larrosa, o professor que se permite gaguejar, sofre, se submete, se deixa interpelar pela experiência. Talvez pensemos muito pouco em nossa docência a partir desses adjetivos gaguejantes, hesitantes. Professores, gaguejamos a todo instante, seja nesse sentido figurado que se remete ao gaguejo do pensamento frente a uma imagem polêmica ou a uma revolução, seja no sentido literal. Paramos em nossas explicações para gaguejar: éééé...huummmm...ãããã... Paramos frente às perguntas incômodas que nos fazem em sala: Veja bem... Há uma gagueira na docência que pode ser, sim, um pouco assustadora. Mas que, por outro lado, pode abrir espaço para uma estética mais potente, porque mais humilde, em nossa ação, nos permitindo valorizar, justamente, essa nossa condição hesitante do fazer nas aulas, nas ruas, nas existências.

Deleuze (1997) se dedica a essa questão em um texto chamado “Gaguejou...”, pensando a partir da escrita; focando-se precisamente nos escritores romancistas - especialmente nos “maus” (DELEUZE, 1997, p. 122) -, ele constrói uma análise da necessidade da gagueira na produção da língua em sua estrangeridade. Deleuze (1997, p. 124) afirma a possibilidade de se fazer vacilar uma língua, colocando-a em um “perpétuo desequilíbrio”, por meio do qual é a experiência mesma da escrita que lança o bom escritor no desconhecido. A gagueira é então, por um lado, uma “sintaxe em devir [...] que faz nascer a língua estrangeira na própria língua” (DELEUZE, 1997, p. 127): ou seja, a possibilidade de nascimento da novidade na língua que já conhecemos - em nosso caso, nessa língua pedagógica, nessa língua educacional já tão colonizada por tantos discursos universalizantes. Por outro lado, a gagueira é uma espécie de buraco negro que, pelo furor que a caracteriza, força a subjetividade a submeter-se a sentidos emergentes para além daqueles que, por mecanismos de codificação, já lhe caracterizam. No gaguejo, nos lembra Deleuze (1997), entramos num mundo incerto, alheio a nossas vontades - não escolhemos, normalmente, gaguejar - mas que, por isso mesmo, abre espaço para que encontremos outros sentidos no ato de produção da fala e da escrita.

Pensar com Deleuze é, então, apontar para pelo menos três características daquilo que talvez possamos chamar de uma docência que gagueja. Em primeiro lugar, só se gagueja na docência quando é possível a instauração de uma ignorância que abre o sujeito às possibilidades de envolver-se em transformações. Voltemos ao ônibus incendiado: só podemos hesitar frente a ele se não sabemos ao certo; se somos de algum modo tomados por uma ignorância essencial que submete nossos saberes a um mundo que nos espanta. Isso, claro, é muito difícil de ser pensado em tempos de avaliações que produzem seus juízos em torno daquilo que precisa ser aferido como correto. Os grandes programas educacionais e as avaliações nacionais de grande escala da tal “educação maior” de que nos fala Silvio Gallo (2002, p. 173) - essa que, majoritária, foge aos intempestivos do menor - não são dados à hesitação; estão na chave de uma racionalidade que concebe a educação como uma condução do aluno até um lugar onde não se erra, um lugar onde não há errância. Mas, por outro lado, todos os dias podemos nos convidar a, em nosso trabalho, assumir essa errância e a vacilação que nasce dela como estética de nosso fazer. Qual foi a última vez em que nós, desejadamente, nos provocamos em uma posição incerta em sala de aula? Não podemos deixar de lembrar o “Mestre Ignorante” de Jacques Rancière (2010); de lembrar Jacotot, aquele que se vê obrigado a lidar com estudantes que não falavam a mesma língua que ele; e que produz, a partir do texto bilíngue que une mestre e alunos - O Telêmaco, de François Fénelon - toda uma pedagogia da ignorância que é, para Rancière, igualmente, uma possibilidade da igualdade das inteligências, que faz Jacotot poder se livrar desse perigoso lugar explicador no qual costumeiramente somos colocados ou nos colocamos.

Em segundo lugar, a gagueira, e a gagueira na docência, tem a ver com uma espécie de abertura à força atrativa daquilo que nos submete a uma situação limite. Uma decisão de se perder. Ao longo dos últimos anos, como professores na Universidade Federal do Rio de Janeiro, temos convidado nossos alunos de graduação a fazerem caminhadas sem objetivos definidos1. Após a discussão de alguns textos em sala de aula, colocamos turmas inteiras para andar em lugares diversos do Rio de Janeiro, com o único objetivo de que nossos estudantes estivessem abertos aos acontecimentos e de que, depois, pudessem realizar registros escritos e artísticos a partir disso. Há nitidamente dois grupos de alunos: aqueles que, incomodados com a proposta que tira a nós mesmos, professores, do lugar de condutores - não fazemos uma visita guiada - se fecham à experiência, anestesiam seus corpos sob a ideia de aquilo parecer esquisito, uma bobagem etc., e de fato nada ou muito pouco vivem; e os que se lançam à experiência que, normalmente, lhes surpreende justamente por colocá-los frente à total estrangereidade, ao não saber de fato o que irá acontecer. Lembramos, por exemplo, da estudante que foi levada a se perguntar: “Qual a lição da miopia?”, pensando também nessa visão insegura e em seu valor, ou de outra aluna que diz:

Viver sem as regras impostas é como viver sem direção, é caminhar com medo por não saber como lidar com a adversidade, pois projeto já elaborado é bem mais fácil de seguir do que construí-lo do zero. Por outro lado, construir é libertar, possibilita exercitar o olhar e prestar atenção no outro.

Sempre há um incômodo na maioria desses alunos; incômodo seguido de aprendizagens inesperadas. Voltamos, aqui, à força dessa voz sem órgãos com a qual começamos este texto: gaguejar é, em certo sentido, dar-se a esse lugar onde o indivíduo e suas certezas se dissolvem em favor de algo que emerge das singularidades do cruzamento dessas experiências; não mais as nossas certezas, mas o que o campo - seja ele o lugar do caminhar, seja nossa sala de aula - nos força a pensar e viver. Dar-se ao que não comandamos.

Em terceiro lugar, essa gagueira docente tem a ver com uma espécie de produção do espaço da sala de aula como lugar de cruzamentos de existências diversas com o mínimo de hierarquização possível. Um lugar comum. Nos permitirmos gaguejar é reconhecer, como nos lembra Jean-Luc Nancy (2016), que todo ser é, antes de tudo, um ser-em-comum, o que coloca sempre em questão qualquer fixidez identitária. O singular é sempre plural, nos lembra Nancy, e nisso ele se opõe a qualquer individualismo apriorístico. Nossa existência é sempre dada em um coletivo de forças que torna insuficiente a ideia pacificada de um “indivíduo” completo e organizado. Algo tão contrário a essas formas individualizadas de testar, mensurar, definir, estabelecer padrões, disciplinar etc.

Resumamos: uma gagueira da docência tem a ver, portanto, com algo que se dá no cruzamento de certa ignorância, certa disponibilidade ao desconhecido e certo modo de conceber a si mesmo como ser em comunidade. Por um lado, isso é um tanto incompatível com nosso trabalho docente, com os muitos planos nacionais, estaduais e municipais que colonizam nossa prática; mas, por outro, isso é o cerne do nosso trabalho, já que a sala de aula é o lugar que a isso tudo escapa. O que vale, então, é justamente valorizar e não tentar se livrar disso que foge. Produzir modos pelos quais, cotidianamente, gaguejemos. E isso só é possível se formos capazes de valorizar tudo aquilo que torna uma situação “confusa” (GIL, 2005, p. 23), ou seja, uma situação em que “não podemos separar claramente os elementos que a compõem” (GIL, 2005, p. 23), já que é essa confusão e indiscernibilidade que nos obriga a sair de nós mesmos. Precisamos, portanto, por um lado, borrar alguns limites do que já está previamente desenhado em nossa prática: os limites claros entre a função-professor e a função-aluno, os limites claros dos espaços da sala de aula, da maneira como o organizamos; os limites dos nossos planejamentos e de como eles são definidos; os limites daquilo que temos que “dar” como conteúdo aos nossos alunos; os limites de nossas disciplinas, e mesmo os limites, porque não, das diversas funções escolares, desse modo muitas vezes estagnado pelos quais vemos os “cargos” na escola - a direção, a coordenação, a “docência de”. Mas, por outro lado, é preciso aprender a valorizar a capacidade do outro - desse outro que é o aluno, que é o outro professor etc. - de produzir essa confusão. Dar aos alunos o direito de gaguejar em suas trajetórias. Pensar uma avaliação que seja capaz de promover e valorizar as incertezas. Tudo isso nos ensina essa ética do gaguejo e da vacilação que defendemos por aqui.

O silêncio.

Nos voltemos, uma última vez, ao ônibus em chamas. Talvez nos valha pensar a partir da pergunta de Sá de Miranda, poeta renascentista português, em um de seus poemas, retomada por António Lobo Antunes para o título de um dos seus livros : “Que farei quando tudo arde?” (ANTUNES, 2001, p. 1). Ou, talvez melhor: O que dizer quando tudo arde?

Em entrevista com Stephen Riggins, em 1982, Foucault (2004) nos lembra que existem diferentes maneiras de falar, e também inúmeras formas de silêncio, que vão desde a hostilidade virulenta ao amor. A partir da sua própria experiência, o autor fala da possibilidade de uma amizade nascer de uma relação estritamente silenciosa. Remetendo à sua infância, marcada pela obrigação de falar, Foucault pensa como o silêncio pode proporcionar ou originar um modo mais interessante de relação do que a própria fala. No tempo da tagarelice em que vivemos - esse vício do qual é preciso curar-se, segundo Foucault - o silêncio seria, assim, algo a ser cultivado e exercitado, na medida em que constituiria um modo particular de relação com os outros, não valorizado no nosso tempo. Não se trata de “fazer uma divisão binária entre o que se diz e o que não se diz” (FOUCAULT, 1988, p. 29), mas, como afirma o historiador no primeiro volume de sua “História da Sexualidade” (FOUCAULT, 1988), é

[...] preciso tentar determinar as diferentes maneiras de não dizer, como são distribuídos os que podem e não podem falar, que tipo de discurso é autorizado ou que forma de descrição é exigida a uns e outros. Não existe um só, mas muitos silêncios e são parte integrante das estratégias que apoiam e atravessam os discursos. (FOUCAULT, 1988, p. 30)

Foucault entende, portanto, que o silêncio participa das relações de poder em relação àquilo que, numa determinada época, pode ou não pode ser dito, assim como quem pode ou não falar, mas também como os dispositivos de fazer falar da modernidade e a tagarelice que caracteriza o nosso tempo, escondem uma desconfiança, uma suspeita em relação ao silêncio, aos seus mistérios e sua potência. A confissão aparece na obra de Foucault como exemplo dessa desconfiança, dessa relação com o silêncio.

Jean-Luc Nancy, em seu texto “À escuta” (2014), fala da possibilidade de uma relação não-binária entre o dizer e o não-dizer, a partir do entendimento lacaniano da voz como a

[...] ‘a alteridade do que se diz’: o que, no dito, é outro que o não dito, o que, num sentido é o não-dito ou o silêncio, mas igualmente o próprio dizer, e ainda este silêncio dizendo como que o espaço no qual “eu me ouço a mim mesmo” quando apreendo significações, quando as ouço chegar de outrem ou do meu pensamento (é a mesma coisa). (NANCY, 2014, p. 49-50)

Aqui, a voz aparece como algo que vai bem além das sonoridades que compõem a fala, entendidas como significantes. Para Nancy, a voz ressoa, é uma materialidade sonora, uma vibração incorporada. A escuta depende de uma relação com o silêncio, como reverberação da voz, que escapa ao fono-logo-centrismo. O silêncio é entendido não como uma privação ou uma alusão à inefabilidade do sonoro, mas como a própria “disposição de ressonância”, a corrente de ar vibrátil da qual se elevará o clamor da voz, que ressoa, para além de todo o sentido, abrindo a possibilidade de um corpo novo do dizer, “o que quereria dizer: talvez seja preciso que o sentido não se contente com fazer sentido (ou com ser logos), mas além disso ressoe” (NANCY, 2014, p. 17).

Por isso, com Foucault e Nancy, queremos falar do silêncio que nasce da impossibilidade do dizer, nos momentos em que tudo arde, mas também do silêncio como possibilidade de abertura a outras formas de relação com o mundo, através dos gestos que interrompem a tagarelice e abrem a possibilidade de uma escuta como disposição de ressonância.

Trazemos aqui algumas experiências vividas como marcantes relativamente a outras possibilidades de relação com o silêncio e que nos parece que podem ajudar a dar materialidade às questões que estamos trazendo para a discussão. Curiosamente as duas experiências aconteceram em Sevilha na altura em que um dos autores deste texto ali vivia. A primeira aconteceu na Semana Santa do ano de 2005: todo um acontecimento na cidade, que nos transporta para os seus tempos de poder e glória. Naquela semana, milhões de pessoas acorrem a Sevilha para assistir às procissões que saem de todas as igrejas e recriam o esplendor perdido do barroco setecentista. O ambiente é de festa. Na noite de quinta para sexta-feira santa, a madrugá, saem em procissão durante toda a madrugada as mais importantes irmandades sevilhanas. Uma delas, a irmandade do silêncio, sai às quatro horas da madrugada e desfila pelas ruas do centro, noite escura, sem música, em completo silêncio. Ao contrário do que acontece com todas as outras procissões que são acompanhadas por música instrumental ou cantos, nessa durante o percurso não se escuta uma palavra, milhares de pessoas assistem a tudo no mais completo mutismo. Se escuta, apenas, o som ritmado dos sapatos de corda dos nazarenos2 e dos costaleros3 que carregam os andores. Nesse momento, o silêncio assume uma materialidade palpável que penetra nos corpos e nos gestos e nos transporta para um espaço/tempo de uma espiritualidade que nos desloca dos nossos modos habituais de relação que com ele estabelecemos. Para além da natureza religiosa dessa manifestação e da relação que cada um possa estabelecer com ela e com aquele momento, as condições necessárias para que aquela experiência possa se dar são o silêncio e a escuta. Esse acontecimento abre o espaço de “disposição de ressonância” de Nancy (2014, p. 41): uma vibração incorporada, de uma passividade ativa que ressoa nessa (in)tensa exposição que nos afasta de uma qualquer reflexividade possessiva e nos situa num para além, num fora, num algures.

A segunda experiência foi a manifestação em Sevilha, um dia depois dos atentados terroristas de Madrid, em 11 de março de 20044. Nesse dia, por toda a Espanha, milhões de pessoas saíram à rua para se manifestarem contra o horror do que acabava de acontecer, demonstrarem a sua solidariedade para com as vítimas e exigirem transparência nas informações e explicações que eram passadas pelas autoridades em véspera de eleições. Esse foi um dos acontecimentos mais marcantes presenciados por alguém recém-chegado à cidade: 1 milhão de pessoas na rua em silêncio, em resposta ao terror que deixou todos sem palavras. Uma experiência da potência do silêncio como gesto político. A força daquela multidão em silêncio, o gesto de estar junto naquele momento. O medo, a perplexidade, a raiva, o não saber o que tinha realmente acontecido, fizeram emergir o silêncio como um gesto de uma potência impressionante, como uma forma de partilha, de estar junto naquele momento e, talvez, uma mudança de frente de batalha.

A experiência desse silêncio, do medo, da espera, do não saber (o que iria acontecer), nos tomou novamente frente a um vírus silencioso e invisível da epidemia global que ainda deixa suas marcas. Um silenciar que, em alguns lugares do Brasil, durante o ano de 2020, era interrompido apenas pelo bater diário das panelas, pontualmente, às 20h00, durante meses, em uma recusa contínua ao governo de Jair Bolsonaro. Um som estridente que ampliava esse silêncio; um ruído sem palavras, sem voz, que fazia ecoar as angústias e a revolta do momento que estávamos e estamos vivendo, mas que também nos fazia pensar no que significava parar naquele momento, estar em casa, suspender as atividades que tínhamos acabado de retomar no início do ano acadêmico5.

Em seu livro “Esferas da Insurreição”, Suely Rolnik (2018, p. 27), referindo-se aos tempos que temos vivido, fala do “que sufoca e produz um nó na garganta” e da sua escrita como sendo impulsionada por nós como esse, que foram se apresentando durante os acontecimentos políticos dos últimos anos e frente às urgências que eles impunham ao trabalho do pensamento. Num dado momento, ela questiona:

Estar à altura desse tempo e desse cuidado para dizer o mais precisamente possível o que sufoca e produz um nó na garganta e, sobretudo, o que está aflorando diante disso para que a vida recobre um equilíbrio - não será esse o trabalho do pensamento propriamente dito? (ROLNIK, 2018, p. 27)

A possibilidade de dizer alguma coisa quando tudo arde, ou a partir desses nós na garganta, nos parece implicar também um silêncio, uma pausa, uma interrupção que nos permita um exercício de atenção às ressonâncias dos afetos nos nossos próprios corpos. O nó é o que nos deixa sem resposta e, ao mesmo tempo, perante a urgência em responder. Podemos encarar esse silêncio como uma recusa que permite criar um espaço para “praticar cenários que nos trazem de volta o bem-viver” (ROLNIK, 2018, p. 27), através de um trabalho de “experimentação sobre si que demanda uma atenção constante” (ROLNIK, 2018, p. 37), na busca de modos afirmativos de agir, se relacionar e existir. Trata-se de refinar a escuta para que das urgências do nosso tempo possam germinar mundos outros, formas outras de expressão e criação que possam injetar vitalidade à vida social “contribuindo à sua maneira para o trabalho coletivo que visa sua transfiguração” (ROLNIK, 2018, p. 9), para que se possa encontrar palavras que ressoem possibilidades de futuro, para além do sufoco, do nó na garganta. Como refere a própria Suely Rolnik relativamente às razões da publicação do seu livro, essas ressonâncias podem ser encontradas em determinados exercícios que aguçam nossa escuta e ampliam as possibilidades da existência, do viver juntos.

Voltemos às caminhadas que, como professor e professora da UFRJ, temos proposto aos estudantes da graduação. Na vivência de uma experiência que suspende a resposta pronta, o resultado esperado, e que sempre deixa os estudantes desconcertados perante a necessidade de exercitar uma atenção a si próprios, todos são convocados a escutar as ressonâncias que o caminhar produz nos seus corpos. Essa inquietação diante do exercício é, antes de tudo, um estranhar de si no movimento do caminhar, que anuncia um deslocamento fundamental da condição de aluno (condição institucional e posicional) para a condição de estudante (condição existencial e pedagógica) (LARROSA, 2018). Uma forma de desalunizar os alunos para que eles possam viver, experimentar a sua condição de estudantes através de uma outra relação com o estudo, para além das respostas definitivas, das soluções, praticando uma atenção tensionada, uma espera sem promessa. Nesse exercício de caminhar num determinado espaço da cidade do Rio de Janeiro, sem um objetivo ou resultado definidos, está implicada uma abertura àquilo que nesse caminhar, nessa errância, nos provoca a pensar sobre educação. É, mais uma vez, de uma escuta que se trata, de um caminho…

Também temos vivido esse silêncio nos encontros do GESTE6, quando o pensar em conjunto se depara com questões para as quais não encontramos resposta, ou quando os nossos modos habituais de conversa e de pensamento são perturbados por exercícios como a leitura em conjunto de um livro do antropólogo Tim Ingold em inglês - o “Anthropology and/as Education” (INGOLD, 2018) -, ou a carta de Ana, uma das participantes que integram o grupo, sobre a sua pesquisa, ou ainda escrita de um texto coletivo que seria então apresentado em um evento interno no Programa de Pós-Graduação na universidade em que atuamos. Nesses momentos se instaura um tempo de escuta, aspecto central desse movimento de fazer com que o pensar seja, ainda, possível. Nesse espaço de encontro semanal, através de movimentos de partilha, se constitui um “corpo vibrátil” (ROLNIK, 1989), no qual, no contato com diferentes leituras e escritas, se mobilizam afetos cambiantes e em que se constitui uma multiplicidade variável produtora de alteridade. Essa realidade sensível e invisível, silenciosa, vai-se compondo e recompondo de forma singular na subjetividade de cada um dos que participam desse movimento a partir da escuta desse corpo e suas mutações.

No mais, desde 2018, temos feito um trabalho com a leitura e a escrita na disciplina de Pesquisa em Educação do curso de Pedagogia a partir do que chamamos “textos excêntricos” - tanto no sentido de estranhos ao campo da educação quanto porque, consequentemente, têm um descomprometimento diante dos enredos da literatura especializada, uma independência face aos hábitos mentais, aos lugares comuns, às verdades inquestionadas com que essa literatura se pretende legitimar” (POMBO, 2000, p. 9) - e de uma escrita a partir das marcas da experiência que permitem manter a abertura do pensamento através desses exercícios. Ensaiamos formatos de escrita também estranhos ao que mais comumente se pratica na formação de professores e pesquisadores em educação: a carta, o ensaio, o fragmento. Questionando e ensaiando outros modos de ler e escrever, buscamos escapar às diversas formas de normalização, de controle, de enquadramento da leitura e da escrita na universidade tentando constituir um campo de luta que force a potencialização dos modos outros de existência (AQUINO, 2011). A escrita surge aqui como uma voz que ressoa, como a escuta do que não está já codificado e, por isso, abre um espaço para o silêncio. Trata-se da ideia de uma “escuta prolongada” que opera na passagem “na qual a escrita encontra o ouvido e o ouvido encontra a escrita” (LIBRANDI, 2020, p. 25). Nesse movimento, a autoria se transforma em recepção auditiva e o texto escrito se liberta para ressoar nas mentes e corpos dos leitores. Essa ressonância que se forma no silêncio da escrita e da leitura, passa a ter presença e a surtir seus efeitos no espaço da aula, nos nossos encontros semanais.

A experiência de aulas e encontros remotos também tem trazido outros silêncios e outras relações com ela: os da distância dos corpos, seguramente, mas também das presenças silenciosas na tela, ou nas vozes que se calam e param por momentos para pensar juntas e que, na ausência dos corpos em presença num determinado espaço físico, dão uma outra materialidade ao silenciar que todos estamos experimentando na estranheza da relação com os meios que suportam o ensino remoto.

Nancy (2014) nos fala da escuta como uma experiência que coloca em jogo a verdade, o sentido. A experiência da escuta opera através de uma tensão, uma intensão e uma atenção que intensifica o cuidado, a curiosidade, a inquietude. Escutar é diferente de ouvir: enquanto este está ligado ao sentido, ao “entender”, a escuta tem a ver com a ressonância, com um sentido possível, mas que não é imediatamente acessível - é uma reverberação. “Estar à escuta é sempre estar à beira do sentido, ou num sentido de borda e de extremidade” (NANCY, 2014, p. 17); é “ampliar-se e dissipar-se em vibrações que, ao mesmo tempo, o relacionam consigo e o põem fora de si” (NANCY, 2014, p. 20). É um “entre”, uma caixa de ressonância, um espaço que se afasta de um reenvio, é um movimento infinito em relação a si e ao que está fora de si, ao que é simultaneamente o mesmo e um outro. Por isso, Nancy diz que a escuta é da ordem da participação, da partilha ou do contágio.

Estar à escuta implicaria abrir um espaço, um “terceiro espaço” (LIBRANDI, 2020), de estar ao mesmo tempo dentro e fora, estar aberto, formar uma singularidade sensível de partilha de um dentro/fora, divisão e participação, desconexão e contágio. Esse gesto desloca a voz da ideia de uma intencionalidade, ou de uma autorreflexividade, ou de uma interioridade, ligando-a a processos de singularização que se dão num terreno comum a todos, e que a todos transfiguram. Esses processos se alimentam de ressonâncias, da força coletiva e das sinergias que produzem. Esse espaçamento, essa ressonância, é o que constitui a possibilidade de uma outra relação com o silêncio, não como privação, mas como uma disposição a ressoar: “um pouco - ou mesmo exatamente... - como uma condição de silêncio perfeito, se ouve ressoar o próprio corpo, a sua respiração, o seu coração e toda a sua caverna ressonante” (NANCY, 2014, p. 41). Por isso, esse escutar não é meramente sonoro, não se refere apenas a sons audíveis, ele está mergulhado em silêncio, refere-se também ao que resta como silêncio, na oralidade, na fala, na escrita, na leitura. Mais do que um espaço de produção, esse seria um espaço de recepção (LIBRANDI, 2020).

O silêncio é o que não deixa a voz identificar-se, é o que a faz diferir constantemente, indiferente à identidade e à diferença. Pensar a voz como a alteridade do que se diz, o não-dito ou o próprio silêncio, tanto como o próprio dizer, coloca a comunicação não como transmissão, mas como partilha. O escutador está oferecido, exposto ao sentido, a escutar esse silêncio do sentido que escapa à ideia de um sentido absoluto, à própria história do sentido e da sua verdade no Ocidente. Trata-se de uma escuta disposta ao afeto, ao que pode estar em jogo numa conversa, ou numa aula.

O silêncio e a escuta também emergem como possibilidade de multiplicar as vozes, como disse Foucault em relação às lutas políticas que apagam os aspectos solitários e sombrios sob a máscara da profecia, propondo

[...] que as vozes de um número incalculável de sujeitos falantes ecoem e se faça falar uma inumerável experiência. [...] É preciso fazer falar todas as espécies de experiências, dar ouvidos aos afásicos, aos excluídos, aos moribundos, pois estamos no exterior, enquanto são eles que efetivamente enfrentam o aspecto sombrio e solitário das lutas. Creio que a tarefa de um praticante de filosofia, vivendo no Ocidente, é dar ouvidos a todas essas vozes. (FOUCAULT, 2013, p. 207)

“Dar voz” não como confissão ou como um fazer falar - a que Foucault tanto critica na confissão ou nos dispositivos discursivos da modernidade -, mas como escuta, atenção, ao mesmo tempo, exercício de cuidado de si; como técnica de si, como possibilidade de transformação na relação com a alteridade, fazendo emergir outras camadas e possibilidades de relação com o mundo. Também como possibilidades de invenção na docência, de ensaios de outros modos de existência através de uma atenção ao presente, que nos faz hesitar, duvidar, ensaiar respostas provisórias, modos de escutar, ver, ler, escrever e pensar outros que nos permitam construir uma relação mais potente com o presente. Experimentar modos de re-existir na docência desfazendo as suas formas e linguagens habituais, para tentar destrançar seus fios, para apresentá-la como ela não se apresenta habitualmente, no seu belo perigo, para usar o título e o tom da entrevista do Michel Foucault a Claude Bonnefoy (FOUCAULT, 2016). Nas suas palavras parece ressoar a pergunta que abre o texto de Nancy: “É a escuta uma coisa de que a filosofia seja capaz?” (NANCY, 2014, p. 11). E nos perguntamos: “É a escuta uma coisa de que a educação seja capaz?” Ou essa escuta tem sido neutralizada pelo entendimento? Pela explicação? Pela tagarelice? Como apurar o ouvido, arrebitar a orelha, praticar a tensão, a intensidade e a atenção que marcam a intensificação de um cuidado, uma curiosidade, uma inquietação? “Escutar é estar inclinado para um sentido possível, e consequentemente, não imediatamente acessível”, como diz Nancy (2014, p. 17).

Guimarães Rosa (2001), em seu conto ‘A terceira margem do Rio’, evoca a personagem do pai silencioso, que com o seu gesto sem explicação, nos coloca na incógnita dessa terceira margem, da espera por respostas que não chegam. Como o conto nos transporta para uma experiência de um lugar sem margens e sem nome, um lugar de indeterminação, um lugar sem lugar, que impede qualquer fixação normativa de sentido, mas, ainda assim, com uma riqueza de vozes impressionante, a voz das águas. Essa terceira margem, ou esse terceiro espaço, é aquele por onde tudo escapa: ao pensamento dogmático, aos binarismos fala/escrita, atividade/passividade, som/silêncio, verdade/mentira. É no próprio interior desse pensamento e desses binarismos, pela fricção e não pela oposição, que Guimarães Rosa inventa passagens para a errância de um pensamento que escapa aos códigos instituídos para criar outras possibilidades de vida, de expressão, modos outros de existência. A positividade do silêncio presente no conto aponta para uma vitalidade do pensamento, chamando a atenção para o que passa pelo meio, para esse fluxo que arrasta as duas margens para uma viagem sem ponto de partida ou de chegada, uma viagem que se faz pelo meio. Os diferentes modos de relação com o silêncio com que nos deparamos no conto constituem uma trama que atesta essa positividade. O filho que se coloca no movimento de inventar um modo de expressar os acontecimentos dentro dos códigos instituídos, essa invenção abala a própria expressão do pensamento racional, dogmático, que os sustenta. Torna a língua estrangeira a si própria, fazendo-a gaguejar, entrar em choque com os seus próprios limites, tornando-se, assim, problemática. Os que insistem na busca de explicações tentando codificar o que lhes é estranho expressam o fracasso em aprisionar aquele gesto, aquela viagem, nas regras do pensamento vigente, fechado, incapazes de problematizar os seus limites ou as suas margens. Já a potência do silêncio do pai reside no escape aos códigos instituídos para criar outras possibilidades de expressão. Daí essa estranha cumplicidade entre pai e filho, expressa na ressonância entre a força do silêncio e a eloquência narrativa. É pela força do silêncio que a língua delira, gagueja, se torna estrangeira, como canta Caetano na canção homônima do conto: “Hora da palavra/ Quando não se diz nada/ Fora da palavra/ Quando mais dentro aflora/ Tora da palavra”, falando dessa “água da palavra” que remete para o fluxo, para uma língua tornada devir a partir de uma escuta da “voz das águas” (VELOSO, 1992).

Finalmente: sobre a produtividade polifônica de nossas vozes

A vibração e a tensão desta imagem é imensa. Tudo vibra como em consonância com um grito abissal que pareceria provir das profundezas do homem. Tanto mais terrível quanto o rosto contorcido é absolutamente silencioso. (MENEZES, 1993, p. 81)

É sobre um outro grito, mais famoso, pintado por Edvard Munch, que queremos nos deter agora. Nesse quadro, o corpo que grita, esse corpo sinuosamente deformado, em meio a uma paisagem cujos traços e cores parecem acompanhar ou se contorcer com esse grito, em que tudo parece gritar, é, paradoxalmente, um corpo silencioso. A vibração e a tensão dessa imagem residem precisamente no contraste entre o grito abissal que a imagem representa e o absoluto silêncio desse rosto contorcido. Na leitura de Menezes (1993, p. 81), esse grito é um grito mudo: “Esperamos que a pintura grite para nós, mas, por mais que forcemos o ouvido, apenas o nada nos atinge. Contraste final da vibração de um indiscutível grito mudo”. E é aí precisamente que reside a potência dessa imagem: através dela, é o mundo que vibra, não um sujeito, ou um saber, ou um poder, mas um movimento, um processo onde as coisas são em relação, que ressoa em todas as direções. O grito mudo é a materialização dessa relação ao mundo, de ser através dela, e essa relação está sempre em devir, num processo que constantemente se recria. Desse modo de relação com as imagens e destas com o mundo se abre a possibilidade de experimentar a multiplicidade, a pluralidade dos sentidos.

É precisamente nessa abertura à multiplicidade, à pluralidade de relações com o mundo como forma de caminhar na docência que podemos pensar a junção entre grito, gaguejo e silêncio. Ela está em “O grito”, assim como no ônibus que queima ao longo deste texto. A docência entendida como afirmação da vida, da proliferação e das relações no mundo a partir da experimentação com o pensar e o viver talvez precise exercitar mais esses gestos que interrompem modos instituídos de se relacionar com o ensino, com a aprendizagem, com as figuras do professor ou do aluno, com o conhecimento. Um modo de se deslocar da imagem do ônibus que arde para a imagem do grito que afirma, pelo gaguejo e pelo silêncio. Trata-se de pensar como cada grito, silêncio ou gaguejo pode funcionar como possibilidade de reinterpretação da relação com o mundo, com a docência, com o saber.

Grito, gaguejo e silêncio, juntos, nos relembram do lugar fundamental que pode ter o acontecimento em nossa docência. Em Munch, o grito está e não está, assim como o silêncio, a hesitação. Essa presença-ausência é talvez o cerne da materialidade e da intempestividade acontecimental. Brian Massumi (2015) recupera seu sentido a partir da forma proposta por Kanizsa que, nascida a partir de três semicírculos posicionados de certo modo, vê emergir, entre eles, uma figura triangular que, ao mesmo tempo, teima em desaparecer e em reaparecer, convertendo a individualidade de cada estrutura isolada em uma relação que entre elas surge e as modifica. O acontecimento desloca as individualidades circulares em favor de uma composição singular, que as ultrapassa e forma um novo corpo: o do próprio triângulo de Kanizsa.

O mais importante do silêncio, do gaguejo e do grito como aqui assinalados é o que deles permanece, inclusive, na sua ausência. Os três instauram um plano por meio do qual aqueles que gritam, silenciam e hesitam podem se compor. É por isso que, frequentemente, vemos brotar a força ímpar de uma insurreição a partir da voz que se afirma ali, coletivamente - seja na forma da escrita, da procissão, da revolta. Há uma política no grito-gaguejo-silêncio que merece ser colocada em jogo a cada vez que pensamos no que fazemos como professores e professoras.

E se há política é porque há, de algum modo, a possibilidade de um comum que, aqui, se funda nas vozes polifônicas que se encontram em suas diferenças; de surgimento de uma multidão que “fala em línguas” (ANZALDÚA, 2020), um tanto babélica, e que por isso mesmo vê surgir, em seu interior, uma miríade de singularidades, agenciamentos e parcerias que, por algum tempo, irrompem na circulação de desejos compartilhados.

Gritar, gaguejar e silenciar são necessários ao re-existir da docência. A pergunta pelo que vaza de nossas vozes precisa ser feita e refeita a cada vez que olhamos para o que temos feito, enquanto professoras e professores, com e a partir de nossas escolas, nossas relações, e das políticas que estão sempre a falar sobre nós e a incidir sobre aquilo que nos move. Assim como a figura que grita em Munch, assim como o ônibus que queima na rua, há em cada docente uma individualidade cuja solidão se torna insuportável. Ela vaza, respinga, contagia o que lhe circunda. Talvez seja esse um convite valioso à docência, em tempos nos quais o isolamento, o antagonismo e o distanciamento nos assolam por vias políticas e sanitárias: o de procurar, incessantemente, pelas dispersões e novas composições possíveis, a partir das quais somos sempre outros, sempre vozes a destoar, ressoar e continuar…

Referências

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1Sobre tais exercícios, conferir Gonçalves, Bochetti e Valentim (2017).

2Penitentes que acompanham a procissão seguindo atrás dos andores vestidos de túnica e capuz.

3Penitentes que carregam os andores.

4Atentados terroristas de 11 de Março de 2004, contra os trens suburbanos de Madrid, três dias antes das eleições gerais espanholas, que provocaram centenas de mortes e milhares de feridos.

5É importante lembrar, com André Lepecki (2020), que tal “parada” não foi nem uma pausa nem, tampouco, um direito adquirido por todos. De fato, houve aqueles que tiveram a possibilidade de se distanciar, e aqueles — a maioria da população, por sinal — que foram obrigados a permanecer nas ruas, nos deslocamentos inseguros, nas situações de maior exposição ao adoecimento.

6GESTE - Grupo de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho da Educação, dos quais a autora e o autor deste texto são coordenadores.

Recebido: 25 de Abril de 2022; Aceito: 26 de Outubro de 2022

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