Introdução
Nas últimas décadas, a despeito da diferença, todos os governos, em um cenário nacional, têm levado em apreço a produção de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) - como bem ilustra a linha do tempo do Movimento pela Base (doravante: MBNC)2, o que não inviabiliza vozes dissonantes no percurso, as quais têm apontado para outra direção, conforme salienta Macedo (2014, 2016). Através da retórica de que está garantindo os direitos à aprendizagem dos alunos, a política curricular no Brasil (e em muitos países do mundo, como Chile, Estados Unidos, Inglaterra e Austrália, por exemplo) está traçando como uma via inexorável rumo à “qualidade da educação” um viés centralizador que tem subsumido a educação a ensino (aprendizagem), como diferentes autores têm apontado (BIESTA, 2012; MACEDO, 2015, 2016, 2017; MILLER, 2014).
Nesse contexto, distintas demandas políticas se articulam pela ideia de projeção identitária, a partir das quais o currículo é um elemento central e as mudanças sempre tidas como necessárias. Em seu conjunto heterogêneo, no entanto, o discurso das reformas curriculares tem deslocado o imponderável da educação como “exterior constitutivo”, conforme argumenta Macedo (2014, 2015, 2016), pretensão esta que desloca a diferença para a margem, disfarçando o viés colonizador (MACEDO, 2009; RIBEIRO, 2016). Nesse bojo, o movimento Escola Sem Partido (ESP), que vem gerando muita discussão por conta das tentativas de regulação, é mais um registro nessa direção, efeito de relações de poder que se sobressaem hoje na disputa pelo que se imagina ser “um currículo ideal para todos” (MACEDO, 2017). Com base em Foucault e Deleuze, Paraíso (2016) nos leva a pensar nas/potencializar as vias de fuga em relação às pressões de discursos reacionários, como os do ESP, que buscam impor suas demandas por meio da articulação de significantes como “ideologia de gênero”3.
Interessa destacar, no âmbito de nossas indagações, a articulação que torna possível a ideia de que currículo é “seleção de conhecimento”, pois “conservadores” não são os únicos a buscar uma posição na decisão de fixar “conteúdos básicos”, como analisa Macedo (2017), cabendo à pesquisa, como uma das possibilidades de análise, procurar entender o que torna possível um discurso se constituir, pois sabemos que há em jogo uma maneira de tentar impedir que nos tornemos mais abertos a outras experiências/possibilidades. Assim, o currículo tem ocupado uma centralidade nas reformas educacionais, tido como precursor de mudanças consideradas necessárias e que devem ser oferecidas a todos. Em Angra dos Reis, particularmente, segundo temos acompanhado, a terceira versão da BNCC já vinha sendo posta em estudo em algumas escolas, antes mesmo da aprovação do documento pelo Conselho Nacional de Educação, mostrando o seu caráter regulatório.
É nesse contexto que a proposta de criação dos nossos grupos de pesquisa: NEPoC (Núcleo de Estudos em Políticas Curriculares); GPeC (Grupo de Pesquisas Curriculares) e GRUPEMAT (Grupo de Pesquisas em Educação Matemática) tem sido gestada a partir da articulação e de diálogos entre docentes e discentes no âmbito da UFF (Universidade Federal Fluminense).
Em pleno desenvolvimento, os grupos contam com diversas publicações em periódicos qualificados, além de ter obtido êxito em editais de fomento a pesquisas na área de currículos. Sobre as nossas produções comentaremos em tópico posterior, mas aqui nos serve para ressaltar o trabalho pioneiro desenvolvido na UFF, campus de Angra dos Reis, onde, inclusive, acontece o evento Congresso de Diversidade Cultural e Interculturalidades de Angra dos Reis, que a partir de 2016 passou a contar com o GT 9 sobre Currículos, coordenado pelo nosso grupo, e que contou com quase cerca de 60% das inscrições de todo o evento, gerando momentos de ricos debates e troca de experiências interinstitucionais sobre temas diversos que envolveram o campo. Além de diversas unidades, tivemos inscrições de pesquisadores da UNIRIO, UFRJ, UERJ, UFRRJ, Cefet, dentre outras - de graduando a professores e pesquisadores de diversos níveis e modalidades de ensino.
Os encontros do Grupo acontecem no IEAR/UFF (Instituto de Angra dos Reis), assim como os Seminários de Currículo que envolvem temas das pesquisas dos docentes e dos discentes, e nos quais toda a comunidade é convidada a participar, possibilitando, desta forma, que professores das redes pública e particular das escolas da região da Costa Verde (Itaguaí, Mangaratiba, Angra dos Reis, Paraty) e demais profissionais da educação possam socializar suas experiências. Em diálogo com autores do campo curricular, o objetivo do texto é retomar o processo de trabalho e de estudo de nossos grupos de pesquisa, apostando nas vias de fuga, a qual produz a possibilidade do confronto com o que entendemos como uma cultura da testagem e/ou restrição dos sentidos educacionais e formativos. Temos pensado nos processos ambivalentes de formação docente, considerando em que medida tais estudos contribuem com ferramentas estratégicas, o que tem nos conduzido, ainda de maneira distinta, à centralidade da cultura e da diferença para pensar a dinâmica social.
Em um primeiro momento, retomamos as discussões que temos feito a respeito do currículo, ampliando as possibilidades de sentido. Este texto também articula os sentidos de currículo e docência, remetendo a questões-chave no âmbito das identificações/da diferença. Por fim, retomamos a proposta e tecemos algumas considerações finais, reafirmando a relevância do escape/vias de fuga, ainda que as condições sejam obstaculizadas.
Discussões centrais a respeito de currículo
No campo do currículo e da educação, temos estudado recentemente autores como Biesta (2012), Miller (2014), Vieira e Hypolito (2013), Macedo (2014, 2015, 2016, 2017), Lopes e Macedo (2012) e Ball (2014) que - apesar dos diferentes quadros teórico-metodológicos e perspectivas epistemológicas - nem sempre aproximadas, contribuem com a nossa discussão quando chamam a atenção para um contexto mais amplo do currículo que problematiza a subsunção da educação ao ensino (e à aprendizagem), como apontamos anteriormente.
Biesta (op. cit.), por exemplo, questiona a “era da mensuração” e de testes padronizados, a partir da qual se limita o discurso educacional a resultados e objetivos previamente estabelecidos. O mencionado pesquisador busca por em relevo o debate em torno das finalidades de educação, considerando que estão sempre em jogo no currículo. Assim, procura explicitar a dimensão do político em um contexto democrático e aberto, o qual, segundo Macedo (2017), vem sendo subsumido por uma “inteligibilidade neoliberal” que nos torna “capital econômico”. Na perspectiva do mencionado autor, o debate concernente às finalidades educacionais vem desaparecendo da agenda política, o que considera uma questão para a democracia. Ele busca retomá-lo como uma discussão central, propondo que as funções educacionais possam ser sempre (re) pensadas e não tomadas como dadas. Uma das razões apontadas para tal silenciamento, segundo o referido autor, é produzida pela centralidade no ranking que inscreve o discurso pedagógico em diversos países na lógica da competitividade, da responsabilização, das informações de desempenho; combinado estranhamente, para ele, com uma perspectiva de justiça social - de que todos devem ter acesso a uma educação de qualidade, isto é, da mesma qualidade. Nessa linha, questiona a ideia de que a educação possa se basear em estudos empíricos com a perspectiva de “evidência” ou de “estudos experimentais em larga escala”.
Na esteira dos questionamentos em relação às restrições para o currículo e para a diferença, Miller (2014) destaca a relevância da teorização curricular como um componente no debate educacional - uma espécie de antídoto em relação à “cultura da testagem” - frente a uma corrida para quantificar tudo, isto é, todos os aspectos que são relacionais e necessariamente enredados: educação, aprendizagem, currículo, ensino. Ela argumenta mais radicalmente de que se trata de aspectos que - não apenas são impossíveis de serem medidos totalmente, mas imprevisíveis, não generalizáveis e até impossíveis de serem conhecidos. De outra forma, sugere pensar o currículo como autobiografia, ou seja, no sentido de se compreender o educacional como processo relacional e intersubjetivo, inclusive os efeitos de testes em larga escala, discutindo como a cultura da testagem e a adesão a ela pode deixar de lado toda a teorização curricular, ainda que ela esteja sempre no processo.
Nesse sentido, a teorização curricular - para a autora - possibilita não apenas a crítica, mas uma perspectiva de deslocamento de significações produzidas em posições de certezas, isto é, obsessivas pela mensuração, pela classificação, por avaliações compreendidas como “testagem de tudo”, por se valerem de uma compreensão de currículo como conhecimentos predeterminados, empacotados, fixos, previstos, imutáveis, para serem mensurados. Por sua vez, a teorização produz espaços contingentes, momentâneos e dinâmicos para o que a autora chama de “reimaginações relacionais”. Desse modo, explicita que haja sempre revisões do que e quem de fato “conta” em educação.
Se alguém de fato pode ver o currículo concebido como ‘entendimento’ não apenas do conteúdo das matérias, mas também da(s) natureza(s) das experiências educacionais, então nós também precisamos considerar todos os aspectos da educação como intrinsecamente ligados, complexos, mutantes e nunca capazes de serem inteiramente prescritos, codificados e universalizados (MILLER, 2014, p. 2052).
De outra forma, mas sem perder de enfoque a temática educacional em um cenário de restrição de sentidos, os autores Vieira e Hypolito (2013) questionam a dimensão colonizadora na estandardização do conhecimento, a qual se articula em uma concepção de currículo e de educação bastante restritiva. Nessa configuração, como os demais pesquisadores também apontam, provas, metas-índices, exames e avaliações em larga escala tornam-se “dispositivos tecnológicos” de políticas que buscam reforçar a ideia de que a função da escola hoje é tornar o aluno apto a “aprender a aprender”.
Considerando o exposto, a diferença, como salientam os pesquisadores citados, é esquecida e/ou está sempre em relação de oposição ao mesmo, à identidade ou - à uni-identidade - como diria Derrida (2016), supostamente calculável de maneira coerente e previsível; enquanto o currículo, confundido com documentos, efeitos de uma suposta seleção orquestrada, democraticamente ou não, está voltado cada vez mais às competências que permitirão o compromisso de aprovação nos testes, tal qual uma espécie de treinamento ostensivo para o desempenho individual. Uma grande e falaciosa promessa de sucesso na vida profissional, conforme vem discutindo Macedo (2014, 2015, 2017). Sendo assim, concordamos que
[...] não podemos mais ignorar os deslocamentos do conceito de aprendizagem e de ensino provocados, em grande parte, pelas políticas educacionais implantadas no Brasil a partir dos anos 1980. Nesse deslocamento, estamos presenciando a redução do processo educacional à ideia de aprendizagem e de ensino, agora univocamente relacionada a processos cognitivos, excluindo o espaço da história e o lugar da cultura na educação e nos currículos (VIEIRA; HYPOLITO, 2013, p. 130).
Parece-nos que, apesar das diferenças entre eles, todos os autores mencionados anteriormente chamam a atenção para a dimensão hipervalorizada do cognitivo nos processos educacionais, transformando qualquer discurso, inclusive hibridizando conceitos de libertação, emancipação, cidadania e pluralidade, em objeto do domínio da psicologia e do mercado. No que diz respeito à objetivação do processo educativo, ou à sua reificação, deposita na ciência a possibilidade de resolução de todos os problemas do mundo social (LOPES; MACEDO, 2012). Nesse caso, se trata de investir sentidos não políticos, naturalizados, individualizados e neutros na configuração das finalidades educacionais.
No âmbito da formação inicial de professores, ressaltam Vieira e Hypolito (2013), articula-se a uma centralidade no pragmático, com um aumento acentuado dos componentes curriculares que exacerbam “as práticas” e uma redução da “formação geral” e “teórica”. Na formação continuada, também se proliferam atividades pragmáticas, nas “boas práticas”, preferencialmente generalizáveis para que a qualidade da educação “seja garantida”, associada, em todo caso, à responsabilização individual de cada docente. Os pesquisadores citados salientam, em contrapartida, a pertinência de atentarmos para os processos cotidianos de produção curricular, ressaltando que no jogo político - em que a diferença se torna empecilho e/ou transforma-se em diversidade; está na escola, mas precisamente no que chamamos de “chão da escola”, a chave que impede que a política governamental - qualquer política - se transforme em polícia do pensamento único.
Em suma, entendemos que o currículo está no cerne das reformas políticas do campo da educação. E que, portanto, discutir currículo é central nos distintos espaços educativos. Em um contexto de globalização recente (APPADURAI, 2001; HALL, 2006), a ideia de currículo tem sido conduzida por uma reconfiguração regulatória, influenciada por agências internacionais privadas que hoje operam em rede junto aos setores públicos (BALL, 2014; MACEDO, 2014). Além disso, as políticas curriculares no Brasil têm recontextualizado discursos em torno de uma perspectiva centralizadora (CRAVEIRO; LOPES, 2015).
Nessa discussão, a temática da identificação docente é crucial para as políticas curriculares de formação de professores e, por isso, pretendemos ampliar a partir dos estudos de nossos grupos de pesquisa as análises dos sentidos das políticas cuja finalidade seja construir representações da formação docente/discente. No que diz respeito aos processos de identificação, compreendemos como Frangella (2006, p. 17), “a identidade como híbrida e performática, que se constrói a partir de ações discursivas que se dão na fronteira e na negociação”, isto é, tais processos reinscrevem a identidade como fluida, que reconhece, negocia e coabita com/na diferença. Buscamos, portanto, aprofundar os efeitos de tais políticas em processos de subjetivação, incluindo, também, a possibilidade de estudos na perspectiva do/no cotidiano escolar.
Tais estudos são realizados por meio de análises dos documentos oficiais, por meio da investigação (auto) biográfica, outras propostas teórico- metodológicas que vão surgindo pela demanda de nossos orientandos e, dando continuidade aos estudos de Craveiro (2014), por exemplo, a partir do qual algumas análises de documentos são realizadas com o apoio da ferramenta tecnológica WordSmith Tools, versão 6. Ainda que cada pesquisador do grupo tenha a autonomia de desenvolver análises a partir de referenciais teóricos por vezes distintos, nossa intenção é desenvolver articulações e negociações de sentidos que possam trazer contribuições com os estudos a partir do campo do currículo, ou seja, em diálogo com autores nacionais e internacionais que vêm se debruçando sobre o tema.
Embora nem todos trabalhem com o pós-estruturalismo, de diferentes maneiras, dialogamos entre referenciais que possibilitem questionar posicionamentos essencialistas que buscam naturalizar determinados discursos no campo educacional. E, com essa proposta pesquisamos com nossos alunos algumas temáticas tais como: análises de propostas curriculares dos municípios da região da Costa Verde, temas relacionados à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), Etnomatemática, sentidos de docência em documentos curriculares, sentidos de formação continuada nas redes municipais da região, Educação de Jovens e Adultos, sentidos de juventude e de discência nas políticas curriculares. Mais recentemente, dadas às circunstâncias tanto do contexto nacional quanto local - que apontam para uma retomada do fortalecimento de discursos conservadores com inúmeros projetos em curso, iniciamos uma discussão sobre a dimensão política de matriz religiosa/não religiosa no currículo, tendo em vista os múltiplos contextos em que os sentidos podem ser articulados.
Sentidos de currículo e docência
Buscamos também um diálogo no campo teórico a partir de publicações do nosso grupo de pesquisa no campo do currículo e da docência. Em nossas publicações temos procurado apresentar estudos a partir de documentos curriculares principalmente no que diz respeito a análises de algum aspecto da docência, como é o caso da docência na EJA, na formação de professores das licenciaturas, na formação de professores do Ensino Médio e aspectos que de alguma forma articulam-se com a formação inicial de professores e/ou sua formação continuada. Desta maneira, destacamos como um dos objetivos principais aprofundar os estudos curriculares no campo da formação de professores em todas as modalidades de ensino. Também faz parte dos nossos objetivos ampliar as possibilidades de análises dos materiais a serem estudados, com o apoio tecnológico do programa WordSmith Tools, atualmente versão 6,0.
Com esse intuito, destacamos alguns sentidos de docência dos discursos de documentos curriculares da EJA, organizados no banco de dados denominado: CRAVEIRO, Clarissa (org.), 2016. Corpus de Documentos Curriculares, disponível no site www.proped.pro. Iniciamos nossas análises em estudos da formação de professores na modalidade EJA e, em segundo momento passaremos a outras modalidades docentes.
Em tais análises nos deparamos com a defesa de diferentes sentidos atrelados ao significante docência, como a defesa por uma educação de qualidade, sentidos de docente, de conhecimento e de ensino, dentre outros. Apoiados em uma abordagem discursiva, compreendemos esses documentos ou textos curriculares como construção de um discurso.
Os sentidos de docência são significados nestes textos curriculares atrelados a um sentido mais amplo do que o sentido restrito de docência para um “saber fazer” associado às atividades de sala de aula, envolvendo uma construção coletiva, buscando respeitar a autonomia dos sujeitos das aprendizagens ao mesmo tempo em que sinaliza outros espaços que fazem parte da docência, como as funções da gestão, ou seja, conforme disposto na Resolução CNE/CP nº 1/2006, destacada nas DCN abaixo,
(...) no exercício da docência, a ação do professor é permeada por dimensões não apenas técnicas, mas também políticas, éticas e estéticas, pois terão de desenvolver habilidades propedêuticas, com fundamento na ética da inovação, e de manejar conteúdos e metodologias que ampliem a visão política para a politicidade das técnicas e tecnologias, no âmbito de sua atuação cotidiana (BRASIL, DCN 2013).
Além desses sentidos, docência traz algumas especificidades que precisam ser contempladas como o “respeito da diversidade e o efetivo protagonismo das crianças, dos jovens e dos adultos do campo na construção da qualidade social da vida individual e coletiva” (art.13, parágrafo 1, BRASIL, DCN, 2013).
No que diz respeito ao significante docente, os sentidos de maneira ampla sinalizam algumas atribuições do trabalho do professor como a necessidade de promover a prática, a escolha de métodos de aprendizagem, a elaboração do projeto político pedagógico na escola, provocar a curiosidade e anseio dos alunos mediante o conhecimento apresentado. É com a defesa dessa especificidade na formação docente que o professor conseguirá desenvolver com seus alunos metodologias diferentes, baseadas na investigação e na pesquisa.
Os sentidos de docentes em grande parte das ocorrências significam outra forma de nomear o professor. Todavia, acrescentam um aspecto interessante no que diz respeito a trazer à responsabilidade dos entes federados para que assumam suas responsabilidades na manutenção dos cursos e projetos para evitar as descontinuidades destes projetos formativos e omissões das iniciativas em curso, sejam na modalidade presencial ou virtual pois,
(...) trata-se de uma formação em vista de uma relação pedagógica com sujeitos, trabalhadores ou não, com marcadas experiências vitais que não podem ser ignoradas. E esta adequação tem como finalidade, dado o acesso à EJA, a permanência na escola via ensino com conteúdos trabalhados de modo diferenciado com métodos e tempos intencionados ao perfil deste estudante. Também o tratamento didático dos conteúdos e das práticas não pode se ausentar nem da especificidade da EJA e nem do caráter multidisciplinar e interdisciplinar dos componentes curriculares (BRASIL, PARECER 11/2000).
Os sentidos de docência, docente e docentes destacados dos discursos dos documentos curriculares sinalizam uma preocupação por parte das propostas curriculares em defender não só a especificidade dessa modalidade no ensino como também a necessidade de uma formação específica para que o docente se sinta preparado e autônomo para promover a construção de conhecimento adequada ao contexto e às condições do sujeito aprendiz e, consiga reverter a lógica da evasão e da repetência que tanto acompanhou a história da EJA no Brasil. Todavia, também chamamos a atenção que esses discursos são provisórios e contingentes, gestados em determinado contexto político.
Em continuidade à pesquisa de Craveiro (2014), ampliamos a base de dados de documentos curriculares para analisar os discursos produzidos nas políticas curriculares para a formação de professores da Educação Básica no contexto dos governos FHC (1995 a 2002) e Lula (2003 a 2011). Para a análise dos dados a escolha foi a abordagem discursiva da teoria do discurso de Ernesto Laclau. No que diz respeito às políticas curriculares, Alice Casimiro Lopes e Stephen Ball. O contexto FHC contou com 41 documentos curriculares, o contexto Lula, com 62 documentos curriculares.
A pesquisa foi realizada nos sites: Google, MEC (http://portal.mec.gov.br) e foram visitados os documentos curriculares (Resoluções e Pareceres) expedidos pela Câmara de Educação Básica, Reuniões de Conselho Pleno e Conselho Nacional de Educação. Também foram buscados, no site do MEC, as Leis e os Decretos presidenciais referentes à temática de formação de professores. Visitamos ainda o site do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (www.inep.gov.br), acessando o link “Legislação”. Dessa forma, procuramos selecionar os documentos curriculares de 1995 até 2014, os quais normatizam a formação de professores no Brasil.
Deparamo-nos com apoios internacionais e investimentos em avaliações em prol de um discurso da qualidade da formação de professores vinculando a formação a controles externos nos contextos discursivos de FHC e de Lula, minimizando o antagonismo defendido entre as duas propostas. Todavia, há outras articulações relacionadas às diferentes propostas de governo nesse jogo discursivo envolvendo um antagonismo político de sentido mais amplo nesses contextos. Essas articulações são representadas pelos sentidos para a qualificação docente como projeção de mudança política e educacional e emancipação do sujeito na sociedade brasileira (discurso Lula) ou como estratégia das reformas educativas de cunho neoliberal com vistas à superação da crise do desenvolvimento capitalista dos anos 1970 (discurso FHC).
O antagonismo político entre os dois contextos é significado por meio de projetos de governo com propostas muito distantes, ainda que nas negociações locais e globais haja interferências de interesses e jogos de poder, modificando em dado período as demandas defendidas. Nesse sentido, conforme a constituição dos discursos defendidos nessa análise é possível significar o contexto FHC, em sentido amplo, como voltado para os interesses do “mundo globalizado” e que entende os padrões de qualidade associados ao mundo do trabalho. A atuação profissional docente é compreendida em uma lógica da formação que deve atender “às transformações em curso e incorporar-se na vida produtiva e sócio-política” do país (cfr. BRASIL, DCN, 2001). Sendo assim, o discurso defendido expressa os interesses em atender à demanda social significada como “nova” cultura necessária aos interesses do mercado, ao desenvolvimento do país. Dessa forma, é justificada uma modificação na identidade docente para atender às finalidades do mundo global.
Em contrapartida, os sentidos defendidos no contexto Lula apontam para uma busca pela construção da Nação, tentando marcar um sentido social nesse discurso. Busca articular demandas relacionadas aos espaços de participação, inclusão e debate, tentando representar um contexto político de abertura dos espaços de democratização. Os projetos coletivos são compreendidos como lócus de ação de mudança.
Dessa maneira, é possível afirmar que, ainda que haja aproximação entre os sentidos de avaliação, padrões de qualidade ditados por organismos internacionais e até a presença dos mesmos organismos internacionais nos dois contextos, os sentidos não são os mesmos. Algumas demandas podem articular-se nos discursos, como a qualificação pautada nos índices nacionais e internacionais, padrão nacional para a aprendizagem dos alunos e avaliações como material de estudo e aferição da aprendizagem nacional, mas não igualam os sentidos endereçados nas duas cadeias discursivas. Há aproximação de certos sentidos que não os torna iguais. Há uma capilaridade de discursos pedagógicos que faz com que demandas sejam incorporadas às cadeias articulatórias investigadas (FHC e Lula) tornando as políticas de formação de professores semelhantes, com algumas finalidades comuns. Isso desfaz o antagonismo entre os projetos de formação de professores. É possível ter em vista o que Hall (1997) denomina “fenômeno discursivo”, constantes identificações locais e globais em que esses discursos estão imersos, contribuindo com a provisoriedade e a fluidez das posições assumidas nos processos de identificação docente. Esses processos de identificação por meio dos discursos pedagógicos são sempre contingentes e são instituídos por relações de poder.
Contudo, a força do antagonismo entre os projetos políticos mais amplos FHC/Lula introduz demandas diferenciadas, força a constituição também de diferenças, fazendo com que o antagonismo, mesmo que menos visível, nos projetos de formação de professores se mantenha.
As demandas diferenciadas das cadeias discursivas desses projetos de governo, na luta por defenderem suas posições particulares como possibilidade de constituição de sentidos hegemônicos, contribuem para a manutenção do antagonismo mais amplo entre os dois projetos FHC/Lula. Por isso, a ênfase ao longo do período do contexto Lula em naturalizar determinados discursos no ambiente escolar representa a defesa de um projeto maior, de Nação, que também assume posições na construção do projeto político pedagógico coletivo, participação da comunidade escolar e diversos processos de eleição no cotidiano escolar que não garantem de fato que esses sejam espaços de vivência democrática, todavia facilitam o processo, na medida em que esses espaços estão abertos. Esse endereçamento de sentidos traz modificações na constituição da identidade docente com relação aos sentidos endereçados no contexto FHC voltados para o mercado de trabalho.
Já em estudos desenvolvidos com sentidos de docência nos discursos - ibero-americano e brasileiro (direcionado à EJA), defendem majoritariamente docência como atividade e processos relacionados com a prática da sala de aula. Todavia, essa significação busca marcar que ações relacionadas ao processo docente transcendam o sentido de docência como restrito ao da sala de aula. Além disso, convergem para a defesa da conscientização da importância da construção coletiva e processos participativos.
Nos discursos dos países ibero-americanos e do Brasil, defendem que a docência também pode abarcar as atividades de gestão. Entretanto, os discursos ibero-americanos enfatizam docência direta (atividades de ensino/aprendizagem) e docência indireta (gestão ou que não há relação direta com os alunos). Já a defesa brasileira, busca ampliar o entendimento de docência relacionado diretamente à sala de aula, as funções de gestão fazem parte da docência, não há uma dicotomia de função.
A questão do respeito às especificidades locais também é presente em ambos os discursos por conta da diferença entre países, localidades de risco ou socialmente afetadas. No caso dos discursos da EJA é destacada também a especificidade da docência e da didática para os alunos considerados fora da idade regular/série.
A formação sistemática defendida nos países ibero-americanos é apresentada de forma muito detalhada, de acordo com as diferentes etapas da carreira docente e a culminância é a avaliação docente. Com relação a esse último aspecto, ao mesmo tempo em que esse discurso busca defender a avaliação não conteudista e que abarca outros aspectos da formação docente, apresenta por isso, muitos atores envolvidos na avaliação docente conforme já destacado anteriormente. Apesar do intuito do discurso em buscar demonstrar uma avaliação mais abrangente, não exime a possibilidade de um controle maior ao trabalho docente. Como foco central dos discursos de ambos os contextos, destacamos a preocupação com a prática docente, especificamente a da sala de aula e a qualificação docente para tal função/ação.
Considerações finais
Este texto procura retomar o processo de trabalho dos nossos grupos de pesquisas (NEPoC, GPeC e GRUPEMAT) para pensar a temática do currículo e da formação, considerando a possibilidade de fuga, frente à cultura da testagem e à restrição dos sentidos de educação, do currículo e da docência. Destacamos a ambivalência na qual se inscrevem também os processos de identificação docente como via de escape. Nesse sentido, a teorização curricular vem apresentando ferramentas estratégicas, seja em processos que envolvem o ensino, seja no curso da pesquisa, seja nas ações de extensão, o que aponta, em seu conjunto, para o interesse local pelo debate curricular.
Temos nos aproximado, ainda que por referenciais distintos, a partir de uma centralidade na cultura e na diferença para pensar a dinâmica social, o que possibilita, a nosso ver, ampliar os sentidos de educação e de currículo, abrindo “espaços” nos atravessamentos para que a linguagem da testagem e da aprendizagem possa ser provocada, melhor compreendida e alicerçada como uma das dimensões da regulação de sentidos.
Dessa forma, as políticas curriculares - que em sua complexidade têm sido analisadas por nós - em um contexto de reformas educacionais, hibridizam disputas que buscam silenciar a ação docente e colonizar as práticas, bem como sugerem também mudanças provocadas pelos distintos governos, as quais têm ocupado a tônica das discussões nos grupos. Como procuramos apresentar, os sentidos não são os mesmos, distintos são os contextos e as interpretações, seja em relação à EJA, seja em relação às cadeias discursivas dos governos, o que nos interpela a seguir analisando a política de uma maneira não estadocêntrica. Assim, como possibilidade de pensar caminhos na contramão das políticas curriculares analisadas, o escape sempre é possível, ainda que as condições não favoreçam.